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A Arte e o Belo

O homem é, essencialmente, homo faber; isto porque ele é dotado de


inteligência, onde além de ter o dom da palavra, tem também o da criação mental e
artística. Em suma, o homem, sendo ele um artista autêntico, em virtude, imita o
divino e “participa”, em algum grau, da atividade criativa de Deus1, porque de certa
maneira, Deus é, de forma similar, um “artista” no mais elevado sentido do termo,
pois criou o homem “à Sua própria imagem” (Gn 1 ,27). No mais, é natural ao homem
imitar a natureza, pois, sendo “feito à imagem de Deus”, ele tem a capacidade e o
direito de criar; mas não lhe é natural imitar a natureza de uma maneira total, pois,
sendo o homem, ele não é Deus. Por isso, a arte moderna é considerada
essencialmente profana, ou seja, a arte moderna é desprovida de essência, diferente
da arte autêntica que é um símbolo por excelência; ela manifesta seu arquétipo em
virtude de uma lei ontológica definida; pois como atesta Ananda Coomaraswamy:
“um símbolo é, de certo modo, aquilo que exprime”. Desse modo, “o simbolismo
tradicional nunca é desprovido de beleza: de acordo com a visão espiritual do
mundo, a beleza de algo não é senão a transparência de seus envoltórios ou véus
existenciais; em uma arte autêntica, uma obra é bela porque é verdadeira”, diz Titus
Burckhardt2. Todavia, o que vemos hoje em dia é um subjetivismo infra-humano que
assume, às vezes, o procedimento “impessoal” da antítese congênere: o
“maquinismo”. E além disso, o artista moderno elimina o Absoluto — onde muitas
vezes é só concebido no contexto de seu subjetivismo e no interesse deste artista —
da sua obra, isto é, o artista moderno, coloca o elemento “sujeito” para determinar a
obra — diferente do artista tradicional que na maior parte é o elemento “objeto” que
determina a obra —, no sentido de que os modernos, individualistas que são,
procuram “criar” a obra e, criando-a, exprimir sua personalidade pequena e
totalmente profana; sem contar a esterilidade que é espantosa, e “quando há alguma
multiplicação é repetição”3, como se vê em certos pintores modernos onde em suas
obras só há resíduos psíquicos do mais baixo nível; espectros, não símbolos.
A Arte e o Belo estão essencialmente conectados, porque quando a obra de
arte atinge a unidade4, nela residirá a beleza, que irá se comunicar com as partes,
assim como no todo. Quando a beleza encontra um todo, cujas partes são

1
Faço alusão especificamente à doutrina escolástica da arte; ver Ananda K. Coomaraswamy, Christian and
Oriental Philosophy oƒ Art. New York: Dover, 1956.
2
A Arte Sagrada no Oriente e Ocidente, Titus burckhardt.
3
Cap, A luta contra o criador, ver em Mário F. dos S; A Invasão Vertical dos Bárbaros. p. 60.
4
Em toda e qualquer forma dotada de existência, seu ser é um. Todas as coisas são unidade[s] : num grau
intensista maior ou menor, mas sempre unidade[s].
perfeitamente associadas, ela o interpenetra uniformemente; que nos lembra Dante
quando ele diz que o Espírito Santo o “inspira”, e que ele “expõe o assunto como Ele
dita dentro de mim”. Quando Santo Tomás diz que, “a arte imita a natureza em sua
maneira de operar”5, é no sentido de natura naturans6, ou seja, não se refere a
nenhuma parte visível do nosso ambiente; as artes tradicionais são tipicamente
imitativas das realidades inteligíveis — em outras palavras, imitam a efusão criativa
primordial do próprio Deus. E é exatamente por isso que a arte naturalista que busca
exageradamente imitar os seres vivos de uma maneira absoluta, chegando ao um
ponto morto onde a obra torna-se uma coisa inútil e não se insere mais em nenhum
contexto espiritual, é profana e literalmente pecaminosa; afinal, como Plotino
descreve, um objeto que não tem um formato, que é por natureza capaz de receber
um formato (físico) e uma forma (inteligível), continua sem razão ou forma, ele é
essencialmente feio; em outras palavras, o que permanece privado de toda razão
divina (a razão que procede a Alma universal), é feiura absoluta.
A Beleza não quer conquistar nada, ela repousa sempre “no que é”; como o
amor de que fala São Paulo, ela “não busca seu próprio interesse, não se irrita”7.
Assim, a alma — virtuosa — sendo ela bela por natureza, torna-se capaz de assimilar
as belezas das coisas; portanto, a alma se alegra e se reconhece em algo que lhe é
congênito (Platão, Fedro 250a), ou seja, que tem a mesma gênese sua, como
princípio; pois ela mesma é da natureza divina das coisas que sempre são. Então, o
que acontece é que ela busca a semelhança das belezas daqui, que é por participação
com as de lá, que são sempre as mesmas e não mudam; portanto, as daqui são belas
por comunhão da forma (μετοχὴ εἴδους), ou seja, pela participação da forma é que a
alma alcança uma figura racional. A condição para o belo é que a fusão de figura e
forma seja sob a razão; não sendo assim não haverá o belo (Enéadas I, livro 6).
O belo tem origem na alma que é purificada pela virtude, tornando-se forma e
razão com inteligência do divino. Por isso, se diz que a alma tende ao belo
assemelhando-se a Deus (Platão, Teeteto 176b; Politeia 613b), que é a Causa Primária
do belo e da “moira”8 (μοῖρα), afinal, “todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele
nada se fez do que foi feito” (Jo 1,3); isto é, “a partícula do que é destinado às coisas

5
Summa Theologiae, I a , q. 117, a. 1.
6
Natura Naturans: A natureza entendida como um princípio ativo, criador ou “naturante”. O termo é na
verdade um nomen Dei, “um nome de Deus”.
7
1Coríntios 13: “O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não
se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.
8
Moira (μοῖρα) é a partilha do que é destinado às coisas que vêm a ser, diferente daquela das coisas que são
sempre, conforme se diz Platão, no Timeu 35b: μειγνὺς δὲμετὰ τῆς οὐσίας καὶ ἐκ τριῶν ποιησάμενος ἕν,
πάλιν ὅλον τοῦτο μοίρας ὅσας προσῆκεν διένειμεν, ἑκάστην δὲ ἔκ τε ταὐτοῦ καὶ θατέρου καὶ τῆς οὐσίας
μεμειγμένην (e tendo misturado com a essência para fazer de três coisas uma só, dividiu novamente esse
inteiro em quantas moiras convém, estando cada uma misturada do mesmo, do outro e da essência).
que vêm a ser”, como Platão diz no Timeu 35b. Portanto, a beleza percebida no
exterior — a “dama” do cavaleiro, por exemplo, ou a obra de arte sacra — deve ser
descoberta ou realizada no interior, pois nós amamos o que somos e somos o que
amamos.

Os Ícones Cristãos e as Artes Tradicionais

A iconografia cristã é, necessariamente, uma forma de trazer à tona a


ressurreição. Se o artista falha nisso, sua obra torna-se inútil, digna nem de ser
colocada em uma igreja. A iconografia — assim como a artesanato Tradicional e a
música sacra, que evoluiu a partir dos pitagóricos — merece ser chamada de “arte
sagrada”; a tradição da imagem sagrada, do “verdadeiro ícone” (vera icon), é de
essência teológica, e de origem ao mesmo tempo histórica e miraculosa, em
conformidade com a natureza particular do cristianismo; isto é, todo ícone autêntico
fala da ressurreição, da transfiguração.
A Arte renascentista está longe de ser uma arte tradicional. Na verdade, ela é
uma arte extremamente horrorosa; mas “tudo que é belo é bom não?”, no entanto,
mesmo que essa formulação seja ideal e verdadeira, ela é comparável a aquela
famosa frase que diz que “o mal não é real, pois ele é apenas uma privação”, só que
isso é verdade até você levar um soco ou te roubarem. Em suma, para algo ser belo
— de forma autêntica — a realidade inteligível precisa ser expressa, isto é, como
descreve São Dionísio, o Areopagita, a obra deve “respeitar a distância que separa o
inteligível do sen­sível”. O ícone é, quase sempre, translúcido, como se as personagens
representadas fossem penetradas por uma luz misteriosa; do qual, isso se relaciona à
doutrina da transfiguração dos corpos pela luz do Tabor, de acordo com o Quietismo9.
Esta luz corresponde à Luz celestial de um mundo transfigurado10.
O problema dos artistas — a partir do renascimento — é se pensarem titãs
acima da humanidade, ou seja, nas cabeças deles, eles tem a ideia que não tem
responsabilidade alguma para pintar uma obra apenas para deixar os outros mais
piedosos e expressar a religião, eles preocupam-se apenas com a sua arte. Por isso, o
renascimento é uma clara representação do processo de degeneração luciferina,
porque rejeita a intuição transmitida pelo símbolo, em favor da razão discursiva. A
Arte renascentista é também essencialmente passional, onde a paixão tem aqui um
caráter global, o que equivale a dizer que tende à afirmação do ego em geral, à sede
pelo grandioso e ilimitado.

9
Cf . Ouspensky e Lossky (1952).
10
Cf. Ibid.
Quando vemos alguém que é aficcionado em carros ou até mesmo futebol, há
nele algo dedicado a contemplação; e se ele fizer isso de modo, isto é, adequar esse
atividade no quadro real da sua vida, essa atividade se tornará boa para ele. As
pessoas amam essas atividades, que à primeira vista parecem feias, porque elas
conseguiram prestar a atenção na beleza formal da coisa, elas contemplaram a “feliz
visão” (Platão, Fedro 250b) formal da coisa; e, se caso não existisse beleza nessas
atividades, seria impossível um número significativo de pessoas amarem aquilo —
afinal, a beleza pode ser indecente, inapropriada, imoral e etc11.
A arte constitui como uma linguagem simbólica adaptada à expressão de
certas verdades por meio das formas que são, para uns, de ordem visual, e, para os
outros, de ordem auditiva ou sonora, daí a sua divisão corrente em dois grupos, o das
“artes plásticas” e o das “artes fonéticas”. Nas artes fonética, a música sacra, sendo
ela uma arte tradicional e até mesmo sagrada, é essencial para quase todas as
sociedades tradicionais porque existem povos sem esculturas, nem pinturas, mas não
existe nenhum deles sem música. A música feita pelo ser humano deve ser escutada
da música interior do universo e das suas leis, inserida no “canto fraterno” das
“esferas fraternas”; a beleza da música se fundamenta em sua correspondência com
as leis rítmicas e harmônicas do universo. A música humana é tanto mais “bela”
quanto mais se insere nas leis musicais do universo. Portanto, a música é um “espírito
sutil” capaz de trazer a beleza ao nosso ser. Nela não há dualidade entre beleza e
obscuridade; há apenas uma beleza infinita, isto é, a manifestação do Infinito no
oceano inexaurível das formas.

11
Obviamente, isso só é possível num contexto adequado e não-profano, porque, por exemplo, caso um Judeu
comece a pintar ícones de Moisés, ele estará pecando, não irá para o seio de Abraão.

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