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Heresias

ABORDAR O PROBLEMA DA HERESIA DURANTE A BAIXA IDADE MÉDIA (SÉCULOS X A XV) ENQUANTO
OBJETO DE ESTUDO NA HISTORIOGRAFIA.
A heresia
A história das heresias no período medieval é importante sob vários aspectos.
Primeiro, porque nos mostra que, apesar do predomínio do cristianismo católico,
sempre houve indivíduos, grupos e movimentos heréticos que ousaram contestar a
ordem e os dogmas da Igreja, buscando um outro entendimento cristão do mundo e da
sociedade. Segundo, porque nos apresenta outros olhares sobre a cultura popular, o
imaginário coletivo sobre vários temas (medo, inferno, salvação, dinheiro,
expressões populares, colheita, saúde, sexualidade, alimentação, corpo etc.),
deixando alguns detalhes sobre a vida comum do dia a dia, fugindo um pouco dos
temas mais recorrentes como política, guerras e economia medieval.

Mas ela nos deixa alguns alertas metodológicos, pois como a Igreja praticamente
monopolizava a cultura escrita, boa parte das fontes utilizadas para a produção do
conhecimento histórico registra a versão católica dos relatos. Todos os grupos que
não produziram diretamente uma documentação escrita somente são conhecidos a partir
do registro eclesiástico ocasional. Isto não significa que alguns hereges não
tenham deixado textos escritos. Mas como compreender o pensamento de outros grupos
em geral? Seria possível acessar a interpretação que um camponês fazia de sua
própria existência? Essa interrogação levou os historiadores a empreenderem uma
busca sistemática por fontes que pudessem levar, ainda que indiretamente, ao
conhecimento destas vozes silenciadas na História.

O historiador italiano Carlo Ginzburg notabilizou-se por pesquisar a documentação


produzida pela Inquisição ao longo dos séculos, deixando-nos obras como O Queijo e
os Vermes, História Noturna e Os Andarilhos do Bem. Mas ele nos alerta do fato de
que o interrogado, muitas vezes, só sabia falar o seu dialeto regional (friulano,
bergamasco, occitânico, basco, catalão etc.), sendo que os inquisidores não
entendiam tal dialeto, tendo que recorrer a um intérprete que, segundo transparece
nos relatos escritos, muitas vezes tinham dificuldades em traduzir a pergunta ou a
resposta para um e para outro. Não bastando isso, a documentação era escrita em
latim culto. Portanto, é preciso muito jogo de cintura para aventurar-se sobre essa
documentação com detalhes tão ricos.

Directorium inquisitorum (Manual dos Inquisidores), documento escrito por Nicolas


Eymerich teólogo catalão no século XIV, define o conceito de heresia para a Igreja.
Fonte: Wikimedia Commons.
A palavra heresia é a latinização de um termo grego airesis, que quer dizer
escolha. Ela representa a escolha de um caminho doutrinário conflitante com a
ortodoxia formulada e mantida pela Igreja. Diferentemente do pagão ou do infiel,
que cultuam outras divindades, ou do ingênuo que não crê no cristianismo pela
ignorância de sua doutrina, o herege é um inimigo interno. Ou seja, o herege
obrigatoriamente é um cristão católico que contesta os dogmas do catolicismo ao
defender outras interpretações do cristianismo. Todo herege, portanto, é um
cristão, sendo que sua heresia era tida como um desvio que implicava múltiplos
aspectos, na medida em que é não somente uma questão de consciência, mas é também
uma questão política, pois desafia o poder espiritual e temporal da Igreja.

Ginsburg (2006) explica que é questão política, mas também uma questão social. Em
primeiro lugar, porque a presença dos hereges supostamente provoca a desagregação
dos grupos ortodoxos, atraindo sobre todos o castigo que deveria punir apenas os
desviados. Principalmente um problema social, pois não é uma crença que se cultiva
solitariamente na privacidade de uma consciência, ela implica a partilha das
crenças heréticas, a doutrinação e uma ritualização particular, constituindo,
assim, uma forma de instituição paralela àquela da Igreja oficial.

Por tratar-se de crenças proscritas, deve ser praticada sob a ilegalidade, o sigilo
e a discrição. Este tipo de prática afeta diretamente a produção e a circulação dos
ideais heréticos, pois todos os registros poderão ser utilizados como prova de
acusação formal em um tribunal eclesiástico. Daí serem poucos os escritos deixados
por esses grupos. A heresia circula, assim, utilizando-se principalmente da
transmissão oral, prática típica da cultura popular durante a Idade Média.

Para Queiróz (1998) embora sejam conhecidos alguns textos heréticos, sua posse
representava grande perigo, o que inibia sua produção e circulação. Assim, muitas
das doutrinas heréticas tenham sido formuladas por pensadores sutis e letrados, sua
forma de circulação pela oralidade implicava um acesso mais próximo à realidade dos
camponeses e artesãos rústicos. É nesse quadro complexo de relações sociais que a
pesquisa sobre as heresias medievais permitiu conhecer não somente os hereges ricos
e nobres, mas ainda os pobres camponeses e uma grande quantidade de grupos
marginais que não faziam parte dos esquemas de classificação social.

O queijo e os vermes - Carlo Ginzburg


Fonte:
Ordem e desordem social
Apesar de muito se falar sobre as heresias medievais a partir do século X, ela
sempre esteve presente ao longo de toda a história do cristianismo, o qual teve sua
origem no Oriente Médio, dizendo respeito ao universo simbólico e cultural dos
povos semitas que habitavam a região. Jesus e seus apóstolos eram judeus que
pregavam em idioma aramaico, mas os evangelhos e cartas foram escritos em grego,
sendo que séculos depois foram traduzidos para o latim. Isso se levarmos em
consideração também o antigo testamento, escrito em hebraico antigo. Quatro línguas
bem diferentes.

Mas o que a salada de tais idiomas tem a ver com as heresias? É que desde a época
da tradução de tais textos houve discussão sobre o sentido de certas passagens que
não encontravam referência para o latim. Já temos aqui um ponto que levou a várias
contestações futuras e revisões de sentido da palavra escrita traduzida, atingindo
as interpretações ditas oficiais da Igreja.

Outro ponto diz respeito às diferenças culturais. Como os textos bíblicos fazem
muitas referências à experiência mística e espiritual nos desertos do Oriente
Médio, há um certo distanciamento da vida comum na Europa, onde não havia desertos
e o isolamento dava-se nos campos e mosteiros, entre as quatro paredes de um quarto
(e não numa caverna). A vertente europeia mais mística, o monaquismo irlandês, era
considerado irregular por Roma, devido sua tendência à solidão e ao individualismo.

Após a fundação da Igreja no século IV, sob a doutrina do apóstolo Paulo (que, por
sinal, era turco), já se apontaram algumas heresias. Afinal, quando se deu apenas
liberdade de culto ao cristianismo, várias vertentes orientais se espalharam pela
Europa (tomismo, arianismo, entre outras), mas ao oficializar esse cristianismo
como religião oficial do Império, qual doutrina seguir? Os fundadores optaram pela
doutrina paulina, formando as bases do catolicismo. Isso levou à perseguição e
censura das várias outras vertentes cristãs.

De acordo com Queiróz (1998) o arianismo, doutrina considerada herética, já existia


no século IV, baseada em Ário, um presbítero de Alexandria (Egito), que negava a
divindade de Jesus, entendendo-o apenas como um profeta, apesar de manter a mesma
ritualística e sacramentos católicos, mas não aceitavam monges, seus bispos eram
ligados aos príncipes e sem uma hierarquia rígida como o catolicismo. No século V,
o arianismo chegou a ter respaldo político do imperador Constâncio, mas foi abafado
e continuou a ser combatido.

Quando se deram as invasões bárbaras no século VI, os germanos, visigodos,


burgúndios, ostrogodos e vândalos praticamente adotaram a doutrina arianista,
enquanto anglos, saxões e francos continuaram pagãos. Além disso, muitos grupos
heréticos perseguidos pela Igreja Ortodoxa do Império Bizantino também migraram
para a Europa pós-queda de Roma, aproveitando a instabilidade política do antigo
império romano.

Politicamente, os arianistas passaram a ser combatidos até desaparecerem


oficialmente da Europa (o que não impediu sua resistência extraoficial até
transformar-se em outras doutrinas ao longo dos séculos de clandestinidade), por
volta de 540, com a conversão de Clóvis, rei dos francos, como visto em aulas
anteriores.

Além disso, o clero católico passou a ser mais coeso, organizado e instruído,
fazendo o arianismo recuar, com exceção da península ibérica. Mas, com a invasão
islâmica na península, no século VIII, foi definitivamente abafada na região.

História e cinema
Sincretismo, Crença e Heresia
Como se difunde uma religião que teve origem numa região culturalmente diferente em
outra? Lembre que o próprio cristianismo não tinha uma estrutura única e coesa até
o século IV, portanto, estava aberto, em certa medida, para outras interpretações.
Ao se difundir pela Europa, era mais fácil converter os Reis bárbaros, o que não
necessariamente acontecia com a população em geral, processo esse bem mais complexo
e longo.

O processo de conversão das populações durou séculos e nunca conseguiu apagar


completamente os traços da cultura pagã (muito mais antiga que o próprio
cristianismo) e nem os resquícios de vertentes heréticas como o arianismo. Os
sincretismos, portanto, foram inevitáveis. Para incluir comunidades camponesas
inteiras, deixava-se traços de sua cultura, como as festas de colheita, de
solstícios ou de equinócios, mas incluía-se símbolos cristãos ou substituía-se o
nome da celebração para o de algum mártir da Igreja (dia de São João, de Santo
Antônio, de Santa Bárbara etc.).

Apesar dos sincretismos, no entanto, as heresias continuavam a ser perseguidas,


quando contestavam muito ostensivamente os dogmas e os cânones da Igreja. Dentro
desta, as reformas eram mínimas e com discussões teológicas que levavam décadas, às
vezes séculos. Ainda assim, no século IX a Igreja Católica conseguiu consolidar seu
poder. Só no século XI, com os chamados movimentos milenaristas, novos grupos
heréticos surgiram.

Os relatos sobre tais grupos milenaristas, no entanto, foi escrita pelos católicos,
que tendiam a fantasiar e exagerar os fatos, alegando que eram manifestações
grotescas do mal e inspirados pelo diabo. O relato herético do camponês Raul
Glaber, por exemplo, foi feito por um padre que indicava que o camponês teria
sonhado tudo, o que já excluía suas ideias do campo da realidade e da razão. Além
disso, fazia questão de frisar que Glaber era um homem rústico, do povo, de
espírito fraco. Dentro da ordem social medieval, o camponês trabalha, cabendo ao
clero a tarefa de pregar e falar ao povo.

De acordo com Funari (2008) o interessante sobre as heresias do século XI é como


elas se diferenciam das heresias dos séculos IV-VI. Enquanto aqueles primeiros
grupos heréticos pontuam a discussão teológica e interpretações textuais dos
relatos bíblicos, as heresias milenaristas enfatizavam as práticas e as ações, já
que muitos de seus interlocutores e fundadores eram de origem humilde, do povo. Por
isso, na falta de uma discussão filosófica e teológica, a descrição feita pelo
clero católico sobre os indivíduos de tais grupos e suas práticas envolviam relatos
de loucura e possessão demoníaca, que por si só serviam para desqualificar qualquer
coisa que esses grupos diziam, uma vez que o louco não tem razão sobre o que faz ou
diz.
Foram vários os grupos registrados nos séculos XI e XII. Em 1018, no sudoeste da
França, surgem os maniqueus, negando o batismo e a doutrina católica. Em 1022, em
Órleans, um grupo de clérigos eruditos ensinavam o docetismo, uma doutrina gnóstica
que defendia que o corpo de Cristo não era real e que ele nunca nasceu de Maria,
negando a paixão e a ressureição. Em 1028, na comunidade italiana de Monteforti, um
grupo negava a trindade, proibia casamentos e não comiam carne, socializando seus
bens. Os valdenses pregavam a pobreza e o fim da propriedade privada, sendo
excomungados em 1184, junto com os arnaldistas e os cátaros.

Os Cátaros
A heresia dos cátaros foi tamanha que quase varreu o catolicismo do sul da França.
Após várias tentativas de persuadi-los a voltarem para a Igreja, recorreu-se à
intervenção militar e à excomunhão. Vários nobres e até clérigos da região aderiram
aos cátaros, sendo posteriormente presos e executados. Um conflito explode em 1209,
com o massacre de mais de sete mil pessoas. Outra onda de perseguições ocorre em
1244, com mais de 200 cátaros queimados vivos. Pequenos grupos sobreviveram até
cerca de 1330, mas continuaram sendo presos e perseguidos.

Papa Inocêncio III excomungando os cátaros ou albigenses (à esquerda), e uma


batalha contra os albigenses realizada pelos cruzados (à direita)
Fonte: Wikimedia Commons
Uma coisa em comum, em vários desses grupos, é que muitos eram vegetarianos, tinham
um certo ideal de vida humilde, atacavam o caráter aristocrático e o luxo do alto
clero e condenavam o casamento cristão, bastando viverem juntos com seus pares
(convívio marital), alguns recusando, inclusive, a obedecer ao Papa.

Nesse mesmo período segundo Queiróz (1998) várias ordens religiosas foram fundadas
e reconhecidas pela Igreja. Algumas propunham a revisão de alguns pontos da
pregação e da ritualística católica, outras clamavam pelo voto de pobreza e pureza
espiritual. O fato da Igreja reconhece-las implicava uma certa domesticação do
discurso e das práticas de tais grupos (os franciscanos, por exemplo, só foram
aceitos pela Igreja após Francisco de Assis aliviar seus ataques contra o luxo do
alto clero), insistindo na obediência ao Papa, mas não sem aceitar também algumas
reformas propostas por tais Ordens. Para a Igreja, interessava muito mais ser
respeitada em sua hierarquia. Organizar e controlar, trazer para junto de si tais
ordens antes que se tornassem heréticos, era melhor do que combatê-las depois.

Portanto, apesar de muitos grupos serem condenados e perseguidos por heresia até o
século XV e XVI, alguns pontos do discurso e das propostas de alguns movimentos
foram até aceitos e tais grupos reconhecidos como Ordens dentro do catolicismo.
Outros, apenas tolerados devido ao baixo impacto de seu caráter herético, como os
flagelantes, por exemplo, que nunca chegaram a constituir um grupo. Mas já estava
implícito, a partir do século XI e XII um certo ar de Reforma religiosa, que cresce
muito nos séculos seguintes até desembocar na Reforma Protestante do início do
século XVI, como veremos mais adiante.

Referências
BATISTA NETO, J. História da baixa idade média (1066-1453). São Paulo: Ática, 1989.

CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro (orgs.). Verdade e subjetividade: uma outra história
do cristianismo. In: CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro (orgs.) Foucault e o
cristianismo. Belo Horizonte: Autentica, 2012. cap.

FUNARI, Pedro Paulo (org). Religiões que o mundo esqueceu. SP: Editora Contexto,
2008.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As heresias medievais. São Paulo: Atual, 1988.

RÜPPELL JÚNIOR, Ivan Santos. Cristianismo na Idade Média. In: RÜPPELL JÚNIOR, Ivan
Santos. Cristianismo. Curitiba: Contentus,

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