Você está na página 1de 4

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de psicologia
Faculdade de psicologia

Disciplina: Emergência e Constituição da Psicologia Científica


Docente: Filipe Degani
Discente: Emelyn Bastos da Silva
RESENHA
O capítulo “A gestação do espaço psicológico no século XIX: liberalismo, romantismo e
regime disciplinar”, de autoria de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, doutor em psicologia
experimental, publicado em 2012, é dividido em alguns tópicos: As vicissitudes do liberalismo e do
individualismo; O romantismo: promessas e realizações; e O território da ignorância. Entretanto, o
autor inicia o capítulo caracterizando o século XIX como o apogeu do liberalismo e do individualismo
como princípios de organização econômica e política. Em seguida, sinaliza que seu objetivo no
capítulo é defender a tese de que as três formas de entender o século XIX são legitimas
simultaneamente, embora, de maneira contraditória.
Ao falar sobre o tópico “As vicissitudes do liberalismo e do individualismo”, o autor discorre
sobre a versão original do liberalismo, formulado em suas linhas básicas por John Locke, que
sustentava a tese dos direitos naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um
Estado, este nascido de um contato livremente firmado entre indivíduos autônomos para garantir
seus interesses, logo, não cabendo ao Estado intervir na vida particular de ninguém, apenas
regulamentar as relações entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados, a
preservação da privacidade era fundamental.
Para manter o Estado limitado, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Poder
Legislativo e Poder Judiciário), distribuí-los regionalmente e valorizar as tradições locais e
experiências particulares. Vale ressaltar que nem todas estas recorrências estavam previstas por
Locke, mas pertencem genuinamente ao liberalismo clássico. Estas ideias políticas criaram o terreno
favorável para o desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada em que os agentes
econômicos se encontravam e articulavam em espaços livres dos mercados de bens e do trabalho.
O liberalismo econômico defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica,
confiando absolutamente na iniciativa e racionalidade individual, ora, somente no final do século XVII
e início do XIX essa doutrina veio à luz.
Entretanto, antes desse nível de elaboração, havia surgido uma versão das ideias liberais que
dava outro rumo ao liberalismo, que o foi o descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de
Jeremy Bentham, o criador do ‘utilitarismo’, que substitui a crença da defesa intransigente dos
direitos naturais dos indivíduos. A ênfase na garantia de direitos é substituída pela ênfase nas
consequências e estas são avaliadas em termos de ‘coletividade’ que supostamente favorece a
maioria, mesmo prejudicando alguns indivíduos.
Bentham procura elaborar regras de cálculos, para avaliação da felicidade individual e
estimativa da soma total de felicidade. Além das leis, são também concebidas por Bentham
instrumentos para produzir consequências e não mais garantir direitos. Trata-se de uma versão
racionalista, construtiva e tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades de ação e
são deixados ‘livres’ para escolher entre castigos e recompensas. Ao Estado cabe intervir e
administrar através do controle das privações, punições e as recompensas liberadas para os
comportamentos individuais, instaurando uma nova modalidade de poder.
O autor pontua também Bentham como criador do panopticon, consagrado por Foucault como
emblema do regime disciplinar, nele o Estado e suas agencias educacionais, corretivas sanitárias e
militares assumem novas funções, a família deixa de ser o espaço da liberdade privada, para se
converter a uma agência disciplinadora destinada a, simultaneamente, individualizar e normatizar
indivíduos.
O pai de John Stuart Mill, James Mill, foi o principal discípulo e aliado de Bentham e
implementou em sua família suas opções filosóficas e políticas, John foi submetido a uma criação
rígida e produtiva disciplina que o construiu em um modelo de individualidade oitocentista. Durante
sua infância e início da fase adulta o mesmo sofreu uma série de crises existenciais, queixando-se
de vazio, aridez, o tornando uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo, um filho precoce do
regime disciplinar, o que consequentemente, o aproximou aos românticos ingleses e alemães. Stuart
Mill formula uma proposta de metas e formas de vida social e política em que as conquistas civis
liberais são colocadas a serviço dos valores românticos.
Figueiredo finaliza o tópico nos convidando para acompanhar as peripécias da outra vertente
do pensamento de Stuart Mill, a qual lhe dera sangue novo e alma nova para reanimar o liberalismo
fraudulento de Jeremy Bentham: a vertente romântica.
O próximo tópico do capítulo se chama “O romantismo: promessas e realizações”, o autor
inicia correlacionando o romantismo e o iluminismo, ambos movimentos de exteriorização das
experiências privatizadas: na França e na Alemanha foram plataformas críticas às convenções,
regras e procedimentos de controle absolutistas impostos às esferas públicas. Também, pela
convivência de temas iluministas e românticos em diversas obras do século XVII.
A versão do liberalismo de Stuart Mill, mostra como em pleno séculos XIX o pensamento
liberal passou a recorrer ao ideário romântico para se fortalecer na sua luta contra os avanços do
regime disciplinar. Entretanto, também cabe reconhecer o conflito entre iluminismo e romantismo,
comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico como crítica ao iluminismo, ao
liberalismo e ao individualismo da ilustração. Por em questão as perspectivas do iluminismo como
princípio civilizatório coube aos artistas, músicos, poetas e pensadores românticos. O próprio termo
‘individualismo’ nasceu na França como consequência de uma reação negativa do pensamento
conservador romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa.
Os movimentos românticos, na sua dimensão política, se apresentaram ora com uma face
nitidamente conservadora e tradicionalista, buscando em formas arcaicas de organização social uma
saída para os impasses do individualismo, ora com uma face revolucionária, lançando-se, então, na
direção do futuro para a superação do individualismo ilustrado. Com o romantismo, passa-se de uma
noção de liberdade negativa, a liberdade exercida no terreno da não-interferência, para uma versão
moderna na liberdade positiva, como ‘autonomia’ e auto engendramento. Processos estes que
implicam na transformação dos sujeitos naquilo que eles são de fato e na permanentemente perda
de suas identidades convencionais.
O autor finaliza o tópico escrevendo sobre a vinculação subterrânea do romantismo, mesmo
o mais revolucionário, com a docilização dos homens subjugados pela exibição da força, da vontade
e do poder.
O terceiro e último tópico “O território da ignorância”, no século XIX conviveram três polos de
ideias e práticas de organização da vida em sociedade: o liberalismo, os romantismos e o regime
disciplinar. Considerando as relações de complexidade e conflito que unem e separam cada um
desses polos, podemos conceber a formação de um novo território no qual as experiencias
individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido. Trata-se de um espaço
triangular como no esquema abaixo:

sm b

R D
W

O polo L representa o liberalismo- o reinado do “eu” soberano com identidades nitidamente


delimitadas. Uma clara separação entre privacidade e publicidade, a liberdade individual concebida
como território livre da interferência alheia.
O polo R representa o romantismo- os valores da espontaneidade impulsiva, com identidades
debilmente delimitadas.
O polo D representa a disciplina- as novas tecnologias de poder, exercidas tanto sobre
identidades reconhecíveis e manipuláveis, como as que abatem sobre identidades debilmente
estruturadas e passiveis de manipulação.
Estes polos atraem-se e repelem-se, as linhas ligando os pontos correspondem as suas mais
ou menos dissimuladas relações de afinidade e complementaridade. A linha que liga o liberalismo ao
regime disciplinar, pode ser chamada de Bentham, nesta superfície os procedimentos disciplinares
encontram-se com seus objetivos precípuos, os indivíduos livres. A linha que liga o liberalismo ao
romantismo, pode ser designada como superfície Stuart Mill, nesta superfície os ingredientes
românticos alimentam os projetos de vida dos indivíduos. Finalmente, a linha que liga a disciplina ao
romantismo poderia ser chamada de Wagner, nela articulam-se as força e o poder da Vida e a da
Vontade aos procedimentos de controle carismático e docilizadores da disciplina.
Figueiredo, no fim do capítulo disserta sobre as diversas versões da psicologia
contemporânea e sua proximidade com mais ou menos uma das três superfícies. Ao longo de cada
superfície será possível diferenciar as escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma
escola pela maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo. No último parágrafo, o
autor cita a dificuldade de quem se situa muito próximo a uma das superfícies admitir seus
compromissos com o polo de que mais se distanciou e que, no entanto, é um elemento construtivo
do seu território.
Referência
FIGUEIREDO, Luís Cláudio Mendonça. A gestação do espaço psicológico no século XIX:
liberalismo, romantismo e regime disciplinar. A invenção do psicológico: quatro séculos de
subjetivação, 1500-1900. 8. ed. São Paulo: Escuta, 2012. P.129-149

Você também pode gostar