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SAN'S ANTHOLOGY

A Arte e o Belo
Todo ato de beleza é uma revolta contra o mundo moderno.
— Caspar David Friedrich

SAN
A Arte e o Belo San

Sumário

I - Introdução à Arte e o Belo 02


Um desenvolvimento sobre a arte tradicional e o
Belo.

II - Os Ícones Cristãos e as Artes 04


Tradicionais
A iconografia cristã é, necessariamente, uma
forma de trazer à tona a ressurreição.

III - A Música como Arte 06


A música sacra — assim como o artesanato e
a iconografia — merece ser chamada de arte
sagrada.

IV - De Harmonĭa 07
Como observa Platão: “A música dá alma ao
universo, asas à mente, voo a imaginação, e
vida à tudo”!

SAN'S ANTHOLOGY
A Arte e o Belo | 02

Introdução à Arte e o Belo


O homem é, essencialmente, homo faber; isto porque ele é dotado de inteligência,
onde além de ter o dom da palavra, tem também o da criação mental e artística. Em
suma, o homem, sendo ele um artista autêntico, em virtude, imita o divino e
“participa”, em algum grau, da atividade criativa de Deus¹, porque de certa maneira,
Deus é, de forma similar, um “artista” no mais elevado sentido do termo, pois criou o
homem “à Sua própria imagem” (Gn 1 ,27). No mais, é natural ao homem imitar a
natureza, pois, sendo “feito à imagem de Deus”, ele tem a capacidade e o direito de
criar; mas não lhe é natural imitar a natureza de uma maneira total, pois, sendo o
homem, ele não é Deus. Por isso, a arte moderna é considerada essencialmente
profana, ou seja, a arte moderna é desprovida de essência, diferente da arte
autêntica que é um símbolo por excelência; ela manifesta seu arquétipo em virtude
de uma lei ontológica definida; pois como atesta Ananda Coomaraswamy: “um
símbolo é, de certo modo, aquilo que exprime”. Desse modo, “o simbolismo
tradicional nunca é desprovido de beleza: de acordo com a visão espiritual do
mundo, a beleza de algo não é senão a transparência de seus envoltórios ou véus
existenciais; em uma arte autêntica, uma obra é bela porque é verdadeira”, diz Titus
Burckhardt². Todavia, o que vemos hoje em dia é um subjetivismo infra-humano que
assume, às vezes, o procedimento “impessoal” da antítese congênere: o
“maquinismo”. E além disso, o artista moderno elimina o Absoluto — onde muitas
vezes é só concebido no contexto de seu subjetivismo e no interesse deste artista —
da sua obra, isto é, o artista moderno, coloca o elemento “sujeito” para determinar a
obra — diferente do artista tradicional que na maior parte é o elemento “objeto”
que determina a obra —, no sentido de que os modernos, individualistas que são,
procuram “criar” a obra e, criando-a, exprimir sua personalidade pequena e
totalmente profana; sem contar a esterilidade que é espantosa, e “quando há
alguma multiplicação é repetição”³, como se vê em certos pintores modernos onde
em suas obras só há resíduos psíquicos do mais baixo nível; espectros, não símbolos.

¹ Faço alusão especificamente à doutrina escolástica da arte; ver Ananda K. Coomaraswamy,


Christian and Oriental Philosophy oƒ Art. New York: Dover, 1956.
² A Arte Sagrada no Oriente e Ocidente, Titus Burckhardt.
³ Cap, A luta contra o criador, ver em Mário F. dos S; A Invasão Vertical dos Bárbaros. p. 60.
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A Arte e o Belo estão essencialmente conectados, porque quando a obra de arte


atinge a unidade⁴, nela residirá a beleza, que irá se comunicar com as partes, assim
como no todo. Quando a beleza encontra um todo, cujas partes são perfeitamente
associadas, ela o interpenetra uniformemente; que nos lembra Dante quando ele diz
que o Espírito Santo o “inspira”, e que ele “expõe o assunto como Ele dita dentro de
mim”. Quando Santo Tomás diz que, “a arte imita a natureza em sua maneira de
operar”⁵, é no sentido de natura naturans⁶, ou seja, não se refere a nenhuma parte
visível do nosso ambiente; as artes tradicionais são tipicamente imitativas das
realidades inteligíveis — em outras palavras, imitam a efusão criativa primordial do
próprio Deus. E é exatamente por isso que a arte naturalista que busca
exageradamente imitar os seres vivos de uma maneira absoluta, chegando ao um
ponto morto onde a obra torna-se uma coisa inútil e não se insere mais em nenhum
contexto espiritual, é profana e literalmente pecaminosa; afinal, como Plotino
descreve, um objeto que não tem um formato, que é por natureza capaz de receber
um formato (físico) e uma forma (inteligível), continua sem razão ou forma, ele é
essencialmente feio; em outras palavras, o que permanece privado de toda razão
divina (a razão que procede a Alma universal), é feiura absoluta.
A Beleza não quer conquistar nada, ela repousa sempre “no que é”; como o amor
de que fala São Paulo, ela “não busca seu próprio interesse, não se irrita”⁷. Assim, a
alma — virtuosa — sendo ela bela por natureza, torna-se capaz de assimilar as
belezas das coisas; portanto, a alma se alegra e se reconhece em algo que lhe é
congênito (Platão, Fedro 250a), ou seja, que tem a mesma gênese sua, como
princípio; pois ela mesma é da natureza divina das coisas que sempre são. Então, o
que acontece é que ela busca a semelhança das belezas daqui, que é por
participação com as de lá, que são sempre as mesmas e não mudam; portanto, as
daqui são belas por comunhão da forma (μετοχὴ εἴδους), ou seja, pela participação
da forma é que a alma alcança uma figura racional. A condição para o belo é que a
fusão de figura e forma seja sob a razão; não sendo assim não haverá o belo
(Enéadas I, livro 6).
O belo tem origem na alma que é purificada pela virtude, tornando-se forma e

⁴ Em toda e qualquer forma dotada de existência, seu ser é um. Todas as coisas são unidade[s] :
num grau intensista maior ou menor, mas sempre unidade[s].
⁵ Summa Theologiae, I a , q. 117, a. 1.
⁶ Cap, A luta contra o criador, ver em Mário F. dos S; A Invasão Vertical dos Bárbaros. p. 60.
⁷ 1Coríntios 13: “O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não
se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo
crê, tudo espera, tudo suporta”.
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razão com inteligência do divino. Por isso, se diz que a alma tende ao belo
assemelhando-se a Deus (Platão, Teeteto 176b; Politeia 613b), que é a Causa
Primária do belo e da “moira”⁸ (μοῖρα), afinal, “todas as coisas foram feitas por Ele, e
sem Ele nada se fez do que foi feito” (Jo 1,3); isto é, “a partícula do que é destinado
às coisas que vêm a ser”, como Platão diz no Timeu 35b. Portanto, a beleza
percebida no exterior — a “dama” do cavaleiro, por exemplo, ou a obra de arte sacra
— deve ser descoberta ou realizada no interior, pois nós amamos o que somos e
somos o que amamos.

⁸ Moira (μοῖρα) é a partilha do que é destinado às coisas que vêm a ser, diferente daquela das
coisas que são sempre, conforme se diz Platão, no Timeu 35b: μειγνὺς δὲμετὰ τῆς οὐσίας καὶ ἐκ
τριῶν ποιησάμενος ἕν, πάλιν ὅλον τοῦτο μοίρας ὅσας προσῆκεν διένειμεν, ἑκάστην δὲ ἔκ τε
ταὐτοῦ καὶ θατέρου καὶ τῆς οὐσίας μεμειγμένην (e tendo misturado com a essência para fazer
de três coisas uma só, dividiu novamente esse inteiro em quantas moiras convém, estando cada
uma misturada do mesmo, do outro e da essência).
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Os Ícones Cristãos e as Artes Tradicionais

A iconografia cristã é, necessariamente, uma forma de trazer à tona a ressurreição.


Se o artista falha nisso, sua obra torna-se inútil, digna nem de ser colocada em uma
igreja. A iconografia — assim como a artesanato Tradicional e a música sacra, que
evoluiu a partir dos pitagóricos — merece ser chamada de “arte sagrada”; a tradição
da imagem sagrada, do “verdadeiro ícone” (vera icon), é de essência teológica, e de
origem ao mesmo tempo histórica e miraculosa, em conformidade com a natureza
particular do cristianismo; isto é, todo ícone autêntico fala da ressurreição, da
transfiguração.
A Arte renascentista está longe de ser uma arte tradicional. Na verdade, ela é uma
arte extremamente horrorosa; mas “tudo que é belo é bom não?”, no entanto,
mesmo que essa formulação seja ideal e verdadeira, ela é comparável a aquela
famosa frase que diz que “o mal não é real, pois ele é apenas uma privação”, só que
isso é verdade até você levar um soco ou te roubarem. Em suma, para algo ser belo
— de forma autêntica — a realidade inteligível precisa ser expressa, isto é, como
descreve São Dionísio, o Areopagita, a obra deve “respeitar a distância que separa o
inteligível do sensível”. O ícone é, quase sempre, translúcido, como se as
personagens representadas fossem penetradas por uma luz misteriosa; do qual, isso
se relaciona à doutrina da transfiguração dos corpos pela luz do Tabor, de acordo
com o Quietismo⁹. Esta luz corresponde à Luz celestial de um mundo transfigurado¹⁰.
O problema dos artistas — a partir do renascimento — é se pensarem titãs acima
da humanidade, ou seja, nas cabeças deles, eles tem a ideia que não tem
responsabilidade alguma para pintar uma obra apenas para deixar os outros mais
piedosos e expressar a religião, eles preocupam-se apenas com a sua arte. Por isso, o
renascimento é uma clara representação do processo de degeneração luciferina,
porque rejeita a intuição transmitida pelo símbolo, em favor da razão discursiva. A
Arte renascentista é também essencialmente passional, onde a paixão tem aqui um
caráter global, o que equivale a dizer que tende à afirmação do ego em geral, à sede
pelo grandioso e ilimitado.
Quando vemos alguém que é aficcionado em carros ou até mesmo futebol, há nele
algo dedicado a contemplação; e se ele fizer isso de modo, isto é, adequar essa ativi-

⁹ Cf . Ouspensky e Lossky (1952).


¹⁰ Cf. Ibid.
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dade no quadro real da sua vida, essa atividade se tornará boa para ele. As pessoas
amam essas atividades, que à primeira vista parecem feias, porque elas conseguiram
prestar a atenção na beleza formal da coisa, elas contemplaram a “feliz visão”
(Platão, Fedro 250b) formal da coisa; e, se caso não existisse beleza nessas
atividades, seria impossível um número significativo de pessoas amarem aquilo —
afinal, a beleza pode ser indecente, inapropriada, imoral e etc¹¹.

¹¹ Obviamente, isso só é possível num contexto adequado, porque, por exemplo, caso um Judeu
comece a pintar ícones de Moisés, ele estará pecando, não irá para o seio de Abraão.
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A Música como Arte


A arte constitui como uma linguagem simbólica adaptada à expressão de certas
verdades por meio das formas que são, para uns, de ordem visual, e, para os outros,
de ordem auditiva ou sonora, daí a sua divisão corrente em dois grupos, o das “artes
plásticas” e o das “artes fonéticas”. Nas artes fonética, a música sacra, sendo ela uma
arte tradicional e até mesmo sagrada, é essencial para quase todas as sociedades
tradicionais porque existem povos sem esculturas, nem pinturas, mas não existe
nenhum deles sem música. A música feita pelo ser humano deve ser escutada da
música interior do universo e das suas leis, inserida no “canto fraterno” das “esferas
fraternas”; a beleza da música se fundamenta em sua correspondência com as leis
rítmicas e harmônicas do universo. A música humana é tanto mais “bela” quanto
mais se insere nas leis musicais do universo. Portanto, a música é um “espírito sutil”
capaz de trazer a beleza ao nosso ser. Nela não há dualidade entre beleza e
obscuridade; há apenas uma beleza infinita, isto é, a manifestação do Infinito no
oceano inexaurível das formas.
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De Harmonĭa
Desde o iluminismo, com todas as suas cosmovisões mecanicistas que “tornam o
coração insensível”, de modo que “vendo” o povo “não percebe”, por vezes,
esquecemos que a matemática per se não se reduz a seu gênero pós-iluminista:
existem outros tipos de matemáticas que remontam a era pitagórica. Os pitagóricos
associavam a ordem matemática do cosmos (cosmos significando “ordem”) à
essência do belo: a beleza nasce de uma ordo interior que, por ser ordem, contém
um sentido. E essa beleza, para eles, não era apenas de natureza visível, mas
também musical. Vemos isso no prólogo do Fausto, do qual, Goethe refere-se
diretamente a essa concepção pitagórica ao evocar o “coro das esferas fraternas”. A
or­dem matemática que rege os planetas e suas trajetórias faz ressoar um som oculto
da realidade inteligível de cada uma delas, que seria a forma original da música, pois
é na harmonia musical que o semitom nos leva de uma nota maior para uma menor:
ou seja, do dinâmico “mundo do Sol” à pensativa “esfera da Lua” — só sabe o que
isso significa quem o “ouviu” no fundo de sua alma.
Aos que são “capazes de ver”, essa matemática foi de fato imensamente cultivada
pelas escolas filosóficas — particularmente a platônica — e está essencialmente
ligada às artes, especialmente à música (como citado anteriormente) e à arquitetura.
É essa mesma matemática que levou Jean Mignot a dizer: “ars sine scientia nihil”¹². O
homem como um microcosmos deveria, pois, se inspirar na música interior do
cosmos e sua ordem, produzindo um “canto fraterno” das esferas celestes, que há
também em seu ser integral. Pois como observa Platão: “A música dá alma ao
universo, asas à mente, voo a imaginação, e vida à tudo”! Como a beleza da música
decorre da correspondência com as leis rítmicas e harmônicas do universo, a música
humana será tanto mais “bela” quanto mais participe intimamente das leis musicais
do cosmos. E, portanto, quebrando a antiquada cosmovisão pós-iluminista que o
cosmos é apenas “a mera aceleração da matéria, sem fim e sem sentido”.

¹² “A arte sem a ciência é nada”. Jean Mignot foi um arquiteto da catedral de Milão: sem a
matemática pitagórica, nada haveria de florescer.

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