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A questão da efetividade das decisões dos

tribunais de contas
The question of effectiveness of the court of accounts
decisions

Doris T. P. de Miranda Coutinho

CRÉDITO: PLATAFORMA LATTES


Doutoranda em Direito Constitucional pela
Universidad de Buenos Aires, UBA, Argentina.
Especialista em Política e Estratégia pela Universidade
do Tocantins e em Gestão Pública com ênfase em
Controle Externo pela Facinter/Fatec, TO, Brasil.
Especialista em Política e Estratégia Nacional pela
Universidade Federal do Tocantins (UFTO), Palmas/
TO, Brasil. MBA em Gestão Pública com ênfase em
Controle Externo pelo Grupo Educacional Uninter /
Instituto de Formação Superior, Curitiba/PR, Brasil.
Bacharel em Direito pela Universidade de Direito de
Curitiba, Curitiba/PR, Brasil. Conselheira do Tribunal
de Contas do Estado do Tocantins. Membro honorário
do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
CV: http://lattes.cnpq.br/6847688664119808
E-mail: contato@doriscoutinho.com.brdoris

Resumo: O presente artigo aborda os entraves à Abstract: This paper discusses the obstacles to the
efetivação das decisões dos tribunais de contas, realization of the decisions of the Court of Accounts,
inobstante a importância atribuída aos órgãos regardless the importance attached to the Court of
de contas e a essencialidade do controle externo Accounts and the essentiality of external control to
para a própria existência da democracia e da forma the existence of democracy and republican form
de governo republicana. A questão da falta de of government. The issue of lack of effectiveness,
efetividade, com efeito, envolve diversos aspectos indeed, involves various aspects and factors, to
e fatores, como a natureza jurídica de título quote the legal nature of extrajudicial execution of
executivo extrajudicial das sentenças dos tribunais sentences of the Court of Accounts and the active
de contas e a legitimidade ativa para proceder à legitimacy to proceed with its implementation.
respectiva execução. Este trabalho propõe desvelar Thus, this paper proposes to reveal such problems,
tais problemáticas, analisando os pontos críticos analyzing the critical points and pointing solutions
e apontando soluções para o aperfeiçoamento for the improvement of inspection activity of the
da atividade fiscalizatória dos órgãos de controle external control organisms
externo.

Palavras-chave: Controle externo. Execução. Título executivo. Separação de poderes.


Keywords: External control. Execution. Executive title. Separation of powers.

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1 INTRODUÇÃO
Não se discute a importância da atuação dos tribunais de contas no exercício do controle externo da
administração pública, tampouco a evidente essencialidade desta função para a própria existência
da democracia e da forma de governo republicana, mormente deva ser concretizada por um órgão
constitucional autônomo, como de fato são as cortes de contas.
O controle externo desempenhado pelos tribunais de contas se ramifica em diversas atividades,
quais sejam, prestação de contas consolidadas, sujeita à emissão de parecer prévio (art. 71, I, da CF);
julgamento da prestação de contas de ordenador (art. 71, II, da CF); julgamento de irregularidades
que resultem em perda, extravio ou outra forma de prejuízo ao erário (art. 71, II, da CF); apreciação da
legalidade dos atos de admissão de pessoal; concessão de aposentadoria, reformas e pensões (art.
71, III, da CF); inspeções e auditorias (art. 71, IV, da CF); fiscalização das contas das empresas de cujo
capital social a União participe (ou os Estados e os Municípios participem, no caso dos tribunais de
contas estaduais e/ou municipais — art. 71,V, da CF); fiscalização da aplicação dos recursos repassados
pela União (ou pelos Estados, no caso dos tribunais de contas estaduais) (art. 71, VI, da CF) e outras.
As funções exercidas pelas cortes de contas são ora complementares (art. 71, I, III, IV e VII, da CF), ora
exclusivas (art. 71, II, V, VI, VIII, IX e XI, da CF), sem qualquer restrição ou intervenção do parlamento.
Nesse contexto, importa questionar: as decisões dos tribunais de contas, quando do exercício da
competência materializada no art. 71, II, da CF, são devidamente executadas? Para o enfrentamento
dessa problemática, importa questionar também: qual a natureza jurídica das decisões dos tribunais
de contas? Quem possui competência para executá-las?
Sob o prisma dos resultados derivados dessa atividade de controle, observa-se atualmente que as
decisões tomadas pelos órgãos de contas não têm logrado efetividade satisfatória à credibilidade
dessas instituições junto à sociedade. A ausência de efetividade encerra fatores diversos, cujas causas
podem ser corrigidas, uma vez desveladas e detidamente analisadas, proporcionando à atividade
fiscalizadora a relevância que lhe é devida.
O artigo tem como objetivo identificar os fatores que determinam ou contribuem para a ocorrência
dos fenômenos, como “inefetividade das decisões dos tribunais de contas” (SILVEIRA e CORDOVA,
2009, p. 35). Assim, realizou-se o levantamento bibliográfico e a análise de exemplos (relatórios de
atividades dos tribunais de contas).
Para a constatação do fenômeno analisado (inefetividade), empreenderam-se pesquisa documental
de dados quantitativos, obtidos por meio de relatórios de atividades dos tribunais de contas e de
obras específicas sobre o tema, e pesquisa bibliográfica, para realizar uma abordagem qualitativa
acerca dos posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários sobre o assunto (natureza jurídica das
decisões das cortes de contas e da competência para executar as respectivas decisões), com vistas a
apontar possíveis soluções.

2 O QUADRO JURÍDICO DE EXECUÇÃO ATUAL


A Constituição Federal, após elencar as funções precípuas dos tribunais de contas, dispõe no art.
71, §3º, que as decisões de que resultarem imputação de débito ou multa terão eficácia de título

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executivo. Tal dispositivo dá luz ao propósito do legislador constituinte de atribuir a essas decisões força
correspondente à importância que deu à atuação dos tribunais de contas no contexto institucional
brasileiro pós-redemocratização, como órgão autônomo e essencial à forma de governo e à própria
democracia, ou “órgão constitucional de soberania”, na dicção de José Joaquim Gomes Canotilho
(1993, p. 678).
Mesmo assim, a situação atual e os dados obtidos dos resultados nos tribunais revelam um contexto
de inversão dessa relevância pretendida ao julgamento das contas públicas. Os dados disponíveis para
consulta nos tribunais de contas pátrios, em geral, são muito vagos, não ficando claros os montantes
recuperados, ou seja, se são originários de execução ou de pagamento espontâneo, tão pouco se são
advindos de imputação de débitos ou de aplicação de multas.
No âmbito federal, percebe-se alguma evolução com relação ao adimplemento das decisões provindas
do Tribunal de Contas da União (TCU). Em 1999, apurou-se que apenas 0,5% a 1% do montante das
condenações impostas retornavam aos cofres públicos (TCU, 1999, p. 47). Matéria jornalística publicada
no Jornal do Commércio-RJ, no ano de 2010, dava notícia de que essa marca passou para 10% em
2009, em virtude da parceria firmada entre o TCU e a Advocacia-Geral da União (AGU). Já em 2014, o
relatório anual de atividades desta Corte de Contas anotou que, dos 2,078 bilhões correspondentes às
imputações de débito e multa, foram propostas as medidas referentes à cobrança executiva autuando,
por meio do Ministério Público e da Advocacia-Geral da União, 2.723 processos de cobrança, o que
equivale a 49,90% do valor total de condenações (TCU, 2014, p. 44).
No que tange aos tribunais de contas estaduais, do que foi possível perquirir, os valores ainda são
consideravelmente baixos, não alcançando na maioria dos casos 30% de efetividade referente à
recuperação dos montantes envolvidos nessas condenações1 (COUTINHO, 2016, p. 124), sejam de
multa, sejam de restituição ao erário do valor danoso.
Evidencia-se, dessa maneira, uma séria dificuldade em recuperar todo o montante que é fruto de
atividades irregulares no âmbito da Administração Pública. Diante disso, vislumbram-se como
resultados imediatos: (i) o descrédito na atuação das cortes de contas por parte da população ante a
ausência de resultados numéricos; (ii) o desrespeito, por parte dos administradores, das decisões do
tribunal, haja vista já terem conhecimento, de antemão, de que sua execução muito provavelmente
será frustrada; (iii) o aumento de condutas irregulares envolvendo o Poder Público.
Diante desse quadro, cabe indagar: se a própria Constituição, lei suprema do ordenamento jurídico,
estabelece que as decisões dos tribunais de contas que contenham condenação de ressarcimento ao
erário ou de multa têm eficácia de título executivo, quais os motivos para que o número de efetivas
execuções seja tão baixo?

3 RAZÕES PARA A AUSÊNCIA DE EFETIVIDADE


Atualmente, o caminho que toma o processo de contas, especialmente no âmbito do TCU, pode
assim ser sintetizado: na presença de indícios de fraude, desvio ou desfalque de recursos públicos, o

À guisa de exemplos, no TCE-PR , no âmbito municipal, em 2014, foram impostas sanções que totalizaram o valor de R$ 3.146.267,08
1

e o valor recolhido de R$ 224.751,44, correspondendo a 7,14%. Já no TCE-TO, o Relatório de atividades de 2014 revela que o índice
de recuperação relativo às multas aplicadas é em média de 7%.

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Tribunal de Contas instaura um processo de tomada de contas em ordem para investigar, identificar
o responsável e quantificar o respectivo dano. Esse é chamado a se defender — produz prova,
argumenta, colaciona documentos, recorre. A decisão, então, é prolatada por meio de um acórdão
condenatório, o qual constitui o título executivo que é enviado ao Ministério Público de Contas, que,
por sua vez, repassa-o à Advocacia-Geral da União para que seja promovida a execução judicial.
Tal percurso, sem embargo de ocupar aqui um único parágrafo, pode levar anos na prática. Após
a condenação em débito, entendendo-se que o título executivo daí decorrente seja de natureza
extrajudicial, conforme sobressai na jurisprudência atual, é permitido ao executado interpor embargos
à execução e alegar qualquer matéria em sua defesa (art. 917, III, do CPC), com cognição ampla, como
se estivesse dando início a uma nova instrução. Ao fazer isso, afirma Martinez (2008, p. 14), iguala-se a
“qualidade” do acórdão do Tribunal de Contas a um mero cheque, comprometendo toda a efetividade
da condenação imposta.
Frente a esse panorama, dois pontos revelam-se cruciais à explicação da atual situação a que estão
fadadas as decisões dos tribunais de contas. Essas questões são pertinentes à fase de execução e
consistem em “quem executa” (legitimidade) e “o que se executa” (natureza jurídica).

3.1 Legitimidade ativa


A primeira questão, relativa à legitimidade, pode sinteticamente ser respondida da seguinte maneira,
já expondo o respectivo quadro crítico: quem aplica não é quem executa e quem executa, muitas
vezes, se pudesse, não aplicaria.
Os tribunais de contas, da União, dos Estados ou, ainda, dos Municípios (onde existirem), conforme
disposição constitucional do art. 71, VIII, têm legitimidade para aplicação, entre outras, de sanções
consistentes em aplicação de multa, além do ressarcimento ao erário do valor danoso. Salienta-se
que são espécies distintas de penalidades, sendo a primeira de natureza sancionatória e a segunda de
caráter compensatório aos cofres públicos.
Ocorre que essas penalidades não são autoexecutáveis, de modo que reclamam iniciativa externa para
a propositura de sua respectiva cobrança no judiciário, uma vez que, como se afirmou, essas decisões
constituem título executivo. Entretanto, o fato de ter eficácia de título executivo não simplifica a sua
cobrança.
Não dispondo a Lei Fundamental de forma expressa, a quem incumbiria a legitimidade ativa para
tal cobrança? Concerniu ao Supremo Tribunal Federal preencher, interpretativamente, esse vácuo
normativo. A Corte Suprema2, por seu turno, consolidou em sua jurisprudência que “quanto às
condenações patrimoniais impostas pelos tribunais de contas, somente o ente público beneficiário
possui legitimidade ativa para a propositura da respectiva execução”3. Dessa forma — com fulcro
no art. 131 da Constituição, que delega à Advocacia-Geral da União a representação judicial e
extrajudicial da União, e no art. 132, que investe às respectivas procuradorias a representação judicial

2
Nesse sentido: RE-AgR n. 525.663, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 13/10/2011; AI-AgR n. 826.676, de minha relatoria, DJE de 24/02/2011;
AI-AgR n. 765.470, rel. min. Rosa Weber, DJe de 19/02/2013; ARE-AgR n. 720.742, rel. min. Cármen Lúcia, DJe de 04/04/2013; RE-AgR
n. 606.306, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe de 27/11/2013, e RE-AgR n. 791.575, rel. min. Marco Aurélio, DJe de 27/06/2014.
3
Julgado com repercussão geral: STF, ARE n. 823.347 RG / MA, rel. min. Gilmar Ferreira Mendes, sessão de 24/09/2014.

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e a consultoria dos Estados e do Distrito Federal —, decidiu-se que não cabe às cortes de contas a
iniciativa da cobrança, tampouco ao Ministério Público, atuante ou não junto aos órgãos de controle
externo.
Portanto, cabe ao ente público que teve o cofre lesado pela irregularidade objeto da condenação,
por meio de seu órgão de representação judicial, a execução do título executivo gerado. A situação
se replica em cada esfera da Federação: quanto às decisões condenatórias do TCU, em que há
envolvimento de recursos federais, a cobrança impende à Advocacia-Geral da União; quanto às
decisões dos tribunais de contas estaduais e municipais, a legitimidade para ingressar em juízo é das
respectivas procuradorias.
Tal sistemática vigente é profundamente questionável, mormente a dúvida que pesa sobre a
independência desses órgãos de representação judicial na execução das sanções, levando em conta
suas ligações funcional e estrutural intrínsecas ao Poder Executivo.
Esse quadro é especialmente infesto nos municípios de pequeno porte, nos quais o prefeito dispõe de
capacidade política para obstar a efetiva cobrança do título executivo, por efeito da notável influência
que exerce como chefe do Poder Executivo. Nesses municípios interioranos, não raro, verifica-se a
ausência de qualquer procuradoria, fazendo com que o ente público contrate, por ato do próprio
prefeito, na maioria das vezes, sem o procedimento licitatório, escritórios privados de advocacia, o
que, indubitavelmente, agrava o sistema de favores e influência pelo poder.
A partir da fixação desses aspectos é que se torna compreensível porque muitas deliberações das
cortes de contas não chegam a ser efetivadas. Jacoby Fernandes (2003, p. 415) complementa essa
conclusão, afirmando que:
É consabido que, de modo geral, esses órgãos de representação judicial são precariamente
estruturados, com carências acentuadas de recursos humanos e materiais, conservando
ainda em várias unidades da federação como titular agente de confiança do chefe do
Poder Executivo, muitas vezes, coincidentemente, o inscrito como responsável no título
executivo lavrado pela corte de contas.

Percebe-se, contudo, que a responsabilidade por essa falta de efetividade fica, sob os olhos da
sociedade, a cargo do tribunal de contas, quando a este não são reconhecidos, quer textual, quer
jurisprudencial, a legitimação nem os instrumentos legitimadores de cobrança, permanecendo, dessa
forma, de mãos atadas, vendo suas decisões deliberadamente ignoradas.
Impõe, nesse cenário, reconhecer a necessidade da modificação desse sistema, fazendo com que
os tribunais de contas, conforme ressalta Rui Barbosa, na exposição de motivos do próprio Decreto
n. 966-A, referente a sua criação, em 1890, “possam exercer as suas funções vitais no organismo
constitucional, sem o risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil” (Tribunal de
Contas do Município de São Paulo, 1973).

3.2 Natureza jurídica


O segundo ponto crucial referente à matéria da efetividade das decisões do tribunal de contas, sobre
a questão “o que executar”, diz respeito à natureza jurídica das decisões das cortes de contas. Isto
porque grande parte da ineficácia de tais acórdãos reside no reconhecimento majoritário de sua força
executiva meramente extrajudicial.

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Considerando a natureza extrajudicial atribuída à interpretação da Suprema Corte do art. 5º, XXXV
(princípio da inafastabilidade de jurisdição), e o entendimento da doutrina majoritária a respeito do
tema — mencionando Leonardo José Carneiro da Cunha Júnior (2008, p. 369-371) e Freddie Didier
Júnior (2010, p. 310) —, o título permite que, em fase de execução em juízo, qualquer matéria possa
ser alegada pelo devedor contra o acórdão do tribunal de contas (título) em embargos à execução,
por força do art. 917, VI4, do Código de Processo Civil de 2015, podendo até mesmo serem rediscutidas
todas as provas e os argumentos produzidos, como se houvesse iniciado um novíssimo processo em
sede judicial, desprezando o que fora realizado na Corte de Contas. Como afirmam os processualistas
Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidieiro (2013, p. 738), nesse caso, a cognição é plena e não
encontra limites, de forma que tudo pode ser alegado.
Nesse sentido, a natureza jurídica dos acórdãos condenatórios de contas tem implicação direta na
ampla revisibilidade judicial dessas decisões, o que agrava a questão da falta de efetividade, pois
acarreta um desnecessário julgamento duplo, permitindo ao responsável condenado, na esfera do
tribunal de contas, um “segundo tiro” no âmbito do Poder Judicial.
Em sede jurisprudencial, com efeito, esse posicionamento é praticamente unânime, tendo em vista
a tendência dos tribunais superiores em valorizar sua competência de reapreciação, arrimada na
inafastabilidade do Poder Judiciário do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, senão veja excerto do
Superior Tribunal de Justiça nesse caminho:
5. [...] Acrescente-se que atuação do TCU, na qualidade de Corte Administrativa não
vincula a atuação do Poder Judiciário, nos exatos termos art. 5º, inciso XXXV/CF/88,
segundo o qual, nenhuma lesão ou ameaça de lesão poderá ser subtraída da apreciação
do Poder Judiciário. (fls. 1.559).
6. Da natureza do Tribunal de Contas de órgão de controle auxiliar do Poder Legislativo
decorre que sua atividade é meramente fiscalizadora e suas decisões têm caráter técnico-
administrativo, não encerrando atividade judicante, o que resulta na impossibilidade de
suas decisões produzirem coisa julgada e, por consequência não vincula a atuação do
Poder Judiciário, sendo passíveis de revisão por este Poder, máxime em face do Princípio
Constitucional da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, à luz do art. 5º, inc. XXXV,
da CF/88. (STJ, Tribunal Pleno, MS n. 25.880. Relator: min. Eros Grau. Julgamento em
07/02/2007. Publicado no DJ de 16/03/2007) (grifo nosso).

É evidente a desvalorização que tal entendimento acarreta às decisões condenatórias proferidas pelos
tribunais de contas, predestinando sua atuação à beira da inutilidade ao permitir defesa tão ampla do
responsável em embargos à execução.

4 POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA O QUADRO CRÍTICO DE INEFETIVIDADE


Tendo em vista as críticas aos tribunais de contas e às suas decisões, necessária se mostra a busca por
alternativas jurídicas que possam alavancar a atividade dessas cortes a um nível superior de efetividade,
compatível com sua relevância no quadro institucional brasileiro. Ressalta-se que a pretensão não é
de inflar a força institucional das cortes de contas, mas cinge-se tão somente à busca por uma solução
que leve a sério a atribuição constitucional desses órgãos.

Art. 917. Nos embargos, poderá o executado alegar: VI – qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de
4

conhecimento. (BRASIL, 2015).

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Assim, a seguir procura-se traçar uma linha propositiva a respeito das duas problemáticas mencionadas
que se revelam pontos cruciais para a ineficácia dos acórdãos condenatórios.

4.1 A necessária interpretação a favor da legitimidade do Tribunal de


Contas e a favor da democracia
É patente que a sistemática atual, na qual o órgão fiscalizado é o responsável pela execução de sua
própria sanção, anda totalmente em caminho inverso ao modelo democrático de direito vigente no
estado de direito contemporâneo, o qual se funda justamente na submissão do Poder Público à ordem
jurídica e à vontade daqueles que o legitimam.
Dificilmente haverá real efetividade na ação fiscalizatória exercida pelo órgão de contas, caso não seja
alterado esse entendimento que prevalece na Corte Suprema5. A solução para tal questão encontra-se
na mudança de interpretação da própria Constituição para adequá-la, nesse ponto, aos precípuos fins
democráticos do controle externo da administração pública, quais sejam, a eficiência e a eficácia da
gestão, a transparência dos gastos e o respeito aos recursos públicos indisponíveis, além de torná-la
mais consentânea com a natureza e o papel de órgão constitucional essencial à existência do Estado:
os tribunais de contas.
O fato é que, para um direito ser exercido, é imprescindível que se disponha de um instrumento forte
e confiável de execução, para que se garanta sua materialização. Com efeito, ser titular de um direito
e não poder concretizá-lo, ou defendê-lo, é a mesma coisa de não ter esse direito. (CARVALHO, 2002,
p. 167)
Nesse caso, trata-se do direito de exigir a prestação de contas (accountability), direito esse que
é de suma relevância à caracterização de um modelo democrático de Estado já reconhecido na
própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 17896, abrangendo não apenas a
exigência de que haja a formal prestação das contas referentes ao dinheiro público manejado pelos
administradores, mas albergando também o direito de ver essas contas analisadas (answerability),
julgadas e, em caso de desfalque, que sejam efetivamente cobrados os danos e retorne o montante
de onde não deveria ter saído, senão para proveito do povo (enforcement) (SCHEDLER, 1999, p.
13-16).
A Constituição Federal — ao definir a abrangência desse controle, sobretudo no art. 70, parágrafo
único7, quando determina quem tem o dever de prestar contas — tratou de dotar os tribunais de

Encontra-se em tramitação, no Senado Federal, a PEC n. 25/2009, de autoria da senadora Marisa Serrano do PSDB/MS, que pretende
5

atribuir capacidade postulatória aos tribunais de contas da União, dos Estados, do Distrito Federal bem como dos Municípios. A
senadora justifica a sua proposição, alegando que “no universo da AGU, as execuções fundadas em decisões do Tribunal de Contas
da União (TCU) são apenas mais algumas de um sem número de feitos aos quais deve dar atenção. Nos Estados, a situação é
similar, enquanto, nos Municípios, chega a ser crítica. Na maioria deles, a representação judicial é feita por escritórios de advocacia
contratados pelo Poder Público”. (BRASIL, 2009).
Art. 14. Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da contribuição pública, de
6

consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração. Art. 15. A sociedade
tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.
7
Art. 70. [...] Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde,
gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma
obrigações de natureza pecuniária.

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contas de prerrogativas e funções com dimensão adequada à relevância de sua atuação, além de
autonomia suficiente em ordem para efetivar esse direito fundamental do cidadão.
O que se pretende dizer é que o direito público subjetivo do cidadão, “como poder da vontade humana
protegido e reconhecido pelo ordenamento jurídico” (JELLINEK, 1910, p. 10), à prestação das contas
e às suas implicações (direito de análise das contas e direito de restituição), é efetivado pelas cortes
de contas, servindo como intermediárias da concretização desse direito fundamental da população.
Assim, quando se apregoa que o povo tem o direito público subjetivo de cobrar aquilo que fora
apurado como desfalque ou aplicado a título de multa pecuniária, consequentemente se reconhece
a legitimidade dos tribunais de contas para requerer diretamente em juízo a execução desses valores
constantes de suas próprias decisões, em nome da tutela do erário e do interesse coletivo que este
defende.
Não faz sentido que o constituinte tenha dado funções eminentemente constitucionais de soberania
aos órgãos de controle externo — conforme preconiza Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2014,
p. 94-95) — sem que lhes fosse outorgada a legitimidade para materializar suas próprias decisões,
recompondo o patrimônio público. Essa interpretação, antes de consistir em um aumento de poder,
representa a mais adequada aos anseios democráticos.
Pensar o contrário, como ainda faz a Suprema Corte, representa, na prática, fadar as decisões à
ineficácia sob dois aspectos distintos: obsta a execução do orçamento público prejudicado e subjuga
os órgãos de contas ao exercício de um papel meramente simbólico, subversivo da real relevância
dessas instituições.
Portanto, primeiramente, é salutar que se proceda à superação da posição (precedente) firmada na
Suprema Corte acerca da legitimidade para ajuizamento de execução das decisões dos tribunais de
contas, já que esta não condiz com os valores erigidos na Carta Magna no que diz respeito à proteção
e ao controle dos recursos públicos. É necessário dar ao tribunal de contas as peças para que ele
efetive o exercício de sua missão controladora e ajude na construção de uma sociedade mais justa.

4.2 A efetivação pelo Ministério Público


Ainda com o fim apriorístico e exclusivo de ver solucionada a celeuma acerca da não efetividade das
decisões sancionatórias dos tribunais de contas, há quem propõe uma via sucessiva. Todas as ideias
aqui ventiladas lançam-se ao aprimoramento da atividade do controle externo.
Nesse sentido, apresenta-se a possibilidade de concernir à instituição do Ministério Público, tanto
aquele atuante junto ao tribunal de contas como o dos entes federativos (federal e estadual), a
legitimidade ativa para requerer a execução das penalidades ora aplicadas no âmbito do julgamento
de contas. Contudo, é o posicionamento inverso que prevalece, porque o Supremo Tribunal Federal
decidiu que nem o próprio órgão de contas nem o Ministério Público teriam tal legitimidade, visto
que o art. 129, III8, que trata das atribuições do Parquet, deveria ser interpretado de forma restritiva,
conforme voto colacionado:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
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patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

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Por conseguinte, é ausente a legitimidade ativa do Parquet. Na espécie, não se
comporta interpretação ampliativa do artigo 129, III, do texto constitucional, de modo
a enquadrar a situação em tela na hipótese de proteção do patrimônio público e social,
do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. [...] quanto às condenações
patrimoniais impostas pelos Tribunais de Contas (art. 71, §3º, CFRB/88), somente o ente
público beneficiário possui legitimidade ativa para a propositura da respectiva execução.
(AgRg em RE n. 823.347 RG/MA, Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, Dje de 28/10/2014)

Cabe ressaltar que tal posicionamento relega os débitos e as multas impostos pelas cortes de contas a
segundo plano, sob o jugo de órgãos não especializados e pouco independentes.
Quanto a esse ponto, antes de a questão ter sido apreciada em repercussão geral pela Suprema Corte,
o Superior Tribunal de Justiça já havia se posicionado em sentido contrário, ou seja, de que o Ministério
Público teria, sim, legitimidade ativa para promover a execução do título executivo proveniente do
tribunal9.
No entanto, diante da cristalização da jurisprudência no âmbito do STF, o Tribunal da Cidadania
repensou seu entendimento de forma a assentar que o Ministério Público não teria a capacidade
postulatória para promoção da execução10. Justificou essa virada jurisprudencial, afirmando que, de
fato, o art. 129, III, da Constituição, deveria ter interpretação restritiva. Ressaltou, ainda, que o art. 81 da
Lei Orgânica do TCU (Lei n. 8.443/92) é explícito ao dizer que compete ao Ministério Público de Contas,
na figura do Procurador-Geral de Contas, promover junto à Advocacia-Geral da União a execução das
condenações impostas pelo órgão de contas, mas não diretamente. Conquanto ter acobertado tal
entendimento para fins de uniformização jurisprudencial, não poderia a Corte Superior de Justiça ter
dado passo maior para trás.
Para contra-argumentar tal posição, impende salientar que a inclusão do Ministério Público como
legitimado à execução de forma alguma representa extensão da interpretação de “patrimônio
público” a ser protegido, previsto no art. 129, III. O patrimônio público a que se refere o dispositivo
consubstancia conceito integrativo dos recursos da sociedade, não permitindo que haja discriminação
quanto à divisão de parcelas desse patrimônio, que são “protegíveis” e outras não. Em um regime
republicano, toda espécie de patrimônio público deve ser resguardada e, para tanto, a Lei Maior
designou o Ministério Público a essa precípua função.
Como já assentou o próprio STJ: “estes recursos constituem-se patrimônio público do cidadão que,
com sua força de trabalho, produz a riqueza sobre a qual incide a tributação necessária ao Estado para
atendimento dos interesses públicos” (REsp n. 1.119.377/SP, 1ª Seção, rel. min. Humberto Martins, DJe
de 04/09/2009).

Conforme os precedentes contidos no REsp n. 996.031/MG, Primeira Turma, DJ de 28/04/2008 e REsp n. 678.969/PB, Primeira Turma,
9

DJ de 13/02/2006 e REsp n. 1.162.474/MA, Plenário, DJ de 17/12/2010.


10
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TÍTULO FORMADO POR TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. EXECUÇÃO PELO MINISTÉRIO
PÚBLICO ESTADUAL. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM. PRECEDENTE DO STF. ARE n. 806.451-AgR. 1. O Ministério Público estadual não
tem legitimidade para promover execução de título executivo extrajudicial oriundo de decisão de Tribunal de Contas estadual, com
vistas ao ressarcimento do erário. 2. Nos termos da jurisprudência do STF, o Ministério Público não é “parte legítima para executar as
multas impostas pelos Tribunais de Contas a agentes políticos condenados por irregularidades, prerrogativa que compete aos entes
públicos beneficiários dos julgados”. (ARE n. 806.451-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, segunda turma, acórdão eletrônico DJe-154 de
08/08/2014, publicado em 12/08/2014). Agravo Regimental provido. (AgRg n. REsp n.1381289/MA, rel. ministro Humberto Martins,
Segunda Turma, julgado em 20/11/2014, DJe 11/12/2014).

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Ademais, a partir da posição proposta, não deixaria de existir a legitimação ordinária a cargo dos
órgãos de representação judicial do ente beneficiário; todavia, caso falhasse, essa via primária, tal qual
não raro ocorre, abrir-se-ia uma via de legitimação extraordinária residual do Ministério Público de
Contas ou Federal e Estadual.

4.3 A necessidade de nova acepção para a natureza jurídica das


decisões como pressuposto de efetividade
A eficácia das decisões dos tribunais de contas remete-nos, inevitavelmente, ao polêmico tema da
existência de função jurisdicional, ainda que restrita, atribuída àqueles órgãos. Examina-se, nesse
caso, a parte posterior à deflagração da execução judicial, superada a problemática a respeito da
legitimidade.
O processo de prestação de contas, por via de regra, é originariamente não contencioso no que
diz respeito ao caráter da relação processual que se estabelece com a sua autuação. Todavia, assim
que a regularidade das contas é contestada a partir da verificação de inconsistências pela equipe
técnica da corte, quando auditadas, estabelece-se um conflito intersubjetivo de interesse, figurado,
de um lado, pela Administração Pública e, de outro, pelo prestador das contas, surgindo uma espécie
de contencioso que será dirimido a partir dos valores e das garantias estipuladas na Constituição,
referentes, sobretudo, ao devido processo legal. Desse ponto, escoimar-se-á o acórdão condenatório,
possivelmente imputando débito (restituição ao erário) ou aplicando multa ao gestor. A natureza
jurídica desse acórdão condenatório é o tema nuclear do debate.
A influência dessa discussão no tema ora tratado consiste no seguinte. Caso se entenda que a
decisão condenatória do órgão de contas tomada com base no art. 71, II, da Constituição integra
a função judicante estar-se-á diante de um título executivo judicial. Já se o entendimento for pela
natureza eminentemente administrativa do acórdão condenatório, o título executivo passa a ser
extrajudicial.
O ponto fulcral é que, em relação aos títulos executivos extrajudiciais, o art. 917, VI, do Código de
Processo Civil, estabelece que o executado (responsável no processo de prestação de contas), ao
propor embargos à execução, poderá alegar “qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como
defesa em processo de conhecimento”, de forma que há possibilidade de rediscutir toda a matéria
que ensejou o título, ou seja, todo o trabalho realizado pela Corte de Contas é inutilizado nesse ponto.
Não é recente o debate relativo à natureza jurídica das decisões da lavra do Tribunal de Contas,
tampouco simplório. Com efeito, a reflexão acerca da atividade jurisdicional administrativa tem início
simultâneo ao começo do emprego do verbo “julgar”, dentre as atribuições das cortes de contas
(MARANHÃO, 1993, p. 256).
Nesse sentido, o Decreto n. 966-A/1890, idealizado por Rui Barbosa, criador do Tribunal de Contas no
Brasil, determinou que a este Tribunal cabe “julgar as contas de todos os responsáveis por dinheiros
públicos” (art. 4º, §3º). Desse momento em diante — com exceção da Constituição Republicana de
1891, que não empregava a palavra “julgar” no art. 89, que referia ao Tribunal de Contas —, todas
as demais leis fundamentais vindouras valeram-se de tal termo, inclusive a Constituição vigente, de
1988, mais precisamente em seu art. 71, II. Não obstante, artigos, como o 76 da Constituição de 1946,

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correspondente ao art. 73 da Carta Republicana de 1988, preveem de forma expressa que o Tribunal
de Contas tem “jurisdição em todo o território nacional”, enrijecendo a questão.
O debate também tem assento no Direito comparado, porquanto grande parte das cortes de contas
europeias são dotadas, expressamente, de força judicante em suas decisões, a exemplo da Itália11, da
França12 e de Portugal13.
Isso posto, pretende-se resolver a questão a partir de duas linhas de raciocínio, contra-argumentando
os aspectos levantados pela doutrina majoritária para negar o caráter judicante das decisões dos
tribunais de contas. Depois, traçar argumentos próprios favoráveis à consolidação dessa natureza
jurídica jurisdicional.
4.3.1 A questão terminológica
Conforme se notou, a terminologia é a fonte do debate aqui exposto, e o estudo de seus contornos
revela-se crucial à constatação do acórdão condenatório dos tribunais de contas como representativo
de atividade jurisdicional.
Dessa forma, é relevante salientar, primeiramente, que os termos “judicial” e “jurisdição” não se
confundem, não obstante a derivação das terminologias. Hely Lopes Meirelles (1979, p. 748), destarte,
assenta que a jurisdição remete ao seu correspondente em latim, qual seja, juris dictio, ou seja, “dizer
o direito” e, nessa perspectiva, tanto diz o direito o Poder Judiciário, como o Executivo e até mesmo o
Legislativo, quando procedem à interpretação e à aplicação da lei em determinado caso.
Desse modo, todos os poderes e os órgãos respectivos exercem jurisdição, em seu sentido material,
mas somente o Poder Judiciário tem o monopólio da jurisdição judicial, a qual é qualificada pela
possibilidade de intangibilidade, isto é, de formação da coisa julgada formal e material.
Cabe esclarecer que, após essa breve lição, a expressão “título executivo judicial” não se refere
somente àqueles formados no âmbito do judiciário, mas também àqueles que foram construídos
a partir do exercício da jurisdição, no seu sentido material de interpretar a lei, ou seja, o direito
no caso concreto. E isso não é fruto de suposição ou persuasão, haja vista o art. 515 do Código
de Processo Civil, que insere no rol dos títulos executivos judiciais a “sentença arbitral”, a qual é
produzida em âmbito externo do Judiciário, podendo-se concluir que essa é inarredável.

Itália, Lei n. 14 de janeiro de 1994, n. 20. Disposições em matéria de jurisdição e controle da Corte de Contas. [...] Artigo 1. 1 – A
11

responsabilidade do sujeito suposto à jurisdição da Corte de Contas em matéria de contabilidade pública é pessoal e limitada ao fato
do ato omissivo ou comissivo com dolo ou culpa grave, sem prejuízo da não sindicabilidade do mérito das decisões discricionárias.
(ITÁLIA, 1994)
França, Código de Jurisdição financeira. Livro I: A Corte de Contas; [...] Título III: Competências e Atribuições; Capítulo I: Competências
12

jurisdicionais; Seção I: Julgamento das contas.


Artigo L131-1 – Os ordenadores públicos que se enquadrem na jurisdição da Corte de Contas são obrigados a apresentar as suas
contas a ela dentro dos prazos estabelecidos pela Portaria no Conselho de Estado. (Modificado pela Lei nº 2008-1091, de 28 de
outubro de 2008). (FRANÇA, 2016)
Constituição da República Portuguesa. Art. 209. 1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de Tribunais: [...]
13

c) O Tribunal de Contas. [...]


Art. 214. 1. O Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas
que a lei mandar submeter-lhe [...]. (PORTUGAL, 1976)

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Outra conclusão induvidosa que se permite retirar a partir das terminologias é justamente aquela
que provém desde a Constituição de 1934 e perdura até a Lei Magna atual, em seu art. 71, II. Nesse
dispositivo, a Carta da República estabelece a competência das cortes de contas para:
julgar as contas dos administradores e dos demais responsáveis por dinheiros, bens e
valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades
instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa
a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

O que se costuma afirmar, para refutar a tese de exercício jurisdicional pelos órgãos de contas, é
que o termo “julgar” em nada se relaciona com jurisdição, pois essa foi empregada de maneira não
técnica no texto constitucional, ou seja, esse termo não imprime o vocabulário em seu sentido técnico
(CRETELLA JÚNIOR, 1986, p. 2-3).
Não se pode coadunar com tal posicionamento, embora respeitável, porquanto pretende atribuir
semântica inexistente a uma expressão que permite pouco espaço para interpretação. Nas palavras do
hermeneuta brasileiro Carlos Maximiliano: “não se presumem, na lei, palavras inúteis”, isto é, “devem-
se compreender as palavras como tendo alguma eficácia” (2011, p. 204). Nesse sentido, afirma o autor
que, em regra, as leis e os contratos foram redigidos com atenção e esmero de sorte que traduzam o
objetivo dos seus atores. A lição vale com mais força para a Constituição Federal, a qual ostenta caráter
de norma suprema.
Nesse sentido, o emprego do verbo “julgar”, diferente, por exemplo, daquele utilizado no inciso I do art.
71, qual seja, “apreciar”, apresenta significância unívoca no sentido de que as cortes de contas realizam
julgamento, jurisdição, sendo impossível sustentar que o constituinte agiu de forma displicente, por
ignorância ou por descuido na confecção do texto. (FERNANDES, 2003, p. 139)
Não obstante, a confirmação dessa natureza vir da própria Constituição, a qual – no caput de seu
art. 73, ao estabelecer a composição do Tribunal de Contas da União –, expressa que esse órgão terá
“quadro próprio e jurisdição em todo o território nacional”.
4.3.2 O conceito pós-moderno de jurisdição e o caráter não monístico
Outra grande celeuma que se origina nesse contexto decorre do enunciado estabelecido no art. 5º,
XXXV, da Constituição Federal, que traz a garantia fundamental da inafastabilidade do Poder Judiciário,
de forma que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; isso
em decorrência do sistema de controle adotado no modelo democrático brasileiro, que preferiu a
jurisdição única ao contencioso administrativo.
Assim, o sistema brasileiro não teria adotado um modelo pluralístico de manifestações de caráter
jurisdicional (imutáveis), como o fez a França, erigindo o sistema de “contencioso administrativo”, mas
adotou o modelo inglês, de jurisdição única, isto é, de monopólio do Poder Judiciário para o exercício
de tal função.
Vale apontar alguns doutrinadores que são favoráveis a esse posicionamento, de unicidade ou
monismo do exercício jurisdicional, o que induz à extrajudicialidade do título executivo proveniente
da decisão condenatória decorrente da competência do tribunal de contas para julgar as contas,
conforme art. 71, II, da CF. Para Lúcia Valle Figueiredo, o legislador equivocou-se ao utilizar o termo

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“julgar”,14 constante desse artigo (2006, p. 367). Odete Medauar engrandece o coro entendendo
que essas decisões possuem natureza administrativa, porquanto nenhuma lesão poderá escapar à
apreciação do Poder Judiciário (1990, p. 124-125). Nesse mesmo sentido, Oswaldo Aranha Bandeira
de Mello aduz que o tribunal de contas constitui órgão administrativo não judicante, razão pela qual a
denominação “tribunal” com função de “julgar” são dois equívocos (1969, p. 172).
Sem o propósito de esgotar a secular discussão e por se tratar de um debate jurídico indissolúvel no
tempo, pretende-se demonstrar porque o julgamento das contas com supedâneo no art. 71, II, que
se vale de tal verbo “julgar”, constitui exercício de jurisdição, apto a ensejar a construção de um título
executivo judicial, mesmo provindo de órgão externo à estrutura do Poder Judiciário.
Ao Estado foi conferido o poder político soberano, uno e indivisível, o qual se fragmentou em funções
primordiais estratificadas a partir da teoria clássica da divisão dos poderes de Montesquieu, mas que,
com o tempo, exigiram-se temperamentos que atenuassem a intransigência da separação que se fez
entre as funções de legislação, administração e jurisdição.
Destarte, como afirma Paulo Bonavides (2007, p. 76), “a vida, com seu dinamismo e suas contradições,
impôs dialeticamente a entrosagem essencial dos poderes, afastando-se, pois, do antigo esquema
mecanicista da ordem política” Nesse contexto é que a atividade jurisdicional não mais pode se ver
estagnada à abrangência exclusiva de um poder.
A jurisdição, conceituada por Alexandre Freitas Câmara (2014, p. 71) como a “função do Estado de
atuar a vontade concreta do direito objetivo (lei), seja afirmando-a, seja realizando-a praticamente”,
também é vista como una, não cabendo falar em espécies de jurisdição.
A vinculação da função jurisdicional ao Poder Judiciário é inevitável, mas não absoluta. Jacoby
Fernandes aduz que — sob o prisma do art. 5º, XXXV, da Constituição, que prega a inafastabilidade da
apreciação do judiciário — qualquer dispositivo legal que pretendesse afastar alguma questão desse
crivo judicial seria, evidentemente, inconstitucional.
Não obstante, assenta que esse mandamento constitucional, ao mencionar que “a lei não poderá
[...]”, se destina ao legislador infraconstitucional, de forma que não há vedação para que a própria
Constituição “estabeleça que um determinado tipo de questão não seja objeto de apreciação judicial”
(2003, p. 122).
A própria Carta Magna, em manifestação de Poder Constituinte Originário, por sua vez, admitiu
diversas exceções15 a esse monismo de jurisdição pelo judiciário, dentre elas o julgamento das contas
dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração
direta e indireta, incluídas as fundações e as sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público
federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte
prejuízo ao erário (art. 71, II, da CF/88). Tal afirmação é endossada por Vitor Nunes Leal (1960, p. 231),
14
“O termo ‘julgar’ parece-nos inadequado. Considerando o monopólio de jurisdição pelo judiciário, o correto seria dizer ‘apreciar para
homologar’, ‘glosar’ (rejeitar) e, por via de consequência, ‘sancionar’. Ocorre, pois, que ‘julgar’ não pode denotar atividade excludente
da apreciação do Poder Judiciário”. (FIGUEIREDO, 2006, p. 368)
Julgamento das contas presidenciais pelo Congresso Nacional (Art. 71, I c/c art. 49, IX); julgamento do Presidente e vice-Presidente
15

pelo Senado Federal por crimes de responsabilidade (art. 52, I); julgamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-
Geral da República, Advogado-Geral da União, pelo Senado Federal, por crimes de responsabilidade (art. 52, II) (BRASIL, 1988).

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assinalando que a supressão da competência do judiciário resulta de norma constitucional, e não da
lei.
De fato, diferentemente do modelo português, os tribunais de contas brasileiros não integram a
estrutura do Poder Judiciário, porquanto o art. 92 da Carta Magna não o contempla dentre os órgãos
integrantes desse poder. Contudo, diante do pluralismo jurídico e da superação da divisão estratificada
de poderes, essa desvinculação estrutural não obsta que outros órgãos soberanos, como o Tribunal de
Contas, exerçam a função judicante. Com efeito, é pertinente a lição de Pontes de Miranda ao afirmar
que, estruturalmente, não há nenhuma vinculação do órgão de contas, seja ao Legislativo, seja ao
Judiciário, “se bem que, de modo especial, como função (jurisdicional), sim” (1947, p. 338), quanto a
esse último.
Com efeito, é inevitável deduzir que o desempenho da função de julgamento constitucionalmente
posta aos tribunais de contas representa também o poder de atuar a vontade concreta do direito
objetivo, ou seja, de dizer o direito (juris dictio), aplicar a lei ao caso concreto, em síntese, exercer a
jurisdição “constitucional de contas”, na acepção de Castro Nunes (1943, p. 23). Assim, de forma
semelhante à jurisdição típica do Judiciário, deve respeito ao devido processo legal, ao contraditório,
à ampla defesa, à instrumentalidade das formas, à fundamentação racionável e controlável das
decisões e das suas respectivas recorribilidades. É dizer, motoriza os mesmos princípios processuais
que consubstanciam intrinsecamente a atividade jurisdicional.
Destarte, Seabra Fagundes (1990, p. 142), ao analisar a Constituição de 1947, também compreendeu
que, inobstante o Tribunal de Contas não ser estruturalmente integrado ao Poder Judiciário, sua
atribuição na função de “julgar” (art. 77, II, da CRFB/1946) consistiria em “investi-lo no parcial exercício
da função judicante. Não bem pelo emprego da palavra ‘julgamento’, mas sim pelo sentido definitivo
da manifestação da corte”.
Para Carlos Casemiro Costa (1958, p. 44), “a jurisdição de contas é o juízo constitucional das contas. A
função é privativa do tribunal instituído pela Constituição para julgar as contas dos responsáveis por
dinheiros ou bens públicos”.
Equivocado, portanto, pensar que somente do Judiciário deriva jurisdição, mormente quando
da própria Constituição exara vontade diversa, dotando órgãos específicos e independentes, em
circunstâncias expressamente determinadas, da competência para realizar julgamentos, interpretando
e aplicando o direito objetivo a casos concretos.
Dessa forma, deve-se dissociar (semântica e logicamente) o poder orgânico do poder funcional, isto
é, a natureza judicial de uma decisão do seu caráter jurisdicional. A primeira expressão consiste no
pronunciamento de um órgão do Poder Judiciário (poder orgânico), o que por certo representa, como
atividade típica, a sua atuação judicante. Já a segunda expressão revela o poder de dizer o direito,
formando coisa julgada (poder funcional). Consoante afirma Jacoby, “nos atos de jurisdição, em que
a administração decide a aplicação do direito, é possível em vários casos encontrar a coisa julgada,
operando, preclusivamente, efeitos em relação à possibilidade de modificação, seja no âmbito da
administração, seja no âmbito judicial” (FERNANDES, 2003, p. 121).

R. TCEMG Belo Horizonte v. 34 n. 3 p. 34-53 jul./set. 2016 47


Essa desconfusão, portanto, é crucial ao reconhecimento do acórdão condenatório no julgamento
de contas (art. 71, II) como título executivo judicial. No contexto moderno, não deve prevalecer o
dogma do liberalismo clássico sobre a divisão dos poderes, haja vista a impossibilidade de mantê-los
estritamente separados, devendo-se abrir cada vez mais a porta da intercomunicação.
Diante da necessidade de harmonização e do fator de equilíbrio, e não da prevalência entre eles,
pode-se afirmar que inexiste exclusividade ou monopólio de funções, de modo que as vias judiciárias
não resultem esgotamento de toda a possível função jurisdicional do Estado. Em síntese: há jurisdição
fora do título IV, capítulo III, da Constituição, e as decisões condenatórias dos órgãos de contas formam
um título executivo judicial.
No tocante à identidade presente entre o processo judicial e o processo de contas, a equidistância se
apresenta sob o aspecto material e formal. Materialmente, tanto como momento quanto como modo
e finalidade, a corte de contas atua de maneira jurisdicional. Como “momento”, avaliza uma situação
contenciosa (ordenador vs. Administração), surgida no processo de realização do direito abstrato;
como “modo”, interpreta o texto legal, retirando-lhe o sentido da norma que será fundamentada na
aplicação do caso prático e, como “finalidade” de seu exercício, tranca a situação contenciosa como
consequência imediata da interpretação e da aplicação fixada, com a observância das garantias
constitucionais relativas ao processo.
Além do aspecto material de similitude entre a atividade “julgar” das cortes de contas e a atividade
“julgar” do Poder Judiciário, alguns pontos de natureza formal se destacam.
Aos ministros que ocupam o Colegiado do Tribunal de Contas da União, para que fossem
independentes em sua atuação, não vergando ao peso das contingências políticas e das injunções do
Poder Executivo ou das influências dos grupos econômicos (BUZAID, 1967, p. 139), foram outorgadas
as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos ministros do
Superior Tribunal de Justiça, conforme o art. 73, §3º, da Constituição. Simetricamente, aos conselheiros
das cortes estaduais também dispõem os mesmos predicamentos que protegem os magistrados,
consubstanciados na Lei Complementar n. 35 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), de 14/03/1979,
o que, inclusive, é matéria sumulada pelo STF na Súmula n. 42: “É legítima a equiparação de Juízes do
Tribunal de Contas, em direitos e garantias, aos membros do Poder Judiciário”.
Ademais, a forma de comunicação processual também coincide. Consoante o art. 238 do Código de
Processo Civil/2015, a citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado
para integrarem a relação processual. Tomando como parâmetro o Tribunal de Contas da União,
pressupondo o modelo simétrico às demais cortes estaduais, o ato de levar ao responsável o
conhecimento da existência do processo também é fundamental à validade do mesmo, pois as
garantias do contraditório e da ampla defesa também devem ser respeitadas.

4.4 Alternativas práticas viáveis para a transformação conceitual


Finda a exposição teórica, revela-se necessária a modificação do entendimento acerca das decisões
condenatórias dos tribunais de contas. Representaria, antes de tudo, um acerto pró-cidadão, o qual,
invariavelmente, diante da ineficácia da recuperação de valores desfalcados, é quem arca com as
consequências.

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Portanto, a desqualificação que dá o Judiciário às decisões das cortes de contas deve ser revertida,
reconduzindo essa decisão condenatória à natureza de título executivo judicial. Martinez16 (2008,
p. 16), destarte, propõe a edição de uma norma específica para tratar do assunto, a qual seja
fundamentada na necessidade de transformar a fragilidade executiva dos acórdãos em julgamento
de contas, pela ofensa que tal fenômeno representa aos valores sociais corporificados no sentimento
de impunidade reinante perante a opinião pública.” Registra-se, ainda, a existência de Proposta de
Emenda Constitucional nesse sentido, a PEC n. 535, de 1997, da Câmara dos Deputados, a qual alteraria
a redação do art.71, §3º, para que dele constasse:
Art. 71, §3º - as decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa
terão eficácia de título executivo judicial, ficando o respectivo responsável inelegível e
inabilitado para praticar atos de natureza patrimonial, enquanto não comprovar perante
aquele órgão o ressarcimento do débito e o pagamento da multa. (BRASIL, 1997)

Essa PEC não teve firme seguimento, e o seu arquivamento foi declarado em 18 de maio de 2012, onde
permanece desde então. É certamente demasiado difícil emplacar uma alteração tão substancial e
contemporaneamente discutida por intermédio do poder constituinte reformador, com alteração de
texto constitucional.
Diante disso, surgiria como alternativa a modificação infraconstitucional, legal, o que, ante o silêncio
da Constituição acerca da matéria, surtiria os mesmos efeitos práticos quanto ao reconhecimento das
decisões condenatórias como títulos executivos judiciais. Refere-se à possível inserção do “acórdão
condenatório do Tribunal de Contas, na forma do art. 71, II, combinado com art. 71, VIII” dentre os
incisos do art. 515 do Código de Processo Civil, o qual elenca em rol taxativo os títulos executivos
judiciais. Cessariam, indubitavelmente, as dúvidas que ainda permeiam a matéria, além de privilegiar
a efetividade do controle externo das despesas públicas.
Contudo, as conjecturas nesse sentido não são favoráveis aos órgãos de contas, pois quando da
sanção da Lei n. 13.105/2015 (Código de Processo Civil), um dos vetos determinados pela Presidente
da República, à época, foi a inserção, no rol dos títulos executivos judiciais do art. 515, das decisões
do Tribunal Marítimo, justamente por entender que tal instituição não compõe a estrutura do Poder
Judiciário e que, portanto, não exerce jurisdição, o que revela o insistente e ainda atual apego à tese
da unicidade da jurisdição.
Restaria, dessa feita, propugnar pela mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que
rege os temas centrais mencionados. Nesse sentido, como já mencionado, seria ideal a superação
(overruling) dos precedentes outrora firmados e que insistem em relegar as decisões das cortes de
contas à beira da frivolidade.
A preocupação aqui revelada não é atual, tendo sido apresentada da mesma forma em 1957, quando o
procurador do Tribunal de Contas de São Paulo, Carlos Casemiro Costa (1958, p. 37), afirmou crer “que
de alguns anos a esta parte vai-se operando uma reação contra a antiga jurisprudência e situando
o juízo de contas no seu devido lugar, sobretudo na cobrança executiva dos alcances apurados”.

O autor cita ainda como exemplos para o reconhecimento da plausibilidade jurídico constitucional desta norma o caso da justiça
16

desportiva e dos juizados arbitrais, os quais representam, consoante o ordenamento jurídico (art. 217, §1º, art. 114, §1º, da
Constituição e art. 584 do Código de Processo Civil), exercício de atividade jurisdicional. (MARTINEZ, 2008, p. 16)

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Quase 60 anos se passaram após essa afirmação de tom esperançoso, infortunadamente, para o
falecido jurista. Caso ainda vivesse, não estaria vendo suas palavras se materializarem na prática.
Ainda, assim, não se deve perder o otimismo, reluta-se em crer que haverá de passar mais 60 anos
sem que as decisões dos tribunais de contas angariem sua verdadeira importância. Portanto, não se
deve enfraquecer a luta ideológica para alcançar esse desiderato.

5 CONCLUSÃO
Conforme se verificou ao longo desta exposição, o panorama da concretização das decisões
condenatórias dos tribunais de contas é profundamente problemático. O retorno dos recursos
provenientes de imputações de débito e aplicações de multa pelo órgão de contas aos cofres
públicos, na forma do art. 71, VIII, da Constituição, é mínguo, de modo que tais decisões quedam-se
carentes de efetividade, e as instituições de controle externo ficam abaladas na sua credibilidade
junto à sociedade.
Nessa senda, procurou-se, primeiramente, expor o quadro crítico em que se encontra a efetivação das
decisões dos tribunais de contas, a partir de dados e informações, inobstante a dificuldade em obtê-
los, em razão da falta de transparência nesse sentido. Diante desse agudo distúrbio, pretendeu-se
fazer uma análise ontológica do mesmo, é dizer, buscar as origens e causas que levam os acórdãos
condenatórios da Corte de Contas à não concretização no plano prático-executivo.
Dessa forma, logrou-se aferir, duas celeumas principais, ambas na fase de execução das aludidas
decisões: a ausência de legitimidade ativa dos tribunais de contas para ingressar em juízo, pois tal
encargo remanesce, conforme precedente do STF, aos órgãos de representação judicial das entidades
beneficiárias; a natureza do título executivo formado a partir do acórdão prolatado pela Corte, na forma
do art. 71, §3º, da CF/88, que, segundo orientação predominante, em virtude do vácuo constitucional
e legislativo a respeito da matéria, tem caráter extrajudicial, possibilitando ao executado oferecer
embargos à execução alegando qualquer matéria em sua defesa, nos ditames do art. 917, VI, da Lei n.
13.105/2015.
Quanto ao primeiro obstáculo, alvidrou-se a alteração do entendimento que hoje prevalece a respeito
da legitimidade para execução desses títulos, ditada pela Suprema Corte, por efeito do silêncio
da Constituição. Assim, a partir da técnica de superação do precedente, dever-se-ia preconizar
interpretação mais consentânea aos fins democráticos, dotando os tribunais de contas, órgãos
técnicos e independentes, da legitimidade para cobrança desses valores no Judiciário.
No tocante à segunda disfunção, aventou-se a possibilidade sucessiva de primeiro modificar o
dispositivo constitucional que trata do tema, acrescentando o termo “judicial” ao final do art. 71, §3º,
que qualifica as decisões das cortes de contas como título executivo, fundamentando tal hipótese na
superação do dogma do liberalismo clássico de separação estrita de poderes, de modo a reconhecer
a relativização da unicidade jurisdicional, a partir da dissociação semântica dos termos “judicial” e
“jurisdicional”. Também propôs a modificação da legislação infraconstitucional da questão, em forma
de complementação à emenda da Constituição.

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Isso posto, ficou demonstrado que a posição proeminente, à qual o legislador constituinte instalou
os tribunais de contas no contexto institucional brasileiro, com funções primais e exercidas de forma
independente, não corresponde à realidade a que estão submetidas as decisões da Corte, relegadas
à inefetividade. O direito fundamental à prestação de contas exige que os recursos públicos sejam
controlados e retornem ao erário, e os tribunais de contas são os órgãos mais qualificados para
promover esse regresso.

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Data do recebimento: 5 out. 2016

Data de aceite para publicação: 7 out. 2016

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