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ABORDAR O PROBLEMA DA HERESIA DURANTE A BAIXA IDADE MÉDIA (SÉCULOS X A XV) ENQUANTO
OBJETO DE ESTUDO NA HISTORIOGRAFIA.
A heresia
A história das heresias no período medieval é importante sob vários aspectos.
Primeiro, porque nos mostra que, apesar do predomínio do cristianismo católico,
sempre houve indivíduos, grupos e movimentos heréticos que ousaram contestar a
ordem e os dogmas da Igreja, buscando um outro entendimento cristão do mundo e da
sociedade. Segundo, porque nos apresenta outros olhares sobre a cultura popular, o
imaginário coletivo sobre vários temas (medo, inferno, salvação, dinheiro,
expressões populares, colheita, saúde, sexualidade, alimentação, corpo etc.),
deixando alguns detalhes sobre a vida comum do dia a dia, fugindo um pouco dos
temas mais recorrentes como política, guerras e economia medieval.
Mas ela nos deixa alguns alertas metodológicos, pois como a Igreja praticamente
monopolizava a cultura escrita, boa parte das fontes utilizadas para a produção do
conhecimento histórico registra a versão católica dos relatos. Todos os grupos que
não produziram diretamente uma documentação escrita somente são conhecidos a partir
do registro eclesiástico ocasional. Isto não significa que alguns hereges não
tenham deixado textos escritos. Mas como compreender o pensamento de outros grupos
em geral? Seria possível acessar a interpretação que um camponês fazia de sua
própria existência? Essa interrogação levou os historiadores a empreenderem uma
busca sistemática por fontes que pudessem levar, ainda que indiretamente, ao
conhecimento destas vozes silenciadas na História.
Ginsburg (2006) explica que é questão política, mas também uma questão social. Em
primeiro lugar, porque a presença dos hereges supostamente provoca a desagregação
dos grupos ortodoxos, atraindo sobre todos o castigo que deveria punir apenas os
desviados. Principalmente um problema social, pois não é uma crença que se cultiva
solitariamente na privacidade de uma consciência, ela implica a partilha das
crenças heréticas, a doutrinação e uma ritualização particular, constituindo,
assim, uma forma de instituição paralela àquela da Igreja oficial.
Por tratar-se de crenças proscritas, deve ser praticada sob a ilegalidade, o sigilo
e a discrição. Este tipo de prática afeta diretamente a produção e a circulação dos
ideais heréticos, pois todos os registros poderão ser utilizados como prova de
acusação formal em um tribunal eclesiástico. Daí serem poucos os escritos deixados
por esses grupos. A heresia circula, assim, utilizando-se principalmente da
transmissão oral, prática típica da cultura popular durante a Idade Média.
Para Queiróz (1998) embora sejam conhecidos alguns textos heréticos, sua posse
representava grande perigo, o que inibia sua produção e circulação. Assim, muitas
das doutrinas heréticas tenham sido formuladas por pensadores sutis e letrados, sua
forma de circulação pela oralidade implicava um acesso mais próximo à realidade dos
camponeses e artesãos rústicos. É nesse quadro complexo de relações sociais que a
pesquisa sobre as heresias medievais permitiu conhecer não somente os hereges ricos
e nobres, mas ainda os pobres camponeses e uma grande quantidade de grupos
marginais que não faziam parte dos esquemas de classificação social.
Mas o que a salada de tais idiomas tem a ver com as heresias? É que desde a época
da tradução de tais textos houve discussão sobre o sentido de certas passagens que
não encontravam referência para o latim. Já temos aqui um ponto que levou a várias
contestações futuras e revisões de sentido da palavra escrita traduzida, atingindo
as interpretações ditas oficiais da Igreja.
Outro ponto diz respeito às diferenças culturais. Como os textos bíblicos fazem
muitas referências à experiência mística e espiritual nos desertos do Oriente
Médio, há um certo distanciamento da vida comum na Europa, onde não havia desertos
e o isolamento dava-se nos campos e mosteiros, entre as quatro paredes de um quarto
(e não numa caverna). A vertente europeia mais mística, o monaquismo irlandês, era
considerado irregular por Roma, devido sua tendência à solidão e ao individualismo.
Após a fundação da Igreja no século IV, sob a doutrina do apóstolo Paulo (que, por
sinal, era turco), já se apontaram algumas heresias. Afinal, quando se deu apenas
liberdade de culto ao cristianismo, várias vertentes orientais se espalharam pela
Europa (tomismo, arianismo, entre outras), mas ao oficializar esse cristianismo
como religião oficial do Império, qual doutrina seguir? Os fundadores optaram pela
doutrina paulina, formando as bases do catolicismo. Isso levou à perseguição e
censura das várias outras vertentes cristãs.
Além disso, o clero católico passou a ser mais coeso, organizado e instruído,
fazendo o arianismo recuar, com exceção da península ibérica. Mas, com a invasão
islâmica na península, no século VIII, foi definitivamente abafada na região.
História e cinema
Sincretismo, Crença e Heresia
Como se difunde uma religião que teve origem numa região culturalmente diferente em
outra? Lembre que o próprio cristianismo não tinha uma estrutura única e coesa até
o século IV, portanto, estava aberto, em certa medida, para outras interpretações.
Ao se difundir pela Europa, era mais fácil converter os Reis bárbaros, o que não
necessariamente acontecia com a população em geral, processo esse bem mais complexo
e longo.
Os relatos sobre tais grupos milenaristas, no entanto, foi escrita pelos católicos,
que tendiam a fantasiar e exagerar os fatos, alegando que eram manifestações
grotescas do mal e inspirados pelo diabo. O relato herético do camponês Raul
Glaber, por exemplo, foi feito por um padre que indicava que o camponês teria
sonhado tudo, o que já excluía suas ideias do campo da realidade e da razão. Além
disso, fazia questão de frisar que Glaber era um homem rústico, do povo, de
espírito fraco. Dentro da ordem social medieval, o camponês trabalha, cabendo ao
clero a tarefa de pregar e falar ao povo.
Os Cátaros
A heresia dos cátaros foi tamanha que quase varreu o catolicismo do sul da França.
Após várias tentativas de persuadi-los a voltarem para a Igreja, recorreu-se à
intervenção militar e à excomunhão. Vários nobres e até clérigos da região aderiram
aos cátaros, sendo posteriormente presos e executados. Um conflito explode em 1209,
com o massacre de mais de sete mil pessoas. Outra onda de perseguições ocorre em
1244, com mais de 200 cátaros queimados vivos. Pequenos grupos sobreviveram até
cerca de 1330, mas continuaram sendo presos e perseguidos.
Nesse mesmo período segundo Queiróz (1998) várias ordens religiosas foram fundadas
e reconhecidas pela Igreja. Algumas propunham a revisão de alguns pontos da
pregação e da ritualística católica, outras clamavam pelo voto de pobreza e pureza
espiritual. O fato da Igreja reconhece-las implicava uma certa domesticação do
discurso e das práticas de tais grupos (os franciscanos, por exemplo, só foram
aceitos pela Igreja após Francisco de Assis aliviar seus ataques contra o luxo do
alto clero), insistindo na obediência ao Papa, mas não sem aceitar também algumas
reformas propostas por tais Ordens. Para a Igreja, interessava muito mais ser
respeitada em sua hierarquia. Organizar e controlar, trazer para junto de si tais
ordens antes que se tornassem heréticos, era melhor do que combatê-las depois.
Portanto, apesar de muitos grupos serem condenados e perseguidos por heresia até o
século XV e XVI, alguns pontos do discurso e das propostas de alguns movimentos
foram até aceitos e tais grupos reconhecidos como Ordens dentro do catolicismo.
Outros, apenas tolerados devido ao baixo impacto de seu caráter herético, como os
flagelantes, por exemplo, que nunca chegaram a constituir um grupo. Mas já estava
implícito, a partir do século XI e XII um certo ar de Reforma religiosa, que cresce
muito nos séculos seguintes até desembocar na Reforma Protestante do início do
século XVI, como veremos mais adiante.
Referências
BATISTA NETO, J. História da baixa idade média (1066-1453). São Paulo: Ática, 1989.
CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro (orgs.). Verdade e subjetividade: uma outra história
do cristianismo. In: CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro (orgs.) Foucault e o
cristianismo. Belo Horizonte: Autentica, 2012. cap.
FUNARI, Pedro Paulo (org). Religiões que o mundo esqueceu. SP: Editora Contexto,
2008.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As heresias medievais. São Paulo: Atual, 1988.
RÜPPELL JÚNIOR, Ivan Santos. Cristianismo na Idade Média. In: RÜPPELL JÚNIOR, Ivan
Santos. Cristianismo. Curitiba: Contentus,