Você está na página 1de 17

PAISAGEM MODERNA

BAUDELAIRE E RUSKIN

Paisagem moderna.pmd 1 8/7/2010, 15:35


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

REITOR
Carlos Alexandre Netto

INSTITUTO DE ARTES
Diretor
Alfredo Nicolaiewsky
Vice-Diretor
Eny Schuch
Assessora
Maria Clara Machado

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS


Coordenação
Maristela Salvatori

CONSELHO EDITORIAL
Alvaro Valls (UNISINOS)
Eliane Chiron (UNIV. PARIS)
Icleia Borsa Cattani (UFRGS)
François Soulages (UNIV. PARIS)
Gilbertto Prado (USP)
Hélio Fervenza (UFRGS)
Jean Lancri (UNIV. PARIS)
Margarita Shultz (UNIV. CHILE)
Maria do Carmo Nino (UFPer)
Maria Celeste Wanner (UFBa)
Maria Lúcia Bastos Kern (PUC-RS)
Patrícia Franca (UFMG)
Paulo Silveira (UFRGS)

Apoio:

Paisagem moderna.pmd 2 8/7/2010, 15:35


CHARLES BAUDELAIRE
JOHN RUSKIN

PAISAGEM MODERNA
BAUDELAIRE E RUSKIN

Introdução, tradução e notas


Daniela Kern

Paisagem moderna.pmd 3 8/7/2010, 15:35


© Autores, 2010

Capa: Danni Calixto


Projeto Gráfico: Fosforográfico/Clo Sbardelotto
Editoração: Clo Sbardelotto
Revisão: Mariane Farias

Editor: Luis Gomes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960

B338i Baudelaire, Charles


Paisagem moderna: Baudelaire e Ruskin. Introdução, tradução e notas /
Charles Baudelaire, John Ruskin e Daniela Kern; tradução de Daniela Kern. –
Porto Alegre: Sulina, 2010.
246 p.
Texto em francês-português e inglês-português
ISBN: 978-85-205-0565-6
1. Teoria Literária. 2. Poesia – Crítica Literária. 3. Ensaio Literário.
I. Ruskin, John. II. Kern, Daniela.
CDD: 801
801.95
CDU: 82.01
82.09

Todos os direitos desta edição reservados


à EDITORA MERIDIONAL LTDA.

Av. Osvaldo Aranha, 440 – conj. 101


CEP: 90035-190 – Porto Alegre – RS
Tel.: (51) 3311-4082 Fax: (51) 3264-4194
sulina@editorasulina.com.br
www.editorasulina.com.br

Agosto / 2010
Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Paisagem moderna.pmd 4 8/7/2010, 15:35


SALÃO DE 1846: DA PAISAGEM

Charles Baudelaire

Na paisagem, assim como no retrato e no quadro histórico,


podemos estabelecer classificações baseadas em diferentes méto-
dos: há, assim, paisagistas coloristas, paisagistas desenhistas e
imaginativos; naturalistas que idealizam à sua revelia, e sectários
do lugar-comum, que se voltam a um gênero particular e estra-
nho, chamado Paisagem histórica.
Por ocasião da revolução romântica, paisagistas, a exem-
plo dos mais célebres Flamengos, voltam-se exclusivamente ao
estudo da natureza: foi o que os salvou e deu um brilho particular
à escola da paisagem moderna. Seu talento consiste, sobretudo,
em uma adoração eterna da obra visível, sob todos os seus aspec-
tos e em todos os seus detalhes.
Outros, mais filósofos e mais argumentadores, ocuparam-
se sobretudo do estilo, isto é, da harmonia das linhas principais,
da arquitetura da natureza.
Quanto à paisagem de fantasia, que é a expressão do deva-
neio humano, do egoísmo humano que se substitui à natureza, ela
foi pouco cultivada. Esse gênero singular, do qual Rembrandt,
Rubens, Watteau e alguns livros ilustrados ingleses4 oferecem os
melhores exemplos, e que é o análogo em menor escala das belas
decorações da Ópera, representa a necessidade natural do mara-
vilhoso. É a imaginação do desenho importada para a paisagem:

4
Livres d’étrennes: livros que se dão de presente, os gift book ingleses,
edições caras e ilustradas que eventualmente chamamos, no Brasil, de
livros de mesa. N. T.

37

Paisagem moderna.pmd 37 8/7/2010, 15:35


jardins fabulosos, horizontes imensos, cursos de água mais lím-
pidos do que o natural, e correndo apesar das leis da topografia,
rochedos gigantescos construídos em proporções ideais, brumas
flutuantes como um sonho. A paisagem de fantasia teve entre
nós poucos entusiastas, seja por ser um fruto pouco francês, seja
porque a escola teve, antes de mais nada, a necessidade de se
mergulhar de novo em fontes puramente naturais.
Quanto à paisagem histórica, sobre a qual quero proferir
algumas palavras à maneira de ofício para os mortos, não é nem a
livre fantasia, nem o admirável servilismo dos naturalistas: é a
moral aplicada à natureza.
Que contradição e que monstruosidade! A natureza tem
por moral apenas o fato de não possuir outra moral que não seja o
fato, porque ela é a própria moral; e, no entanto, trata-se de re-
construí-la e ordená-la a partir de regras mais sãs e mais puras,
regras que não se encontram no puro entusiasmo do ideal, mas
sim nos códigos bizarros que os adeptos não mostram a ninguém.
Assim a tragédia – esse gênero esquecido pelos homens, e
do qual encontramos algumas amostras apenas na Comédie-
Française, o mais deserto teatro do universo, – a tragédia consis-
te em recortar certos padrões eternos, que são o amor, a raiva, o
amor filial, a ambição etc., e, suspensos por fios, fazê-los cami-
nhar, cumprimentar, sentar e falar a partir de uma estética mis-
teriosa e sagrada. Jamais, mesmo com grande reforço de cunhas e
de martelos, vocês farão entrar no cérebro de um poeta trágico a
ideia da infinidade variada, e mesmo o ferindo ou o matando, você
não irá persuadi-lo de que são necessárias diferentes morais. Você
viu alguma vez personagens trágicas beberem e comerem? É evi-
dente que essas pessoas colocaram a moral no lugar das necessi-
dades naturais e que criaram o próprio temperamento, enquanto a
maior parte dos homens suporta o seu. Ouvi um poeta comum da
Comédie-Française falar que os romances de Balzac apertavam-

38

Paisagem moderna.pmd 38 8/7/2010, 15:35


lhe o coração e lhe inspiravam desgosto; que, por sua conta, não
concebia que os amores pudessem viver de outra coisa a não ser
do perfume das flores e das lágrimas da aurora. Seria tempo, me
parece, de que o governo se encarregasse disso; pois se os homens
de letras, que têm cada um seu sonho e seu trabalho, e para os
quais o domingo não existe, escapam naturalmente à tragédia, há
um certo número de pessoas que foram persuadidas de que a
Comédie-Française era o santuário da arte, e cuja admirável boa
vontade é escamoteada um dia a cada sete. É razoável permitir a
alguns cidadãos que se embruteçam e que contraiam falsas ideias?
Mas parece que a tragédia e a paisagem histórica são mais fortes
que os Deuses.
Vocês compreendem agora o que é uma paisagem trágica.
É um arranjo de padrões de árvores, de fontes, de tumbas e de
urnas cinerárias. Os cachorros são talhados de acordo com um
certo padrão de cachorro histórico; um pastor histórico não pode,
sob pena de desonra, permitir-se outro. Toda a árvore imoral a
que se permitiu crescer sozinha e à sua maneira é necessaria-
mente abatida; todo charco com sapos ou girinos é impiedosa-
mente enterrado. Os paisagistas históricos, que têm remorsos após
alguns pecadilhos naturais, imaginam o inferno sob o aspecto de
uma verdadeira paisagem, de um céu puro e de uma natureza livre
e rica: por exemplo, uma savana ou uma floresta virgem.
Os Srs. PAUL FLANDRIN, DESGOFFES, CHEVANDIER
e TEYTAUD são os homens que se impuseram a glória de lutar
contra o gosto de uma nação.
Ignoro qual é a origem da paisagem histórica. Com certeza
não nasceu de Poussin; porque junto a esses senhores, é um espí-
rito pervertido e devasso.
Os Srs. ALIGNY, COROT e CABAT preocupam-se muito
com o estilo. Mas o que, no Sr. Aligny, é uma tomada de partido
violenta e filosófica, no Sr. Corot é um hábito ingênuo e uma fei-

39

Paisagem moderna.pmd 39 8/7/2010, 15:35


ção de espírito. Infelizmente ele apresentou este ano apenas uma
paisagem: vacas que vêm beber em um charco na floresta de
Fontainebleau, o Sr. Corot é antes um harmonista do que um
colorista; e suas composições, sempre desprovidas de pedantis-
mo, têm um aspecto sedutor pela própria simplicidade da cor.
Quase todas as suas obras têm o dom particular da unida-
de, que é uma das necessidades da memória.
O Sr. Aligny fez em água-forte vistas muito bonitas de
Corinto e Atenas; elas exprimem perfeitamente bem a ideia pré-
concebida dessas coisas. De resto, esses harmoniosos poemas de
pedra vão muito bem com o talento sério e idealista do Sr. Aligny,
bem como o método empregado para traduzi-las.
O Sr. CABAT abandonou completamente o caminho no qual
havia criado para si uma tão grande reputação. Sem ser cúmplice
das fanfarronadas particulares de certos paisagistas naturalistas,
ele foi outrora bem mais brilhante e bem mais ingênuo. Verdadei-
ramente errou ao não se fiar na natureza, como antes. É um ho-
mem grande demais para que todas as suas composições deixem
de ter um caráter especial; mas esse jansenismo de última hora,
essa diminuição de meios, essa privação voluntária, não podem
aumentar a sua glória.
Em geral, a influência ingrista não pode produzir resul-
tados satisfatórios na paisagem. A linha e o estilo não substituem
a luz, a sombra, os reflexos e a atmosfera colorida, – todas as
coisas que desempenham um papel grande demais na poesia da
natureza para que ela se submeta a esse método.
Os partidários contrários, os naturalistas e os coloristas,
são bem mais populares e lançaram muito mais brilho. Uma cor
rica e abundante, céus transparentes e luminosos, uma sinceri-
dade particular que faz com que aceitem tudo o que a natureza
oferece, são suas qualidades principais: somente alguns entre eles,
como o Sr. Troyon, regojizam-se demais nos jogos e nas acroba-

40

Paisagem moderna.pmd 40 8/7/2010, 15:35


cias de seu pincel. Esses meios, conhecidos de antemão, aprendi-
dos com grande esforço e monotonamente triunfantes, interessam
o espectador às vezes mais do que a própria paisagem. Ocorre
mesmo, nesses casos, de um aluno inesperado, como o Sr. Charles
Le Roux, levar ainda mais longe a segurança e a audácia; pois há
apenas uma coisa inimitável, que é a bonomia.
O Sr. COIGNARD fez uma grande paisagem de uma muito
bela feição, e que muito chamou a atenção do público; – no pri-
meiro plano, numerosas vacas, e, ao fundo, o limite de uma flores-
ta. As vacas são belas e bem pintadas, o conjunto do quadro tem
um bom aspecto; mas não acredito que essas árvores sejam vigo-
rosas o bastante para suportar semelhante céu. Isso faz supor que
se retirássemos as vacas, a paisagem se tornaria muito feia.
O Sr. FRANÇAIS é um dos paisagistas mais distintos. Ele
sabe estudar a natureza e a ela acrescentar um perfume romântico
de boa qualidade. Seu Estudo de Saint-Cloud é charmoso e cheio
de gosto, exceto pelas pulgas do Sr. Meissonier que são uma falta
de gosto. Elas chamam muita atenção e divertem os patetas. De
resto, são feitas com a perfeição particular que esse artista coloca
em todas essas pequenas coisas.
O Sr. FLERS infelizmente enviou apenas pastéis. O públi-
co e ele nisso perdem igualmente.
O Sr. HEROULT é daqueles que se preocupam sobretudo
com a luz e a atmosfera. Sabe exprimir muito bem os céus claros
e sorridentes e as brumas flutuantes, atravessadas por um raio de
sol. Conhece toda essa poesia característica dos países do Norte.
Mas sua cor, um pouco mole e fluída, lembra os hábitos da aqua-
rela, e se ele soube evitar as bazófias dos outros paisagistas, nem
sempre possui suficiente firmeza de toque.
Os Srs. JOYANT, CHACATON, LOTTIER e BORGET vão,
em geral, buscar seus temas nos países distantes, e seus quadros
têm o charme das leituras de viagens.

41

Paisagem moderna.pmd 41 8/7/2010, 15:35


Não desaprovo as especialidades; mas não gostaria, no en-
tanto, que delas se abusasse tanto quanto o Sr. Joyant, que jamais
saiu da place Saint-Marc e jamais transpôs o Lido. Se a especia-
lidade do Sr. Joyant atrai os olhos mais do que alguma outra, é
sem dúvida devido à perfeição monótona que ali coloca, e que
sempre se deve aos mesmos meios. Parece-me que o Sr. Joyant
jamais pôde fazer progresso.
O Sr. Borget transpôs as fronteiras da China, e nos mostrou
paisagens mexicanas, peruanas e indígenas. Sem ser um pintor de
primeira ordem, tem uma cor brilhante e fácil. Seus tons são fres-
cos e puros. Com menos arte, preocupando-se menos com os
paisagistas e pintando mais como viajante, o Sr. Borget obteria
talvez resultados mais interessantes.
O Sr. Chacaton, que se dedicou exclusivamente ao Oriente,
é há muito tempo um pintor dos mais hábeis; seus quadros são
alegres e sorridentes. Infelizmente deles diríamos quase sempre
que são Decamps e Marilhat5 diminuidos e pálidos.
O Sr. Lottier, ao invés de procurar pelo cinza e pela bruma
dos climas quentes, ama neles acusar a crueza e o ofuscamento
ardente. Esses panoramas inundados de sol são de uma verdade
maravilhosamente cruel. Diríamos que foram feitos com o daguer-
reótipo da cor. Ele é um homem que, mais que todos os outros,
e mesmo que os mais célebres ausentes, preenche, em minha
opinião, as condições do belo na paisagem, um homem pouco
conhecido pela multidão, e que antigos fracassos e surdas pirra-
ças afastaram do Salão. Seria tempo, me parece, de que o Sr.
ROUSSEAU – já adivinhamos que é dele que gostaria de falar,

5
Alexandre-Gabriel Decamps (1803-1860) e Georges-Antoine-Prosper
Marilhat (1811-1847), pintores de paisagem considerados à época de
Baudelaire grandes orientalistas. Marilhat morreu precocemente, vítima
de sífilis. N. T.

42

Paisagem moderna.pmd 42 8/7/2010, 15:35


– se apresentasse de novo diante do público, ao qual outros pai-
sagistas habituaram pouco a pouco a aspectos novos.
É tão difícil fazer compreender com palavras o talento do
Sr. Rousseau quanto o de Delacroix, com o qual tem, de resto,
algumas relações. O Sr. Rousseau é um paisagista do Norte. Sua
pintura respira uma grande melancolia: ele ama as naturezas
azuladas, os crepúsculos, os pores do sol singulares e mergulha-
dos na água, as grandes sombras em que circulam as brisas, os
grandes jogos de sombra e de luz. Sua cor é magnífica, mas não
radiosa. Seus céus são incomparáveis por sua maciez flocada.
Lembremo-nos de algumas paisagens de Rubens e de Rembrandt,
acrescentemos a isso algumas recordações de pinturas inglesas, e
suponhamos, dominando e governando tudo isso, um amor puro e
sério pela natureza, e poderemos talvez fazer-nos uma ideia da
magia de seus quadros. Ele ali acrescenta muito de sua alma, como
Delacroix; é um naturalista arrastado sem cessar para o ideal.
O Sr. GUDIN compromete cada vez mais sua reputação. À
medida que o público vê a boa pintura, ele se desapega dos artis-
tas mais populares, se não podem mais lhe proporcionar a mesma
quantidade de prazer. O Sr. Gudin ingressa para mim na categoria
das pessoas que tapam suas feridas com uma carne artificial, maus
cantores tidos por grandes atores e pintores poéticos.
O Sr. JULES NOËL fez uma marina muito bonita, com
uma cor bela e clara, radiante e alegre. Uma grande faluca, de
cores e formas singulares, repousa em um grande porto em que
circula e nada toda a luminosidade do Oriente – talvez um colo-
rido um pouco excessivo e unidade insuficiente. Mas o Sr. Jules
Noël certamente tem talento demais para que não o tenha o bas-
tante, e sem dúvida é daqueles que se impõem o progresso diário.
De resto, o sucesso que obtém essa tela prova que, em todos os
gêneros, o público hoje está pronto a acolher amavelmente todos
os novos nomes.

43

Paisagem moderna.pmd 43 8/7/2010, 15:35


O Sr. KIÖRBÖE é um dos antigos e faustosos pintores
que sabem tão bem decorar essas nobres salas de jantar, que se
imagina cheias de caçadores afamados e gloriosos. A pintura do
Sr. Kiörböe é feliz e poderosa, sua cor é fácil e harmoniosa. O
drama da Armadilha para lobo não se compreende com muita
facilidade, talvez porque a armadilha não esteja completamente
sob a luz. O traseiro do cachorro que recua não foi pintado com
suficiente vigor.
O Sr. SAINT-JEAN, que faz, diz-se, as delícias e as gló-
rias da cidade de Lyon, jamais obterá nada além de um sucesso
medíocre em um país de pintores. Essa minúcia excessiva é de
um pedantismo insuportável – todas as vezes que lhe falarem
sobre a ingenuidade de um pintor de Lyon, não acredite. Há
muito tempo a cor geral dos quadros do Sr. Saint-Jean é amarela
e envelhecida. Diríamos que o Sr. Saint-Jean jamais viu frutas
verdadeiras, e que não se importa, porque as faz muito bem de
modo mecânico: não apenas os frutos da natureza têm um outro
aspecto, mas ainda são menos finos e menos trabalhados do que
aqueles.
O mesmo não ocorre com o Sr. ARONDEL, cujo mérito
principal é uma real bonomia. Assim, sua pintura contém al-
guns defeitos evidentes; mas as partes felizes são completa-
mente bem-sucedidas; algumas outras são demasiado negras, e
diríamos que o autor não se dá conta, pintando, de todos os
acidentes necessários do Salão, da pintura circundante, do
distanciamento do espectador, e da modificação no efeito recí-
proco dos tons causada pela distância. Além disso, não basta
pintar bem. Todos esses flamengos tão célebres sabiam dispor
a caça e atormentá-la por muito tempo como se atormenta um
modelo; seria necessário encontrar linhas felizes e harmonias
de tom ricas e claras.

44

Paisagem moderna.pmd 44 8/7/2010, 15:35


O Sr. P. ROUSSEAU, do qual cada um notou os quadros
cheios de cor e de brilho, está em sério progresso. Era um exce-
lente pintor, é verdade; mas agora olha a natureza com maior
atenção, e se aplica à reproduzir as fisionomias. Vi ultimamente,
em Durand-Ruel, patos do Sr. Rousseau que eram de uma bele-
za maravilhosa, e que tinham mesmo os costumes e os gestos
dos patos.

45

Paisagem moderna.pmd 45 8/7/2010, 15:35


OS DOIS CREPÚSCULOS (1855)

Charles Baudelaire

A Fernand Desnoyers

Meu caro Desnoyers, você me pede versos para o seu pe-


queno volume, versos sobre a Natureza, não é? Sobre os bosques,
os grandes carvalhos, a verdura, os insetos, – o sol, sem dúvida?
Mas você bem sabe que sou incapaz de me enternecer pelos vege-
tais, e que minha alma é rebelde a essa singular Religião nova,
que terá sempre, me parece, para todo o ser espiritual um não sei
quê de shocking. Jamais acreditarei que a alma de Deus habita as
plantas, e, mesmo que ela as habitasse, me importaria muito pou-
co com isso, e consideraria a minha como de bem mais alto valor
do que a daqueles legumes santificados. Eu mesmo sempre pensei
que havia na Natureza, florescente e rejuvenescida, algo de aflitivo,
duro, cruel, – um não sei quê que frisa a imprudência. Diante da
impossibilidade de satisfazer-lhe completamente segundo os ter-
mos estritos do programa, envio-lhe dois fragmentos poéticos, que
representam quase a soma de devaneios que me assaltam nas ho-
ras crepusculares. No fundo dos bosques, encerrados sob essas
abóbadas semelhantes àquelas das sacristias e das catedrais, pen-
so em nossas surpreendentes cidades, e a prodigiosa música que
flui no topo me parece a tradução das lamentações humanas.
C. B.

A NOITE

Eis que chega o Sol, amigo do criminoso;


Ele vem como um cúmplice, a passo de lobo; – o céu

46

Paisagem moderna.pmd 46 8/7/2010, 15:35


se fecha lentamente como uma grande alcova;
e o homem impaciente se transforma em selvagem besta.

Sim, eis então a Noite, a Noite a ele cara!


Cujos braços sem mentir podem dizer:
Hoje trabalhamos. – É a Noite que consola
Os Espíritos devorados por uma dor selvagem,
O sábio obstinado cujo semblante se fecha,
E o operário curvado que retoma seu leito.

No entanto, Demônios malsãos na atmosfera,


Despertam pesadamente como gente de negócios,
E esbarram ao voar persianas e alpendre;
Através dos luares que atormentam o vento.
A Prostituição se acende nas ruas;
Como um formigueiro ela abre suas passagens;
Por toda a parte abre um oculto caminho,
Assim como o inimigo que tenta um golpe com o punho;
Ela se mexe no seio da cidade de lama,
Como um Verme que rouba do Homem o que ele come.
Escutamos aqui e ali cozinhas apitando,
Os teatros ganindo, as orquestras roncando;
As mesas de hotel em que o Jogo faz as delícias
Se enchem de marafonas e de escroques, seus cúmplices,
E os ladrões que não têm nem trégua nem piedade
Em breve começarão seu trabalho, eles também,
forçando docemente as portas e as caixas,
para viver alguns dias e vestir suas amantes.

Resgate-me, minha Alma, neste grave momento,


E feche os ouvidos a esse zumbido;
É a hora em que as dores dos doentes se irritam;

47

Paisagem moderna.pmd 47 8/7/2010, 15:35


A escura Noite os toma pelo pescoço, eles terminam
seu destino, e vão para o Abismo comum;
o hospital se enche com seus suspiros; mais de um
não mais virá procurar a sopa perfumada
perto do fogão, – a noite, – junto a uma Alma adorada.

A maior parte ainda jamais conheceu


A doçura do lar, e jamais viveu!

A MANHÃ

A alvorada cantava nas alamedas das casernas


E o vento da manhã soprava sobre as lanternas.

Era a hora em que o enxame dos sonhos malfazejos


zunia nos ouvidos dos pardos adolescentes,
Onde, como um olho sangrento que palpita e que se mexe,
A lâmpada sobre o dia fazia uma marca vermelha,
Em que a alma sob o peso do corpo denso e áspero
Imitava os combates da lâmpada e do dia;
Como um rosto em prantos que as brisas secam,
O ar estava repleto do frisson das coisas que escapam
E o homem estava cansado de escrever, e a mulher de amar.

As casas, aqui e ali, começam a fumegar.


As mulheres da vida, com a pálpebra lívida,
a boca aberta, dormiam seu sono estúpido;
As mendigas, arrastando seus seios magros e frios,
Sopravam seus tições e sopravam seus dedos.
Era a hora em que, entre a fome e a mesquinharia,
Agravavam-se as dores das mulheres em gestação;
Como um soluço cortado pelo sangue escumoso,
O canto do galo ao longe rasgava o ar brumoso;

48

Paisagem moderna.pmd 48 8/7/2010, 15:35


Um nevoeiro glacial banhava os edifícios,
E os agonizantes no fundo dos hospícios,
Empurravam seu último estertor em soluços desiguais.

Os devassos retornavam, alquebrados por seus trabalhos.

A Aurora tiritante em vestido verde e rosa


Avançava lentamente pelo Sena deserto,
E a escura Paris, esfregando os olhos,
Empunhava suas ferramentas, – velha laboriosa.

O CREPÚSCULO DA NOITE

O cair da noite sempre foi para mim o sinal de uma festa


interior e como que a libertação de uma angústia. Nos bosques,
assim como nas ruas de uma grande cidade, o escurecer do dia e o
pontilhamento de estrelas ou lanternas iluminam meu espírito.
Mas tive dois amigos aos quais o crepúsculo deixava
doentes. Um desconhecia então todas as relações de amizade e
de polidez, e brutalizava selvagemente o primeiro que chegasse.
Eu o vi atirar um excelente frango na cabeça de um garçom. A
chegada da noite estragava as melhores coisas.
O outro, à medida em que o dia baixava, ficava mais azedo,
mais sombrio, mais implicante. Indulgente durante o dia, era
impiedoso durante a noite; – e não era apenas sobre os outros,
mas sobre si mesmo que se exercia abundantemente sua mania
crepuscular.
O primeiro morreu louco, incapaz de reconhecer sua
amante e seu filho; o segundo traz em si a inquietude de uma
insatisfação perpétua. A sombra que faz a luz em meu espírito
faz a noite no deles. – E, ainda que não seja raro ver a mesma
causa engendrar dois efeitos contrários, isso me intriga e me sur-
preende sempre.

49

Paisagem moderna.pmd 49 8/7/2010, 15:35

Você também pode gostar