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CRISTÃOS E DINÂMICAS DE ARABIZAÇÃO E ISLAMIZAÇÃO: SITUAÇÃO


RELIGIOSO-CULTURAL

Devemos também, sem dúvida, deter-nos a analisar os diferentes estudos que


se dedicaram à análise dos processos de arabização e islamização, tão
importantes nas dinâmicas de transformação pelas quais os cristãos de al-
Andalus caminharam. Constituiu uma mutação cultural para as comunidades
cristãs andaluzas, bem como, em muitos casos, uma conversão religiosa
defnitiva. São processos históricos que, de forma mais ou menos acelerada,
dependendo da interpretação do autor que os analisar, pode ser ligado a outras
dinâmicas semelhantes em que a cultura e a religião dos governantes,
dominantes portanto, vão-se pouco a pouco impondo, quer pela força quer pelo
próprio desenrolar das circunstâncias sociais. Poderíamos falar de uma primeira
corrente «tradicionista», encabeçada por Simonet,77 que postula uma
sobrevivência continuada até a Reconquista de importantes comunidades cristãs
sob domínio islâmico, tendo sofreu as mínimas contaminações muçulmanas,
tanto linguísticas como culturais. Leopoldo Peñarroja78 propõe, para o caso
valenciano, uma sobrevivência semelhante. Esta interpretação apresenta a
chamada corrente «revisionista», defendida sobretudo por Mi o de Epalza.79 O
ponto chave
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de sua argumentação é a questão que gira em torno dos bispos: como hipótese
de trabalho sugere que a falta de informação sobre a existência dos prelados
poderia significar a sua ausência, pelo que, se considerarmos à instituição
episcopal vital para a perduração das comunidades cristãs, estas
desapareceriam logo. Epalza introduz assim o neologismo neo-moçárabe para
se referir a cristãos não autóctones do território andaluz, provenientes do Norte,
que aí assentam, e que constituiriam a maioria das comunidades «moçárabes»
que se encontram os conquistadores nortenhos em Toledo e Valencia. María
Jesús Rubiera80 compartilha a teoria de Epalza sobre os cristãos no Levante
andaluz: eles poderiam ter desaparecido logo devido a a falta das estruturas
necessárias para a formação de bispos e consagração dos santos óleos
necessários para o batismo. Portanto, os que aparecem nas fontes seriam neo-
moçárabes, e não descendentes de os cristãos autóctones. Para a comunidade
toledana opina o mesmo:81 a comunidade cristã desapareceu no século X e o
que foi encontrado Alfonso VI seriam neo-mozárabes. Afrma também que, depois
da conquista toledana, muitos muçulmanos se converteram ao cristianismo.82 É
o que chama de «novos cristãos de mouros». Estes conversos teriam passado
despercebidos porque se misturaram com os moçárabes e neo-moçárabes. Uma
terceira postura historiográfca poderia ser defnida como intermediária, defendida
pela maioria dos investigadores. Propõem um termo meio que postula a
existência de núcleos de comunidades cristãs pouco importantes e muito
arabizadas a fnales do século X, e que perdurariam até ao XII, momento em que
desaparecem com a chegada de

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almorávides e almofadas. Dentro desta corrente podemos citar autores como


Picard,83 Guichard,84 Lagardere,85 Serrano86 ou Viguera,87 que fala da
«grande viragem» do século XI, ou seja, quando se começa a completar a
islamização. Para ela, só se poderia falar de al-Andalus das três religiões até os
séculos XI-XII. E é que são muitos os pesquisadores que acreditam que com a
chegada dos travesseiros desapareceram as comunidades cristãs andaluzes.
Nesta linha de interpretação está Maribel Fierro,88 que acredita que foram
causas doutrinais mais que políticas as que levaram os almohades a pretender
o desaparecimento dos d immíes do seu império, razões como a perspectiva
escatológica da vinda do Mahdī, a presença de elementos šī'íes no pensamento
unitário ou uma tradição exegética alternativa sobre certos h adīt sobre a
expulsão de cristãos e judeus do Hiyaz, conectando com as interpretações de
atҘ-Tҙabarī e Ibn Hҝazm.89 Também encontramos, dentro desta corrente,

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estudios como o de García Sanjuán90 sobre la Sevilla andalusí, em que conclui


que a invasão das almofadas resultou na liquidação da sede episcopal e da
extinção da comunidade cristã sevilha, ou já citado de Molénat.91 Dentro desta
maioria corrente «intermediária», encontramos também dois posturas sobre o
momento em que a população muçulmana começou a ser demografifcamente
superior. A primeira é marcada pelo já clássico estudo quantitativa através da
análise onomástica dos dicionários biográfcos de Richard Bulliet,92 cuja
conclusão é que essa mudança na balança ocorreria em meados do século X.
Richard Fletcher93 aceita esta teoria, que além do é corroborada pelos cálculos
das extensões da Córdoba mesquita. Pierre Guichard, 94 no entanto, mostra-se
reservado. Para o francês, a impressão que se extrai das crônicas referentes às
revoltas muladíes de fnais do século IX e princípios do X não é a de um lugar
onde os cristãos eram maioritários. Cyrille Aillet95 também é

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partidário de voltar este processo para o século IX. Afrma que é uma época
caracterizada por um processo de conversão pelo qual a população cristã devino
minoritária. As fontes latinas retratam uma sociedade em transição, em vias de
islamização e arabização, na qual se está a produzir uma adaptação à norma
jurídica. É neste contexto que é necessário enquadrar a sublevação dos
muladias. Esta mesma conclusão pode ser estabelecida com o citado trabalho
de Fernández Félix e Fierro96 sobre o estudo do processo de islamização
através das questões jurídicas que aparecem na 'Utbiyya. Essas masā'il nos
remetem às preocupações da comunidade muçulmana andaluz, entre as quais
podemos destacar as tensões entre os muçulmanos «velhos» e os «novos»,
refejadas em questões como a onomástica árabe de os convertidos, e que
mostram uma comunidade em pleno crescimento. Interessantes são também
certos trabalhos que analisam mais em profundidade a dinâmica de arabização,
desde perspectivas heterogêneas e com diversas conclusões. Geograficamente
falando, Monferrer97 afrma que a arabização foi um processo desigual, pois
afetou mais a cidade que o campo. Na primeira, as elites cristãs foram
arabizadas, incluindo o clero, enquanto no campo continuará a falar romance-
árabe. A sua vez, Echevarría Arsuaga98 propõe uma abordagem jurídica da
arabização, ou seja, o estudo sobre em que medida as comunidades cristãs de
al-Andalus procedimentos e conceitos legais do direito muçulmano através da
tradução árabe da Coleção Canônica hispana conservada em El Escorial. Opina
la investigadora que, contra de a crença geral por parte de muitos historiadores
de que a lei está em uma certa forma «congelada» no tempo, os seus conteúdos
não ficam fjados. Por conseguinte, podem fornecer informações sobre a vida real
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as colectividades a que se referem. O mero acto de legislar e, posteriormente,


compilar leis já feitas em determinado momento histórico mostra uma vontade,
primeiro do legislador e depois do compilador, que determina de forma muito
importante o conteúdo do texto legal, adaptando-o às necessidades de um
determinado grupo humano, como teria acontecido no caso dos cristãos
andaluzes. O fato de que a compilação seja traduzida em árabe, tendo os
cristãos ainda presente o Na opinião da pesquisadora, o latim é um indício de
que ocorreu uma invasão progressiva da função judicial dos juízes cristãos por
parte da administração califal. Cyrille Aillet99 considera, por sua vez, que o
aumento progressivo do número de glosas marginais árabes em manuscritos
latinos a partir do século IX em informa sobre o avanço da arabização entre os
cristãos andaluzes, que precisam do árabe para entender o latim, bem como a
deterioração do uso da língua latina. Hanna Kassis,100 através do estudo das
Escrituras cristãos traduzidos para o árabe, conclui que o processo de
arabização foi rápido, já que os cristãos deviam adotar a cultura dos governantes
para evitar a marginalização. Ou seja, teria havido pressão social para adotar o
árabe. No entanto, Philippe Roisse101 pensa que esta dinâmica socio-cultural
não se produziu mediante coação mas pelo próprio contato e infusão de uma
cultura dominante. Além disso, própria Igreja, em contato com o poder, arabizou
e serviu como elemento de arabização para os cristãos.

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