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Distinguindo conceitos de educação para mídia:

Alfabetização midiática como objetivo

Cristine Rahmeier Marquetto


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
Unisinos, São Leopoldo/RS. É mestra em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade FEEVALE,
Novo Hamburgo/RS (2015). Possui graduação em Comunicação Social - Habilitação em Relações Públicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre/RS (2010). Email:
cristinemarquetto@gmail.com.

Resumo
Este artigo coloca em discussão o entendimento acerca de três termos que fazem parte das
preocupações dos processos de educação para mídia: alfabetização midiática, educomunicação e
mídia-educação. A intenção é de identificar seus posicionamentos no cenário de pesquisas do campo,
entendendo que não é possível avançar nas intenções de crítica da atuação das mídias jornalísticas
sem ter esclarecidas essas diferenças. Identifico a alfabetização midiática como um objetivo a ser
alcançado, a mídia-educação como meio, um procedimento, e a educomunicação como um método.
Como consequência desse posicionamento, a alfabetização midiática representa o espaço de maior
atuação no o combate às fake news e a desinformação.

Palavras Chave
Alfabetização Midiática; Educomunicação; Mídia-Educação; Crítica; Desinformação.

Abstract
The present article brings forward discussion on understanding three terms that are part of concerns
of media education processes: media literacy, “educomunication” and media education. The goal is to
identify both their positions in the research field scenario, knowing that it is not possible to progress in
the intentions of critics of journalistic media performance without clarifying those differences. I
recognize media literacy as an aim to be reached, media-education as a means, procedure, and
“educomunication” as a method. As a result of this positioning, media literacy represents the greatest
space of action in fighting fake news and misinformation.

Keywords
Media literacy; “educomunication”, media-education; misinformation; critics.

Introdução

A influência das notícias falsas nos cenários políticos e sociais vem crescendo cada
vez mais. O alerta das fake news nas eleições norte-americanas de 2016 e nas brasileiras de
2018 levantam discussões sobre como combater essa prática, como ajudar as pessoas a melhor
se informarem e como devem proceder os governos. A eleição francesa em 2017, que levou o
presidente Emmanuel Macron a criar uma lei de combate a fake news em disputas
eleitorais, também atentou para a distorção de notícias, bem como o referendo da Catalunha
pela independência, no mesmo ano. Esses casos levaram a Comissão Europeia a criar o High
Level Group, em janeiro de 2018, com 39 membros entre jornalistas, pesquisadores de
comunicação, escritores e membros de organizações civis, com o objetivo de elaborar um
documento para combater as notícias falsas, por entenderem o risco que representam para as
democracias. Além de estabelecer três frentes de atuação e apresentar dez princípios
fundamentais para as plataformas de jornalismo seguirem, o documento, então elaborado, se
baseia em cinco pontos principais: melhorar a transparência das notícias online; promover a
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alfabetização de mídia1 e de informação; capacitar usuários e jornalistas; salvaguardar a
diversidade e a sustentabilidade dos meios de comunicação; e promover pesquisas contínuas
sobre o impacto da desinformação.
As fake news podem ser relacionadas, no entanto, à ponta do iceberg do que
caracteriza a falta ou a não informação sobre a realidade. Não são apenas as informações
falsas que alteram a percepção do que se passa a nossa volta; o volume de informações sobre
determinado conteúdo, a insistência de sua veiculação e a forma como ele é exposto auxiliam
na compreensão de mundo dos sujeitos sociais. Por vezes, o cenário resultante é de falta de
noção do que se passa com a comunidade, com o país, uma “desinformação” no sentido de
incoerência entre o que se construiu como realidade individualmente e o que acontece no
mundo concreto.
O instituto de pesquisa social britânico Ipsos Mori investigou os níveis de
desinformação de habitantes em que vivem em 38 países sobre a realidade que vivem. Neste
estudo, divulgado final de 2017 e mais amplamente em 2018 em diversos jornais e sites
jornalísticos do Brasil (tais como Folha de São Paulo, Zero Hora, Exame, Terra), o
entrevistador questionava a percepção da pessoa sobre alguma situação específica, como por
exemplo: qual a cidade mais violenta do país? Qual o percentual de mulheres entre 15 e 19
anos que dão à luz a cada ano? Você acha que a taxa de homicídios em seu país é maior ou
menor que no ano 2000? E assim, os pesquisadores comparavam as respostas com as
estatísticas. No resultado final, o Brasil teve desempenho espantoso: ocupamos o segundo
lugar em pior percepção da realidade, ficando atrás apenas da África do Sul.

Figura 1: Percepção dos brasileiros sobre algumas questões

Fonte: Folha de São Paulo (2018)2


Mas, afinal, por que lemos tão mal o que está a nossa volta? Isso está relacionado com
1
Em inglês, Media Literacy, mas que nos documentos da UNESCO foi traduzido como “alfabetização
mediática”. Em Portugal, o mesmo termo é traduzido como “literacia mediática”. Em vistas de manter a tradução
feita pela UNESCO para o Brasil, mantenho “alfabetização midiática” neste trabalho.
2
Ver referências.
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o impacto que certas informações têm. Na pesquisa, por exemplo, os brasileiros selecionaram
o Rio de Janeiro como a cidade mais violenta do país (apesar de ela não estar nem entre as dez
capitais com maiores índices de violência), o que pode estar relacionado à cobertura midiática
que enfatiza as ocorrências policiais, a qual nos faz assimilar a cidade como muito violenta.
Segundo a doutora em psicologia Keitiline Viacava, “o quão repetidamente estou exposto a
determinada informação tende a influenciar a minha percepção sobre aquele fenômeno”
(ZERO HORA, 2018, p. 9).
Tomamos nossas decisões políticas com base nas nossas percepções da realidade e
escolhemos o que consideramos o melhor caminho para a solução de problemas sociais.
Quando essa percepção é equivocada, o debate público fica comprometido: que tipo de
discussão teremos quando a sociedade brasileira acredita que quase a metade das jovens dá à
luz no Brasil a cada ano (quando na verdade não chega a 7%)? Discussões sobre aborto,
educação sexual, até saúde pública, por exemplo, podem ficar comprometidas por desviarem
das questões centrais que condicionam esses temas. Quando a percepção que temos sobre a
realidade não condiz com o mundo concreto, ficamos mais suscetíveis ou vulneráveis a
acreditar em alguém que saiba explorar essa falta de clareza. A cientista política Céli Pinto
afirma que
[...] é importante dizer que as pessoas não têm uma perspectiva equivocada
por serem equivocadas por natureza, é por haver todo um discurso político e
midiático que produziu isso. Então o brasileiro acha que todas as adolescentes
ficam grávidas, que a maior parte dos crimes é cometida por menores de
idade, que há uma degradação moral, que vamos levar um tiro se
atravessarmos a rua. Se formos olhar, não é verdade. Mas gera discursos
como o da redução da maioridade penal e de que temos todos que nos armar,
por exemplo. (ZERO HORA, 2018, p. 11).

No intuito de tentar apontar caminhos para a solução desse impasse, o líder do grupo
de pesquisa do instituto britânico, Bobby Duffy, afirma que a mídia tem um papel muito
importante na distorção das percepções. “O que precisamos é ensinar as pessoas a selecionar a
informação certa – o que torna uma espécie de alfabetização em mídia e em notícias mais
importante do que uma educação geral” (ZERO HORA, 2018, p. 12).
A pesquisadora em jornalismo Nuria Fernández3 afirma que é preciso empoderar os
cidadãos para que tenham as competências necessárias para se relacionar com a mídia, e,
assim, “a democracia sairá reforçada de todo esse processo, ao contribuir para uma cidadania
informada, que possa tomar decisões livremente” (NEXO, 2018, online). A pesquisa que
Fernández realiza estabelece relações entre as fake news e as maneiras de ser crítico para
diferenciar notícias falsas de verdadeiras, mas, para ela, trata-se de um movimento que pode
resultar em um aprimoramento da alfabetização midiática.
Fazendo uma relação com pesquisas sobre a temática, a pesquisadora aponta que
alunos que realizam cursos de alfabetização midiática aumentaram as suas capacidades de
entender, avaliar e analisar notícias. Projetos como Digital Polarization Iniciative, Look Sharp
e News Literacy Projects, todos nos Estados Unidos, auxiliam os estudantes a identificar
notícias falsas, estabelecendo uma crítica ao conteúdo jornalístico. Outras iniciativas, como a
do jornal francês France24, e da emissora inglesa BBC, com o projeto BBC Academy,
apresentam um pouco dos bastidores do jornalismo, com o intuito de incentivar a leitura
crítica, mostrando como é possível verificar as informações. “Pode ser que a rede amplifique
o alcance das notícias falsas, mas ela também oferece a oportunidade de lutar contra essas
notícias falsas e de conseguir um jornalismo de qualidade, ou – o que é o mesmo –
simplesmente jornalismo” (NEXO, 2018, online).

3
Entrevistada pelo site jornalístico NEXO, nas referências.
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Mais do que combater as fake news, há um movimento que se preocupa com a
interação dos sujeitos com a mídia a longo prazo, de forma abrangente, e não apenas para
identificar se a notícia é verdadeira ou não. A pesquisa do instituto britânico Ipsos Mori revela
que o caso do Brasil é particularmente preocupante no quesito “desinformação”, ou falta de
coerência entre o que se imagina e o que se passa na realidade, mais do que em outros países.
Nos estudos, documentos e reportagens analisadas, o Brasil (e a América Latina de forma
geral) não é citado como atuante na área ou fazendo parte dos avanços das pesquisas ou de
políticas voltadas para alfabetização midiática, dados que podem estar relacionados. Ao
debruçar-me sobre a questão, alguns termos emergiram e seus usos e juízos não eram sempre
lineares, sobrepondo-se muitas vezes. A seguir, dedico-me a diferenciar os conceitos de
alfabetização midiática, educomunicação e de mídia-educação no intuito de melhor
compreendê-los e avançar na temática.

Alfabetização midiática como objetivo

A educação para mídia no Brasil é alvo da atenção de pesquisadores desde os anos de


1960 e muitos trabalhos e pesquisas voltados para o tema já foram realizados. Entretanto, as
mudanças desejadas quanto às políticas públicas, currículos pedagógicos e práticas midiáticas
não ocorreram de forma tão categórica quanto a esperada (BÉVORT e BELLONI, 2009;
ZANCHETTA, 2009). Ainda há dificuldades em delimitar termos e processos de trabalho que
se voltam para essas práticas.
Na conferência “Towards a Good Life in the 2020’s: Enhancing citizenship and social
cohesion through media literacy”4, o inglês David Buckingham desenhou o panorama geral
das ações de alfabetização midiática na Europa buscando entender porque o avanço se dá de
forma lenta. Um dos fatores que ele ressaltou foi a importância de conceituar corretamente os
termos, pois existe a tendência de usar diferentes conceitos como se fosse a mesma coisa.
Uma das principais diferenciações que devem ser feitas é entre ensinar através da mídia e
ensinar sobre a mídia. A educação voltada para a alfabetização midiática não é uma
“educação-midiática”, em suas palavras: “não é usar a mídia como uma ajuda audiovisual na
sala de aula, não é usar a mídia como um sistema de entrega educacional; também não é usar
a mídia como uma maneira de motivar as crianças ou destravar o aprendizado”
(BUCKINGHAM, 2019, caderno de anotações de campo). Para Buckingham, a alfabetização
midiática é mais complexa e demanda questionamentos constantes e mais críticos sobre a
mídia. Também não significa instrumentalizar as crianças e jovens, desenvolver competências
funcionais e operacionais (como tem sido vistas as ações de alfabetização digital). A
alfabetização midiática, assim definida por ele, se refere a promover pensamento crítico, e não
ensinar a manusear tecnicamente a mídia. Alfabetização midiática seria, assim complemento,
um objetivo a ser alcançado, uma espécie de disciplina, ações, atividades, movimentos,
políticas voltadas para o relacionamento qualificado e crítico do público com a mídia.
Nesse ponto considero importante distinguir a alfabetização midiática de ações que
são comuns no Brasil, como as de educomunicação. Ao pesquisar sobre as suas
fundamentações teóricas, identifiquei que a preocupação gira em torno das melhorias e
aperfeiçoamentos dos processos pedagógicos, no sentido de integrar as mídias dentro da sala
de aula, auxiliando a educação. Para Soares (2011), a comunicação é vista como um

4
Participei como ouvinte da conferência internacional promovida pelo instituto nacional do audiovisual da
Finlândia (KAVI) e que faz parte da agenda oficial da União Europeia para 2019. O evento ocorreu na biblioteca
pública de Helsinki, em 10 de setembro de 2019, e contou com palestrantes de diferentes países da Europa para
debater ações de alfabetização mediática na Europa e analisar as condições de desenvolvimento na área. Mais
informações no site oficial do evento: http://www.medialiteracy.fi/. Da minha participação resultou um caderno
de anotações sobre as palestras, discussões e conversas informais que pude presenciar.
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componente do processo educativo, onde a comunicação se torne um eixo central na educação
para educar através dela. A ideia é capacitar os estudantes da educação básica, fazê-los
compreender como a mídia opera em sua funcionalidade para atuarem com mais propriedade
nas mídias. Mas fica claro em alguns textos de pesquisadores da área (BACCEGA 2011;
FIGARO 2011; TODA y TERRERO 2011) que o foco está em uma metodologia da educação,
voltada aos meios, na ideia de repensar práticas de sala de aula que contemplem a mídia e sua
utilização por professores e alunos.
Em outra oportunidade, Soares (2014) evidencia que os objetivos da educomunicação,
em sua visão, direcionam o olhar para os educadores e para a forma como lidam com os
impactos da mídia, relacionando diretamente esses estudos com os de recepção. A meta da
educomunicação seria de “transformar a comunidade educativa em um ecossistema
comunicativo aberto” (SOARES, 2014, p. 22), e identificar novas formas de ensinar e
aprender. Para deixar mais claro esse posicionamento, de entender a mídia como um
componente ou uma ferramenta de trabalho, o pesquisador do campo Aparici (2014, p.38)
afirma que “interessa-nos a comunicação no trabalho do educador, no trabalho do estudante e
nos meios materiais utilizados”. Kaplún (2014), também um estudioso da educomunicação,
costuma refletir sobre a educação formal e direciona suas pesquisas para as maneiras de
ensinar através da comunicação, considerando a importância da expressão e da produção nos
meios de comunicação para a construção dos sujeitos e da cidadania.
Entendo que os objetivos da educomunicação, bem delimitados e importantes, são
voltados para a melhor construção da educação básica através da utilização da mídia em sala
de aula. No entanto, os processos de “desinformação” já citados, alinhados com a ideia de
uma alfabetização midiática, envolvem o objetivo de desenvolver maneiras de aprimorar o
relacionamento dos sujeitos com a mídia devido a sua relevância e constância na vida dos
sujeitos sociais, pensando em disciplinas, projetos, políticas, voltadas para o objeto/objetivo
mídia, e não usar a mídia como ferramenta para o aprimoramento educacional. A
educomunicação é um desafio importante, que encontra muitas barreiras na educação
brasileira e que deve ser levado em consideração ao se planejar políticas públicas de
educação. Mas ela usa a mídia para melhor compreender as disciplinas formais da educação,
complementando o aprendizado, enquanto vislumbra-se uma outra necessidade latente, a de
uma política educacional voltada para a crítica da mídia.

Figura 2: Educomunicação e Alfabetização Midiática

Fonte: Autora

A educomunicação estaria inserida nos processos necessários para alcançar uma


alfabetização midiática. Seria uma técnica, um método, uma ação de mídia-educação. Aqui é
importante diferenciar alfabetização midiática de mídia-educação. A preocupação dos
aspectos teórico-metodológicos de mídia-educação, segundo Fantin (2011), é com as
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mediações escolares. A ideia é trazer a temática das mídias para ser problematizada na escola,
potencializando as práticas escolares. Essas mediações pedagógicas

[...] visam capacitar crianças e professores para uma recepção ativa e uma
produção responsável que auxilie na construção de uma atitude mais crítica
em relação ao que assistem, acessam, interagem, produzem e compartilham,
visto que a precariedade da reflexão sobre linguagens, conteúdos, meios e
interesses econômicos impede uma compreensão mais rica (FANTIN, 2011,
p. 28).

A autora afirma que ainda não há um consenso acerca do termo mídia-educação, mas
que os objetivos da educação para as mídias se aproximam da ideia de formar usuários ativos,
críticos e criativos de todas as tecnologias de comunicação e informação. Apesar de referir-se
às tecnologias, não se reduz a esses aspectos instrumentais, configurando-se como a adoção
de uma postura crítica e criadora, e de avaliar eticamente e esteticamente o que está sendo
oferecido pelas mídias. Também não se trata, conforme foi abordado no início das pesquisas
sobre mídia-educação na década de 1960, de proteger as crianças dos meios, mas capacitá-las
a analisar e refletir sobre suas interações com a mídia e participar de forma ativa e consciente.
A busca é a formação de espectadores críticos através de um fazer educativo.
Esta pesquisadora situa a mídia-educação no âmbito das ciências da educação e do
trabalho educativo, considerando as mídias como um recurso para a formação. Também
afirma que a mídia-educação “constitui um espaço de reflexão teórica sobre as práticas
culturais e se configura como um fazer educativo numa perspectiva transformadora [...]”
(FANTIN, 2011, p. 30). As mídias seriam, então, um recurso para a educação formar melhor
seus alunos, formar cidadãos. A ideia de transformar a escola está muito presente,
reconduzindo-a para a centralidade da problemática.
A importância da mídia-educação pode ser conferida nas razões apontadas por Silveira
(2011, p. 798):
É uma área chave no que toca à formação de cidadãos melhor informados e
mais esclarecidos, trata-se de um dos terrenos centrais dos direitos dos
cidadãos, não se esgota na investigação, já que pretende atuar na promoção
de uma cidadania interveniente; e a proliferação das novas redes,
plataformas e ferramentas digitais coloca em evidência necessidades básicas
ao nível da alfabetização e formação de todos os cidadãos [...].

Muito significativas, as ações de mídia-educação refletem um cuidado primordial com


os currículos educativos e com um aprimoramento pedagógico na intenção de formar alunos-
cidadãos. A mídia-educação tem suas ações voltadas para o campo da educação e estão
inseridas em seus processos e métodos. A educomunicação é uma das diferentes metodologias
de uma mídia-educação contundente e agregadora, ao meu entender. Onde se encaixaria a
noção de alfabetização midiática nesse cenário? Qual a relação que estabelece com a mídia-
educação e com a educomunicação? Veremos aspectos conceituais da alfabetização midiática.
A pesquisadora suíça Feilitzen (2014, p. 15) descreve:

Alfabetização midiática, ou o termo mais em voga, alfabetização midiática e


informacional, refere-se a conhecimentos, habilidades ou competências que
nós devemos adquirir em relação à mídia. Já a mídia-education – ou
educação para mídia, educação para comunicação, etc. – refere-se a um dos
processos para obter alfabetização midiática. Assim, enquanto alfabetização
midiática é o objetivo, educação midiática é um meio para atingir esse
objetivo.
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A pesquisadora enfatiza que os significados entre estes termos são comuns em âmbito
internacional, pois tanto um quanto outro sugerem que

[...] todas as pessoas devem ter acesso à mídia, entender como a mídia atua e
opera na sociedade, devem ter condições de analisar e refletir criticamente
sobre os conteúdos presentes na mídia, e participar da produção midiática ou
comunicar-se numa série de contextos. (FEILITZEN, 2014, p. 15).

O entendimento de alfabetização midiática5 é sintetizado, em documento divulgado


pela UNESCO, como “entender como a mídia trabalha, como ela constrói a realidade e
produz significado, como a mídia é organizada e saber como usá-la sabiamente6”
(JACQUINOT-DELAUNAY et al., 2008, p. 21). Os autores deste documento afirmam que a
alfabetização midiática pretende empoderar as pessoas criticamente e criativamente, pois
“ajuda a fortalecer as habilidades críticas e as capacidades comunicativas que dão significado
humano e permitem o indivíduo usar a comunicação para a mudança7” (JACQUINOT-
DELAUNAY et al., 2008, p. 22). Alfabetização midiática é a união do que chamam de digital
literacy, audiovisual literacy, image literacy, entre outros, em um único termo, mais amplo e
mais geral.
Figura 3: A ecologia da AMI: noções de AMI

Fonte: Alfabetização midiática e informacional: currículo para formação de professores (UNESCO, 2013)

5
Neste documento, o termo utilizado é “alfabetização midiática e informacional”, que não desvirtua em nada o
conceito originalmente trabalhado e utilizado pelos outros países europeus. Optei por utilizar o termo empregado
em outros documentos e mais comumente citado, apenas “alfabetização midiática”.
6
“ Understanding how mass media work, how they construct reality and produce meaning, how the media are
organized, and knowing how to use them wisely” tradução livre da autora.
7
“Media Literacy helps to strengthen the critical abilities and communicative skills that give human meaning
and enables the individual to use communication for change”, tradução livre da autora.
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No que se refere a sua diferenciação da mídia-educação, o documento é preciso: “a
mídia-educação é um processo educacional necessário para melhorar a alfabetização
midiática, como resultado8” (JACQUINOT-DELAUNAY et al., 2008, p. 23). A alfabetização
midiática é mais um resultado, um objetivo a ser alcançado, enquanto a mídia-educação é um
meio, um processo educativo para alcançar esse objetivo, um elemento fundamental.

Figura 4: Esquema de José Manuel Pérez Tornero

Fonte: Empowerment Through Media Education: An Intercultural Dialogue (JACQUINOT-


DELAUNAY et al., 2008)

8
“Media Education, as an educational process, is needed to improve media literacy, as a result”, tradução livre
da autora.
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O empoderamento que defende este documento da UNESCO pode contribuir para a
boa governança, possibilitando que os cidadãos identifiquem erros, distorções e corrupções.
Possibilita que as pessoas assumam o controle de suas realidades, identificando suas próprias
necessidades e problemas, tendo condições de construir conhecimento sobre as práticas da
mídia que são as ferramentas para as tomadas de decisão.
Os termos apresentados têm em comum a relação entre educação e comunicação e a
intenção de promover ações de educação para mídia. As mídias são os meios não só para a
informação, mas também para a cultura, para cidadania e, mais do que nunca, é preciso
aprender a questionar suas mensagens. O mundo globalizado e tecnológico implica mudanças,
e entre elas estão as múltiplas alfabetizações, principalmente a voltada para mídia. A mídia-
educação apresenta-se como um componente pedagógico de um objetivo amplo de melhoria
do relacionamento dos sujeitos com a mídia, a alfabetização midiática, e a educomunicação,
nos termos já descritos, se aproxima de uma técnica, uma metodologia, um procedimento de
mídia-educação marcante e notável, principalmente no contexto brasileiro.
Mas muito importante é salientar, assim como o fez David Buckingham, a importância
do pensamento crítico para o conceito de alfabetização midiática. Ao apresentarem diferentes
abordagens do campo da pedagogia midiática, Kellner e Share (2008) evidenciam o aspecto
crítico. Os autores utilizam a metáfora do iceberg para explicar a alfabetização midiática, que,
segundo eles, costuma analisar apenas a ponta óbvia dos processos midiáticos. O que é
intelectual, histórico e analítico não é contemplado, e a análise da mídia, sem abordar a parte
“submersa”, seria superficial e mecânica.

O componente crítico da alfabetização midiática deve transformar a


alfabetização em uma exploração do papel da linguagem e da comunicação
para definir relações de poder e dominação, pois abaixo da superfície da
água, naquele iceberg, vivem noções ideológicas profundamente embutidas,
de supremacia branca, patriarcalismo capitalista, classicismo, homofobia e
outros mitos opressivos (KELLNER; SHARE, 2008, p. 701).

Sem a parte crítica, as iniciativas de educação para mídia correm o risco, segundo os
autores, de se tornar um manual de ideias convencionais. Por isso é importante não
desvincular nunca o aspecto crítico do âmbito da alfabetização midiática, dando ênfase para a
análise política das representações de dimensões essenciais, como gênero, raça, classe,
sexualidade, economia, entre outros. Interessa a crítica aos modelos hegemônicos e tendências
atuais de abordagem da alfabetização, constituindo então um projeto político para a mudança
social democrática.

Considerações finais

O alto nível de desinformação constatado no Brasil através da pesquisa do instituto


britânico Ipsos Mori é preocupante. Mas, de certa forma, não seria preciso dados científicos
para constatar que o brasileiro tem problemas para se relacionar com a mídia. Há uma
dificuldade latente de distinguir o que é fato e o que não é, onde se encaixa a opinião do
jornalista, onde fica o jornalismo entre a objetividade e a subjetividade. Mas vamos além:
hoje não se quer acreditar nem nos fatos em si. Quando uma autoridade importante no país
propaga, ela mesma, informações falsas ou sem comprovação, conforme tem feito parte das
rotinas norte-americana e brasileira9, fica mais fácil alguns segmentos da população
desacreditarem todo e qualquer dado científico ou comprovado, sob o pretexto de uma

9
“Como lidar com um presidente que mente”. Matéria do portal NEXO de 2019, nas referências.
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informação falsa. Se não gosto, é mentira. A situação é mais grave do que podemos discutir
neste artigo.
Apresentei neste espaço uma diferenciação entre conceitos em voga no campo da
educação para mídia. Assim como foi ressaltado na conferência da União Europeia, a
compreensão dos termos possibilita avançar nos resultados e construir politicas estáveis de
ações para o objetivo em questão. A mídia-educação é um meio, um caminho fundamental
para alcançar o objetivo da alfabetização midiática dos sujeitos. Bastante exercida no Brasil, a
educomunicação é uma ação de mídia-educação, um método de ensinar que contempla as
mídias, mas que não pode ser confundido com o propósito em si. Pode ser trabalhada em
diversos níveis, com diferentes propósitos e objetivos, seja buscando melhorar a performance
dos alunos em disciplinas específicas, seja melhorando o projeto pedagógico e o currículo das
escolas ou perseguindo uma alfabetização. A alfabetização midiática tem relação direta com o
fomento do pensamento crítico, mais do que com o desenvolvimento de capacidades e
habilidades de uso da mídia. Saber usar, ter acesso, entender como funciona é indispensável,
mas não é só isso que vai ajudar as pessoas a saírem de seu atual estado de desinformação.
Uma atitude crítica, desenvolvida através de uma formação qualificada a longo prazo, é peça-
chave.
Este termo novo (cunhado neste século), alfabetização midiática, é o que mais se volta
para os problemas atuais enfrentados pela mídia jornalística, no sentido que abrange uma
perspectiva crítica importante. De forma mais ampla, a alfabetização midiática é um objetivo
a ser alcançado através de políticas e ações que envolvem a educação. Faz parte há décadas
das preocupações de países da União Europeia, que se voltam recorridas vezes para essa
questão no intuito de elaborar políticas de alcance nacional. Para os brasileiros, que ainda não
se voltaram suficientemente para essas políticas, é uma oportunidade de enfrentar a
desinformação, as fake news, e a falta de empatia e de diálogo que assolam o nosso país.
A solução é de longo prazo, sim, pois envolve ações voltadas para escolas, no sentido
de uma formação completa e diversificada. Por mais usual que seja o argumento, é preciso
começar em algum momento. Alguns países da Europa têm se mostrado mais preocupados
com essa questão, inserindo oficinas, workshops e disciplinas de alfabetização midiática nos
currículos escolares e desenvolvendo políticas públicas. A França, segundo reportagem do
Estadão10 de dezembro de 2018, possui uma das maiores iniciativas mundiais em
alfabetização midiática e, desde 2015, tem aumentado verbas para ações voltados para o tema.
Todo ano, cerca de 30 mil professores e educadores fazem cursos para se especializar. O
Ministério da Cultura do país dobrou o orçamento anual para essas iniciativas, chegando a
seis milhões de euros. Em outros países, ainda segundo o Estadão, as iniciativas não são
governamentais, dependem de ONGs ou universidades, o que levou a União Europeia a
lançar, no início deste ano de 2019, um pedido para que os governos dos países se envolvam
mais na questão, através de políticas públicas. Um dos países mais mobilizados para
alfabetização midiática é a Finlândia e, não é à toa, é o país mais preparado na luta contra
informações falsas11. Se começarmos a multiplicar ações com esse viés, seja em escolas, seja
com o público adulto, seja em qualquer outra plataforma, e reunirmos esforços no sentido de
elaborarmos políticas públicas para uma completa alfabetização midiática, talvez o Brasil
possa avançar nas trincheiras dessa batalha contra as fake news e a desinformação.

10
“Projeto ensina estudantes a identificar notícias falsas”, 2018. Ver nas referências.
11
“Finland is winning the war on fake news”. Notícia da CNN, nas referências.
210
ECCOM, v. 11, n. 22, jul./dez. 2020
Referências

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