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CATAGUÁ NAS CATANDUVAS

OCUPAÇÃO HUMANA E HISTÓRIA INDÍGENA


DO MUNICÍPIO DE VARGINHA - MG
Fundaçã o Cultural de Varginha

CATAGUÁ NAS CATANDUVAS


OCUPAÇÃO HUMANA E HISTÓRIA INDÍGENA
DO MUNICÍPIO DE VARGINHA, MG

Gustavo Uchô as Guimarã es


Otá vio Augusto Pereira Freitas

Varginha
2022
FICHA TECNICA
Vérdi Lúcio Melo: Prefeito Municipal

Leonardo Vinhas Ciacci: Vice-Prefeito

Marco Aurélio da Costa Ben ica: Diretor-Superintendente da Fundaçã o Cultural de Varginha

José Manoel Magalhães Ferreira: Presidente do Conselho Deliberativo do Patrimô nio


Municipal Cultural de Varginha

Coordenadoria Técnica do Patrimônio Cultural:

Clá udio Henrique Martins


Danielle de Souza Guimarã es
Eliana Cristina Costa
Denisvaldo Rocha

Estagiários:

Bruno Coelho Garcia


Nú bia Paiva e Souza

Pesquisas e textos:

Gustavo Uchô as Guimarã es | Otá vio Augusto Pereira Freitas

Projeto grá ico e diagramação: Danielle de Souza Guimarã es

Revisão: Ana Luiza Romanielo

Impressão: Grá ica Castelo| Batatais – SP | Outubro, 2022

Promoção: Prefeitura Municipal de Varginha | Fundaçã o Cultural do Municıṕ io de Varginha |


Conselho Deliberativo Municipal do Patrimô nio Cultural de Varginha | Museu Municipal de
Varginha

1. Patrimô nio Cultural - 2. Arqueologia - 3. Povos Indıǵenas - 4. Histó ria - 5. Varginha


SUMARIO
Introduçã o .................................................................................................................................................................................... 5
Conhecendo as fontes .............................................................................................................................................................. 6
As Cantaduvas e o municıp ́ io de Varginha ...................................................................................................................... 10
Arqueologia .................................................................................................................................................................................. 11
Breve histó rico das pesquisas arqueoló gicas na regiã o ........................................................................................... 12
Conclusã o....................................................................................................................................................................................... 23
Referê ncias..................................................................................................................................................................................... 24
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INTRODUÇAO
O municıp ́ io de Varginha abriga em seu territó rio um expressivo nú mero de sıt́ios e vestıǵios
arqueoló gicos atribuıd ́ os aos seus primeiros habitantes, os ın
́ dios Cataguá ou Cataguases.
Representados pelas antigas aldeias e os objetos produzidos e utilizados pelos indıǵenas, esses
testemunhos integram o conjunto de bens culturais do municıp ́ io e revelam a complexidade dos processos
histó ricos que ocorreram na regiã o desde alguns milê nios antes da chegada e instalaçã o dos colonizadores
luso-brasileiros.
As evidê ncias mais antigas da presença humana no Sul de Minas remontam há aproximadamente
10.000 anos, momento em que a regiã o passou a ser explorada por pequenos grupos especializados na caça e
coleta de recursos vegetais.
Por volta de 2.000 anos atrá s, novos povos chegam à regiã o. Organizados em grupos maiores e trazendo
consigo a agricultura e a tecnologia cerâ mica, eles provocaram uma verdadeira revoluçã o no sistema de
ocupaçã o desse ambiente, que perdurou até meados do sé culo XVIII, quando passou a ser substituıd ́ o pelo
modelo adotado pela sociedade colonial.
Com o intuito de conhecermos um pouco mais sobre as origens e a trajetó ria dos povos indıǵenas que
participaram – e ainda participam – da formaçã o cultural de Varginha, convidamos o leitor a embarcar
conosco em uma viagem por esse passado longın ́ quo, navegando atravé s dos remanescentes arqueoló gicos e
documentos histó ricos que testemunham essa Histó ria.

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CONHECENDO AS FONTES...
Antes de iniciarmos nossa viagem pelos
primó rdios de Varginha, vamos conhecer as fontes
de informaçã o que dispomos sobre os seus
primeiros habitantes e sua trajetó ria histó rica,
desde sua chegada à regiã o até os dias atuais,
compreendendo a presença indıǵena no municıp ́ io
como uma Histó ria de longa duraçã o.
Estes povos constituıám sociedades á grafas,
onde a transmissã o do conhecimento ocorria,
principalmente, atravé s da tradiçã o oral, nã o
havendo, portanto, registros escritos de sua
histó ria até o estabelecimento dos primeiros
contatos com os colonizadores europeus.
Para o perıó do pré -colonial, que abarca a Machado de mã o de pedra polida.
maior parte de sua trajetó ria histó rica, as ú nicas Acervo: Museu Municipal de Varginha
fontes de informaçã o disponıv́eis sobre eles estã o
associadas aos restos materiais de suas atividades,
hoje representados pelos sı́ t ios e vestı́ g ios
arqueoló gicos.
Concernente ao perı́odo pó s-contato, os
documentos o iciais e os relatos deixados pelos
memorialistas, alé m das histó rias e conhecimentos
tradicionais transmitidos de geraçã o em geraçã o
pela comunidade local, constituem as principais
fontes de pesquisa.
Contudo, devido ao pró prio cará ter
fragmentá rio dos testemunhos arqueoló gicos e a
escassez de documentos e relatos sobre os
indıǵenas que habitaram o municıp ́ io de Varginha,
recorreremos a diferentes escalas de aná lise, Machado de mã o de pedra polida.
adotando como recorte a á rea compreendida pela Acervo: Museu Municipal de Varginha
bacia hidrográ ica do rio Verde.

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Durante todo o processo histó rico de ocupaçã o, os cursos d'á gua que compõ em a bacia exerceram uma
forte in luê ncia sobre as comunidades humanas, funcionando como eixos de deslocamento pelo territó rio e
oferecendo as condiçõ es necessá rias para o assentamento e a subsistê ncia de diferentes sociedades.
Consequentemente, os indıćios da presença indıǵena estã o distribuıd ́ os por toda a bacia, revelando a
antiguidade e a diversidade cultural das ocupaçõ es humanas durante o perıo ́ do pré -colonial e o contexto de
inserçã o dos povos indıǵenas na recé m-formada sociedade colonial.

LEGENDA
Arte Rupestre

Sítios Cerâmicos

Documentos

Mapa da localizaçã o das fontes na á rea compreendida pela bacia hidrográ ica do rio Verde.
Autor: Otá vio Augustro Pereira Freitas, 2022.

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A bacia hidrográ ica do rio Verde possui uma á rea de aproximadamente 6.891 km² que abrange o
territó rio de 31 municıp
́ ios sul-mineiros e integra a bacia do rio Grande, apresentando uma grande variedade
de paisagens que re letem a diversidade geoló gica regional e sua in luê ncia sobre as formaçõ es vegetais.
O clima da bacia é classi icado como tropical de altitude, com verõ es amenos e ú midos e invernos secos.
A temperatura mé dia anual é de 22° C e a precipitaçã o mé dia é da ordem de 1.500 mm anuais, com cerca de
60% das chuvas concentradas durante os meses de novembro, dezembro e janeiro.
O rio Verde nasce na vertente ocidental da Serra da Mantiqueira, onde o relevo apresenta feiçõ es
montanhosas e escarpadas, com vales encaixados e cotas elevadas que ultrapassam os 2.000 metros de
altitude nas superfıćies cimeiras.
Seguindo seu percurso para o noroeste até atingir a Represa de Furnas, onde desá gua, o rio atravessa os
terrenos com uma topogra ia tipicamente ondulada, marcada pela presença dos morros e colinas de aspecto
convexo que dominam as paisagens do mé dio e baixo curso.
No entanto, esse padrã o é interrompido pelas cristas monoclinais que a loram na regiã o central da
bacia, orientadas no sentido NE-SW, conformando as serras de Sã o Tomé e das Aguas.
A bacia está inserida nos domın ́ ios da Mata Atlâ ntica, com uma pequena porçã o do baixo curso situada
na zona de transiçã o entre esse bioma e o Cerrado.
A vegetaçã o nativa é composta pelas lorestas ombró ila densa e ombró ila mista*, que se manifestam
copiosamente nos terrenos montanhosos da Mantiqueira, e a loresta estacional semidecidual ** que ocupa a
maior parte da bacia, dando lugar à s isionomias tıp ́ icas do Cerrado, notadamente o cerradã o e os campos, à
medida que se avança para o oeste, em direçã o à jusante.

Florestas ombró ilas sã o aquelas que recebem chuvas constantes (no
grego, a palavra “ombro” signi ica “chuva”). A ombró ila densa é mata
VOCÊ SABIA? fechada e a ombró ila mista é composta por á rvores de araucá rias.

Florestas estacionais semideciduais sã o aquelas que nã o recebem


chuvas constantemente. Nas regiõ es destas lorestas, há um perıo
́ do de
chuvas e um de estiagem.

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Areas de tensã o ecoló gica també m ocorrem na regiã o central da bacia, associadas à presença das
cristas monoclinais de constituiçã o quartzıt́ica, onde a vegetaçã o assume o aspecto dos campos rupestres.
Assim, ao longo de um percurso super icial de aproximadamente 220 quilô metros, o rio recebe
importantes a luentes, como os rios Baependi, Lambari e Palmela e os ribeirõ es do Aterrado e da Espera.
Por conseguinte, a á rea compreendida pela bacia hidrográ ica do rio Verde apresenta uma elevada
diversidade bioló gica que, somada à sua geodiversidade, tem atraıd ́ o as comunidades humanas desde os
tempos imemoriais.

Caracterıśticas ambientais da bacia hidrográ ica do rio Verde


Autor: Otá vio Augustro Pereira Freitas, 2022.

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AS CATANDUVAS E O MUNICIPIO DE VARGINHA
O municıp ́ io de Varginha está situado no
baixo curso do rio Verde, no inıćio da zona de
transiçã o entre os biomas da Mata Atlâ ntica e do
Cerrado.
Nessa regiã o, a morfologia ondulada do
relevo assume a forma de morros e colinas
convexos e com declives suaves, onde as formaçõ es
lorestais sã o entremeadas pelas formaçõ es
savâ nicas.
Devido à s caracterı́sticas isionô micas de
sua cobertura vegetal, tıp ́ icas do Cerrado, a regiã o
icou conhecida como Catanduvas entre o inal do
sé culo XVIII e inıćio do XIX, perıó do que coincide
com a formaçã o do primeiro nú cleo colonial, o
Distrito do Espírito Santo das Catanduvas.
A palavra, de origem Tupi, era utilizada
à quela é poca para designar as á reas de “mato
duro”, á spero e rasteiro, caracterı́ s ticos na
vegetaçã o local. Mais tarde foi empregada por
diversos pesquisadores para designar uma
formaçã o lorestal do Cerrado, o cerradã o, que
també m ocorre no municıp ́ io.
Desse modo, embora a regiã o tenha deixado
de ser conhecida como Catanduvas ainda no sé culo
XIX, a palavra manté m sua importâ ncia como uma
referê ncia cultural do municı́pio, legada pelos
diferentes povos indıǵenas que participaram do
Documento histó rico, datado de 1814, que faz referê ncia
seu processo histó rico de formaçã o.
ao antigo topô nimo do municıṕ io, o Distrito do Espıŕito
Santo das Catanduvas. Acervo: Arquivo Pú blico Mineiro.

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ARQUEOLOGIA
A Arqueologia é uma ciê ncia que busca endem os locais onde sã o encontrados esses
compreender as sociedades humanas a partir do vestıǵios, apresentando uma grande variedade de
estudo de sua cultura material, entendida como tipologias que variam em funçã o das atividades
tudo aquilo que foi criado, produzido ou desenvolvidas naquele local e das caracterıśticas
manipulado por um determinado povo ou cultura, do seu processo de formaçã o.
de forma consciente ou inconsciente, e que se Esses sı́tios podem ser centros urbanos,
expressa materialmente, conformando o que edi icaçõ es, cemité rios, aldeias, acampamentos,
conhecemos como registro arqueológico. fontes de coleta de maté ria-prima para a produçã o
Nascida em meados do sé culo XIX, acompa- de artefatos e até mesmo á reas que apresentem o
nhando o desenvolvimento de outras disciplinas solo ou a vegetaçã o alterados por açõ es antró picas.
que també m loresciam à quela é poca, especial- Na regiã o, os sıt́ios arqueoló gicos identi ica-
lmente a Geologia e a Biologia, a Arqueologia dos até o momento sã o representados, princi-
emprega mé todos e té cnicas especı́ icos para palmente, pelas grutas, cavernas e paredõ es
analisar o registro arqueoló gico e formular teorias decorados com pinturas rupestres e as á reas
interpretativas sobre o comportamento humano. ocupadas pelas antigas aldeias, acampamentos e
Embora seu nome derive da junçã o das cemité rios indıǵenas, onde abundam fragmentos
palavras gregas, Archeo e Logos, literalmente cerâ micos e ferramentas de pedra (artefatos
traduzidas como o “estudo do antigo”, a disciplina lıt́icos).
també m se ocupa em estudar as sociedades
modernas e atuais, sem se limitar a um perıo ́ do A proteção do patrimônio arqueológico
cronoló gico especı́ ico.
Considerados como elementos portadores
Os vestígios e sítios arqueológicos de referê ncia à identidade, à memó ria e à açã o dos
diferentes grupos formadores da sociedade
Os vestı́gios arqueoló gicos compreendem brasileira, os sı́tios e vestı́gios arqueoló gicos
todos os remanescentes materiais das atividades integram o acervo do Patrimô nio Cultural
humanas, englobando desde os objetos produ- Brasileiro, constituindo bens patrimoniais da
zidos e utilizados, como adornos, ferramentas e Uniã o, conforme estabelecido no artigo 216 da
utensıĺios domé sticos, até os restos alimentares e Constituiçã o Federal de 1988.
as marcas deixadas na paisagem, como estradas e A natureza desses bens, assim como os
canais de irrigaçã o. crité rios para sua proteçã o, sã o de inidos pela Lei
Os sıt́ios arqueoló gicos, por sua vez, compre- 3.924, de 26 de julho de 1961.

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BREVE HISTORICO DAS PESQUISAS
ARQUEOLOGICAS NA REGIAO
A existê ncia de vestı́ g ios arqueoló gicos
remanescentes na á rea circunscrita pela bacia
hidrográ ica do rio Verde é conhecida desde a
primeira metade do sé culo XVIII, quando as
pinturas rupestres que decoram as grutas e
cavernas do atual municı́pio de Sã o Tomé das
Letras chamaram a atençã o das autoridades reais.
Desde sua descoberta, na dé cada de 1730,
esses gra ismos tê m sido visitados, reproduzidos e
interpretados por leigos e eruditos – muito antes,
inclusive, do que a pró pria fundaçã o da Arque-
ologia como disciplina cientı́ ica. Reproduçã o dos gra ismos rupestres presentes no municıp ́ io de
Por conseguinte, a documentaçã o produzi- Sã o Tomé das Letras, sé culo XVIII. – Có dice Costa Matoso.
da ao longo de quase 300 anos nã o tem preceden-
tes na histó ria da investigaçã o desses vestıǵios.
Apesar disso, os estudos foram pontuais e, na
maioria das vezes, assumiram um cará ter pura-
mente explorató rio.
Os estudos sistemá ticos, entretanto, tiveram
inıćio somente na dé cada de 1950, inaugurados
pelo trabalho desenvolvido pelo Dr. Alcebı́ades
Viana de Paula na regiã o do baixo do curso do rio
Verde.
O trabalho resultou na identi icaçã o dos
primeiros sıt́ios arqueoló gicos nos municıp ́ ios de
Carmo da Cachoeira, Eló i Mendes e Varginha e na
reuniã o de uma considerá vel coleçã o de artefatos,
provenientes desses sıt́ios e de achados fortuitos Coleçã o de artefatos lıt́icos provenientes dos municıp
́ ios
da regiã o. de Carmo da Cachoeira, Eló i Mendes e Varginha.
Fonte: PAULA, José Alcebıádes de. Achados arqueológicos
na região de Varginha”. 1967.

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Diferentemente do que ocorria em Sã o Tomé simples, presente em diversos estados brasileiros e
das Letras, os sı́ t ios identi icados pelo Dr. atribuıd ́ a aos povos do tronco linguıśtico Macro-Jê .
Alcebıádes estavam localizados em á reas a cé u Apó s um inı́ c io promissor, os estudos
aberto e eram caracterizados pela presença entraram em um estado de iné rcia, timidamente
abundante de vasilhas e fragmentos cerâ micos, interrompido pela realizaçã o de um novo levanta-
alé m de ferramentas de pedra polida e sepulta- mento na dé cada de 1990, empreendido pela
mentos humanos. equipe de Arqueologia do Museu de Histó ria
Na dé cada seguinte, foi realizado o primeiro Natural e Jardim Botâ nico da Universidade Federal
levantamento arqueoló gico regional, empreendido de Minas Gerais – MHNJB/UFMG.
pela equipe do Instituto de Arqueologia Brasileira Durante o levantamento, foram detectados
– IAB, sob a coordenaçã o do Prof. Ondemar Dias trê s sıt́ios cerâ micos no municıp ́ io de Trê s Cora-
Jú nior. çõ es. Contudo, devido à s caracterıśticas de sua
O levantamento estava inserido no â mbito cultural material, especialmente sua indú stria
do Programa Nacional de Pesquisas Arqueoló gicas cerâ mica, esses sı́ t ios foram iliados a outra
– PRONAPA, que tinha como objetivo principal a unidade cultural, a Tradiçã o Tupiguarani, vincu-
elaboraçã o de um quadro geral das culturas pré - lada aos falantes do Tupi.
coloniais brasileiras a partir da aná lise do registro Na dé cada de 2010, os trabalhos de Arque-
arqueoló gico. ologia Preventiva que precederam a instalaçã o de
Na regiã o, os trabalhos do PRONAPA um empreendimento energé tico em Varginha,
contemplaram a bacia hidrográ ica do rio Grande e resultaram na identi icaçã o de novos sı́ t ios
de seus a luentes, Verde e Sapucaı,́ concentrando- cerâ micos no municıp ́ io, todos iliados à Tradiçã o
se na á rea de inundaçã o da Represa de Furnas. Aratu-Sapucaı.́
Como resultado, foram detectados dezenas Destarte, as escavaçõ es realizadas nesses
de sıt́ios arqueoló gicos na regiã o, caracterizados, sıt́ios permitiram uma aná lise mais aprofundada
em sua maioria, pela presença de vasilhas e sobre essas ocupaçõ es, fornecendo as primeiras
fragmentos cerâ micos - semelhantes à queles dataçõ es absolutas para os sı́tios cerâ micos da
encontrados pelo Dr. Alcebı́ades na regiã o de regiã o.
Varginha. Na ú ltima dé cada, açõ es voltadas para a
Posteriormente, os vestı́ g ios coletados identi icaçã o, a documentaçã o e a proteçã o de
nesses sı́ t ios, especialmente os fragmentos sı́ t ios de arte rupestre tê m crescido na á rea
cerâ micos, foram classi icados sob o enfoque compreendida pela bacia do rio Verde, notada-
teó rico adotado pelo programa, dando origem à mente nos municıp ́ ios de Baependi, Conceiçã o do
consagrada Tradiçã o Aratu-Sapucaı.́ Rio Verde e Sã o Tomé das Letras.
A tradiçã o descreve uma indú stria cerâ mica Açõ es voltadas para a preservaçã o e a
marcada pela produçã o de um variado conjunto de divulgaçã o do patrimô nio arqueoló gico regional
formas/vasilhas (vasilhame) com decoraçã o també m tê m sido promovidas pelo Museu

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Municipal de Varginha, que abriga uma importante recorrente ao longo de todo o sé culo XIX, dando
coleçã o arqueoló gica. origem a uma sé rie de lendas e mitos que ainda
De acordo com os dados do Cadastro hoje permeiam o imaginá rio popular.
Nacional de Sıt́ios Arqueoló gicos do Instituto do Na dé cada de 1950, esses achados chama-
Patrimô nio Histó rico e Artı́ s tico Nacional – ram a atençã o do Dr. Alcebıádes que realizou o
CNSA/IPHAN existem 31 sı́tios arqueoló gicos primeiro estudo cientı́ ico sobre o patrimô nio
inventariados nos municıp ́ ios que integram a bacia arqueoló gico varginhense, inaugurando um
do rio Verde. Entretanto, inú meros sı́ t ios histó rico de mais de 70 anos de investigaçã o
identi icados recentemente nessa á rea ainda arqueoló gica no municıṕ io.
encontram-se em processo de inventá rio e/ou
cadastramento.
Apesar do elevado potencial informativo e
do longo histó rico de investigaçã o, o conhecimento
sobre as dinâ micas culturais e os processos
histó ricos que ocorreram na regiã o envolvendo os
povos indı́ g enas ainda permanece incipiente
quando comparado à outras regiõ es do estado,
como o norte e centro mineiros.

Breve histórico das pesquisas arqueológicas no


município de Varginha

As primeiras notıćias sobre a presença de


vestıǵios arqueoló gicos em Varginha confundem-
se com a pró pria histó ria de fundaçã o do
municıp ́ io. Os relatos mais antigos remontam ao
perı́odo de formaçã o das primeiras fazendas e
nú cleos coloniais, no inal do sé culo XVIII.
A Fazenda dos Tachos, uma das mais antigas
da regiã o, tem seu nome associado, provavelmente,
à s vasilhas cerâ micas encontradas durante o
estabelecimento da propriedade no ú ltimo
decê nio do setecentos, descritas na tradiçã o como Urna funerá ria Aratu-Sapucaı́ encontrada na
“tachos de cobre”. Fazenda das Posses, no municıp ́ io de Varginha.
A descoberta desses vestı́gios durante a Dr. Alcebıádes, 1967
instalaçã o das fazendas parece ter sido um evento

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Os resultados obtidos a partir dos seus estava sendo ocupado pelos indıǵenas há cerca de
estudos foram apresentados em duas publicaçõ es 250 anos atrá s, ou seja, em meados do sé culo XVIII,
cientı́ icas, tornando-se cé lebre o artigo intitulado perıo ́ do que també m coincide com a formaçã o das
“Achados arqueoló gicos na regiã o de Varginha”, p r i m e i r a s f a z e n d a s e n ú c l e o s c o l o n i a i s
publicado no ano de 1967 na Revista da Associaçã o (ZANETTINI, 2017).
Mé dica de Minas Gerais. Nos ú ltimos anos, iniciativas como o projeto
Devido à sua posiçã o de vanguarda no “Cataguá das Catanduvas: ocupaçã o humana e
cená rio regional, Varginha foi escolhida para ser o histó ria indı́ g ena do municı́ p io de Varginha”,
centro de operaçõ es dos trabalhos empreendidos desenvolvido a partir de uma parceria entre
no â mbito do PRONAPA, na dé cada de 1960, pesquisadores e o Museu Municipal, tem contri-
c u l m i n a n d o n o i nve n t á r i o d e d o i s s ı́ t i o s buıd ́ o para a ampliaçã o do conhecimento sobre os
arqueoló gicos no municıp ́ io, identi icados anteri- povos indı́genas que habitaram o municı́pio e
ormente pelo Dr. Alcebıádes e atribuıd ́ os à Tradi- participaram, ativamente, do seu processo
çã o Aratu-Sapucaı́ durante o programa. histó rico de formaçã o.
A fundaçã o do Museu Municipal de Varginha,
no ano de 2000, marca o inı́ c io das açõ es
institucionais voltadas para a preservaçã o e a
valorizaçã o do patrimô nio arqueoló gico do
municıp ́ io, atravé s da curadoria e da exposiçã o das
peças doadas pela populaçã o e da realizaçã o de
atividades de Educaçã o Patrimonial.
Na dé cada de 2010, as pesquisas arque-
oló gicas desenvolvidas durante o processo de
licenciamento ambiental da Pequena Central
Hidrelé trica Boa Vista II – PCH Boa Vista II,
evidenciaram a existê ncia de mais trê s sı́tios
arqueoló gicos no municı́ p io, todos iliados à
Tradiçã o Aratu-Sapucaı.́
Durante as pesquisas, um dos sıt́ios identi-
cados foi escavado, permitindo a recuperaçã o de
uma coleçã o de aproximadamente 600 peças,
composta, majoritariamente, por fragmentos
cerâ micos de vasilhas e potes indıǵenas.
Amostras cerâ micas coletadas durante a Dr. Alcebıádes Viana de Paula. Mé dico
escavaçã o foram datadas pelo mé todo conhecido e um dos grandes expoentes
como termoluminescê ncia, indicando que o sıt́io intelectuais do municıṕ io de Varginha

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Os vestígios arqueológicos e os povos indígenas concentrando-se, sobretudo, nos dois primeiros, onde
que ocuparam a bacia hidrográ ica do rio Verde estã o associados à s cristas quartzıt́icas que interceptam a
porçã o central bacia.
Os povos indıǵenas que ocuparam a regiã o
compreendida pela bacia hidrográ ica do rio Verde
durante o perı́ o do pré -colonial podem ser
classi icados, a partir das evidê ncias presentes no
registro arqueoló gico, em dois grandes grupos:
populaçõ es nã o ceramistas (pré -cerâ micas) e
populaçõ es ceramistas.
O primeiro grupo é representado pelas
sociedades de caçadores coletores responsá veis
pelo povoamento inicial desse territó rio, iniciado
há aproximadamente 10.000 anos atrá s. A origem
desses povos ainda é incerta, contudo, as
informaçõ es disponıv́eis até o momento, indicam
que a regiã o constituıá um entroncamento entre
duas das principais rotas de interiorizaçã o da
colonizaçã o humana nas terras baixas da Amé rica
Detalhe dos gra ismos rupestres que caracterizam o sıt́io
do Sul durante a transiçã o entre o Pleistoceno- arqueoló gico Jurumirim, no municıp
́ io de Conceiçã o do Rio
Holoceno, formadas pelas bacias do Sã o Francisco e Verde.
da Prata.
Os principais indı́cios da presença dessas
populaçõ es na regiã o sã o os abrigos, grutas e
cavernas decorados com pinturas rupestres e
utilizadas para diversos ins, alé m dos sı́ t ios
constituı́ d os pelos antigos acampamentos e
o icinas lı́ t icas, onde eram produzidos as
ferramentas e os artefatos de pedra lascada,
especialmente as pontas de projé til, um dos Pontas de projé til identi icadas no municıp
́ io de Andrelâ ndia,
elementos mais caracterıśticos dessas populaçõ es situado do alto curso do rio Grande – Acervo do Nú cleo de
no registro arqueoló gico. Pesquisas Arqueoló gicas do Alto Rio Grande.
Na bacia do rio Verde, os sıt́ios de registro
rupestre atribuı́dos a essas populaçõ es estã o Contudo, o nú mero de informaçõ es sobre
presentes nos municıp ́ ios de Sã o Tomé das Letras, esses povos ainda é bastante reduzido quando
Conceiçã o do Rio Verde, Baependi e Pedralva, comparado ao segundo grupo, formado pelas

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populaçõ es ceramistas, constituı́ d as, em sua
maioria, por sociedades de agricultores ceramis- VOCÊ SABIA?
tas, cujos descendentes estabeleceram contato
com os colonizadores luso-brasileiros a partir do
sé culo XVII, havendo portanto, alé m dos remanes- Tupi e Jê sã o nomes que se referem à s classi icaçõ es
centes arqueoló gicos, registros histó ricos que, feitas por pesquisadores das histó rias, culturas e
lın
́ guas indıǵenas. O grupo (tronco linguıśtico) Tupi
embora fragmentá rios, guardam valiosas informa- compreende diversas lın ́ guas e culturas que ocorrem
çõ es sobre eles. no litoral brasileiro e em porçõ es do interior (em todas
Por conseguinte, a cerâ mica é o principal as regiõ es do Brasil). O grupo (tronco linguıśtico) Jê
elemento diagnó stico dessas populaçõ es no compreende lın ́ guas e culturas que també m ocorrem
registro arqueoló gico, comumente associada à em todas as regiõ es do Brasil, só que no interior do
paıś.
artefatos lıt́icos, lascados e polidos, enterramentos
humanos, restos alimentares e manchas de solo
escuro (devido à ocupaçã o contın ́ ua daquele local e
a realizaçã o de atividades domé sticas). Os remanescentes arqueológicos e os povos
Os sıt́ios sã o formados pelas antigas aldeias, indígenas que ocuparam o município de
cemité rios e acampamentos indıǵenas, que muitas Varginha
vezes foram reocupados pela sociedade colonial
durante a fundaçã o e o estabelecimento das O territó rio atualmente compreendido pelo
primeiras fazendas, como pode ser observado no municı́ p io de Varginha possui cinco sı́ t ios
municıp ́ io de Varginha. arqueoló gicos inventariados, todos caracterizados
Com base nas informaçõ es disponıv́eis no pela presença abundante de vasilhas e fragmentos
registro arqueoló gico e nos relatos histó ricos cerâ micos iliados à Tradiçã o Aratu-Sapucaı́ e
existentes, os povos ceramistas que ocuparam a atribuı́dos aos povos pertencentes ao tronco
regiã o compunham dois blocos culturais distintos, linguıśtico Macro-Jê .
um de matriz Tupi e o outro Jê ***. De modo geral, a Tradiçã o Aratu-Sapucaı́
Na á rea da bacia, os sıt́ios atribuıd ́ os aos descreve uma indú stria cerâ mica marcada pela
povos Tupi estã o localizados no municıp ́ io de Trê s produçã o de um variado conjunto de formas
(vasilhame), especialmente vasilhas globulares e
Coraçõ es, que possui trê s sıt́ios inventariados até o
piriformes de grande volume, destinadas ao
momento. Os sıt́ios vinculados à s populaçõ es Jê ,
armazenamento de lı́quidos e grã os, grandes
por sua vez, predominam no baixo curso do rio
urnas funerá rias e pequenas vasilhas geminadas,
Verde, notadamente nos municıp ́ ios de Varginha,
alé m de pratos e tigelas (PROUS, 1992).
Carmo da Cachoeira, Eló i Mendes e Trê s Pontas.

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Sıt́ios arqueoló gicos identi icados no municıp
́ io de Varginha . Autor: Otá vio Augustro Pereira
Freitas, 2022.

Associados a esses vestıǵios, sã o comumente truı́das pelos povos Jê do Planalto Central que
encontrados cachimbos tubulares e fusos cerâ - teriam chegado a essa regiã o por volta de 1.200
micos, possivelmente empregados na iaçã o do anos atrá s, participando ativamente da construçã o
algodã o. Os artefatos lıt́icos, por sua vez, compre- das paisagens que conhecemos hoje.
endem lascas expedientes e ferramentas mais Esses povos praticavam uma so isticada
robustas, como machados e mó s de pilã o, produ- economia bimodal, con igurada a partir da alter-
zidos atravé s da tecnologia do polimento e utili- nâ ncia entre perıó dos de dispersã o e agregaçã o em
zados na agricultura e no processamento de seus grandes aldeias, internamente estruturadas por
produtos. um conjunto de metades cerimoniais, grupos
Desse modo, no baixo curso do rio Verde, etá rios e segmentos residenciais que impulsio-
pró ximo a sua con luê ncia com o Sapucaı,́ os sıt́ios navam a formaçã o de grandes contingentes
iliados a referida tradiçã o estã o associados à populacionais, necessá rios a manutençã o desse
existê ncia, preté rita, das grandes aldeias cons- sistema (FAUSTO, 2010).

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Ilustraçã o de uma aldeia Jê (sé c. XVII) Foto aé rea de uma aldeia Jê na dé cada de 1970 – Aldeia
Pedra Branca

No municıp ́ io, os sıt́ios vinculados a esses arqueoló gicas “particulares” e institucionais, com
povos estã o distribuı́dos em um ambiente de destaque para aquela depositada no Museu
transiçã o, marcado pela interface entre os domı-́ Municipal, constituı́ d a por vasilhas inteiras,
nios da Mata Atlâ ntica e do Cerrado, testemu- machados e mã os de pilã o, cachimbos e um grande
nhando a adoçã o de elaboradas estraté gias de nú mero de fragmentos cerâ micos.
“domesticaçã o” desse ambiente, expressas no Embora representem uma pequena parcela
desenvolvimento de um sistema agrıćola especiali- da herança cultural deixada por esses povos –
do no cultivo do milho e da batata-doce atravé s do constituı́da, principalmente, por manifestaçõ es
manejo ecoló gico dos recursos naturais. intangı́veis e intrinsecamente arraigadas em
As caracterı́sticas espaciais desses sı́tios nossos modos de fazer, viver e criar – o estudo
ainda indicam a existê ncia de um padrã o de assen- desses vestıǵios pode trazer valiosas informaçõ es
tamento organizado a partir da construçã o de sobre os povos indı́ g enas que ocuparam o
grandes aldeias circulares, instaladas, preferen- municı́pio de Varginha durante o perı́odo pré -
cialmente, na meia encosta de morros e colinas de colonial e estabeleceram os primeiros contatos
aspecto convexo e vertentes suaves que caracteri- com a recé m formada sociedade colonial.
zam o relevo varginhense e predominam no baixo
curso do rio Verde.
Alé m dos sıt́ios, o municıp
́ io ainda guarda um
importante acervo, representado pelas coleçõ es

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Os relatos e documentos históricos sobre a escreveram. Lembremos, por exemplo, que os
presença indígena na bacia hidrográ ica do rio primeiros materiais relevantes divulgados sobre a
Verde presença indıǵena em Varginha foram os trabalhos
do Dr. Alcebıádes e do PRONAPA, ambos na dé cada
Alé m dos remanescentes arqueoló gicos de 1960.
anteriormente descritos, també m podemos Voltando um pouco no tempo até o sé culo
recorrer a documentaçã o histó rica para aprofun- XVIII, veremos a formaçã o de Varginha no contexto
darmos o tema da presença indıǵena em Varginha. da expansã o da colonizaçã o no sul de Minas, que
A princıp ́ io, temos a documentaçã o produzida por incluıá a doaçã o de terras (chamadas “sesmarias”)
historiadores e memorialistas que escreveram para que fazendeiros explorassem a terra e
sobre Varginha. Neste caso, poré m, há que se povoassem os “sertõ es” (embora possamos
considerar que, até a segunda metade do sé culo XX, questionar um pouco a ideia de povoamento, haja
era tradicional que a escrita sobre histó ria local e visto que a regiã o nã o era desabitada). A regiã o era
regional deixasse os indıǵenas em segundo plano, caminho entre a zona de exploraçã o de ouro e o
como um apê ndice à histó ria ou com alguma breve litoral de Sã o Paulo e Rio de Janeiro, de modo que o
mençã o no relato das origens da localidade. Esta governo portuguê s estabeleceu caminhos o iciais
prá tica era re lexo de uma visã o histó rica focada (a Estrada Real) para o transporte do ouro que,
nos “vencedores” (os colonizadores), re letida nas obrigatoriamente, teria de passar pela Serra da
inú meras produçõ es Brasil afora, incluindo as que Mantiqueira, nascente dos trê s principais rios sul-
se debruçaram sobre a histó ria de Varginha. mineiros: Grande, Sapucaı́ e Verde. Ao longo destes
Neste sentido, nã o se vê mençõ es a indıǵe- rios, formaram-se povoados e vilas a partir da
nas, por exemplo, nos relatos sobre a histó ria presença de exploradores que buscavam ouro e/ou
varginhense feitos pelas ediçõ es do Almanaque praticavam a agricultura e a criaçã o de animais.
Sul-Mineiro (1874 e 1884), de Bernardo Saturnino Com a formaçã o dos povoados, surgiram també m
da Veiga, e em produçõ es do inıćio do sé culo XX que as primeiras paró quias, importantes regiõ es
mostravam a histó ria do municı́ p io (como o administrativas religiosas em cujos registros
“Album da Varginha”, de 1918). Em produçõ es do temos boa parte das primeiras documentaçõ es que
Monsenhor José do Patrocı́ n io Lefort, temos nos permitem estudar mais a fundo o sul de Minas.
pouquıśsimas mençõ es: em seu livro “Varginha” Nas proximidades de Varginha e do rio
(1950), por exemplo, as ú nicas referê ncias ao Verde, as primeiras paró quias foram as de
elemento indı́gena sã o a explicaçã o do nome Aiuruoca, Baependi e Campanha, criadas nas
Catanduvas e uma mençã o ao explicar o nome da dé cadas de 1710 a 1730. Nos registros destas
Fazenda dos Tachos. Alé m da prá tica referida no paró quias, podemos ter um panorama da presença
pará grafo anterior, podemos atribuir estas poucas dos chamados “ı́ n dios coloniais”. Segundo a
informaçõ es també m ao que os autores tinham à professora Drª Maria Leô nia Chaves de Resende
sua disposiçã o no momento em que pesquisaram e (2003), “ın ́ dio colonial” era o indivıd́ uo de origem

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indıǵena que vivia nos ambientes formados pelo que deveriam dar-lhes ensinamentos religiosos e
colonizador, ou seja, estava fora do ambiente de seu trabalho. Poré m, o que ocorria, em vá rias
povo e incorporado à sociedade colonial. A situaçõ es, era a condiçã o de “administrado” sendo
presença de ı́ n dios coloniais nos primeiros usada para acobertar a escravizaçã o de indıǵenas
povoados do sul de Minas se dava em razã o do (o que era proibido pela Coroa Portuguesa).
contato (muitas vezes violento) entre indıǵenas e A presença dos carijó s nas proximidades de
colonizadores em Sã o Paulo. Muitos colonizadores Varginha, assim como a presença de grupos
paulistas passavam a Serra da Mantiqueira, por indıǵenas na pró pria regiã o em que se formou
diversos motivos, e se estabeleciam ao longo dos Varginha (como apontam as descobertas arqueo-
principais rios sul-mineiros, levando consigo os ló gicas), mostram o processo de transformaçã o
chamados “carijó s”, indıǵenas de origem Guarani pela qual passou a regiã o do rio Verde a partir da
que se estabeleciam em Sã o Paulo, a grande colonizaçã o, com os contatos entre indıǵenas e
maioria das vezes pelo uso da força, capturados e colonizadores, a formaçã o de uma sociedade
escravizados por expediçõ es de bandeirantes que colonial na qual o indı́gena foi um elemento
iam para o sul do Brasil (MONTEIRO, 1994). presente e a qual se integrou, o que foi, com o
Tanto em Aiuruoca como em Baependi e passar do tempo, “apagado” nos registros graças a
Campanha, os primeiros registros trazem ao nosso adoçã o de diversas nomenclaturas que disfar-
conhecimento a presença de carijó s em suas çavam a origem indıǵena de parte da populaçã o
recé m-criadas paró quias. Nos registros, vemos desta sociedade colonial.
como os carijó s se integravam à sociedade colonial E o que vemos, por exemplo, na utilizaçã o da
que se formava na regiã o. A ideia de “integraçã o” palavra “pardo”, no inı́ c io do sé culo XIX. Em
que aqui pensamos é a descrita por John Manuel Varginha, foi feita uma contagem da populaçã o, em
Monteiro (1994), segundo o qual colonizadores e 1831, apontando um total de 1855 habitantes, dos
indı́ g enas tiveram fortes contatos culturais quais 416 foram identi icados como pardos. Ao
(muitas vezes pela violê ncia) e isto trouxe partir de uma discussã o feita em torno da palavra
transformaçõ es à s culturas dos dois lados. Por “pardo” e seu uso no sé culo XIX (OLIVEIRA, 1997;
exemplo, muitos indıǵenas aceitavam a fé cató lica, TEIXEIRA, 2015; SANTANA DO O, 2018; SANTOS,
nem sempre por convicçã o religiosa, mas por 2021), pode-se atestar que uma parte dos pardos
interesses vá rios. Nos casos aiuruocano, de Varginha tinha origens indıǵenas, apesar de nã o
baependiano e campanhense, vemos indı́genas sabermos se as origens tinham a ver com indıǵenas
sendo batizados e se casando (tanto entre eles locais ou de fora.
quanto com pessoas de outros grupos), muitos Outra nomenclatura que foi utilizada no
deles sendo apresentados nos documentos como sé culo XIX foi o termo “caboclo”, que també m
“administrados”, uma situaçã o jurı́ d ica que, aparece em registros de Varginha: no censo de
segundo John Manuel Monteiro, colocava 1872, o Espıŕito Santo das Catanduvas tinha 295
indıǵenas sob a “administraçã o” de colonizadores habitantes classi icados como “caboclos” (alé m

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dos quase dois mil habitantes classi icados como
“pardos”, sendo estes livres ou escravizados). Estes
caboclos eram o “ın ́ dio confundido com a massa da
populaçã o” (SANTANA DO O, 2018), tendo
consciê ncia de sua origem indıǵena, mas, muitas
vezes, sem saber informaçõ es sobre a pró pria etnia
de origem.
Do sé culo XIX para cá , os censos apontam
presença indıǵena em Varginha. No censo de 2010,
o mais recente, 69 pessoas se declararam indı-́
genas entre a populaçã o varginhense. Podemos
pensar em pessoas que saibam de sua origem
indıǵena, inclusive seu pertencimento é tnico; ou,
mais provavelmente, pode-se pensar em indivı-́
duos que, por motivos vá rios, sabem de suas raıźes
indı́genas, mesmo nã o tendo informaçõ es mais
detalhadas a respeito destas raıźes.
Quem sã o estas pessoas? Por que indivı-́
duos se declaram indı́genas em Varginha? Que
histó rias tê m estas pessoas? Quais as suas origens?
Sã o questionamentos para futuras e mais profun-
das pesquisas e discussõ es.

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CONCLUSAO
As pesquisas em torno da Arqueologia e da de algum grupo local ou de algum grupo vindo de
Histó ria Indı́ g ena se avolumam nas ú ltimas outras regiõ es e independente deste indıǵena ser
dé cadas, com a preocupaçã o dos pesquisadores em chamado de “ın ́ dio” e “caboclo” ou de ser diluıd
́ o,
trazer luz à s histó rias e culturas de grupos que, no pelas documentaçõ es o iciais, na categoria “pardo”.
passado, sofreram todo tipo de violê ncia, inclusive Estes elementos dialogam e se entrelaçam.
o apagamento na documentaçã o histó rica, como Tamanha riqueza arqueoló gica, histó rica e
podemos ver, por exemplo, no sé culo XIX, em que a social já vem sendo bem tratada em Varginha
construçã o de uma identidade nacional valorizava (pesquisas do PRONAPA, mais de 50 anos atrá s, e o
mais o elemento europeu (considerado moderno) trabalho do Museu Municipal em torno das peças
e relegava o indıǵena a um distante passado. indı́genas de seu acervo, para icar com dois
No sul de Minas Gerais (e, mais especi ica- exemplos) e este trabalho ainda oferece muitas
mente, Varginha, no contexto da bacia do rio possibilidades para re letirmos sobre nossas
Verde), o trabalho arqueoló gico se soma ao raıźes, valorizarmos ainda mais nossa localidade e
trabalho historiográ ico no esforço de descobrir, promover nossa Histó ria perante os belos rincõ es
analisar e disponibilizar cada vez mais dados que mineiros.
permitam vislumbrar o passado (e o presente)
indıǵena da regiã o. Este esforço é importante para
auxiliar aqueles que escrevem e discutem a histó ria
regional e local.
Até aqui, temos em Varginha o que, aos
poucos, aparece como evidê ncias de uma Histó ria
Indıǵena que se desenrola nã o apenas antes do
contato com o colonizador, mas també m apó s este
contato e que se transforma na medida em que
todos os participantes da formaçã o de Varginha
fazem trocas culturais, se integram e assumem
novas dinâ micas sociais. Nestas novas dinâ micas,
as novas gentes que chegam à regiã o trazem a
lı́ n gua portuguesa, o catolicismo, a estrutura
escravagista que caracterizava a é poca, entre
outros elementos; mas, tais aspectos nã o deixaram
de conviver com o indıǵena, independente de ser

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Coordenado por Paulo Eduardo Zanettini.

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