Você está na página 1de 3

COMENTÁRIO A CONTEMPORANEIDADE DA

ARROGÂNCIA

Vale,V. L.1

1
Psicóloga do Núcleo de Apoio Psico-pedagógico da Faseh

“Nós não vemos o que vemos,


Nós vemos o que somos.
Só veem as belezas do mundo,
Aqueles que têm belezas dentro de si.”
Rubem Alves

O homem é uma criatura naturalmente rica de características


multíplices. Em face disso, poderíamos discorrer em muitos
tratados científicos, sobre a sua estrutura complexa e ,mesmo assim,
tais estudos permaneceriam incompletos. Poderia analisar muitos
outros, vários, aspectos que fazem parte dessa riqueza humana. Não
obstante, neste artigo quero refletir apenas num item específico: a
arrogância. 
No sentido mais literal e atemporal,temos este significado: “ato ou
efeito de arrogar(-se), de atribuir a si direito, poder ou privilégio.
Qualidade ou caráter de quem, por suposta superioridade moral,
social, intelectual ou de comportamento, assume atitude prepotente
ou de desprezo com relação aos outros; orgulho ostensivo, altivez.” 
Os gregos antigos deixaram-nos registros e sugestões, preciosos,
sobre formas diversas de como pensar, imaginar e figurar a
alteridade em ação nos processos de subjetivação. Luigi Zoja,
em História da Arrogância, (ZOJA, 2000), defende o seguinte: a
exploração crescente de nosso planeta provoca debates cada vez
mais frequentes sobre os limites do desenvolvimento humano.
Esclarece-nos ele que os estudos avançam à medida que o problema
se agrava, mas analisam-se apenas seus aspectos técnicos. Interroga
o autor se devemos enfrentar os excessos da nossa civilização sem
levar em conta seu aspecto psicológico? Por que razão queremos um
crescimento infinito? Quando começou a corrida para o ilimitado?
Esclarece-nos que os antigos gregos, que moldaram a base da
mentalidade ocidental, viviam aterrorizados pela fome de infinito
que se ocultava dentro do ser humano. A essa fome davam o nome
de hýbris(arrogância), o único verdadeiro pecado no seu código
moral: os deuses eram invejosos e puniam com a nêmesis(justiça),
sem atenuações, todo aquele que desejava em excesso. Entretanto,
os próprios gregos se tornaram arrogantes e começaram a inverter
aquele antigo tabu dos limites, colocando-se como deuses.Se é
verdade  que  uma  cultura  pode negar apenas superficialmente
Contato: as  suas origens,  que os  deuses antigos  foram substituídos, ainda
E-mail: psicologa_viviane@faseh.edu.br

Cadernos Técnicos de Saúde da FASEH, no 02 - Junho de 2016


87
que   os  seus mitos  renascem em  formas modernas, ainda mais aparente e nocivo, em si tratando de jovens,e
a nossa  ânsia pelos limites do desenvolvimento  não diria mais, no jovem universitário que além da sensação
é apenas, então,  uma questão técnica,  mas  de ordem de poder absoluto, advinda dos excessos citados, nutre
constitutiva da origem humana. o sentimento de vaidade, tanto pela juventude que lhe
é vivenciada, quanto pela possibilidade de tornar-se
No entanto, e cada vez mais, os homens vêm buscando possuidor de títulos.Veja-se o que diz, ainda, Georg
substituir os deuses, e, inevitavelmente, vivem a Simmel:
soberania da arrogância. A arrogância induz a novas
formas que não se restringem à alienação, à servidão, Assim nasce a situação problemática, tão característica
mas são também formas insidiosas de autoridade. Essas do homem moderno: o sentimento de estar cercado por
uma multidão de elementos culturais que, sem lhe serem
formas de autoridade se desenvolvem em processos desprovidos de sentidos, não são, no fundo, significantes;
paradoxais de transparência, nos quais a visibilidade é elementos que, no conjunto, tem alguma coisa de sufocante,
quase uma obrigação e respondem auma injunção de pois ele não pode assimilá-los todos internamente, nem
visibilidade para existir profissional e socialmente. tampouco os recusar pura e simplesmente, porque eles
entram, por assim dizer, potencialmente na esfera de seu
Rubem Alves diz o seguinte: desenvolvimento cultural. (SIMMEL,1988, p. 212)
“A arrogância está intimamente ligada à vaidade. A Ciência: lugar da arrogância?
palavra vaidade vem do latim vanus que quer dizer “vão”.
Vaidade, assim, é o vazio, o sem conteúdo, o sem valor. Por estarmos envolvidos com a vida universitária,
O arrogante está possuído pela vaidade. Vi um lagarto pressupomos heterogenia, e o consequente respeito às
arrogante. Insignificante se não se percebia visto, quando
queria impressionar os outros estufava um saco vermelho diferenças e individualidades: os homens são desiguais
que havia no pescoço. Ficava, de fato, impressionante e por natureza, mas nem sempre são capazes de se referir
amedrontador. Mas seu papo vermelho era  “vanus”… à razão e de dispensar as paixões.Todos os dias, milhares
estava cheio de ar”. (Rubem Alves,2009) de pessoas se submetem ao deus criado pela humanidade:
sua santidade  o cientista. Seu santuário localiza-se
Assim são os arrogantes. nos edifícios dos modernos laboratórios, hospitais
Com a modernidade, o indivíduo, identificado e universidades.  Em todos os lugares, encontramos
como moderno, internalizou, ao longo do tempo, o  especialista, guardião do conhecimento científico, o
o sentimento de desmedida (hýbris) e, com ele, a qual, pretensamente, tem resposta para todos os males
reivindicação de uma superioridade absoluta qualquer que afligem a humanidade. São os  pequenos profetas,
em relação a outras formas de racionalidade e culturas. representantes do saber canônico legitimado pela
A ética da arrogância parece inscrever-se na dinâmica sociedade, autoridades instituídas que têm o poder da
de produção e consumo dos objetos culturais, de sua palavra. Há quem considere que a posse da sabedoria
visibilidade e autovalorização, da estética onipotente livresca e do conhecimento titulado e legitimado pelas
que assumem. Isso provoca e acentua a dissociação que regras institucionais concede status superior. Não fosse
atinge o mais profundo do sujeito moderno, criando o mal e o sofrimento que causa – para si e para os outros
obstáculos para novos processos de subjetivação. Jacy – a arrogância bem que poderia ser desconsiderada ou
Alves de Seixas, em seu texto, Formas da arrogância simplesmente debitada às compreensíveis fraquezas
e História, cita o autor Georg Simmel que escreve, humanas. A arrogância moderna também opera
avançando um preciso diagnóstico: “o desenvolvimento nos “vãos” e nos espaços invisíveis, algumas vezes de
dos sujeitos não pode mais, agora, seguir a via tomada forma inconsciente. Sua presença, silenciosa e efetiva,
pelos objetos; se eles entretanto a seguirem, se perderão conquistadora, é marcante ao longo do processo
em um impasse ou em um terreno vazio da vida mais histórico, aparando e arredondando suas arestas e
íntima e mais específica.” (SIMMEL 1988, p. 211) Essa dissonâncias, e afunilando tal processo ao encontro
análise não poderia ser mais atual quando a sensação de de dispositivos atrelados à racionalidade científica e à
excesso, vacuidade e insignificância ronda o indivíduo noção de progresso.
contemporâneo, sobrecarregado de novas tecnologias Nesse cenário, o jovem universitário, pronto a
digitais, ou por elas, e de possibilidades, ou por elas, resignificar, introjetar, projetar, formalizar, perde,
mais ou menos virtuais e falaciosas de afastar a morte, muitas vezes, a medida dessas possibilidades ao
a solidão e a finitude. Diante dessas possibilidades, o confrontar-se com a vaidade da possibilidade de
homem se vê acima de tudo e de todos. O que se torna conquista do saber e o consequente poder aí associado.

Cadernos Técnico de Saúde, no 02 - Junho de 2016


88
Por vezes, ensoberbado de vaidade, julga-se à imagem e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
semelhança dos deuses, detentor de um poder absoluto
e raro. ALVES, Rubem. Sobre demônios e pecados. São Paulo: Verus,
2009.
Acredito que poderá ser questionado esse ponto do
ARENDT, Hannah. Walter Benjamin: 1892-1940. In: ______.
texto com o seguinte: “Oh, mas essa criatura não circula Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso,
entre nós.” Então lhes responderei: “Ah, circula sim, e 2008. p. 165-222.
em um número muito além de vossas suposições.” Sim,
BACON, Francis. Da simulação e dissimulação. In: ______.
é real, em nosso dia a dia, no contexto universitário, Ensaios. Petrópolis: Vozes, 2007. p.24-27.
nos campos de estágio, nas redes sociais, nas festas
estudantis, nos corredores e salas de aula etc. Essa HAROCHE, Claudine; LOPES, Myriam Bahia; DÉLOYE,Yves.
condição de ser circula em todos os meios e em número (orgs.).Ensaios sobre a arrogância. Belo Horizonte: NEHCIT/EA
UFMG, 2015.110 p.
cada vez mais crescente.
MIRANDOLLA,Giovanni Pico Della. Discurso sobre a dignidade
Não se trata de banir o jovem universitário discente, do homem. Lisboa: Edições70, 2008.
ou castigá-lo, como os deuses gregos o faziam, mas a
Universidade, como lugar do Saber, precisa atentar a ZOJA, Luigi.    História da arrogância: psicologia e limites do
desenvolvimento humano.  São Paulo: AxisMundi, 2000. 
essas questões que, por vezes, também estão no lado de
cá, no banco dos docentes e dirigentes.Tudo depende
em quem queremos nos tornar. A perversidade dos
pequenos poderes é apenas uma parte da história.
Assim como existem pessoas amargas (e eternamente
em busca da fama entre meia dúzia), também existem
os que possuem uma atitude generosa, engajada e
encorajadora em relação aos outros.Vaidade pessoal,
casos de fraude, falta de ética e de humanidade, plágio,
são apenas uma parte da história da academia brasileira.
Tem outra parte: a que versa sobre criatividade e
liberdade que nenhum outro lugar, ou instituição,tem
igual. É essa criatividade, somada à colaboração, que
precisa ser explorada ao invés de ser podada.
Hoje, o Brasil tem um cenário animador com relação
à educação universitária. Há uma nova geração de
cotistas ou bolsistas que veem a universidade com
olhos críticos, que desafiam a supremacia das camadas
médias brancas que se perpetuavam nas universidades
e desconstroem os paradigmas da meritocracia.
Soma-se a isso o frescor político dos corredores das
universidades no pós-junho (referência às manifestações
nacionais de junho de 2013) e o movimento feminista
que só cresce. Uma geração questionadora da autoridade,
cansada dos velhos paradigmas. É para esta geração que
fica um apelo: não troquem o sonho de mudar o mundo
pela arrogância cômoda de uma bela pasta de couro
cheia de títulos e vazia de experiências verdadeiramente
humanas. Em definitivo, se o homem sonha ser Deus,
ele deve se contentar em ser um homem “dentre os
homens” (Sartre), vivendo em instituições duráveis
fundadas, como ele, na aceitação da “autolimitação” e
repudiando a arrogância, que não pode senão criar um
mundo mortífero.

Cadernos Técnicos de Saúde da FASEH, no 02 - Junho de 2016


89

Você também pode gostar