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ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA - ESA OAB SP
DIRETORIA ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA DA OAB SP
Org.
Amanda Castro Machado
Paloma Machado Graf
Viviane Pereira de Ornellas Cantareli
1
APOIO:
2
3
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................................. 10
PREFÁCIO ......................................................................................................................................................... 11
1. DISPUTAS NARRATIVAS, PÓS-MEMÓRIA E JUSTIÇA RESTAURATIVA..................................... 15
1. Políticas do Esquecimento............................................................................................................................... 15
2. A disputa da Memória e a Justiça Restaurativa ............................................................................................... 18
Referências ........................................................................................................................................................... 24
2. JUSTIÇA RESTAURATIVA EM PAÍSES COLONIZADOS: UMA JORNADA PARA A
RESPONSABILIZAÇÃO E REPARAÇÃO .................................................................................................... 27
Introdução ............................................................................................................................................................. 27
1. Ser como eles. Eles quem? .............................................................................................................................. 28
2. A invisibilização das vítimas e a ausência de responsabilização estatal no Brasil .......................................... 30
3. A reparação começa onde a ferida foi feita ..................................................................................................... 33
Considerações finais ............................................................................................................................................. 37
Referências ........................................................................................................................................................... 38
3. JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL: UM DIÁLOGO COM A
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 (POR UM CONSTITUCIONALISMO RESTAURATIVO) ...... 41
Introdução ............................................................................................................................................................. 41
1. Azimute ............................................................................................................................................................ 42
2. Paz constitucional ............................................................................................................................................. 44
3. Para além da insuficiência do sistema punitivista: constituição restaurativa e a expansão de possibilidades
para lidar com conflitos ........................................................................................................................................ 47
4. O mito do menos grave ..................................................................................................................................... 50
5. O texto constitucional sob lentes restaurativas ................................................................................................. 52
5.1. Preâmbulo ...................................................................................................................................................... 52
5.2. Dignidade como fundamento......................................................................................................................... 53
5.3. Objetivos da República .................................................................................................................................. 54
5.4. Direitos e garantias fundamentais .................................................................................................................. 55
5.5. Prerrogativa para acusar ................................................................................................................................ 56
5.6. Sensibilidade decolonial: abertura constitucional para novos ares ................................................................ 56
6. Princípios básicos de processo penal e a legitimação jurídica da justiça restaurativa no sistema de justiça
criminal: se desvencilhando das amarras da obrigatoriedade da ação penal ........................................................ 57
Considerações finais ............................................................................................................................................. 59
Referências ........................................................................................................................................................... 60
4. REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO NEGRA COMO JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO PARA
REPACTUAR A NAÇÃO BRASIL .................................................................................................................. 70
Introdução ............................................................................................................................................................. 70
1. Justiça de Transição para reparar a escravidão negra no Brasil ...................................................................... 73
2. Mudar a memória coletiva para construir a igualdade política........................................................................ 77
Considerações finais ............................................................................................................................................. 79
Referências ........................................................................................................................................................... 80
4
5. ALTERCAÇÕES. CAMINHOS UTÓPICOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA DENTRO DO
SISTEMA DE JUSTIÇA DISTÓPICO ............................................................................................................ 84
1. Qual multiculturalismo? .................................................................................................................................. 84
2. Justiça para quem? (Sistema Distópico) .......................................................................................................... 85
3. Mitos dentro da utopia restaurativa e caminhos para a práxis ......................................................................... 88
4. Rotas de fuga do maniqueísmo em direção ao suleamento do viver ............................................................... 90
Glossário yanomami para homens nabëbë (a partir de FERREIRA, 2011 e KOPENAWA, 2015)..................... 91
Referências ........................................................................................................................................................... 93
6. AS TEORIAS DA JUSTIÇA E A QUESTÃO RACIAL ............................................................................ 97
Introdução ............................................................................................................................................................. 97
1. Teorias da Justiça de matriz ocidental do século XX: igualdade formal e neutralidade racial ....................... 98
2. Justiça de Transição e Justiça Restaurativa .................................................................................................... 101
3. Justiça Racial e Perspectivas africanas de Justiça Tradicional Restaurativa ................................................. 101
Considerações Finais .......................................................................................................................................... 105
Referências ......................................................................................................................................................... 106
7. E CADÊ “RAÇA” NOS DISCURSOS RESTAURATIVOS? CRÍTICAS ÀS BRANQUITUDES DO
MOVIMENTO RESTAURATIVO INTERNACIONAL ............................................................................. 111
Introdução ........................................................................................................................................................... 111
1. As agendas do movimento restaurativo......................................................................................................... 113
2. Mas cadê raça nas agendas restaurativas? ..................................................................................................... 115
3. Uma “virada racial” à vista? E o que isso significa? ..................................................................................... 117
Considerações finais ........................................................................................................................................... 121
Referências ......................................................................................................................................................... 124
8. RACISMO É (MUITO MAIS QUE) CRIME: LIMITES E DESAFIOS DOS CRIMES RACIAIS NO
ENFRENTAMENTO AO RACISMO ESTRUTURAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO
ALTERNATIVA............................................................................................................................................... 129
Introdução ........................................................................................................................................................... 129
1. As categorias de discriminação e preconceito racial e as diferentes concepções de racismo ....................... 130
2. Os limites e desafios dos crimes raciais no enfrentamento ao Racismo Estrutural ....................................... 133
3. Uma alternativa para os crimes raciais: a Justiça Restaurativa ..................................................................... 135
Considerações finais ........................................................................................................................................... 138
Referências ......................................................................................................................................................... 139
9. VOZES DA CURA: UM BREVE RELATO DA EXPERIÊNCIA DO NÚCLEO DE MULHERES
NEGRAS ........................................................................................................................................................... 142
Apresentação ...................................................................................................................................................... 142
1. Fecundação .................................................................................................................................................... 142
2. Gestação ........................................................................................................................................................ 143
3. O parto ........................................................................................................................................................... 145
4. A criação ....................................................................................................................................................... 146
5. Trilhar com nossos pés os passos que nossas mais velhas ensinaram ........................................................... 147
10. MULHERES EM CÍRCULO E EM LUTA: PERIFERIA SEGUE SANGRANDO E NÃO ESTANCA!
............................................................................................................................................................................ 150
5
Periferia Segue Sangrando e não estanca ........................................................................................................... 150
1. Mulheres em círculo ...................................................................................................................................... 151
2. Mulheres em luta ........................................................................................................................................... 154
Referências ......................................................................................................................................................... 161
11. CORPOGRAFIAS DAS RESISTÊNCIAS SUBTERRÂNEAS ............................................................. 163
Introdução ........................................................................................................................................................... 163
1. O que gira em torno da dor? .......................................................................................................................... 165
Referências ......................................................................................................................................................... 172
12. JUSTIÇA RESTAURATIVA: CRIME, VIOLÊNCIAS ESTRUTURAIS E O ATO DE
RESPONSABILIZAÇÃO ................................................................................................................................ 174
Introdução ........................................................................................................................................................... 174
Referências ......................................................................................................................................................... 181
13. JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO: NOVAS ESTRATÉGIAS
EMANCIPATÓRIAS ....................................................................................................................................... 183
Introdução ........................................................................................................................................................... 183
1. Por que é urgente discutir a violência de gênero no Brasil? .......................................................................... 184
2. Por que a Justiça Restaurativa (JR) é um caminho promissor? ..................................................................... 185
3. A JR como possibilidade concreta de tratamento da violência de gênero ..................................................... 188
Considerações finais ........................................................................................................................................... 192
Referências ......................................................................................................................................................... 193
14. DIÁLOGOS ENTRE JUSTIÇA RESTAURATIVA, COMUNIDADE E PROTEÇÃO DE PESSOAS
LGBTQIA+ ....................................................................................................................................................... 195
Introdução ........................................................................................................................................................... 195
1. A Comunidade LGBTQIA+ .......................................................................................................................... 196
1.1 Desafios: em casos de LGBTfobia, o que protege? ....................................................................................... 196
2. A Justiça Restaurativa e o enfrentamento de violências estruturais .............................................................. 199
3. Vazios: porque não falamos disso?................................................................................................................. 201
Considerações finais ........................................................................................................................................... 202
Referências Bibliográficas .................................................................................................................................. 203
15. INFRACIONOU, E AGORA? A PERSPECTIVA RESTAURATIVA COMO UM ESPELHO QUE
REFLETE A PLURALIDADE NA JUSTIÇA JUVENIL ............................................................................ 206
1. Infracionou: A proteção e atenção ao adolescente em conflito com a lei...................................................... 206
2. Vamos trocar uma ideia sobre as lentes? - A contextualização da justiça restaurativa ................................. 209
3. E agora, após o ato infracional, quais os caminhos? ..................................................................................... 211
4. O entrelaçamento entre justiça restaurativa e o sistema de justiça juvenil .................................................... 214
Algumas considerações ...................................................................................................................................... 215
Referências ......................................................................................................................................................... 218
16. JUSTIÇA RESTAURATIVA E COMUNIDADE ................................................................................... 220
Introdução ........................................................................................................................................................... 220
Alguns círculos que realizamos: ......................................................................................................................... 221
1.1 Divisa de terra entre Francisco e Raimundo, nomes fictícios....................................................................... 221
1.2 Que situação! ................................................................................................................................................ 225
6
1.3 Cuidado sempre é bom ................................................................................................................................. 227
1.4 De onde menos se espera .............................................................................................................................. 229
Considerações finais ........................................................................................................................................... 232
17. PRÁTICAS DE CULTURA DE PAZ E JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SALA DE AULA: A
CONSTRUÇÃO DE NOVOS CAMINHOS................................................................................................... 233
Introdução ........................................................................................................................................................... 233
1. “Essa ciranda não é minha só, é de todos nós”: Circularidade e materialidade em uma educação libertadora
.........................................................................................................................................................................235
2. Ouvindo seus não ditos pela escuta sensível: o encontro com seres humanos que produzem e reproduzem
violências ............................................................................................................................................................ 236
3. A construção de novos caminhos: um devir plural e criativo ........................................................................ 239
Referências Bibliográficas.................................................................................................................................. 242
18. JUSTIÇA RESTAURATIVA NA EDUCAÇÃO: O RETORNO DOS QUE NÃO FORAM .............. 244
1. Como viver? Conviver! ................................................................................................................................. 244
2. Conflito.......................................................................................................................................................... 245
3. Violência ....................................................................................................................................................... 247
4. O trocar de lentes........................................................................................................................................... 247
5. O mesmo lugar, um novo olhar ..................................................................................................................... 250
Referências ......................................................................................................................................................... 254
19. A COLABORAÇÃO DAS PRÁTICAS DIALÓGICAS RESTAURATIVAS NA CONSTRUÇÃO
SOCIAL DAS CIDADES – GENTRIFICAÇÃO E DROGADIÇÃO .......................................................... 255
Introdução ........................................................................................................................................................... 255
Referências ......................................................................................................................................................... 265
APÊNDICES ..................................................................................................................................................... 267
CARTA-COMPROMISSO LUANA BARBOSA ............................................................................................. 267
7
APRESENTAÇÃO
8
números que apontam um genocídio em curso. Essa obra é dedicada também à memória de lideranças
do campo, indígenas, vítimas do grande latifúndio, que sofrem ameaça de uma imoralidade jurídica, o
marco temporal, demonstrando que os dirigentes deste país - e quem coaduna, ainda que por omissão -
falharam enquanto humanidade. Dedica-se, por fim, aos mais de 614 mil mortos por Covid-19 no país,
durante uma pandemia que escancara o projeto de necropolítica do governo que mata seus cidadãos e
persegue quem se insurge.
Vivemos em tempos sombrios, já dizia Brecht, e não chegamos ainda no tempo que o humano
é amigo do humano. Nossa sociedade é marcada por governos antidemocráticos, direitos atacados e
todo tipo de retrocesso. Mas isso não torna nosso trabalho menos incansável: é pela constante luta por
acreditar queremos todes viver bem nossas vidas, que levantamos cada dia e seguimos - resistimos.
A justiça restaurativa é um convite a repensar nossa atitude em relação ao mundo e o modo
como ele se processa. É proposta para que vivamos em solidariedade e generosidade. Convida-nos a
olharmos para nós mesmos, nos compreendendo, assim como a olhar ao nosso redor, conectando-nos
com os outros para agirmos por e para além da empatia.
É um movimento que se pretende ser questionador do sistema retributivo de justiça, da
punição, do cárcere e do tratamento desumano que se concede às pessoas encarceradas. Na
responsabilização, a justiça restaurativa extrai o mote para suas ações, bem como o acolhimento, a
reparação e o respeito às histórias de todes os envolvides.
Não se esquiva em revelar as violências estruturais que permeiam os conflitos, não é alheia ou
insensível ao machismo, racismo, lgbttqfobia e às desigualdades sociais, por exemplo. Ao questionar
as estruturas de poder, e como as mesmas subjugam as pessoas, sobretudo os oprimidos, reconhece
que as pessoas podem reproduzir violências sofridas no passado. Por isso, o processo em busca do
autocuidado, autoconhecimento e autorresponsabilização são ferramentas essenciais para elaboração
de questões que ressignifiquem as dores para não serem mimetizadas violentamente.
A justiça restaurativa encoraja as pessoas a falarem com o coração, para que sejam
protagonistas de suas histórias e possam (re) criar suas narrativas ao viver conforme seus mais
verdadeiros sentimentos. É extremamente ousado e disruptivo as pessoas poderem falar do seu
coração, pois, quando assim o é feito, o discurso é assertivo e não rotula, há conexão entre os seres. E
nada é mais subversivo que uma sociedade conectada e, portanto, organizada, solidária, afetuosa,
irmanada.
Sem amor nossos esforços para libertar a nós mesmas/mesmos e nossa comunidade mundial da
opressão e exploração estão condenados. Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o
lugar do amor nas lutas por libertação, não seremos capazes de criar uma cultura de conversão
na qual haja um coletivo afastando-se de uma ética de dominação. (bell hooks, 2006, p. 1)
Desta forma, esta antologia restaurativa foi criada por amor, pois é imanente revolucionário.
A luta, palavra que deve ser incluída no vocabulário restaurativo, está representada nesta obra pela
junção de propósitos a partir da origem do termo em latim “lucta”, derivado de “luita”, que significa
esforço e dedicação. É por acreditarmos que o amor nos tempos presentes é antihegemônico, que nos
empenhamos em refletir sobre como a justiça restaurativa pode compor e criar caminhos de
resistências e potências diante dos discursos e práticas dominantes.
Nos dedicamos a juntar diversos olhares, vozes e imagens para compartilhar pesquisas,
resultados e reflexões sobre a justiça restaurativa articulada entre teoria e prática nesta obra intitulada
“NARRATIVAS RESTAURATIVAS LIBERTÁRIAS: ENSAIOS SOBRE POTÊNCIAS E
RESISTÊNCIAS”. O livro é composto por 19 capítulos que abordam temas diversos a partir da
9
perspectiva crítica, suleadora e radical, com intuito de provocar reflexões acerca de temas pouco
debatidos no âmbito da justiça restaurativa institucional e acadêmica.
Entre os capítulos, o livro foi recheado e enriquecido com ilustrações do coletivo “Mujeres y
la Sexta: Abajo y a la izquierda, con todo el corazón”1 cedidas para esta obra. No ano de 2005,
mulheres acadêmicas, trabalhadoras, desempregadas e cuidadoras do lar, com diferentes formas de
pensar, se juntaram para dialogar sobre as vivências e lutas contra a opressão e o sistema capitalista a
partir do manifesto da Sexta Declaración de la Selva Lacandona. Em 2020, o coletivo realizou o
evento “Conversatorio de Experiências de Justicia Comunitária e Tribunales Éticos en Abya Yala y el
mundo” com apresentações e relatos sobre como cuidar do justo a partir da comunidade e promover
processos diferenciados de reparação ante as violências e violações sofridas, através do relato de
experiências de mulheres curdas, zapatistas e tantas outras. São ilustrações potentes, subversivas e
questionadoras do sistema que coadunam com as reflexões provocadas pelos autores e autoras que
participam desta antologia restaurativa.
Com esse pequeno relato das nossas lutas e propósitos, finalizamos esta primeira coletânea
organizada coletivamente, com muita alegria por todes que participaram deste projeto de divulgação
de conhecimento para expandir novos horizontes entre potências e resistências da justiça restaurativa
brasileira.
Desejamos uma boa leitura!
1
Mais informações sobre o coletivo podem ser encontradas neste site: https://mujeresylasextaorg.com/
10
PREFÁCIO
CONTRA HEGEMONIA RESTAURATIVA PELA JUSTIÇA PERDIDA: das
violências estruturais à transformação emancipatória
Negra, lésbica, mãe e periférica, Luana foi morta aos 34 anos por lesões cerebrais provocadas
por três policiais militares que a espancaram na esquina de sua casa, em frente ao seu filho, no
bairro Jardim Paiva II, zona Norte de Ribeirão Preto (SP). As agressões ocorreram após Luana
recusar ser revistada pelos soldados do 51º Batalhão da PM, exigindo uma presença policial
feminina. Foi espancada quando clamava por direitos humanos. Ela foi encaminhada à
Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas (HC-UE), mas morreu cinco dias depois da
violência.3 O nome de Luana Barbosa na carta-compromisso simboliza todas as pessoas que
sofrem a violência do racismo cotidianamente e, entendendo que as violências físicas,
psicológicas, simbólicas contra pessoas racializadas não cessarão enquanto a sociedade não
reconhecer o racismo estrutural, é que nos motiva a propor essa carta-compromisso por uma
justiça restaurativa antirracista. (Trecho da Carta- Compromisso Luana Barbosa, 2021)
11
sobre potências e resistências” organizado por Amanda Castro Machado, Paloma Machado Graf e
Viviane Pereira de Ornellas Cantareli (que co-protagonizaram a organização daquele Congresso ao
lado de outras instituições, grupos e coletivas), o justo lugar de um divisor de águas no campo da
Justiça restaurativa no Brasil.
Ademais, o faço a vários títulos. Primeiramente, pela transdisciplinaridade que promove, ao
reunir academia e rua, ciência e coletivos, movimentos sociais, artífices da teoria e da empiria, da
vivência e da prática restaurativas, de várias cores, classes, etariedades, gêneros, sexualidades,
imigrantes e refugiados, conferindo representatividade democrática ao dito nas páginas que seguem.
São estudantes, advogados liberais e populares, pesquisadores, professores, pedagogos, psicólogos,
historiadores, sociólogos, antropólogos, juristas, criminólogos, filósofos, agricultores, facilitadores de
práticas restaurativas e militantes de diversos coletivos.
A seguir, pela contra hegemonia que promove, ao reunir a abordagem de faces outras,
invisibilizadas, da Justiça restaurativa, que se contrapõem às narrativas hegemônicas. E tal movimento
é possibilitado pelos próprios espaços de ambiguidade desse paradigma em construção, o qual, não
tendo proprietários, não pode ser monopolizado por nenhum domínio , seja do Estado ou da
comunidade, público ou privado; seja do conhecimento ou da prática, podendo ser disputado ou
apropriado institucional ou informalmente, por quaisquer áreas do conhecimento, da sabedoria e da
prática acadêmicas, populares ou familiares, seja para conservar o status quo vigente, seja para
transformá-lo, sendo este segundo o compromisso aqui assumido.
A obra é um divisor de águas, em terceiro e definitivo lugar, por emprestar ao debate a raiz e
as asas da Brasilidade, propondo a refundação da Justiça a partir dos grandes marcos estruturantes da
nossa dominação, a colonização e a escravidão e, na herança da colonialidade, de todas as violências
estruturais que simbolizam sua trágica continuidade, destituindo seletivamente os brasileiros e o Brasil
de sua constituição como “povo” e de viver sua genuína história.
As 18 narrativas que a integram, em meio a cuja leitura muitas vezes me emocionei, tratam da
Justiça Restaurativa relacionadamente à colonização, colonialidade, escravidão, racismo estrutural,
violência racial e branquitude, capitalismo neoliberal, classismo e desigualdade social, sistema penal e
de segurança pública, repressão policial-militar e punitivismo (criminalização seletiva,
hiperencarceramento e genocídio), ditadura civil-militar, teorias da justiça, constituição, direito e
direitos humanos, Mulheres, sexualidades, violências de gênero e sexuais (LGTBQIA+) ,
comunidade(s), seja no campo ou nas cidades, periferias urbanas e vizinhanças, juventude e
adolescência, drogas, educação e comunidades educativas, facilitações e vivência restaurativas
(comissões da verdade, círculos da cultura e da paz), Estado e responsabilização. As artes
cuidadosamente dispostas entre os capítulos, disponibilizadas pela rede Mujeres y La Sexta, fazem as
vezes do respiro necessário entre leituras carregadas de afetos, ilustrando este momento de pausa e
reflexão, antes de embarcamos na narrativa seguinte.
Trata-se, em linhas gerais, de pensar a justiça restaurativa a partir do pilar das violências
estruturais como condicionantes das desigualdades, opressões, vulnerabilidades, violências e violações
de direitos,, danos e injustiças vigentes; e de tomar partido, como estratégia de luta, pelos sujeitos
sacrificados e invisibilizados no projeto de dominação, as suas vítimas, notadamente o povo negro,
mas também os povos originários, camponeses, mulheres, LGBTQIA+, jovens periféricos, usuários de
drogas, e tantos outros sujeitos vitimados pela continuidade da(s) violência(s). Trata-se, ao mesmo
tempo, de chamar o Estado, suas instituições e agentes à responsabilização pelas seculares violências e
danos que vêm perpetrando, da colonização ao capitalismo neoliberal, o que inclui a criação de
políticas, programas e práticas de justiça restaurativa focadas na corresponsabilização estatal, através
12
de tomadas de posição quanto ao genocídio, a criminalização e o encarceramento em massa dos negros
e pobres, incluindo a crescente representação das mulheres negras e pobres, que cada vez mais vão
parir seus filhos nas prisões.
Aqui na nossa periferia há que se insurgir simultaneamente contra o processo de
invisibilização das vítimas da história, resgatando o protagonismo das populações historicamente
marginalizadas pela sociedade e pelo Estado e contra a invisibilização violentadora da
desresponsabilização estatal.
Disse, em outro lugar, que para falar de Justiça restaurativa no Brasil é necessário iniciar
falando daquilo que ela não é, tamanha a força com que já se consolidou um senso comum distorcido,
desviado dos seus propósitos originários, a que chamei de mitológico, a saber, que a Justiça
restaurativa é uma técnica ou método alternativo de resolução de conflitos (sendo este o mantra
central), que serve para crimes ou infrações de menor gravidade, com capacidade para desafogar a
sobrecarga do judiciário, porque uma justiça célere e de formação instantânea.
Trabalhei as consequências dessa visão reducionista, como a de instrumentalizar o
restaurativismo por dentro do punitivismo, mantendo a sua dominação, consistente na criminalização
seletiva de classe raça e gênero no centro da(in) justiça penal e empurrando a justiça restaurativa para a
sua periferia e residualidade, mantendo a linha de continuidade do reformismo brasileiro, que reverte
as alternativas em paralelismo de justiças.
Nesse sentido tenho insistido em que a libertação das lentes e dos conceitos positivistas e
punitivistas (a libertação do binômio crime-pena) e, enfim, a libertação desta mitologia, aliada a uma
clara política abolicionista, antipunitiva e anticarcerária são conditio sine qua para o avanço da Justiça
restaurativa no Brasil.
Destarte, o terceiro pilar para situar esta obra como um divisor de águas é precisamente o de
que ela subverte e rompe com este senso comum mitológico, para inverter as próprias lentes e propor
uma leitura contextualizada e ampliada da Justiça restaurativa, capaz de congregar os quatro objetivos
que tradicionalmente a caracterizam (Encontro, responsabilização, reparação de dano e
transformação). Para além de um procedimento com respeito a fins, de rápido aprendizado para a
prática, a Justiça restaurativa é vista como uma caminhada complexa, capaz de fortalecer a
convivência comunitária solidária e empática, em tempos de reinado do medo e do ódio, a dinâmica de
realização dos direitos e responsabilidades, a cidadania, a ética do cuidado e a democracia (sempre
inconclusa em terra brasilis).
Nesse pensar agigantado, delineia-se como que um princípio hermenêutico: para refundar a
Justiça no Brasil temos à frente as potencialidades democráticas e humanistas da Constituição federal
de 1988 (um “Constitucionalismo restaurativo”), mas partir do presente e da igualdade ficcional não
basta. É preciso fazer um acerto de contas com o passado, com danos e dores individuais e coletivos
13
seculares, e construir um pacto de reconhecimento e reparação por parte do Estado e de todos os
violentadores, de modo a consolidar uma autêntica transição democrática, como ocorreu em África e
tantos outros países.
Trata-se de “sulear” a justiça restaurativa, de pensar a justiça restaurativa a partir de e para
este sul do mundo chamado América Latina e Brasil e, tendo a história e a memória críticas como
terra mãe dessa jornada, voltar à posição fetal, à fundação das iniquidades para questionar onde nos
perdemos de nós mesmos, na ultrajante trajetória de despedaçamento do povo brasileiro, co-
constituída pelas estruturas colonial-escravocrata-patriarcal-capitalista-autoritária, sob a condução do
Estado e das elites, estruturas, Estado e elites “ilesos”.
Por último, a justa hipoteca de divisor de águas decorre desta obra desenhar, em seu conjunto,
uma utopia para a concretização da justiça perdida; uma utopia concebida, ao contrário do irrealizável,
como o horizonte que nos move, cotidianamente, como bússola, a apontar que sim, que um outro
futuro é possível e realizável. Nesta condição desejamos que protagonize um profundo debate com
todos os movimentos em curso no Brasil, especialmente com o da Justiça restaurativa judicial.
14
DISPUTAS NARRATIVAS, PÓS-MEMÓRIA E JUSTIÇA RESTAURATIVA
Adriana Gianvecchio1
1. Políticas do Esquecimento
O que acontecerá com a memória, especialmente a traumática, quando não houver mais
portadores de memórias ou testemunhas? (VECCHI, 2021). A intensificação das diferenças político-
ideológicas em curso, muito mais do que acirrada polaridade, tem produzido vários retrocessos
advindos de negacionismos, que têm atuado de forma insidiosa na política e nas relações sociais no
Brasil – atual campo de disputas acerca de um passado que não se resolveu, e que, como consequência,
desaguou em repetições e continuidades –, trazendo a necessidade de ampliar o debate, bem como
retomar ações que possam rever as consequências da ditadura civil-militar no Brasil, como a sucessão
de ataques à Constituição de 1988, conquistada a partir de muitas lutas contra a opressão e do sangue
de tantos que foram massacrados pela ditadura.
Estamos vivenciando graves ameaças às instituições democráticas, na continuidade da
violência do Estado, sob outra roupagem e em outro tempo histórico. Mesmo que tenha havido ações
efetivas para tentar a mínima reparação, fato é que a cultura se consolidou numa tradição de erros e de
transmissão de enganos, que continua num lastro de violências institucionalizadas e que chega às raias
de uma insanidade coletiva quando, nas ruas, lemos cartazes pedindo retorno da ditadura, evocando o
fechamento do Congresso ou em afirmações estapafúrdias de que não houve ditadura, e em
celebrações em que se “comemora” o que chamam de “revolução”.
É preciso lembrar que memória é política, e as negações desse passado traumático, que deixou
tantas dores, traumas, lutos, marcas e também lacunas, incidem no fazer político do tempo de agora.
Com a Lei de Anistia2, salvo poucos acertos, houve a construção de rotas
jurídicas e atalhos de escape para criminosos e torturadores e uma contribuição com a construção da
“banalidade do mal”; houve também uma tentativa de fazer tábula rasa de um passado de graves
conflitos e situações não resolvidas que resultaram em crimes. Por isso, criou-se as Comissões voltadas
para a reparação em um processo de reflexão e de aprendizado coletivo, fomentando iniciativas que
permitiram uma construção crítica sobre um tempo que precisa ser lembrado e abordado sob princípios
democráticos. Por isso se faz necessário dialogar sempre com esse passado não resolvido, pois a
história atualiza as memórias no tempo de agora, uma vez que há o risco de que, com a ausência dos
testemunhos no processo chamado de pós-memória3, os usos políticos do esquecimento estejam
1
Adriana Gianvecchio é historiadora, doutora em Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP, onde
desenvolveu a tese Presença na Ausência: Amnésias Políticas e Resistências Poéticas na Ditadura Civil- Militar no Brasil;
possui mestrado em Estética e História da Arte e é especialista em Preservação do Patrimônio e em Gestão da Educação.
2
Referência à Lei 6.6.83 de 28 de agosto de 1979. Sancionada durante a ditadura civil-militar. A Anistia, promulgada pelo
parlamento, não se deu da maneira que as forças de oposição queriam: ela foi imposta à sociedade pelos militares no poder,
criando assim uma situação paradoxal. O Estado “anistiava” os militantes políticos de oposição, a grande maioria dos quais
já havia sido presa, morta, torturada, exilada, perseguida; e “anistiava” igualmente os agentes da repressão de todos os
crimes hediondos cometidos: assassinato, estupro, tortura, sequestro, desaparecimento forçado de pessoas, ocultação de
cadáver, impedindo, assim, não somente que eles fossem punidos, mas também que suas identidades e seus atos fossem
conhecidos e se tornassem públicos. Este foi o alto preço que a redemocratização brasileira pagou pela transição “lenta,
gradual e segura” que os militares conseguiram impor ao país, garantindo assim a impunidade para eles mesmos: uma lei,
na verdade, de autoanistia. (ver: TOSI, Giuseppe et.al.).
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Pós-memória descreve a relação que a geração posterior àquela que testemunhou traumas culturais e coletivos e que
carrega da experiência daqueles que vieram antes, experiências que eles “lembram” apenas por meio das histórias, imagens
e comportamentos em meio aos quais cresceram. Mas essas experiências lhes foram transmitidas de modo tão profundo e
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coniventes com a agenda do poder e com a cínica legenda que se inscreve na não reparação e nas
repetições de erros e disputas dos usos da memória. Nessa esteira, há um imaginário social que não
tem noção dos fatos, uma vez que havia um controle rígido de toda e qualquer informação, com crivos
de pesada censura e uma propaganda do Estado que lastreava enganos, sem qualquer compromisso
com a verdade. Isto sem falar das lacunas na educação sobre o período, que olha para o passado com
lentes baças e distorcidas, negando-o ou minimizando suas consequências ou – o que é pior –
validando-as num continuum de ódios e violências que se perpetuam no Brasil desde a colonização,
inscrevendo o Brasil em um lastro de ódios.
O período pós-ditadura é também o da fragilidade de políticas que encorajassem o debate
público sobre o passado e os problemas dele advindos das sucessivas distorções, que continuam
ocorrendo sistematicamente, pois o passado continua sendo interpretado de acordo com interesses das
classes dominantes, dos donos do poder.
Segundo Walter Benjamin, a verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia.
O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento
de seu reconhecimento. O autor analisa a partir de Gottfried Keller4 que a verdade não nos foge, na
concepção própria do historicismo, uma vez que é irrecuperável toda imagem do passado que ameaça
desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela (...).
Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi”; significa
apoderarmos de uma recordação, quando ela surge num momento de perigo. O perigo ameaça tanto o
corpo da tradição como aqueles que a recebem. Para ambos o perigo é apenas um: o de nos
transformarmos em instrumentos das classes dominantes (...). E nem os mortos estão seguros se o
inimigo vencer (BENJAMIN, 2012, p. 11).
O perigo do esquecimento é a repetição da barbárie, por isso esse recorte perpassa pelo
conceito de pós-memória, ou seja, da representação do passado a partir dos herdeiros da memória e
não da geração que vivenciou e testemunhou as memórias do trauma. Nesse contexto, as possibilidades
da Justiça Restaurativa inserem-se em um campo dialógico acerca do conflito, sobretudo das disputas
em andamento, como também das formas de se relacionar com o Direito, que precisam ser revistas e
reaprendidas na esteira da democracia. Nesse sentido, as formações são preponderantes para se pensar
em como o Direito é construído em outros campos do saber e como é interpretado.
A Justiça Restaurativa permite lidar com o conflito de modo a criar um campo onde as
vítimas tenham participação e possam dialogar com os ofensores. Reiterando que não há nesse
questionamento a reinvindicação de punições para com o passado, mas sim de reparação, atualização,
e conscientização a partir da comunicação e da intersecção, em que seja possível produzir uma “justiça
justa”, um debate amplificado e uma consciência sobre a necessidade de reparação, e que seja também
um desejo dos ofensores, quando conscientes de seus erros, de também buscarem ajustes. Também se
procura verificar de que modo isso se inscreve a contrapelo, na referência benjaminiana, como vemos
através da persistência e resistência dos movimentos sociais, tais como o Movimento das Mães de
Maio no Brasil5, que lutam incansavelmente para que a memória de seus filhos assassinados, sem
direito à defesa e sem comprovação de qualquer delito, tenha direito à justiça e reparação. Suas
afetivo que parecem constituírem memórias de próprio direito. A conexão da pós-memória com o passado não é, portanto,
de fato mediada pela lembrança, mas pelo investimento imaginativo, pela projeção e criação. (HIRSCH, 2008, p. 106).
4
KELLER, ANO apud BENJAMIN, 2012, p. 11.
5
O Movimento Mães de Maio no Brasil é uma rede de mães, familiares e amigos das vítimas da violência do Estado,
formado a partir dos crimes de maio de 2006, a partir da uma chacina na Baixada Santista onde 564 pessoas foram
brutalmente assassinadas. O grupo tem a missão de lutar pela verdade, memória e justiça para todas as vítimas da violência
discriminatória, institucional e policial contra a população pobre, negra e os movimentos sociais brasileiros.
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incansáveis lutas, a cada dia, agregam mais e mais casos, e elas continuam a clamar por justiça, assim
como as mães de filhos desaparecidos no Chile, que ainda procuram ossadas no deserto de Atacama,
para poderem sepultar seus filhos6 – e tantas outras histórias de lutos, dores e traumas, inscritas em
uma história de mais massacres e traumas.
Por isso temos que pensar, enquanto sociedade, nas repetições das perdas que não foram
elaboradas, nos restos da ditadura que deram origem a vários colapsos sociais. Na dor dessas mães que
carregam cartazes com rosto e nome dos filhos, como uma necessidade de visibilidade do luto e que
reivindicam justiça, pois o luto precisa dessa visibilidade do morto. O ritual de passagem e de
preservação da memória dos mortos é universal, e isso também tem a ver com a questão do
reconhecimento dos corpos, que em momentos traumáticos é sempre muito difícil de ser feito porque
falta materialidade, no caso dos desaparecidos, e falta escuta sobre as dores dos familiares enlutados.
Nesses exemplos, referendamos também que as ditaduras latino-americanas não tiveram acesso à
materialidade da morte – não tiveram os corpos – e isso tem a ver com a restituição da verdade
histórica, para a família e para a sociedade como um todo. Em verdade, o envolvimento integrado
institucional público e privado, mais o social, no âmbito das estratégias que promovem a compreensão
dos fatos ocorridos, e suas consequências e soluções, estão associados ao trabalho de memória coletiva
e ao fortalecimento comunitário.
Quando acabaram as ditaduras do Sul da América Latina, lembrar foi uma atividade de
restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência de Estado.
Tomaram a palavra as vítimas e seus representantes (SARLO, 2007, p. 356). Porém, no Brasil,
diferentemente da Argentina e do Chile, esse processo encontrou grandes percalços e foi amplamente
beneficiado pela lei que anistiou os criminosos, seguido de todos os tipos de dificuldades impostas
quanto à abertura de arquivos. Por isso não há dúvida de que, sob a ótica do Estado Democrático de
Direito – que, por sua vez, deve ser visto como instrumento de transformação social – ocorreu uma
disfunção do Direito e das instituições encarregadas de aplicar essa lei. E não houve um novo modo de
produção desse tão defasado Direito, produto de um modo liberal-individualista-normativista de
produção. Vale destacar que se entende como modo de produção de Direito, para os limites desta
abordagem, a política econômica de regulamentação, proteção e legitimação, num buscar de soluções
pacíficas que objetivam a proteção adequada dos direitos humanos e a aplicação de métodos mais
efetivos na resolução dos conflitos, como bem descreve o preâmbulo da Carta Constitucional de 1988,
fruto de uma luta – não simbólica, mas marcada por sangue de quem teve a coragem de opor-se à
opressão, violência e crimes. (DIEL et al, 2014).
Os traumas decorrentes de situações assim não se manifestam somente de forma física, mas
envolvem, dentre outras, questões coletivas, causas sociais e políticas. Nesse contexto, as políticas
públicas podem ajudar na reconstrução do tecido social através do enfrentamento, tratando os efeitos
do trauma e as causas presentes na raiz dos acontecimentos, reparando e restaurando sentidos,
propiciando escuta e buscando reparação entre o ocorrido e o lembrado. Isto significa que passado e
presente estão imbricados e se condicionam constantemente. E por isso é preciso dialogar a partir dos
silenciamentos, dar voz aos silenciados, vítimas e familiares do trauma e ouvi-los, em contextos
comunitários e nos processos de repetição da violência. É preciso a escuta, é preciso o entendimento
das razões dos ofensores para que nasça desses territórios de ódios e disputas uma possibilidade de
compreensão da dor das vítimas e familiares e uma mínima reparação.
6
Conhecidas como mulheres de Calama, no Chile. Trata-se de um grupo de mulheres que se organizou na pequena cidade
de Calama, no deserto de Atacama, norte do Chile, e que há mais de 30 anos dedicam-se a buscar os corpos de seus
familiares assassinados na ditadura de Pinochet.
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Ler o bordado do trauma penosamente urdido pelo silêncio da vítima e deixado como legado
aos familiares, e isso pode ser um ato politicamente ativo: inclusive para repensar a
comunidade e as múltiplas violências identitárias e sociais que frequentemente se usam para re-
sancionar a sua fundação. (VECCHI, 2016, s/p).
As disputas no campo da memória estão cada vez mais acirradas no Brasil, uma vez que há
várias medidas para promover um esquecimento programático a partir de pautas governamentais. E
isso ficou nítido quando o atual presidente, em 2016, enquanto ainda era deputado federal, elogiou um
torturador em plenária – torturador esse que havia sido o algoz da então presidente –, e o deputado
ainda se elegeu “democraticamente” após o lamentável episódio. Se é que podemos chamar de
democracia um processo pautado em ódios e jogos de poder. Os assassinatos políticos continuam,
muitos sem solução ou resolução, como nos casos Marielle Franco, Amarildo, assim como ações
tenebrosas como a chacina da Baixada Santista, a ação policial no morro do Jacarezinho, o genocídio
dos indígenas, e tantos outros que se inserem num cotidiano da barbárie, infindável.
Há um processo em marcha que praticamente anula todo trabalho realizado na Comissão
Nacional da Verdade, engessando-o, numa legenda fundamentalista e retrógrada a partir da perspectiva
dos direitos humanos e seus institutos e da fragilidade das instituições democráticas cada vez mais
atingidas pelo despautério de governantes e suas cartilhas neoliberais que atuam em função de
interesses contrários à democracia, e ocupam cargos públicos legislando para benefícios privados e
próprios. O campo da disputa da verdade é da disputa do poder, e a verdade, para sobreviver, precisa
se instrumentar mais para atuar fortemente na educação, que é onde se fragiliza cada vez mais essa
disputa, e no debate público, através da construção de políticas de memória e da difusão dos trabalhos
já realizados. A história revela, de forma dolorosa, que a imposição autoritária por parte do Estado, de
uma ideologia política, torna cada vez mais instável a sociedade, a convivência, pois instaura a
desconfiança, suscita ódios e separatismos de toda ordem, gerando uma série de equívocos e
interpretações farsescas e deturpadas.
O tema da memória no âmbito da história é um dos mais sensíveis tanto na demarcação dos
atores sociais quanto das suas práticas no tempo e espaço, pois opera não só no âmbito das
consequências materiais, como também imateriais e simbólicas, produzindo impactos em várias
gerações, tanto dos que vivenciaram quanto dos que receberam as transmissões. Por isso, é de
fundamental importância a memória ser tratada como política pública, uma vez que também contribui
no processo de aprendizagem da cidadania e das instituições democráticas para que se possa formar
uma opinião pública crítica e participativa, através de práticas sociais emancipadoras. As estratégias e
políticas de memória usam recursos de enfrentamento destas questões, associados a programas de
reconstrução identitária e democrática.
7
Criação da Comissão Nacional da Verdade, Lei 12.528/2011.
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tomando forma e avançando sem que nenhuma força democrática as consiga deter, como o desmonte e
ataque às instituições e centros de memória como museus, cinematecas, lógicas em que ministérios da
cultura, educação e direitos humanos passam a ser pastas tratadas como irrelevantes e desmobilizadas
de forma estratégica, e onde a linguagem violenta se torna uma repetição – sendo que os processos de
distorção da memória contam com vários mecanismos de manipulação da verdade, como culpar outros
sujeitos sociais pelos fatos e atos ocorridos durante os regimes de força, manipular as associações dos
acontecimentos, responsabilizar circunstâncias alheias, recriminalizar as vítimas, dentre outros tantos
abusos.
A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso em que a vítima e o ofensor
e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos
centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos
traumas e perdas causadas pelo crime. No caso da ausência da vítima, são os familiares que ocupam
esse lugar de fala. A forma de realização é um processo estritamente voluntário, relativamente
informal, a ter lugar, preferencialmente, em espaços comunitários, intervindo um ou mais mediadores
ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se
alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e
coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator (GOMES, 2012).
No entanto, o sofrimento causado à vítima não pode nunca ser amparado por inteiro, porque a
experiência vivida não se apaga; ao agressor tampouco é possível ter algo distinto daquilo que quis no
momento de sua ação. O direito e a justiça, num tal modelo retributivo- punitivo, portanto, funda-se
apenas na sucessão de imposições de sofrimento, mantendo, com isso, um atrelamento a uma situação
passada, insuscetível de reversão para dar margem ao novo, o que se justifica por este olhar centrado
marcadamente no passado, não no presente, muito menos no porvir. Ante estes contornos do modelo
retributivo, se pretendemos fazer a revolução do pensar para instituir modos outros de resposta à
violência, temos de atentar para as tensões várias que se fazem presentes em nossas vidas, em nossa
história e na história do país, e procurar lidar de um modo diverso com as diferenças, com as
singularidades, com a mudança, com a transitoriedade, enfim, com o medo dos conflitos, pois uma vez
que se não se consegue resolver o conflito, de nada adianta.
Então, no lugar de um sistema alienante, poderíamos pensar outros modos de estruturação
política que possa nos conduzir à emancipação. Por isso, usando estratégias adequadas e
democráticas às inúmeras formas de memoriais públicos, a Justiça Restaurativa pode contribuir com a
construção ampla de perspectivas culturais, envolvendo diálogos geracionais entre diferentes
comunidades, engajando pessoas e grupos a partir das lições do passado, o que se afigura definitivo na
delimitação de identidades democráticas comprometidas com a proteção dos direitos humanos. Assim,
para além de prevenir a repetição dos abusos praticados contra direitos, podem estabelecer outro tipo
de interlocução simbólica com a sociedade, provocando certo olhar para dentro de cada geração e
experiência, fazendo pensar criticamente sobre a história, e nas forças poderosas da comunidade. E por
isso é muito importante a participação social que a Justiça Restaurativa possibilita.
Uma vez que a Justiça Restaurativa vai para além do pensamento retributivo da justiça
tradicional, pois possibilita a escuta responsável e contra hegemônica, além de inaugurar um campo
aliado da Justiça de Transição para o diálogo e para a participação social. E por que é tão importante a
participação social? Quem responde acertadamente e pela perspectiva dos atos de tortura perpetrados
no regime militar? Segundo Arantes e Pontual, a tortura envolve três atores – o torturado, o torturador
e a sociedade que a permite –, e podemos dizer que todos estão silenciados. O torturador, porque não
irá dizer de sua prática, se não for exigido; o torturado não revelará, porque ainda muito raramente lhe
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é dada a palavra, a não ser em situações protegidas e particulares, mesmo assim, trata-se sempre de
uma experiência dolorosa; e a sociedade, como corolário, não a repudia porque tem pouco acesso às
informações, e é permanentemente estimulada à conivência e à banalização da tortura através da
contundente propaganda midiática a favor de sua prática. (ARANTES; PONTUAL, 2010, p. 17).
Ainda segundo os autores, o torturado se apresenta como testemunha encarnada de uma ferida que
concerne à humanidade inteira. Seu corpo ferido se oferece como símbolo, como bandeira onde se
inscreve o que nele foi atingido.
Em face de sua natureza política controvertida, quaisquer projetos de memória envolvendo
regimes ditatoriais sempre apresentam riscos associados às suas promessas, pois dependem dos
processos que vão sustentar seus desenvolvimentos e administrações.
A política da memória se torna parte do processo de socialização política, ensinando às
pessoas como perceber a realidade política e as ajudando a assimilar ideias e opiniões. Memórias
históricas e lembranças coletivas podem ser instrumentos para legitimar discursos, criar fidelidade e
justificar ações políticas (BRITO, 2009, p. 72), como também podem ser instrumentos
deslegitimadores, e nesse contexto reside o perigo de se justificar sua continuidade sem compromisso
com a verdade.
Hannah Arendt afirma que o presente não esquece e nem domestica o passado, isto porque a
relação entre estes períodos de tempo é de transversalidade e circularidade, na medida mesmo de uma
perspectiva filosófica, operando aqui com a lógica de que o sujeito que compreende não parte do zero,
mas, ao contrário, conta com toda a história que lhe caracteriza e o define como sujeito: a tradição.
(ARENDT, 2007). Nesse caminho, a Justiça Restaurativa pode contribuir criando campos de
transversalidade e de circularidade em prática e colocando questões não resolvidas em círculos de
debates – que permitem a construção de um importante recurso para manter vivas as memórias que
necessitamos manter, como transmissão dessas memórias. Para que a barbárie não mais cresça às
escondidas, é preciso mais do que olhar para o passado, é preciso restaurar formas relacionais, é
preciso ter responsabilidade e autonomia para que a semente do aniquilamento do outro não cresça, e
para podermos desenvolver uma democracia cognitiva, tão necessária quanto urgente.
Impor ao conjunto da sociedade uma visão de mundo, uma interpretação do real, é uma tarefa
complexa e dinâmica que busca tornar a subordinação do conjunto da sociedade interiorizada e
imperceptível. Para isso, as formas de controle político – e as narrativas que o sustentam –
devem ser continuamente renovadas, recriadas, defendidas e modificadas, capazes de
responder às pressões que questionam e desafiam sua dominação. (CHAUÍ, 2014. p. 26).
Quando se pensa sobre o papel da Comissão da Verdade, é preciso considerar que ela é um
processo que precisa de mudanças institucionais na promoção da paz, da reconciliação. E, dessa forma,
abrir o debate sobre o passado e, consequentemente, o futuro de um país na construção de uma cultura
de respeito aos direitos humanos através da reparação.
A Justiça de Transição, aliada à Justiça Restaurativa, pode desenvolver uma resposta à
violação aos direitos humanos buscando reconhecimento às vítimas e procurando promover a paz e a
democracia, sendo uma justiça que pode promover transformações em países marcados por abusos aos
direitos humanos. Ademais, pode fortalecer as comissões que são fruto da Justiça de Transição,
valorizando os trabalhos realizados no sentido de superar o autoritarismo sem esquecer que se trata de
fenômeno mais arraigado, uma vez que demanda o conhecimento e a exposição pública das diferentes
formas de violência política cometidas naqueles anos. É importante divulgar tais processos, pois a
maioria da nossa sociedade ignora quase completamente o passado recente, ou pelo menos demonstra
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pouco interesse pelo tema que, para muitos, parece irrelevante. O desafio é mostrar o contrário, ou
seja, que os acontecimentos de três ou quatro décadas atrás fazem toda a diferença hoje, e que as
atividades para investigar e conhecer aqueles eventos recentes importam, e muito, às dimensões da
Justiça de Transição, ou seja, aos temas da reparação, da memória, e da verdade. São apresentadas as
experiências brasileiras, desde a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a Comissão de
Anistia até a criação da Comissão Nacional da Verdade, cujo processo social de aprovação e
implementação estimulou o surgimento de comissões estaduais, das universidades e da sociedade civil
em todo o país, dando assim um enorme impulso ao processo de reconstrução da memória coletiva
sobre a ditadura (TOSI, 2014).
Nessa reflexão reiteramos a importância da memória histórica e coletiva, a disputa da
narrativa histórica e sua relação com o regime democrático. As discussões articulam as dimensões da
Justiça de Transição, as demandas sociais, a Justiça Restaurativa e os fundamentos teóricos, históricos
e jurídicos, na intenção de que os trabalhos estabeleçam um diálogo intersubjetivo com as diversas
concepções e práticas de Justiça Restaurativa, assim como suas ressignificações e apropriações no
contexto brasileiro. E do mesmo modo, as contribuições para o debate acerca da reparação da
escravidão e da ditadura, “dizer ou não da verdade; rememorar ou remeter ao silêncio; perdoar ou
sancionar os agressores; reconhecer, homenagear e reparar as vítimas familiares; Desembrutecer a
sociedade criando meios para a ‘normalização’ e o retorno à vida civil, reconstruir o país e reconciliar
inimigos de guerra; impor uma história oficial ao conflito ou escrever a história a várias mãos com a
participação da comunidade local” (LIMA, 2010).
A Justiça de Transição estabelece a noção de transição política, e as políticas públicas
instauradas buscam fazer face aos desafios da mudança de regime, associado a uma multiplicidade de
práticas, visando, de um lado, assegurar a coexistência de uma sociedade desfigurada por um conflito
violento, e ao mesmo tempo, garantir a responsabilização pelos atos violentos. A Justiça de Transição
e a Justiça Restaurativa que dela deriva foram se firmando com base em mecanismos que incitam uma
variedade de práticas, como as narrativas e o direito à verdade, o reconhecimento simbólico das
vítimas, reparações e, ainda, o desarmamento da população civil, a realização de eleições
democráticas, o combate à corrupção, a reforma dos setores de policiamento e segurança pública, do
poder judiciário e das instituições militares, entre outras, revelando-se um conceito adaptável e
suscetível a várias interpretações. Esta prática fortaleceu uma filosofia que viria a se impor em outros
contextos, sendo que a comente com a participação da comunidade nos processos de transição é capaz
de assegurar o renascimento de uma sociedade fundada no Estado Democrático de Direito.
Nesta seara, a Justiça Restaurativa se estabelece como um caminho de mediação importante
na solução de problemas atuais que teriam causas estruturais em conflitos passados e presentes, como
nas disputas da memória. Assim, a institucionalização de instâncias de formação dessa metodologia
tem um novo impulso na resolução de conflitos do passado também, de conflitos que não se
resolveram e perduram. As práticas da Justiça Restaurativa podem promover meios alternativos como
forma de resolução de conflitos, que pode ser utilizada nas políticas do perdão, da memória e da
verdade e na construção de paz, podendo ser um caminho para além da insuficiente “anistia ampla,
geral e irrestrita”, que se revelou parcial e injusta para construir possibilidades para uma sociedade
crítica, emancipada, equânime, equilibrada e capacitada, que não se conforme com a barbárie e nem a
endosse ou peça o seu retorno em nenhuma hipótese. E, para criar territórios para debater com os
herdeiros das memórias traumáticas temas concernentes a uma gestão da história comprometida com a
verdade factual, esse agir talvez possa nos tirar dos subterrâneos de um tempo que precisa ser
lembrado, para que não se torne nem uma ameaça às liberdades conquistadas, nem aos ajustes que são
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necessários para a manutenção e ampliação de uma democracia cognitiva.
Imagem: matéria sobre Crimes de Maio – 13/05/2016 Fonte: Revista Brasil de Fato.
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Referências
BAVA, Silvio Caccia. Democracia e Participação: a guerra das ideias: a disputa das narrativas.
Democracia e participação. Diplomatique, 8 de março de 2016.
BRITO, Alexandra B. de. A justiça transicional e a política da memória: uma visão global. In: Revista
Anistia, vol. I. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.
CHAUÍ. M. Conformismo e resistência, 4. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014.
DIEL. Aline Ferreira da Silva; FLORES, Luane Chuquel; GIMENEZ, Charlise Paula Colet. O Direito
Fraterno e a Justiça Restaurativa como garantia do Direito à Justiça, Memória e Verdade: Análise das
Violações aos Direitos Humanos na Ditadura Militar. In: Revista do departamento de Ciências
Jurídicas e Sociais da Unijuí Direito em Debate. Ano XXIII, nº 42, jul.- dez. 2014.
DIAS, Reginaldo Benedito. A Comissão Nacional da Verdade, a disputa da memória sobre o período
da ditadura e o tempo presente. Revista Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 9, p.71-96,
janeiro-junho, 2013.
HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory. Poetics today, v.29, n.1, p. 28- 103, 2008.
GOMES PINTO, Renato Sócrates. In: LEAL, Rogério Gesta. Verdade, memória e justiça: um
debate necessário. 1. ed., Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012.
LIMA, Juliana. A justiça de transição como um mito na resolução de conflitos: um mito universal? V
Anuário Brasileiro de Direito Internacional. Centro Internacional de Direito Internacional, Belo
Horizonte, vol. 1, n. 8, 2010, p. 97-117.
MELO, Eduardo Rezende. In: LEAL, Rogério Gesta. Verdade, memória e justiça: um debate
necessário. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012.
SARLO, Beatriz. Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras.
Belo Horizonte: UFMG, 2007.
24
TOSI, Giuseppi et. al. Justiça de transição: direito à justiça, à memória e à verdade. João Pessoa:
Editora da UFPB, 2014.
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JUSTIÇA RESTAURATIVA EM PAÍSES COLONIZADOS: UMA JORNADA
PARA A RESPONSABILIZAÇÃO E REPARAÇÃO
Glaucia Mayara Niedermeyer Orth (CEJUSC/PG)1
Paloma Machado Graf (UEPG)2
Introdução
1
Doutora em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), mestra pelo mesmo
programa. Psicóloga do CEJUSC/PG. É facilitadora e instrutora do curso de Justiça Restaurativa pelo TJPR. E-mail:
glauciamno88@gmail.com.
2
Doutoranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), mestra pelo mesmo
programa. Bolsista CAPES. Advogada. Coordenadora do GEJUR/UEPG. É facilitadora e instrutora do curso de Justiça
Restaurativa pelo TJPR e AJURIS. E-mail: palomagraf@hotmail.com
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precisa ser ampliada também para o Estado e que a justiça restaurativa no contexto brasileiro tem o
compromisso de enfrentar o encarceramento em massa, que criminaliza a pobreza e perpetua o status
quo. Isso porque o Estado não pode se fazer conhecer às pessoas somente em seu caráter punitivo, mas
também protetivo, porque este é o fundamento das democracias e da construção da paz. A justiça
restaurativa tem o potencial de ser subversiva e emancipatória por permitir o protagonismo de
populações historicamente marginalizadas pelo Estado e pela sociedade. Entretanto, esse mesmo
potencial só será alcançado com a responsabilização e reciprocidade na garantia de direitos aos seus
cidadãos.
A construção metodológica desta pesquisa possui natureza qualitativa exploratória, por meio
de pesquisa bibliográfica e documental para apresentar provocações críticas e reflexivas sobre a justiça
restaurativa no contexto de um país colonizado, como o Brasil. E, com isso, as vicissitudes que esta
condição traz para a vida coletiva e tudo o que deriva dela, como o atendimento do sistema de justiça
e, no caso deste texto, da justiça restaurativa.
Eduardo Galeano em seu livro “Ser como eles” nos provoca sobre a pretensa vontade (ou
imposição) na América Latina, de ser como eles. Eles quem? O norte global. E por que desejaríamos
ser como eles? Pela economia? Desenvolvimento? Poder? Ora, se os países tidos como pobres e
subdesenvolvidos do sul alcançassem o mesmo nível de consumo e destruição que os ricos do norte, o
planeta não sobreviveria (GALEANO, 2005).
“O precário equilíbrio do mundo, que roda pela beira do abismo, depende da perpetuação da
injustiça” (GALEANO, 2005, p. 11). Para que alguns países possam chafurdar na riqueza, outros são
condenados à miséria e, no intuito de manter esse “equilíbrio”, para que ninguém passe dos limites, o
sistema cria armas e técnicas de guerra que são incapazes de enfrentar a pobreza, mas atacam os
pobres. A sociedade de consumo transforma a cidade em cárceres sem grades – “quem não está preso à
necessidade, está preso ao medo” (GALEANO, 2005, p. 17).
O Estado, outrora paternalista, agora é policial – perpetua a domesticação dos corpos latino-
americanos –, e quem não morre pela fome, é morto por tiro. Transformar a realidade da pobreza,
consequência da colonização e exploração dos recursos, é uma corrida de obstáculos que não tem fim,
pois, “a educação pertence a quem pode pagar por ela; a repressão é exercida contra quem não pode
comprá-la” (GALEANO, 2005, p. 18).
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado no ano de 2020 (FBSP),
no ano de 2019, 8 a cada 10 pessoas mortas pela polícia no Brasil eram negras, e das 6.357 vítimas da
violência policial daquele ano, 99,2% eram homens. Outro dado de destaque é que para cada policial
assassinado no ano de 2019, 37 pessoas foram mortas por também policiais. No entanto, em que pese a
difícil análise de se considerar um parâmetro “aceitável” de letalidade policial, um estudo publicado
pelo FBI nos Estados Unidos da América considera, de acordo com a opinião de especialistas em
segurança pública, que o número “admissível” para esta proporção seria de 1 policial para cada 12
civis assassinados por policiais, enquanto Chevigny (1991 apud FBSP, 2020) aponta que o indicador
maior – de 15 civis para cada um policial – é o resultado do abuso da força letal da polícia. Ou seja, os
dados confirmam que a polícia brasileira mata e morre mais.
Mas como já pontuava Galeano nos anos de 1990, os crimes praticados por milícias quase não
ocorrem em áreas rurais, consideradas “atrasadas”, mas, sim, nas grandes cidades. Isto é, não “onde
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falta o capitalismo, e sim onde sobra” (p. 18). No Brasil, não há previsão legal de pena capital , mas
esta ausência de previsão formal não impede que seja aplicada repetidamente quando se trata de defesa
à propriedade, provocada e estimulada por aqueles que produzem e disseminam o ódio nos meios de
informação com apologia explícita à violência, morte, tortura e extermínio (GALEANO, 2005).
Estamos em plena cultura do enlatado. A cultura do enlatado despreza conteúdo. Importa o que
é dito, e não o que é feito. No Brasil não há pena de morte, nem a terá, segundo a nova
Constituição, mas aplica pena de morte continuamente: a cada dia mata mil crianças de fome, e
de bala mata sabe-se lá quantos homens nos violentos subúrbios de suas cidades e em seus
latifúndios invadidos por camponeses desesperados (GALEANO, 2005, p. 54).
Estes são tempos de desmantelamento do Estado na América Latina. [...] Para evitar que os
invisíveis se façam visíveis, é necessário comprar mais armas e multiplicar o pessoal fardado,
enquanto despencam os fundos públicos destinados à educação, saúde e moradia, e
desaparecem os subsídios aos alimentos. O sistema fabrica pobres e depois declara guerra a
eles. Multiplicam-se os desesperados e os presos. Os cárceres, sucursais do inferno, não
aguentam a superpopulação. No ano passado, explodiram mais de cinqüenta motins nas cadeias
latino-americanas com maiores problemas de superlotação. Os motins deixaram um saldo de
novecentos mortos, quase todos presos, quase todos executados a sangue frio. Os que
restabeleceram a ordem foram elogiados. Dos mortos, alguns haviam cometido crimes que são
brincadeira de criança comparados às façanhas de vários generais condecorados. Outros eram
culpados de roubos que parecem piada, comparados às fraudes de nossos mercadores e
banqueiros mais exitosos, ou com as comissões cobradas por certos políticos que vendem o
país em retalhos. E muitos estavam presos por erro ou por via das dúvidas (GALEANO, 2005,
p. 36)
Os povos indígenas originários foram desumanizados para “disciplinar, adestrar, domar e hoje
pacificar”, sendo essas as expressões mais utilizadas pelos colonialistas em territórios ocupados
(FANON, 1968, p. 261-262). O Brasil, tendo em vista ser um país colonizado, construído e constituído
através do estupro e extinção dos corpos negros e autóctones, que enfrentou uma ditadura militar em
que a tortura foi o principal instrumento de governabilidade e controle, não surpreende ao envergar a
dominação, a desumanização e a violência estrutural e institucional como parte pulsante da formação e
construção do Estado e estratégia de opressão do seu sistema jurídico – ambiente em que quer
construir a justiça restaurativa.
Fanon (1968) esclarece que o futuro de um país descolonizado cria uma burguesia sem
autenticidade, pois ascende ao poder sem oportunizar à sua população “capital intelectual e técnico”
(p. 125) para sua emancipação. Assim, ao utilizar a América Latina como exemplo, Fanon (1968)
aponta o risco da transformação de países colonizados em um território a serviço da burguesia
Salvo em estado de guerra declarada – artigo 5°, inciso XLVII, da CF/88.
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ocidental, pois a burguesia, “cinicamente burguesa” (p. 125), rompe com a unidade nacional e
manipula o “regionalismo” como estratégia de opressão.
Neste território colonizado, a preocupação quanto à justiça restaurativa está relacionada à
possibilidade de reduzi-la a um propósito utilitarista e reprodutor do status quo, sendo, portanto, uma
justiça imposta (ou impostora) e colonizadora, que desconsidera as demandas e as histórias locais,
particularmente relacionadas à violência estrutural, que encarcera e assassina homens jovens, negros e
pobres. O convite e a responsabilidade da justiça restaurativa frente a este contexto é operar fissuras no
projeto institucional de manutenção das desigualdades e de criminalização da pobreza, com um
importante propósito de enfrentar o encarceramento em massa de homens jovens negros.
“Cada geração deve, [...], descobrir a sua missão, executá-la ou traí-la. […] para nós que
tomamos a decisão de romper as rédeas do colonialismo, é regular tôdas as revoltas, todos os atos
desesperados [...].” (FANON, 1968, p. 171-172). Para Fanon (1968), o colonialismo é a “negação
sistematizada do outro, uma decisão furiosa de recusar ao outro qualquer atributo de humanidade, o
colonialismo compele o povo dominado a se interrogar constantemente: ‘Quem sou eu na realidade?’”
(p. 212). Ou seja, não é apenas uma exploração de recursos, territórios e pessoas, mas é o
aniquilamento de toda uma cultura e identidade. Enfrentar o colonialismo e suas consequências é uma
missão – que se cumpre ou trai. Assim, para analisar o colonialismo no contexto latino-americano
deve-se considerar o genocídio, o racismo, a exploração, as opressões, as vozes silenciadas. O racismo,
aliás, é um "patrimônio cultural" herdado da Europa, enquanto “arsenal ideológico europeu de
dominação colonial” (RIBEIRO, 2017, p. 84). Ao assumir o papel de “agente civilizador, o europeu
passou a representar o mundo de fora como habitado por sub-raças que eles eram chamados a
regenerar” (RIBEIRO, 2017, p. 84). Dessa forma, o racismo que aqui se disseminou veio de terras
longínquas e culminou, por sua vez, no fortalecimento de um ideal de branquitude europeu, com o qual
se deseja identificar. “Ser europeu, disse Sartre uma vez, era de fato a única forma natural, normal e
desejável de ser gente. Aos outros faltava alguma coisa essencial que os fazia irremediavelmente
carentes” (RIBEIRO, 2017, p. 95). Ao escrever o prefácio do livro de Frantz Fanon (“Os condenados
da terra”), Sartre – filósofo francês – reconheceu que o europeu se faz europeu “fabricando escravos e
monstros”, universalizando o gênero humano a partir da sua visão de homem e mundo, cuja condição
as "sub-raças" poderiam, talvez, alcançar após mil anos. O sistema opressor, portanto, atravessa as
veias abertas e desafia o povo no encontro de sua humanidade.
Sartre, novamente no prefácio do livro de Fanon, lembra que não faz muito tempo que a "terra
tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos
milhões de indígenas” (1968, p. 3), mas os primeiros tinham o poder da palavra e os segundos
precisavam pedi-la emprestada. Partimos do mirante desta terra a contar do primeiro dano – a
dizimação das primeiras nações que aqui viveram e o estupro dos corpos das mulheres quando na
colonização:
Em outubro de 1992, enquanto o poder cumpria suas obscenas cerimônias de auto- elogio,
celebrando o holocausto dos índios e dos negros, muitas outras celebrações, de signo oposto,
ocorreram no mundo inteiro: elas celebraram a longa resistência e a teimosa dignidade dos
vencidos, e denunciaram que a conquista continua. Uma dessas muitas foi o tribunal que a
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Fundação Basso convocou em Pádua, para discutir o direito internacional, à luz dos quinhentos
anos da conquista da América. O direito internacional, filho do direito da conquista, está
marcado na própria fronte por aquilo que François Rigaux chama de seu pecado original. Nos
acostumaram a esquecer o que merece memória e a recordar o que merece esquecimento, mas
homens e mulheres do Sul e do Norte se reuniram em Pádua a partir da certeza de que o mundo
não é este mundo, mutilada plenitude, humilhada dignidade, nem o direito é este direito, álibi
de um sistema que jamais diz o que faz nem faz o que diz (GALEANO, 2005, p. 52).
Um Estado colonizado que produz e reproduz vítimas de violências, em razão da sua ação ou
omissão, também silencia e sufoca estas mesmas vítimas ao empreender estratégias de esquecimento.
E assim o faz ao transformar vidas em números, relegando dores e histórias ao porão do descrédito, do
marginal, do não legítimo. Os números são tantos e frequentes que uma tragédia é logo sucedida por
outra. A vitrine do dano é substituída por outra e mais outra e mais outra. Enquanto a violência é
enredo que enlaça o telespectador do jornal televisivo, a dor de quem perde seus entes queridos para a
violência é ofuscada e justificada por argumentos perversos do tipo: “mais um CPF cancelado”,
“operação policial mata 25 suspeitos”, “bandido bom é bandido morto". Há ainda os argumentos que
minimizam os danos e a ação violenta, tais como: “Exército atira em carro de família 83 vezes por
engano”, “militares confundem carro de família com bandidos”, “crianças que moram na favela
morrem por balas perdidas”. A comoção inicial destas histórias é logo sucedida pelo seu esquecimento
público e pela permanência das não responsabilizações. A morte de pobres, negros, moradores de
favela é a atualização diária da colonização que dizimou povos indígenas e escravizou negros. Nada de
novo, portanto!
Butler (2020) argumenta que para se opor à violência é preciso compreender as suas
diferentes modalidades, inclusive as violências praticadas para o regulamento da existência – quem
vive e quem morre. Com isso, retrata os “fantasmas raciais e demográficos” (2020, p. 77) como parte
da lógica da violência estatal que utiliza de diversos recursos, inclusive a omissão, frente ao “deixar
morrer” (p. 72), e agir com violência contra aqueles historicamente expostos e subjugados ao poder
letal. Pensar no movimento antirracista e anticapitalista pela não violência é encontrar guarida nos
diversos modos de resistência e de transformação social que dissocia a agressão de sua forma
destrutiva e repensa estratégias inclusivas para a criação de um potencial de vida em uma política
radicalmente igualitária (BUTLER, 2020).
Embora os fatos sejam apresentados neste texto como acontecimentos circunscritos a um
contexto temporal, eles estão intrinsecamente conectados pelo enredo do colonialismo, e são tanto a
expressão dessa colonização quanto a reafirmação deste propósito. A ditadura militar, por exemplo, foi
uma expressão do imperialismo estadunidense em terras abaixo do Equador. Isso porque a ditadura
que ocorreu no Brasil foi mais uma das que ocorreram no mesmo período (tendo como conjuntura
internacional a Guerra Fria): na Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile, Bolívia, Peru, Equador e assim
por diante. Estas ditaduras que vitimaram milhares de pessoas diretamente e que impactaram toda a
vida social destes países, por meio do medo, da passividade e militarização da vida, foram motivadas
pela participação dos Estados Unidos na Guerra Fria, que passaram a se interessar e a se “preocupar”
com a tendência populista e de esquerda que caracteriza(va) os países da América Latina, sendo,
portanto, uma grande ameaça à disseminação do capitalismo mundial. A lei n. 6.683/1979 que
concedeu anistia aos crimes políticos praticados no Brasil no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 relegou todas as atrocidades cometidas em nome da
segurança nacional para o porão do esquecimento, ingrediente explosivo para a exoneração de
responsabilidade. Darcy Ribeiro (2017), ao mencionar uma fala de Hegel sobre a América, traz que a
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América como um todo alcançaria a importância histórica devida após uma guerra entre América do
Norte e América do Sul, rumo à descolonização e anti-imperialismo. Darcy Ribeiro complementa:
“Não sei se precisamos de mais guerra do que a suja guerra declarada que eles travam contra nós. Sei
apenas que, uma vez liberados da opressão imperialista, nós floresceremos e eles também serão
melhores, porque estarão livres [...]” (2017, p. 89). Daí o entendimento que a libertação alcança os dois
lados, os que oprimem e os que são oprimidos.
Outro fato histórico aqui contado é a segunda maior catástrofe nuclear da história – Goiânia,
setembro de 1987. Um tubo de metal foi encontrado por dois catadores em um terreno baldio, que o
quebraram e encontraram em seu interior uma pedra reluzente que expelia um pó brilhante, conhecido
tecnicamente como Césio-173. A pedra foi dividida e entregue de presente para vizinhos que a
esfregavam contra sua pele para ver o seu brilho e luz. No dia seguinte, as pessoas que tiveram contato
com essa pedra vomitavam, inchavam e sentiam seus corpos queimando de dentro para fora – o pó
reluzente continuou a ser disseminado, atingindo pessoas a quilômetros de distância. Nenhuma pessoa
foi responsabilizada por tal fato. A clínica que se desfez do tubo de césio sem as devidas precauções
continuou funcionando regularmente e ninguém assumiu a responsabilidade pela morte e danos
causados às milhares de pessoas que ainda sofrem as sequelas do descaso e esquecimento do Estado.
O ano é 2020 e a Covid-19 gera uma pandemia global que assola milhares de pessoas.
Deixou, apenas no Brasil, de março de 2020 a maio de 2021, mais de 400 mil mortos e 14 milhões de
infectados. O negacionismo e o descaso do governo brasileiro frente às consequências trágicas à saúde
e economia no país lançam o medo, a desinformação e o desprezo como instrumento de controle,
indicando o trágico futuro que nos espera. O plano econômico e social do governo desmantelou o
pouco que sobrava da saúde pública, deixando milhões desempregados em estado de pobreza crítica,
aumentando as desigualdades sociais. Mas, Galeano já alertava: “o desprezo pela vida humana virou
costume. A impunidade se alimenta da fatalidade. Fomos treinados para acreditar que a desgraça é
coisa do destino (2005, p. 35)”. Em verdade, é um projeto.
A não responsabilização face às violências praticadas pelas instituições do Estado no Brasil
nos leva a descrer da justiça. Isso porque, somente no sentir da justiça, da justeza, é que pode ser terra
fértil para a democracia. Se, ao invés da justiça, temos o abandono, o esquecimento e a amnésia,
estaremos fadados a repetir e sofrer os mesmos erros do passado.
Supõe-se que escravidão não existe há um século, mas um terço dos trabalhadores brasileiros
ganha pouco mais de um dólar por dia, e a pirâmide social é branca no topo e negra na base: os
mais ricos são mais brancos, pobres, mais negros. Quatro anos depois abolição, lá por 1892, o
governo brasileiro tinha mandado queimar todos os documentos relacionados com a
escravidão, livros e balanços das empresas negreiras, recibos, regulamentos, ordens etc., como
escravidão não tivesse existido nunca (GALEANO, 2005, p. 54).
“Para que algo não exista, basta decretar que não existe” (GALEANO, 2005, p. 54). Assim,
quando o governo não reconhece as violências praticadas, seja pela ditadura militar, mortes por
policiais ou pandemia, assim crê que não existiram e não assumem a responsabilidade pelos danos
causados à sociedade. Por isso Galeano (2005) atentamente avisa: a “história latino-americana ensina a
desconfiar das palavras” (p. 55).
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) a taxa de desemprego no
Brasil foi de 14,1% no trimestre de setembro a novembro de 2020, com um total estimado de 14 milhões de
desempregados. Esse foi o percentual mais alto para o mesmo trimestre desde o ano de 2012, quando iniciou a série
histórica da pesquisa.
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A linguagem oficial delira, e seu delírio é a normalidade do sistema. “Não haverá
desvalorização”, dizem os ministros de Fazenda, nas vésperas do desmoronamento das moedas.
“A reforma agrária é nosso principal objetivo”, dizem os ministros de Agricultura, enquanto
estendem os latifúndios. “Não existe censura”, celebram os ministros de Cultura, em países
onde para a imensa maioria das pessoas os livros são proibidos pelo preço ou pelo
analfabetismo (GALEANO, 2005, p. 56).
Resta, portanto, a dúvida: como a justiça restaurativa, que necessariamente perpassa por uma
compreensão acerca do processo de cura, responsabilização e atendimento de necessidades, se manterá
coerente com seus princípios se aqueles que estão no poder do movimento restaurativo no Brasil não
proporcionam um debate sobre o processo de reparação e responsabilização acerca do primeiro dano?
Alice Walker, em seu livro “O caminho a seguir é com um coração partido”, diz que “a cura começa onde a ferida foi
feita” (1985, p. 151). Assim, a partir dessa afirmação, reconhecemos que a reparação, assim como a cura, começa a partir
do reconhecimento do local onde o dano foi cometido.
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da justiça restaurativa é simples: se o movimento ignorar o primeiro dano, a legitimidade da justiça
restaurativa dentro dos estados colonizados se tornará insustentável” (VALANDRA; HOKSILA, 2020,
p. 338).
A efetividade e emprego de justiças consideradas transformadoras, restaurativas e
comunitárias condicionam sua estabilidade e coerência ao reconhecimento do Estado quanto aos
primeiros danos praticados na origem e na reparação desses danos. É preciso que o Estado passe por
um processo de responsabilização em face do cometimento e perpetuação das opressões e violências
estruturais e institucionais para enfrentar as desigualdades decorrentes desse processo colonizador,
para então, poder ofertar uma justiça realmente restaurativa.
O Estado brasileiro foi construído com a eliminação da cultura, identidade, estrutura e vida
dos povos originários e elencou a necropolítica como projeto de governo, ao utilizar a eliminação e a
exclusão como ferramenta de operacionalização de suas práticas estrutural e institucionalmente.
Valandra e Hoksila (2020) apregoam que o colonialismo é “uma estrutura, não um acontecimento",
sendo que esta “estrutura assegura a permanência” daqueles que estão no poder através dos tempos à
custa das populações marginalizadas. Desta forma, a responsabilidade dos operadores da justiça
restaurativa reside neste dano, que iniciou no passado, mas não estagnou no tempo, persiste
cotidianamente ao desenvolver novos mecanismos coloniais que perpetuam o genocídio de populações
negras e indígenas.
Posto isso, para reparar o dano que impede a verdadeira conexão do Estado com a justiça
restaurativa é preciso que os sujeitos, principalmente os brancos em postos de poder, assumam
consciência crítica acerca da sua branquitude para enfrentar os danos políticos e sociais que assolam as
nações colonizadas ao compreender a resposta restaurativa para além das responsabilidades individuais
(VALANDRA; HOKSILA, 2020).
Ao mesmo tempo em que a justiça restaurativa traz consigo um potencial emancipatório e
subversivo, ao permitir o protagonismo de populações historicamente marginalizadas pelo Estado e
pela sociedade, por oportunizar ouvidos às suas vozes e poder de decisão sobre o encaminhamento dos
conflitos sociais nos quais tomam parte, esse mesmo potencial só será alcançado com a
responsabilização e reciprocidade do Estado. Ao trazer o foco da questão para a justiça juvenil,
Vicentin et al. (2012) problematizaram a responsabilização em contextos de vulnerabilidade social e,
com isso, reconheceram que a intervenção da justiça juvenil restaurativa pressupõe responsabilização
compartilhada, inclusive com o Estado, e que na ausência da responsabilização do Estado na oferta de
políticas públicas, a justiça juvenil restaurativa dificilmente alcança o seu propósito teórico. Sem o
olhar atento a estas vulnerabilidades que decorrem das desigualdades sociais, historicamente
fortalecidas e reiteradas no país, a justiça restaurativa transforma-se em uma forma "normalizante" de
justiça, que culpabiliza ofensores e familiares por eventuais "fracassos" diante do cumprimento de
acordos, na ausência da reciprocidade do Estado.
Boonen (2020), ao escrever o capítulo “Sulear a justiça restaurativa é ampliar suas
abordagens”, traz uma série de questionamentos acerca das contribuições e lacunas da segunda edição
do manual “Handbook on Restorative Justice Programmes” (UNODC, 2020), ao refletir sobre os seus
impactos no desenvolvimento da justiça restaurativa, a partir do sul global, tendo em vista o contexto
de desigualdade social. Boonen (2020) traz ao texto o compromisso da justiça restaurativa com o
desencarceramento, em se tratando do contexto brasileiro, ao apontar que são os homens jovens,
negros, com baixa escolaridade e pobres que estão privados de liberdade em prisões superlotadas no
país. Neste contexto, a justiça restaurativa traz uma "centelha de luz", mas corre o risco de ser
adaptada à lógica de funcionamento do sistema de justiça criminal, que aliena as pessoas da
34
possibilidade de gerenciar seus próprios conflitos, se não se lembrar de suas origens – destaque para a
criminologia crítica e o abolicionismo penal –, e não ousar questionar e provocar os formuladores de
políticas públicas quanto à realidade do solo em que pisam: a exclusão social, o encarceramento em
massa e a criminalização da pobreza. Segundo Boonen (2020), a responsabilização, que é um objetivo
alcançado pela justiça restaurativa, precisa ser ampliada quando se trata do contexto brasileiro,
estendido aos demais países da América Latina, permeado pela desigualdade e por violências
estruturais. Como os danos são muitos, os esforços de reparação precisam ser igualmente grandes. É
insuficiente adotar a responsabilização pela perspectiva individual do ofensor quando, por trás, está
todo um contexto de vulnerabilidade que motiva e sustenta uma vida à margem da legalidade. Esta
lente restrita às pessoas diretamente envolvidas não é capaz de arranhar as estruturas desiguais do
Estado. Daí que Boonen (2020) propõe a ampliação do número de participantes e das suas
representações, para contemplar a rede de proteção social, para que cada ente possa assumir as
responsabilidades de acordo com a posição e cargo que ocupa.
De forma semelhante, Orth (2020) defende a tese de enfrentamento às fragilizações dos
vínculos familiares, comunitários e sociais que rondam o ato infracional em contexto de
vulnerabilidade social, sem o qual a justiça restaurativa torna-se impotente, se compreendemos por
potência a emancipação, o protagonismo, o acesso aos bens sociais, aos bons afetos, à alegria…
Assim, Orth (2020) propõe a articulação da rede de proteção social e o efetivo acompanhamento do
adolescente autor de ato infracional e seus familiares, como imprescindíveis ao êxito da intervenção
trazida pela justiça restaurativa, a fim de que promova a aquisição de bens sociais às famílias dos
adolescentes autores de ato infracional, e assim tenham condições de desenvolver suas capacidades,
entrando em contato com a produção cultural, material e intelectual proporcionada pelo
desenvolvimento histórico da humanidade. Isso porque reconhece, com Silva e Oliveira (2015), a
vulnerabilidade social como uma categoria mediadora entre a desigualdade social e a violência. Orth
(2020) conclui que a justiça restaurativa na socioeducação tem o potencial de visibilizar histórias de
vida, dos adolescentes e seus familiares, e pode ser um espaço para a ampliação da noção de
responsabilização, que transcende os envolvidos diretamente, para incluir o Estado. “Isso porque as
histórias dos adolescentes e suas famílias trazem a dimensão subjetiva, do particular, mas também
apresentam uma dimensão coletiva, relacionada à conjuntura econômica do país e às escolhas políticas
que são feitas” (ORTH, 2020, p. 214). Boonen (2020) acrescenta que estas questões acima postas, e
que pertencem às “dimensões estrutural e cultural, precisam ser consideradas, pois a construção de
uma justiça que restaura tem que estar relacionada à instauração de direitos sociais capazes de reverter
níveis de violência e elevar os de segurança pública” (p. 44).
Na verdade, todos precisamos ser despertados para identificar e transpassar a cegueira, a surdez
e o silêncio cúmplice que, se não impossibilitam, pelo menos dificultam que as práticas
restaurativas sejam verdadeiramente reparadoras de necessidades, injustiças e violências. Isso
pede um esforço de trocar as lentes diversas vezes; além de olhar para as necessidades das
pessoas envolvidas, as lentes têm que ser telescópicas, para projetar um futuro e realizar ações
que permitam interromper a reprodução da violência estrutural (BOONEN, 2020, p. 46).
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Referências
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Glaucia Mayara Niedermeyer; GRAF, Paloma Machado (org.). Sulear a justiça restaurativa: as
contribuições latino-americanas para a construção do movimento restaurativo. Ponta Grossa: Texto e
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BUTLER, Judith. The force of nonviolence: an ethico-political bind. Brooklyn: Verso Books, 2020.
140p.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Trad. de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
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https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/4-as-mortes-decorrentes-de- intervencao-
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GALEANO, Eduardo. Ser como eles. 3ª ed. Editora: Revan, 2005. 160p.
ORTH, Glaucia Mayara Niedermeyer; BOURGUIGNON, Jussara Ayres; GRAF, Paloma Machado. O
sul também existe: intersecção entre o pensamento Suleador e as práticas restaurativas no Brasil. In:
Sulear a Justiça Restaurativa: as contribuições latino-americanas para a construção do movimento
restaurativo. Org. ORTH, Glaucia Mayara Niedermeyer; GRAF, Paloma Machado. 2020. Editora
Texto e Contexto. Disponível em: https://www.textoecontextoeditora.com.br/produto/detalhe/sulear-a-
justica-restaurativa-as- contribuicoes-latino-americanas-para-a-construcao-do-movimento-
restaurativo/43. Acesso em 04 jan. 2021.
RIBEIRO, Darcy. América Latina: a pátria grande. 3 ed. São Paulo: Global, 2017.
SARTRE, Jean Paul. Prefácio. In: FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Trad. de José Laurênio
de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
SILVA, Enid Rocha Andrade da; OLIVEIRA, Raissa Menezes de. O Adolescente em conflito com a
lei e o debate sobre a redução da maioridade penal: esclarecimentos necessários.
38
IPEA: Nota Técnica, Brasília, 2015. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/150616_nt_maiorida de_penal.pdf.
Acesso em: 12 mai. 2021.
VALANDRA, Edward C.; HOKSÍLA, Waŋbli Wapȟáha. Undoing The First Harm: Settlers in
Restorative Justice. In: Colorizing restorative justice: voicing our realities. Edward C. Valandra
(org.). Living Justice Press, 2020.
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JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL: UM
DIÁLOGO COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 (POR UM
CONSTITUCIONALISMO RESTAURATIVO)
Luís Fernando Bravo de Barros1
Marina Dias2
Introdução
Viemos do campo do Direito, uma advogada e um advogado dedicados, ao longo das nossas
carreiras, à defesa criminal, incomodados com o testemunho da vivência profissional diante de um
sistema – legitimado pela linguagem jurídica – que promove violência em nome de uma certa justiça.
Nossa busca e exploração têm sido por possibilidades de se lidar com os conflitos que batem à porta
do Judiciário sem depender de mecanismos baseados na estigmatização e na humilhação,
especialmente os punitivistas. Nossa percepção é de que muitas dessas possibilidades já se fazem
viáveis em alguns poucos lugares presentes, geralmente ofuscadas por resistências institucionais e
justificações jurídicas, especialmente em relação ao sistema de justiça criminal.
Seu caráter hermético proporciona ao Direito uma crença de autossuficiência quase que
invencível, acreditando que, no seu universo de abstrações com argumentos, sínteses, teorias e
dogmas, há resposta para todos os problemas da experiência humana. Uma autopromoção da sua
própria e infalível validade, sem, obviamente, questionar muitas das premissas básicas originárias de
suas crenças e mitos sustentadores, especialmente para a preservação da justiça punitivista3.
São muitos os esforços de interpretação jurídica, para não dizer de hermenêutica, na busca por
aplicação da justiça restaurativa no âmbito do sistema de justiça criminal, muitas das vezes a
desembocar no beco sem saída do derrotismo. No ordenamento vigente, o princípio da obrigatoriedade
da ação penal seria um impedimento intransponível para se considerar caminhos alternativos à
persecução penal para se lidar com episódios conflituosos rotulados como criminalmente relevantes
(JESUS, 2016; ANDRADE, 2018; GOMES PINTO, 2005), entendimento que caminha lado a lado
1
Advogado criminal, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2004); possui pós-graduação (latu-
sensu) em Direito Internacional pelo Centro de Direito Internacional (CEDIN), de Belo Horizonte/MG (2011); Mestrado de
Estudos Avançados em Paz e Transformação de Conflitos pela Universidade da Basiléia, Suíça (2015); Mestrado em Paz,
Desenvolvimento, Segurança e Transformação Internacional de Conflitos pela Cátedra de Estudos de Paz da UNESCO da
Universidade de Innsbruck, Áustria (2017). Fundador da consultoria Karutana - escutar, dialogar, transformar. Atua como
consultor da Comissão de Justiça Restaurativa da OAB/SP e como facilitador e educador em programas de Justiça
Restaurativa no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo (CDHEP).
2
Advogada criminal, formada em Direito pela PUC/SP (1997). Foi sócia do escritório Dias e Carvalho Filho. Atualmente
está na diretoria executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), tendo exercido a Presidência e integrado o
Conselho Deliberativo da Instituição. Consultora da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, integrou o Conselho da
Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo (2013/2017). Idealizadora e produtora executiva do documentário Sem Pena
(2014). Formada em Justiça Restaurativa pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo-CDHEP
(2015), em Mediação de Conflitos, Facilitação de Diálogo e Construção de Consenso pela Palas Athena (2015). Possui pós-
graduação (latu sensu) em Transformação de Conflitos, Estudos de Paz e Equilíbrio Emocional, do Instituto Paz & Mente,
em parceria com a cátedra de Paz da UNESCO, Universidade de Innsbruck e Instituto Santa Barbara (EUA). Mestranda
(MA) em Paz, Desenvolvimento, Segurança e Transformação Internacional de Conflitos pela Cátedra de Estudos de Paz da
UNESCO da Universidade de Innsbruck, Áustria (2021). Fundadora da consultoria Karutana - escutar, dialogar,
transformar.
3
Ana Messuti evidencia o caráter mítico, geralmente inquestionado, da justiça punitivista: "A racionalidade jurídica produz
um discurso coerente e fechado, não por um funcionamento técnico determinado, senão porque essa racionalidade está
inscrita em um universo predeterminado pelo desejo e pelas crenças: o universo do mito" (2008, p. 63).
41
com a narrativa de que, mais adequado à justiça restaurativa, somente crimes classificados como
menos graves ou de menor potencial ofensivo4 (GOMES PINTO, 2005; AZEVEDO, 2016).
Entendemos que o princípio da obrigatoriedade da ação penal não é irrefutável, menos ainda
sob uma perspectiva constitucional. É um artifício, sustentado doutrina e jurisprudencialmente:
construto resultante de um contexto histórico jurídico específico, balizado por um foco punitivista,
portanto circunstancial e não absoluto (MESSUTI, 2008; VATTIMO, 2006; FOUCAULT, 2002;
BARROSO, 2001).
Para nortear nosso esforço reflexivo e problematizador, propomos a seguinte pergunta: a
Constituição Federal de 1988 estabelece elementos para a aplicação da justiça restaurativa no sistema
de justiça criminal como um todo, de maneira alternativa ao caminho persecutório?
Nós nos propusemos a uma leitura do texto constitucional, não hermenêutica, não dogmática,
para pensar um diálogo entre a visão de mundo retributiva e a restaurativa a partir de outras
perspectivas que permitam e, mais ainda, convidem à aplicação imediata da justiça restaurativa a
conflitos que aportam ao sistema de justiça criminal. Em harmonia com o nosso entendimento da
proposta da justiça restaurativa, nosso sucinto esforço se baseia num engajamento dialógico
interdisciplinar com autores e autoras de diversas áreas do conhecimento humano, para além das
ciências jurídicas5. Sobretudo, nos inspiramos nas nossas biografias e experiências no âmbito jurídico
e no trabalho com justiça restaurativa.
Compreendemos que, por conta de visões ideológicas e políticas manifestas
institucionalmente, e legitimadas socialmente, há uma série de resistências a serem encaradas, e isso
pede por coragem social por parte de quem não quer mais legitimar discursos punitivistas e, mais
especificamente, por parte das operadoras e operadores dos sistemas de justiça que se identificam com
a proposta de justiça restaurativa6. Falando da nossa própria experiência, e da invocação que nos levou
a trabalhar com justiça restaurativa, entendemos que a mobilização precípua para seguir por esse
caminho deve partir de olhares extrajurídicos para, então, se engajar dialogicamente com a gramática
do Direito. A proposta e o convite da justiça restaurativa precisam ser incorporados, gerando uma
inspiração realizadora para além da racionalidade jurídica.
Fazemos questão de dizer com todas as letras: praticar justiça restaurativa no sistema de
justiça criminal como um todo, em substituição à via punitiva, não é algo ilegal – ao contrário.
1. Azimute
4
Em tendência parecida, percebemos a separação conceitual, feita por Reynaldo Soares da Fonseca (2020), ministro do
Superior Tribunal de Justiça, entre macrocriminalidade e criminalidade comum: a aplicação da justiça restaurativa
adequada apenas a esta última categoria.
5
Estudos de paz e conflito, antropologia, psicologia, história, ciências políticas, biologia, para citar algumas.
6
Tem sido gratificante e inspirador testemunhar esse tipo de interesse e engajamento nas diversas ambiências institucionais
com as quais interagimos em trabalhos e esforços nos quais participamos para a viabilização e consolidação de iniciativas
de justiça restaurativa no sistema de justiça, na academia, em núcleos comunitários etc.
7
Reta razão acessível, na sua plenitude, por homens brancos europeus, historicamente falando, a revelar muito do propósito
eurocêntrico, colonialista e patriarcal desse termo (DIETRICH, 2012; WALKER, 1985).
42
Direito Natural1. Descrito por Vicente Rao como “um conjunto de princípios supremos, universais, e
necessários que, extraídos da natureza humana pela razão, ora inspiram o direito positivo, ora por este
direito são imediatamente aplicados, quando definem os direitos fundamentais do homem” (1999, p.
70); e por Miguel Reale como “constantes ou invariantes axiológicas (...) delas se originando os
princípios gerais de direito, comuns a todos os ordenamentos jurídicos” (1998, p. 316).
“Princípios supremos e universais”, “comuns a todos os ordenamentos jurídicos”. Qualidades
generalizantes e uniformizantes a caracterizarem uma espécie de objetividade classificada como
transcendental8 pelo biólogo chileno Humberto Maturana (2002). Por conta desse distanciamento entre
o lugar do observador humano e a metafísica de um mundo ideal a ser acessada e traduzida para a
realidade convivencial, a humanidade deve se resignar impotente diante da grandiloquência absoluta
dessas aspirações supremas necessárias para o nosso bom viver, contatadas e traduzidas por
pouquíssimos especialistas (geralmente homens brancos europeus). Isso impõe uma escala de
regramentos que, na mecânica estruturante dos Estados-nação ocidentalizados, se traduz numa
hierarquia de regras mundanas, geralmente ilustrada pela pirâmide das normas jurídicas de Hans
Kelsen, sendo o texto constitucional o seu ápice (REALE, 1998).
Por isso, falar sobre norma constitucional a partir desse viés é lidar com um elemento quase
que sagrado, e verdadeiramente essencial à objetividade transcendental inerente à lógica jurídica
tradicional. Conscientes desse desafio, por mais audacioso que possa parecer, nos propomos a não
submeter o potencial restaurativo de trabalho com conflito a essa monolatria jurídica9. Buscamos ir
além desse reducionismo, com o intuito de explorarmos possibilidades de diálogo com elementos do
texto constitucional que, ao mesmo tempo, permitam considerar saberes e referências diversas de
maneira horizontalizada e criativa, no almejo por caminhos que permitam construções de pazes e de
justiça, de forma a fazer sentido para as pessoas envolvidas em dado conflito. Isso pede por
perspectivas não subalternas e, ao mesmo tempo, dispostas a acolher o propósito de certas
necessidades convivenciais, as quais o Direito é invocado a atender em determinada circunstância
histórica e cultural. Tem-se, assim, a importância de se perceber o Direito como construção de
conhecimento a ser contextualizado à contingência humana que o concebe e o expressa, e não,
automaticamente, como manifestação suprema de poder impositivo (FOUCAULT, 2002); ou, nos
termos de Humberto Maturana, para sintetizar a ideia de objetividade transcendental, como “caminho
explicativo pelo qual uma pretensão de conhecimento se torna uma demanda por obediência” (2002, p.
22).
Considerando a tomada de outras perspectivas como oportunidades de se explorar
proficuamente novas respostas, Carolyn Boyes Watson (2004) se refere à aparente dissonância entre as
visões de mundo do direito tradicional e da justiça restaurativa como “tensões criativas.” Uma postura
ética, para dialogar com Humberto Maturana, a reconhecer que “um dissenso explicativo é um convite
a uma reflexão responsável em coexistência, e não uma negação irresponsável do outro” (2002, p. 26).
Um convite que identificamos com o engajamento dialético de “pensamento fraco” proposto
por Gianni Vattimo (2006). Um dar-se conta da finitude, fluidez, e constante transição da nossa
1
Rotulado assim para denotar esse destacamento entre o ser humano observador e o objeto metafísico, numa natureza
idealizada, a ser apreendido pela capacidade racional humana (DIETRICH, 2012).
8
A negar o dinamismo impermanente e contingencial da prática do viver, inerente à realidade biocultural humana: um ciclo
complexo e sofisticado de retroalimentação entre a experiência vivida, o repertório biográfico que calibra a lente de quem a
vive e a observa, e a elaboração de conceitos para explicá-la. Daí o fato de Humberto Maturana (2002) denominar a
objetividade como argumento para obrigar.
9
Monolatria que Orlando Villas Bôas Filho descreve, com base no trabalho de Étienne Le Roy, como “unitarismo,
consistente na tendência intelectual de reduzir a diversidade das formas do social à unidade imposta de uma categoria à
qual se imputa ser a unidade dessa diversidade” (2014, p. 311).
43
condição relacional humana. Uma busca não por suplantar (algo que, quase inexoravelmente, leva a
novas tendências uniformizadoras), mas por retorcer símbolos e referências já existentes com, e por
novos esforços de reflexão engajados pela consciência dos elementos contextuais e contingenciais.
Pensamento fraco, assim, por perceber-se não absoluto e universal, e sim circunstancial às dinâmicas
do momento.
Abrir-se à riqueza de possibilidades que o reconhecimento de pluralidades proporciona não
significa preterir a necessidade humana por delimitações em dado contexto e ambiente relacional
(DIETRICH, 2014)10. Por exemplo, cultivar a sensação de segurança pode ser pensado como
construção de vínculos de cuidado, em respeito ao que faça sentido às pessoas, para que tenham mais
clareza e confiança nas suas interações (ELLIOTT, 2018). Promover justiça, por sua vez, pode ser
pensado como um esforço curativo na busca por reequilíbrio e (re)construção do que seja o justo para
dado contexto (HUCULAK, 2005). Tais caminhos se apresentam com grande potencial transformador,
especialmente pensando nos desafios inerentes ao trabalho aplicado com conflitos.
Pensamos esses elementos como balizas a uma possível ética de não violência11, que servem
como nortes importantes para como pretendemos navegar ao longo dessa nossa exploração reflexiva.
2. Paz constitucional
A qual tipo de paz serve o Direito? Uma reflexão importante, pois, ainda que seja um dos
elementos basilares para a legitimação de todo aparato jurídico, como estrutura idealizada para a
realização de um dito bem comum, pouco se fala sobre paz nos bancos da faculdade, nas doutrinas e
nas decisões judiciais. Na verdade, presume-se uma significação, etimológica e culturalmente falando,
intrínseca à mãe da palavra paz, na língua portuguesa: a pax do latim. Significação essa baseada na
ideia monolítica e singularizada de paz, derivada de um controle institucional centralizado
originariamente concebido para colonizar e conquistar1.
De fato, sob uma perspectiva histórica, o direito ocidental, como o entendemos, foi
concebido, nos seus primórdios romanos, para servir a essa ideia monolítica de paz (DIETRICH, 2012;
MUÑOZ; MOLINA, 2014). O conceito amplo do que hoje chamamos de tradição romano-germânica
foi perpetuado e impulsionado para os tempos atuais, preservando muito do seu cerne original, por
uma continuidade dada à iniciativa de compilação jurídica realizada pelo imperador bizantino
Justiniano I, no século VI, intitulada corpus iuris civilis. O historiador do Direito René David sintetiza:
“a família de direito romano-germânica [...] formou-se graças aos esforços das universidades
europeias, que elaboraram e desenvolveram a partir do século XII, com base em compilações do
imperador Justiniano, uma ciência jurídica comum a todos” (2002, p. 23)12.
10
Nesse sentido, a limitação epistêmica do Direito para dizer o que é bom para as pessoas (juridicidade), conforme Orlando
Villas Boas Filho, em diálogo com Étienne Le Roy: “a juridicidade é mais ampla que a concepção do direito desenvolvida
nas sociedades ocidentais de modo a abarcá-la” (2014, p. 298).
11
De toda amplitude, prática e teórica, que delineia a filosofia da não violência e o ativismo não violento, talvez o principal
a ser posto aqui seja: não violência não significa submissão ou passividade; não violência pressupõe engajamento ativo na
busca por transformação com o compromisso de não violentar pessoas (MULLER, 2006; GALTUNG, 1996). Uma
proposta ressonante com – para não dizer inspiradora de – o movimento moderno de justiça restaurativa (ZEHR, 2013).
1
Diante de qualquer recusa ou resistência à empreitada colonizadora e/ou conquistadora, esse mesmo sistema foi
estruturado para guerrear: estabelecendo critérios (mais ou menos explícitos) para rotular o inimigo, exterminá-lo e/ou
escravizá-lo. Daí a ideia, expressa em um famoso aforisma em latim registrado na obra De Re Militari, publicada no século
IV, de Flavius Vegetius (mas, fluente na cultura romana desde o período da República), corrente até hoje no nosso
(in)consciente coletivo, si vis pace para bellum: se quer paz, prepare-se para a guerra (DIETRICH, 2012; SUMMY, 2013;
GOLDSWORTHY, 2020; SOUZA et al., 2017).
12
Não por acaso, fazemos parte de uma geração que cursou a disciplina Direito Romano na faculdade.
44
Nossa intenção com isso é sublinhar que os referenciais de como se pensar paz
necessariamente afetam o como pensar a elaboração de formas para se lidar com conflitos.
Então, considerando os diversos significados atrelados ao que paz pode representar em
diversos idiomas, contextos sociais, institucionais e culturais, abre-se oportunidade para se expandir as
possibilidades de entendê-la e de vivê-la13. Neste sentido, nos identificamos com a proposta teórica da
filosofia das muitas pazes, de Wolfgang Dietrich (2012; 2014), que aqui não depuraremos
detalhadamente14, mas que nos convida a uma perspectiva mais abrangente para se pensar uma
polissemia de pazes, para além da paz (no singular) que, em grande medida, sustenta a visão jurídica
do mundo ocidental, e mais especificamente a concepção de justiça punitivista. Diante da pluralidade
de pazes, uma pluralidade de caminhos para se lidar com o conflito de maneira menos centralizada e
prescritiva, e mais contextualizada, participativa e, possivelmente, restaurativa (DIETRICH, 2013;
CHRISTIE, 1977; LEDERACH, 2011; ZEHR, 2008).
De qualquer forma, essa visão de paz singularizada, em que pese eventuais releituras e
variações instrumentais, tem sido (re)transmitida ao longo da história, especialmente ocidental. E, no
caso do Estado-nação brasileiro – fundado em alicerces de colonialismo e dominação (SCHWARCZ,
2019; ALMEIDA, 2019; VENTURA, 1988; BRUM, 2019) – para, dentre outras coisas, promover
ordem, justiça e segurança por intermédio de violências pacificadoras, legitimadas pelo discurso
jurídico (SOUZA et al., 2017; GRONDIN, VIEZZER, 2018; KRENAK, 2018; SOARES, 2019;
SANTOS, 2002; PERALVA, 2000; ZALUAR, 2002).
No texto da Constituição Federal de 1988, a palavra paz15 aparece dez vezes, todas elas como
antônimo de guerra ou de desordem social. Isso diz muito sobre como, modernamente, a ideia de paz
se articulou reciprocamente com um elemento chave ao conceito de Estado-nação: o de soberania.
O conceito de soberania, originariamente, deriva da ideia ocidentalizada de império.
Modernamente, para se incorporar ao discurso político de democracia, ele tem sido reelaborado como
manifestação da razão humana para a legitimação da autodeterminação coletiva (MBEMBE, 2016)16.
A visão de mundo imperialista, na sua origem, articulada para justificar expansão pela
conquista e controle pela violência, foi concebida com base em ideias de relacionalidade
condicionadas por escalas de valência humana e por conveniências de dominação. A partir daí, o
cultivo de conceitos a definir o outro, o inimigo, para permitir vazão a discursos e estruturas políticas
determinadoras – e justificadoras – de quem é mais ou menos humano, de quem pode ou não ser
exterminado, expulso, segregado ou escravizado, para, com base em um medo coletivizado, proteger o
grupo e manter a paz, evitando ameaças e/ou promovendo vinganças (MULLER, 2006; DIETRICH,
2012; MBEMBE, 2016).
Visão de mundo que, desdobrada histórico e filosoficamente, passou a alimentar crenças
sobre a essência humana como sendo inerentemente egoísta, individualista e violenta17. Uma visão
13
Individualmente falando, cada pessoa remete seu entendimento de paz a experiências de vida muito diferentes, nem todas
(provavelmente a grande minoria) reduzindo sua ideia de paz, exclusivamente, a uma experiência condicionada por algum
tipo de intervenção de um ente institucional centralizador.
14
Para uma leitura introdutória à filosofia das muitas pazes e a correlata teoria da transnacionalidade, seu artigo traduzido
para o português “Uma breve introdução à pesquisa sobre paz transracional e transformação elicitiva de conflito”
(DIETRICH, 2018).
15
Dissociada do termo juiz – ou justiça – de paz.
16
Algo a recrudescer ainda mais o caráter autossuficiente, hermético e monolátrico, do discurso jurídico, pois, formalmente
falando, legitimado pela concepção de estado como manifestação suprema de exercício de poder: “Soberania é, portanto,
definida como um duplo processo de ‘autoinstituição’ e ‘autolimitação’ (fixando em si os próprios limites para si mesmo)”
(MBEMBE, 2016, p. 124).
17
Um pessimismo antropológico cada vez mais desconstruído pelo reconhecimento da sua origem cultural, e não
essencialista. Isto é, a violência não sendo uma característica inerente à natureza humana, mas uma construção cultural.
45
revigorada para a devida composição do conceito de Estado-nação moderno, ilustrada na imagem de
estado de natureza de Thomas Hobbes18, e simplificada pela fórmula elementar de Estado apresentada
por Max Weber, em 1919, como “comunidade humana que se atribui (com êxito) o monopólio
legítimo da violência física, nos limites de um território definido” (2003, p. 09). Diria Achille Mbembe
que “em configurações como essas, a violência constitui a forma original do direito, e a exceção
proporciona a estrutura da soberania” (2016, p. 135).
As mesmas construções jurídicas que consideravam as culturas aborígenes como selvagens e
incivilizadas e serviram de alicerce para a exploração colonial durante os séculos XV e XVI,
permitindo tanto a escravidão e genocídio dos seus povos como a predação ambiental dos seus
habitats, continuaram – como ainda continuam – a permear discursos jurídicos e políticos, com todas
as (destrutivas) consequências estruturais de institucionalização da violência advindas disso
(FERRAJOLI, 2010).
Desde a cristalização dos estados nação, o conceito de soberania se desenvolveu de maneiras
particulares para lidar com a figura do inimigo no âmbito doméstico e internacional, e legitimar o uso
da violência por meio de discursos de paz (DIETRICH, 2012). Luigi Ferrajoli (2007) classifica essas
duas expressões de soberania, respectivamente, como interna e externa, e explica como, ao longo da
experiência moderna, o direito e a política se articulam para regulamentar e controlar, em maior ou
menor medida, a expressão da violência institucional das entidades estatais no cenário internacional e
no âmbito doméstico: nesta última esfera, uma mais robusta construção de normas para a proteção de
direitos individuais perante o poder estatal.
O que achamos importante salientar é a origem comum a ambas as manifestações de
soberania. A justificação da violência para proteção e defesa contra o inimigo externo se serve da
mesma lógica para justificar a violência contra o inimigo doméstico: a lógica da guerra. Ainda que o
exercício institucionalizado da soberania interna, nos dizeres de Ferrajoli (2007) tenha, ultimamente,
sido contornado por delimitações normativas, as estruturas estatais, especialmente as dedicadas a
políticas de justiça criminal e segurança pública, parecem buscar paz preparando-se para guerra.
Importante depreender como o discurso político-jurídico moderno é influenciado pelos
elementos fundacionais e imagéticos em torno do conceito de soberania, inclusive os textos
constitucionais (HOWARTH, 2000). No texto da Constituição de 1988, muitas são as tensões entre
disposições mais humanizadoras a exprimir cuidados a serem respeitados, evocando o papel do Estado
para relações garantidoras e emancipatórias de direitos, e passagens perpetuadoras de tendências
colonizadoras e autoritárias, arraigadas cultural e estruturalmente na formação do Estado brasileiro.
Como exemplo, podemos citar o Capítulo sobre Segurança Pública, no âmbito do Título da Defesa do
Estado e das Instituições Democráticas19.
Nesse sentido, a constatação de que a violência não é uma inevitabilidade da experiência humana, a reduz a uma escolha
ética abrindo caminhos, assim, para o potencial ético de convivencialidade não violenta. Talvez, o mais significativo marco
dessa postura de saber científico seja a Declaração de Sevilha sobre violência, resultante de um encontro de estudiosos das
mais diversas áreas do conhecimento humano, promovido pela UNESCO em 1986 na capital da Andaluzia, engajados na
exploração sobre violência na experiência humana (COMITÊ PAULISTA PARA A DÉCADA DA CULTURA DE PAZ,
2001).
18
Alegorizada na sua mais famosa obra “O Leviatã” de 1651 (HOBBES, 2003), e difundida no imagético popular ocidental
pelo aforisma, veiculado em outro livro intitulado “Do Cidadão” de 1641 (HOBBES, 1998), “o homem é o lobo do
homem,” retirado por Hobbes da comédia “Asinaria,” de 194 A.C., do dramaturgo romano Tito Maccius Plauto. Dessa sua
crença a justificar a inevitabilidade da violência como instrumento de sobrevivência, continua ele: “as pessoas de bem
devem defender-se usando, como santuário, as duas filhas da guerra, a mentira e a violência – ou seja, para falar sem
rodeios, recorrendo à mesma rapina das feras” (HOBBES, 1998, p. 2- 3).
19
Não à toa, o texto constitucional fala de defesa do Estado, e não de defesa das pessoas.
46
Neste pedaço da Carta de 1988, a manutenção de policiamento ostensivo de forma
militarizada, vinculando as polícias ao exército por regramento infraconstitucional vigente, ajuda a
perpetuar, em certa medida, a Doutrina de Segurança Nacional instilada na Constituição predecessora,
de 1967, promulgada em meio a um regime de exceção (SOARES, 2019; SOUZA, 2020). Para
Adilson Paes de Souza, oficial da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo,
constitucionalmente falando, “o processo de militarização iniciado em 1930, que perdurou até o fim da
década de 1960, com o recrudescimento da repressão estatal na ditadura, e que prosseguiu na década
1970 até o final da ditadura, permaneceu inalterado” (2020, p. 30).
Compreensível, por exemplo, que um dos mais notórios nomes do Direito Constitucional
brasileiro, recentemente, tenha publicamente manifestado, sem acanhamento20, seu entendimento de
que as Forças Armadas estariam constitucionalmente legitimadas para agir como poder moderador na
garantia da lei e da ordem, se solicitadas por algum outro poder da república, na missão de “proteção
da soberania nacional” (MARTINS, 2020).
Promovemos esse tipo de provocação com o intuito de nos darmos conta de elementos
conceituais, muitos deles velados e implícitos, subjacentes a importantes institutos jurídicos para,
trazendo-os à tona, olhá-los com mais clareza, melhor entendê-los e pensar em caminhos de
transformação21. O que, definitivamente, não significa uma resignação à dita violência pacificadora tão
institucionalmente arraigada no sistema de justiça criminal que, aqui, buscamos desnaturalizar.
A fisiologia constitucional que habita o texto de 1988 é repleta de paradoxos, pois é um
amálgama composto tanto por conceituações mais positivistas, baseadas no poder pela força, quanto
por direcionamentos pós-modernos e propostas mais garantidoras de dignidade humana (BARROSO,
2001; FERRAJOLI, 2018). Em meio a essa tensão de sentidos, há elementos presentes em seu
preâmbulo, dentre eles o princípio da resolução pacífica de conflitos, que entendemos como
norteadores de interpretações e aplicações abertas a outras ideias de pazes, não dependentes – pelo
menos não exclusivamente – da instrumentalização institucionalizada da violência.
20
Reiterando não se tratar de um rompante de momento, já que tem sido o entendimento que sempre defendeu, como
jurista, advogado e professor universitário, desde a promulgação da Constituição de 1988 (MARTINS, 2020).
21
Diríamos de retorção e transformação, para dialogar com Gianni Váttimo (VÁTTIMO, 2006; DIETRICH, 2012).
47
criminal, por ordem, por segurança, por paz... A percepção, talvez, de que as vias da violência
institucionalizada não estejam se mostrando eficazes para o alcance dos objetivos a que se propuseram.
Dentre outras, uma repercussão normativa relevante foi a Resolução do CNJ nº 288/2019, aprovada
com o intuito de pautar uma política para a aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo,
em substituição à privação de liberdade.
Mesmo assim, continua nos surpreendendo como os discursos correntes, e muitas plataformas
políticas, se agarram com unhas e dentes22 à lógica punitivista que vem se demonstrando não
preventiva, não solucionadora, não ressocializadora, extremamente custosa, racista e segregacionista
(ZALUAR, 2002; BORGES, 2018; ZAFFARONI, 1998; WACQUANT, 2001).
A gramática jurídica e o padrão punitivo de resposta do sistema de justiça criminal, baseados
principalmente em critérios pré-estabelecidos de cálculo pecuniário e de tempo na busca por um
(re)equilíbrio ideal, são insuficientes frente à complexidade de condições e necessidades humanas a
serem atendidas em um dado cenário conflitivo. Diante da plataforma estabelecida pelo sistema de
justiça, principal via institucionalizada de acesso que, no presente contexto social, as pessoas buscam
para lidar com seus conflitos, é imprescindível, ao menos, a oferta e garantia de outros caminhos e
possibilidades.
Em geral, a experiência do sistema de justiça criminal não proporciona satisfação aos seus
usuários – quem quer que seja (CHRISTIE, 1977; ACHUTTI, 2017; BENITEZ-SCHAEFER, 2018)23.
Ainda assim, principalmente a partir de vozes mais céticas e críticas, se exige da proposta da justiça
restaurativa um padrão de excelência de segurança, humanidade e satisfação jamais exigido, e nunca
alcançado, pelo sistema de justiça tradicional (UMBREIT; ARMOUR, 2010).
Convidando-nos a uma proposta de constituição restaurativa; Joan Howarth (2000)
exemplifica como aspectos do discurso jurídico tradicional, constitucionalmente estabelecidos24, são
apontados para sustentar a lisura e equilíbrio do sistema de justiça criminal e supostamente ameaçados
pela justiça restaurativa, de acordo com visões contrárias a ela. Dentre eles, o da isonomia e o da
primazia da liberdade: isonomia como referência para a igualdade de tratamento, liberdade como
autonomia individualista.
Contudo, os padrões de igualdade e de primazia da liberdade no processo penal, sustentados
pela racionalidade moderna cartesiana, propugnam por um sistema baseado na uniformidade e no
individualismo, ambos a alimentarem binarismos autoexcludentes e distanciamento comunitário.
22
Manifestação do imaginário popular, arraigado na cultura ocidentalizada do ser humano como biologicamente vil e
violento, circulante no nosso (in)consciente coletivo, ao que chamamos de “Complexo de Hobbes-Weber” (BRAVO DE
BARROS, 2017).
23
Uma constatação da nossa experiência no âmbito do sistema de justiça criminal. Da parte de operadores do direito,
muitas pessoas se sentem sobrecarregadas, desiludidas com o sistema, desconectadas de um propósito de atuação,
frustradas com a sensação de impotência do seu impacto profissional, resignadas pela boa remuneração e/ou estabilidade do
funcionalismo público. Da parte de agentes penitenciários e de segurança pública, um desgaste psíquico emocional por um
estado constante, quase paranoico, de alerta, e por um peso, uma certa angústia, em atender as expectativas de discursos
punitivistas atuando nas linhas de frente, em meio a ambientes pautados por práticas violentas. Da parte dos usuários do
sistema: a pessoa averiguada, e possivelmente ré se sente humilhada e estigmatizada, assim como seus familiares;
testemunhas, amedrontadas pelo desconhecimento do discurso jurídico e do ambiente procedimentalizado pouco acolhedor;
vítimas igualmente amedrontadas e intimidadas, quando não revitimizadas, por não poderem expressar de forma
incondicional os impactos do que sofreram e as necessidades decorrentes disso. O relatório ICJBrasil, a demonstrar a
desconfiança da população perante o sistema de justiça, ainda que não focado no sistema de justiça criminal, talvez seja um
forte indício a sustentar nossa constatação. Dentre outros dados relevantes: “73% dos respondentes consideraram que o
Judiciário é nada ou pouco competente para solucionar os casos” (RAMOS et al., 2017, p. 17).
24
Joan Howarth, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Nevada, Las Vegas, baseia sua leitura na
constituição dos EUA, cuja estrutura, ainda que, no todo, muito diferente, carreia princípios similares aos elencados na
brasileira, especialmente no tocante a direitos fundamentais, ambas inspiradas, em grande parte, pelo ideal iluminista
oitocentista.
48
Por um lado, a busca prescritiva por respostas padronizadas e homogeneizadas, sob o pretexto
da aplicação igualitária da lei, é uma excentricidade inexequível25: “a isonomia baseada na aplicação
de punições idênticas a infrações idênticas se baseia na ficção de que qualquer crime manifesta a
mesma culpabilidade ou causa danos idênticos, ou que condenações a três anos de prisão infringem
sofrimentos idênticos” (HOWARTH, 2000, p. 745).
Por outro lado, o paradigma adversarial26, com as garantias procedimentais dele derivadas,
incentiva a evitação de responsabilidade. Uma ideia negativa de liberdade, de inspiração iluminista,
em não ser importunado pelo Estado, que pressupõe isolamento individualista. Em nome dessa
liberdade, “a pessoa acusada pode ser colocada de lado, distanciada do procedimento enquanto é
escorraçada pela comunidade” (HOWARTH, 2000, p. 747).
Nesse movimento de apropriação dos conflitos (CHRISTIE, 1977) as necessidades da vítima
são particularmente desconsideradas. A coletivização institucionalizada do discurso de vítima, por
parte do Estado, silencia as vozes das pessoas diretamente afetadas pelo conflito, promove alienação e
não estimula a promoção dos cuidados necessários às humanidades impactadas.
Joan Howarth problematiza esses aspectos ao dizer que “a repisada ideia de indivíduos
autônomos fundamentalmente necessitando e buscando por um estado de separação das outras pessoas
ignora a igualmente essencial busca humana por sentir-se conectada. [...]. Ser humano, em sua
completude, é relacionar-se” (2000, p. 748).
Sob essa perspectiva, Howarth (2000) retorce a ideia de liberdade, e propõe uma concepção
que preza não pelo isolamento comunitário da pessoa acusada, mas pela oferta de uma chance para se
responsabilizar e contribuir com a restauração. Uma responsabilização, assim, libertadora27. Uma
liberdade que propugna pelo respeito mútuo, reconhecimento, pertencimento, e compreensão
comunitária. Interpretação que, transportada para a realidade constitucional brasileira, pode ser
considerada corolário dos conceitos de solidariedade e fraternidade.
Ao passo que a lógica adversarial do sistema punitivo promove alijamento da vítima,
isolamento do réu e alienação comunitária, o esforço restaurativo cuidadoso proporciona agência à
vítima sem resultar no menosprezo de direitos do ofensor. Sem desconsiderar os desafios e tensões
inerentes a eles, procedimentos restaurativos podem ser considerados esforços colaborativos: “assim
sendo, acolher os interesses da vítima fortalece, ao invés de melindrar, o ofensor” (HOWARTH, 2000,
p. 751).
A alienação comunitária causada pela substituição de representatividade por parte do aparato
punitivo objetifica humanidades e enfraquece o liame coletivo: “a natureza abstrata da presença da
comunidade, representada por estruturas estatais formais, afasta do sistema de justiça criminal e
socioeducativo uma noção significativa de comunidade” (HOWARTH, 2000, p. 754). A proposta
restaurativa, por sua vez, instiga participação e engajamento por intermédio da ideia de democracia
deliberativa.
É preciso considerar, também, como a objetificação desumanizadora pode afetar danosamente
os operadores do sistema, na medida em que “ao invés de serem convidados a se conectarem com seus
próprios sentimentos, exige-se dos operadores do direito que se desconectem das suas subjetividades
25
Aliás, são importantes as evidências que demonstram como o sistema de justiça criminal brasileiro se comporta de
maneira racista e socialmente discriminatória, numa imposição desigual de condenações e de cálculos de pena (BORGES,
2018; SOARES, 2019).
26
Representado no processo penal pelo Estado, ou justiça pública, contra a pessoa do réu.
27
Nesse sentido, reflete Howarth, “talvez prefiramos comunidade e responsabilização a isolamento e negação” (2000, p.
749).
49
plurais e se restrinjam aos fatos objetivos – ‘a verdade’ – e ao direito positivado” (BENITEZ-
SCHAEFER, 2018, p. 305).
A nosso ver, um aspecto da insuficiência do sistema de justiça criminal diz respeito à
complexidade dos desafios que nele aportam, com as pessoas que chegam às portas do fórum com seus
dramas e suas tragédias. Com elas, a incomensurabilidade das suas perdas, dos seus medos,
frustrações, raivas, indignações, humilhações, traumas, dores, impotências… cacos de significados
estraçalhados, esperando por serem recolhidos, apreciados, e retornados aos mosaicos de cada contexto
relacional. Isso pede por uma sensibilidade à granularidade de emoções e afetos (BARRETT, 2017)
inerentes à diversidade da interação humana, em contraponto à tendência pasteurizadora da linha de
produção punitivista.
Como preconiza Howard Zehr (2018), pelo seu convite à mudança de lentes, as pessoas, nas
buscas por seus almejos, querem se sentir pertencentes e participantes da experiência de construção do
justo. Querem, mesmo, sentir que fazem justiça com as próprias mãos.
David Gustafson (2005), agente de justiça restaurativa envolvido com um programa pioneiro
no Canadá para atendimento de casos de maior gravidade desde os anos de 1980, aponta algumas
crenças sustentadoras do mito de que a aplicação da justiça restaurativa é mais adequada a crimes de
menor gravidade. Aqui, realçamos duas delas: a de que quanto mais grave o crime, mais necessário
evitar qualquer oportunidade de encontro entre vítima e ofensor; e a de que a defesa da segurança
pública, assim como a sensação de proteção pessoal por parte das pessoas envolvidas no episódio
(tanto vítimas quanto ofensores) demanda um papel mais pronunciado do Estado para controlar o
procedimento e se apropriar do conflito, ainda que à custa de um maior protagonismo das partes.
Na nossa visão, isso ajuda a ressaltar uma das maiores tragédias do sistema de justiça
criminal: a de que ele é sustentado por discursos (políticos, ideológicos, filosóficos, religiosos…) tanto
inflamados e apaixonados, quanto carentes de evidências. Talvez um sintoma da nossa paranoia social,
alimentada por ideias de segurança – e paz – que pressupõem a exclusão e o extermínio de quem
rotulamos como outro, ou inimigo (SIMON, 2013; LINDNER, 2017; DIETRICH, 2012). Contudo,
fato é que não existe elemento algum a evidenciar a satisfação de importantes objetivos do Direito
Penal, apresentados como justificativa suprema para o funcionamento do sistema punitivista. Ao
contrário, pensando nos principais fins do Direito Penal como sendo a retribuição, prevenção e
ressocialização, é possível dizer que o testemunho histórico é copioso em constatar o insucesso na
busca por prevenção e por ressocialização (PENIDO; MUMME; ROCHA, 2016; SALMASO, 2016;
DEPEN, 2014; SCHENWAR, 2014).
Ademais, a satisfação das pessoas implicadas pelo procedimento jurídico, dos próprios
operadores do sistema, diante da experiência de justiça punitiva institucionalizada, não é levada em
consideração para se transformar a maneira de lidar com as coisas. A dinâmica adversarial inerente ao
sistema judicial como um todo, e mais contundentemente ao sistema criminal a partir da lógica
retributivista, pressupõe um resultado humilhante e estigmatizador à pessoa condenada28, o que resulta
no incentivo de ciclos viciosos de violência (LINDNER, 2017; MANSO; DIAS, 2018; GALTUNG,
1996) e na alimentação de mais irritação a um sistema conflitivo já inflamado (DIETRICH, 2014).
28
Também, por outras razões, uma possível inflição de humilhação e estigmatização a vítimas que testemunham o desfecho
de um processo sem uma resposta, a particularmente salientar sua impotência em uma estrutura procedimental controlada
por e centralizada na instituição judiciária, com vários efeitos deletérios derivados disso.
50
Vítimas e testemunhas nutrem desconfiança e insegurança pelo ambiente insólito e não
acolhedor das cortes criminais. A vivência do rito procedimentalizado que considera essas pessoas
meros instrumentos para a obtenção de provas, ao sabor das estratégias mais convenientes aos técnicos
que operam o sistema, sem vez nem voz, é ofensivo e (re)traumatizante (UMBREIT; ARMOUR,
2010; ZEHR, 2001; ELLIOTT, 2018, ACHILLES, 2004). Policiais numa ponta, e agentes carcerários
na outra, responsáveis pela execução da violência estatal, pagam o preço com a sua saúde física e
psíquica. Nestes escalões, há uma verdadeira epidemia de distúrbios psiquiátricos e suicídios, em
comparação à população em geral (JAEGERS et al., 2019; MIRANDA et al., 2020; SOUZA, 2020).
Quando dada uma oportunidade de se expressar anonimamente, muitos se sentem à vontade para
expressar sua insatisfação e vontade por mudança (LIMA; BUENO; SANTOS, 2014).
Dentre outras razões, pelo seu distanciamento físico para a concretização da violência estatal
há, talvez, uma maior comodidade por parte de certos operadores do direito em continuar participando
do funcionamento do sistema. Neste sentido, a reflexão provocativa de Austin Sarat e Thomas Kerns:
“Se praticamente não houvesse distância entre a decisão judicial e sua execução no corpo de outro
humano – se os próprios juízes fossem obrigados a impor a dor e a morte exigidas por suas decisões –
muito pouca violência seria concretizada e o Direito perderia força por conta da violência que tem em
sua origem" (1995, p. 242).
Mesmo assim, com tudo isso constatado e evidenciado, o sistema segue firme e resistente.
Então, quando surge alguma abertura para se pensar o novo, para problematizar a instrumentalização
da violência estatal, a lógica punitivista aparece desesperada para refrear inovações a, potencialmente,
gerar transformações mais profundas ao sistema. Com base em conveniências mais institucionais do
que humanas (e.g., celeridade e vazão ao vultoso volume de procedimentos judicializados), são
permitidas pequenas entradas para se experimentar novas possibilidades menos destrutivas sob uma
condição muito importante: apenas em casos juridicamente classificados como menos graves.
Pensando na história mais recente do Direito Penal brasileiro, uma racionalidade muito presente nos
institutos trazidos pela Lei 9.099/95.
Racionalidade esta, de maneira quase que automática, já presente em muitas considerações
sobre a viabilidade da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal. Mesmo proponentes da
justiça restaurativa aderem a essa argumentação, especialmente diante da suposta inexorabilidade do
princípio da obrigatoriedade da ação penal (JESUS, 2016; GOMES PINTO, 2005).
Contudo, a engenhosidade do sistema é insidiosa e está muito capilarizada na formação
jurídica acadêmica e no condicionamento profissional. A cultura punitivista tende a fagocitar novas
expressões de inovação que propõem a sua superação; foi assim com os institutos da transação penal e
suspensão condicional do processo (ACHUTTI, 2017), e tem sido assim com reformas que
propuseram alternativas de medidas cautelares penais diversas da prisão (IDDD, 2019a; 2019b). O
alternativo ao penal, se não se tomar cuidado, muito rapidamente se torna mera alternativa penal. E
esse é um risco à justiça restaurativa.
A justiça restaurativa, desde o início de sua proposta no Brasil, tem lidado com a imposição
do mito do menos grave. Isso tem se mostrado um elemento limitador para a implementação de
práticas e políticas públicas para sua consolidação. Tanto é verdade que a sua aplicação a crimes ditos
de menor potencial ofensivo, algo óbvio a muitos proponentes e defensores da justiça restaurativa
desde os seus primórdios (GOMES PINTO, 2005), ainda não se assentou como realidade corrente dos
juizados especiais criminais e se apresenta timidamente em poucas iniciativas no Judiciário brasileiro
(LEITE, 2017; ANDRADE et al., 2018).
51
Na verdade, essa resistência pelo novo se expressa em diversas justificativas que contribuem
com a paralisia para iniciativas de justiça restaurativa: dentre elas a exigência de um padrão de
excelência, sem riscos e sem erros, jamais exigido do próprio sistema de justiça criminal (UMBREIT;
ARMOUR, 2010) que, diariamente, mantém presas pessoas inocentes, (re)traumatiza vítimas e
testemunhas e legitima políticas de segurança pública que controlam determinados corpos e territórios,
a partir de abordagens policiais truculentas, prisões ilegais e execuções sumárias, alimentando espirais
de violência cada vez mais profundas e complexas (JUSTIÇA GLOBAL, IHRC, 2011; MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA, 2015; IDDD, 2019a; 2019b).
O mito do menos grave faz parte de toda uma mitologização e mistificação do sistema
punitivista, que desumaniza os conflitos, objetifica as pessoas por intermédio de rótulos, silenciando-
as, e desconsidera suas necessidades (ZEHR, 2012, 2018). Não há comprovação alguma de que crimes
rotulados como menos graves, ou menos violentos, são mais adequados à prática da justiça
restaurativa. Ao contrário, o repertório de experiências da justiça restaurativa pelo mundo mostra que
as pessoas afetadas por situações mais complexas e profundas, marcadas por dor, ressentimento e
trauma, são as que mais acabam se beneficiando de e se satisfazendo com o esforço restaurativo
(ZEHR, 2001; UMBREIT, ARMOUR, 2018; GUSTAFSON, 2005; BOONEN, 2014). Nesse sentido,
o Manual das Nações Unidas para Programas de Justiça Restaurativa considera que “as qualidades
curadoras [da justiça restaurativa] podem se demonstrar ainda mais potentes em situações envolvendo
delitos graves” (UNODC, 2020, p. 67).
5.1. Preâmbulo
29
Em atenção a uma das expressões mais correntes de ceticismo em face da justiça restaurativa: mitigar a manifestação
absolutista do dito princípio da obrigatoriedade de ação penal para a aplicação da justiça restaurativa não significa propagar
impunidade, senão promover responsabilização. Aspecto este distante da lógica punitivista, pela qual o exercício à ampla
defesa penal, sob uma perspectiva garantista, necessária a uma suposta paridade processual, incentiva a não
responsabilização, individual, por parte de quem é acusado e, consequentemente, coletiva, pela não implicação comunitária
em se envolver e cuidar do episódio conflitivo (HOWARTH, 2000). Nesse sentido, Daniel Achutti (2017) uma voz
pioneira do campo jurídico brasileiro a dar o direcionamento da justiça restaurativa a partir do discurso desconstrutivista do
abolicionismo penal.
52
O prelúdio do texto constitucional traz elementos fundantes de um sistema de justiça que se
pretende restaurativo, destacando-se a aspiração por uma sociedade fraterna (...) fundada na harmonia
social e comprometida (...) com a solução pacífica das controvérsias.
Enquanto a fraternidade fundada na harmonia social remete a elementos de engajamento
institucional que deveriam buscar por práticas de cuidado por convivencialidade, o compromisso por
soluções pacíficas direciona os mesmos esforços institucionais para práticas não violentas na
construção do justo. Aqui a importância de eticamente se pensar a qualidade do pacífico como meio, e
não como objetivo ideal, algo, conforme acima destacado, a historicamente justificar – como ainda
justifica – violências em nome da paz.
Como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o Art. 1º, III, estabelece a
dignidade da pessoa humana. Talvez o elemento primordial de todo ordenamento vigente, sustentador
de um Estado Social Democrático, a privilegiar a proteção e promoção do potencial humano, acima de
tudo. Nesse sentido, a ideia de dignidade como valor ético pressupõe participação e empoderamento,
individual e coletivo, para a sua vivência e concretização, antagonicamente à humilhação como
objetivo supostamente pedagógico da punição, aplicado de maneira ampla e corrente no âmbito do
sistema de justiça criminal a retroalimentar ciclos sociais viciosos de trauma e de violência.
Importante, para nós, realçar a ideia de dignidade para além de uma leitura jurídica que, ao
mesmo tempo em que exalta o valor supremo inerente a todo ser humano30, acaba subalternizando-o
como sujeito de direitos de forma passiva a um portentoso aparato institucional, caracterizado pelo
Estado, responsável por prescrever soluções e promover providências. Ainda que cabível e necessário
o papel do Estado como ente garantidor de necessidades básicas, instrumental a redes de cuidado
humano, tal tendência pode, rapidamente, levar, como tem levado, à legitimação da atuação punitiva
pela apropriação dos conflitos (CHRISTIE, 1977).
Donna Hicks descreve dignidade como “um estado interno de paz resultante do
reconhecimento e aceitação do valor e da vulnerabilidade de todos os seres vivos” (2012, p. 01). Sob
uma perspectiva mais individual, adicionaríamos que a sensação de dignidade deriva do
reconhecimento do meu valor e do lugar que para mim faz sentido ocupar em um contexto
comunitário. Ainda que uma sensação individualmente delimitada, ela é essencialmente fruto da
dinâmica inter-relacional humana.
Com isso em mente, faz sentido pensar o quão importante é percebermo-nos parte de uma
comunidade, por intermédio dos papéis que exercemos. A importância desse interagir é resultado do
nosso caminho evolutivo como seres que precisam de conexão e dependem do relacionar-se para
seguirem vivos (MATURANA; VARELA, 2001; WAAL, 2010). Diante da sofisticação que
alcançamos para nos comunicarmos por intermédio da linguagem, é pela linguagem que nos
reconhecemos; que construímos os significados comuns aos nossos contextos culturais e sociais. Algo
tão importante para navegarmos no mundo e para perceber que pertencemos ao contexto no qual
30
Algo também a ser problematizado na medida em que ensimesmando o ser humano nessa categoria de ente
especialmente diferenciado, a cultura ocidental tende a estabelecer uma hierarquia entre humanos, e entre humanos e outras
entidades no planeta e no Universo. Nesse movimento, nossa espécie acabou por, muito rapidamente, desconsiderar seu
lugar numa rede convivencial sistêmica, destacando-se de uma relação equilibrada com outros seres, outros elementos, e
com o meio em que está inserido, com diversas consequências destrutivas derivadas disso (CAPRA, 1988; KRENAK,
2018; DIETRICH, 2012).
53
estamos inseridos que Mary E. Clark (1995) considerou essa a mais elementar necessidade humana: a
necessidade biocultural por significação.
Pela expressão da linguagem e pela partilha de significados, construímos e transmitimos
nosso repertório cultural. Pela escuta e pelo ser escutada, sinto-me reconhecida, sinto-me humana.
Algo tão mais importante em meio a um cenário conflitivo no qual a tensão instalada geralmente
impede a boa fluência da comunicação. O ato de significar muitas vezes é censurado. As partes
envolvidas se desconectam, deixam de reconhecer o intrínseco valor humano umas nas outras. Quanto
mais destrutivo o ambiente conflitivo, mais violada a sensação de dignidade das pessoas. Aí, em um
contexto no qual as pessoas parecem não se referenciarem e, de certa forma, terem perdido a si
próprias, está a importância do exercício da voz. John Paul Lederach, na sua experiência em conflitos
das mais diversas dimensões e complexidades, descreve a sua percepção quanto a isso de forma quase
poética: “No mais verdadeiro sentido do termo, vocação é aquilo que nos agita por dentro, algo que
pede para ser ouvido, que pede para ser seguido. Vocação não é o que eu faço; suas raízes estão
naquilo que eu sou e no senso de finalidade que tenho na terra” (2011, p. 25).
Assim, tão simples quanto profícuo, Lederach sublinha um aspecto de extrema relevância a
esforços de transformação de conflito e de construção de paz: “As pessoas devem ter acesso e voz no
que diz respeito a decisões que afetam suas vidas” (2012, p. 34). Adicionando que “o diálogo é
essencial para a justiça e paz, tanto no nível interpessoal quanto no estrutural” (LEDERACH, 2012, p.
35).
Essa é a desafiadora delicadeza que entendemos fundamental para lidarmos com as
dignidades afetadas em um esforço restaurativo. Para tanto, a importância de um espaço incondicional,
não julgamentoso, para o acolhimento de visões contrapostas e as tensões naturalmente derivadas
disso. As diversas metodologias para a prática da justiça restaurativa, quando bem realizadas, podem
servir como esse espaço recipiente, hospitaleiro e acolhedor, para a fluência das energias e interação
das tensões; para que as pessoas se sintam aptas a (re)elaborar seus próprios significados. Escutando e
exercendo a própria voz, os participantes reconhecem o próprio valor em dado contexto coletivo.
Experimentando, assim, uma sensação ativa de dignidade e sentindo-se parte da construção do justo:
talvez esses sejam os principais elementos da vivência restaurativa, independentemente dos desfechos
possivelmente alcançados ao final de dado esforço.
O famigerado Art. 5º, ao versar sobre a proteção dos direitos individuais e coletivos, busca
garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, em
que pese à dificultosa harmonização entre todos esses elementos num mesmo patamar de importância.
Inciso III: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Um
truísmo estranho à realidade de grande parte do sistema de justiça criminal brasileiro, que nos remete
ao objeto da ADPF 347, de 2015, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema
carcerário brasileiro. O caminho da justiça restaurativa preza por (co)responsabilidade com
humanidade e dignidade. Ao mesmo tempo, negar às vítimas o direito de participar de esforços que a
elas façam sentido, para lidar com seus traumas, (re)elaborar significados e ter acesso a uma verdade
que as conforte, almejos proporcionados por esforços bem-sucedidos de justiça restaurativa, pode ser
considerada uma forma de tratamento desumano ou degradante31.
Inciso XXXIX: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal. Para além de explicitar o princípio da legalidade penal, a ideia em sublinhar esse excerto é dar
destaque a um espaço que existe entre definição legal de crime e de pena, isto é, não são coisas
irremediavelmente conjugadas. É possível termos a normatização jurídica de comportamentos
considerados ofensivos à coletividade, que sirva para a tomada de providências de responsabilização e
restauração sem, necessariamente, depender, pelo menos exclusivamente, de um aparato punitivo.
Inciso XLVII: não haverá penas: [...] e) cruéis. Reiterando a inadmissibilidade, pelo
ordenamento vigente, da crueldade, na postura do estado perante dado conflito social, tanto na
concretização de uma resposta como ao longo de um dado caminho procedimentalizado.
Inciso LIII: ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
Referência a esse excerto da Constituição sugere um cuidado sobre como se pensa e se constrói o
significado e a prática da justiça restaurativa. Se ela for reduzida exclusivamente ao âmbito da
judicialização, torna-se arriscado diminuí-la a mero procedimento, e, pior ainda, a mais um ramo de
expansão do estado penal, algo a ser evitado. Ao mesmo tempo, o respeito à essência do princípio do
juiz natural e seus corolários, carreado nesta norma, permite preservar esse importante elemento do
devido processo penal em casos de persecução, enquanto se preserva a proposta da justiça restaurativa
como algo diverso de processo/acusação e sentenciamento. Nesse sentido, a importância de se
perceber o protagonismo jurisdicional persecutório, exclusivamente, como instrumental à aplicação de
uma pena.
31
Ainda que não dialogando com o conceito de justiça restaurativa, uma decisão do Comitê de Direitos Humanos das
Nações Unidas de 1991, no caso Quinteros vs. Uruguay, também referenciada pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos no caso Ellacuría, considerou que a profunda angústia e sofrimento de uma mãe pelo desaparecimento de sua
filha, e a incerteza constante sobre o seu paradeiro, configuram uma forma de tratamento cruel e desumano
(ANTKOWIAK, 2002).
55
Inciso LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Coerentemente, na medida em que se reconhece a atual inevitabilidade de convívio da justiça
restaurativa com o sistema persecutório, resguarda-se toda amplitude do devido processo penal, e o
respeito às formas inerentes a este direito humano essencial, como instrumento indispensável,
exclusivamente, para a materialização da pretensão punitiva. Isso sem reprimir as peculiaridades
inerentes à aplicação das metodologias de justiça restaurativa, com todos os seus cuidados, não as
reduzindo a procedimentalidades preconcebidas para ritos judicializados.
O Art. 129, ao versar sobre uma das funções essenciais à Justiça, no seu Inciso I atribui ao
Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Nada mais do
que uma prerrogativa institucional para o exercício do poder acusatório. Na medida em que se opte
pela providência acusatória e, potencialmente, punitiva, resta constitucionalmente estabelecido que
haverá um acusador natural, institucionalmente independente do poder julgador e executor, com todos
os corolários de devido processo penal que depreendem disso. Isso não quer dizer que a persecução
penal está prevista como único caminho pré-definido para a construção do justo diante de um conflito
juridicamente classificado como crime. Constitucionalmente falando, a nosso ver, não se tem expressa
a obrigatoriedade de persecução como elemento fundamental da processualística penal.
32
Mitigar, mas, ainda, não desconstruir de vez. O texto do Art. 231, §5º é evidência disso.
33
Exemplo de breve momento de luz em que a multitude da diversidade que habita esta terra vivenciou um “breve relance
de olhar uns nos outros,” nos dizeres de Ailton Krenak (2018, p. 19). Fugacidade que, rapidamente, decaiu em escuridão
56
Relevante levar isso em conta ao se falar de justiça restaurativa na medida em que,
reiteradamente, ela é celebrada como resgate a sabedorias ancestrais e indígenas (ZEHR, 2012).
Contudo, esse elogio ao resgate do ancestral e do indígena é feito com referência a tradições do norte
global e, geralmente, reiterado no movimento da justiça restaurativa no Brasil sem referência às
culturas tradicionais daqui (MASSA; CRUZ; GOMES, 2016)34.
De qualquer maneira, essa abertura constitucional a uma sensibilidade cultural para o
contexto indígena, a um verdadeiro pluralismo jurídico (MUNDURUKU, 2012), pode fortalecer
propostas práticas de se trabalhar com conflitos que não dependam da atuação do sistema punitivo do
Estado como forma de contribuição ao convívio harmônico da diversidade de visões de mundo pelo
reconhecimento da dignidade por intermédio da participação e empoderamento da comunidade.
Entendemos, nesse sentido, a pertinência da Resolução do CNJ nº 287/2016 a estabelecer
procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas envolvidas no sistema de justiça criminal, e
diretrizes para assegurar seus direitos.
A própria processualística penal é regida por princípios elementares que prezam pela
residualidade da atuação persecutória e punitiva estatal, a famigerada ideia do Direito Penal como
ultima ratio, ou último recurso. Ainda que aparentemente, em grande parte, ausentes do pragmatismo
processual penal, isso significa dizer que todas as possibilidades devem ser consideradas e aplicadas
para se evitar a violência destrutiva da punição, ao mesmo tempo em que se garanta a
responsabilização pelo ocorrido.
A essência dessa ideia está enraizada no princípio da subsidiariedade. Tido por Alberto Silva
Franco (2001) como uma de duas expressões do princípio da intervenção mínima, ao lado do da
fragmentariedade35, ele ilustra bem os reflexos práticos dessa subsidiariedade: "só autoriza a
intervenção penal se não houver outro tipo de intervenção estatal menos lesiva e menos custosa aos
direitos individuais" (FRANCO, 2001, p. 14).
Vale destacar que a Resolução do CNJ nº 288/2019, ao definir uma política institucional do
Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em
substituição à privação de liberdade36, explicita “a subsidiariedade da intervenção penal” como
finalidade da aplicação de alternativas penais, em seu Art. 3º, II.
para o recomeço da “pancadaria doméstica” que atualmente testemunhamos e vivenciamos (Krenak, 2018, p. 19).
34
Vemos a importância de se problematizar a automatização dessas referências às tradições ancestrais inspiradoras da
prática moderna do que chamamos de justiça restaurativa, muitas vezes propaladas no intuito de se trazer um ar sedutor às
suas práticas, romantizando culturas indígenas a partir de um olhar pasteurizado e, de certa forma, colonizador
(CUNNEEN, 2004).
35
O princípio da fragmentariedade, mais relacionado a uma necessária parcimônia do legislador para fixação de tipos
penais para a não banalização do viés punitivo do estado e de toda sua violência. Nesse sentido, um cuidado dedicado para
a tipificação de condutas especialmente lesivas a bens jurídicos mais relevantes (FRANCO, 2001).
36
Problematizamos essa amplitude de alternativas penais com enfoque restaurativo, pois entendemos importante não
reduzir a ideia de justiça restaurativa a um instrumento punitivo, ainda que menos violento. No nosso entender, uma leitura
menos cuidadosa da referida Resolução pode dar azo a esse tipo de interpretação, ao passo em que, no rol de tais
alternativas, no seu Art. 2º, equipara técnicas de justiça restaurativa à conciliação e mediação, e as coloca ao lado das penas
restritivas de direitos, da transação penal e suspensão condicional do processo, da suspensão condicional da pena privativa
de liberdade, das medidas cautelares diversas da prisão, e das medidas protetivas de urgência: todas medidas punitivas por
excelência.
57
Pelo princípio da instrumentalidade, a imprescindibilidade da persecução penal se dá,
exclusivamente, em relação à aplicação da pena, e não, automaticamente, em razão da ocorrência de
um episódio conflitivo juridicamente rotulado como crime. Se possibilidades outras são engendradas
para gerar (co)responsabilização e construir o justo, que não dependam da punição, a persecução se vê
como algo dispensável como instrumento para a resposta estatal ao conflito que chegou ao seu
conhecimento.
A justa causa como condição para a ação penal, elencada no Art. 395, III, do Código de
Processo Penal, é composta por um conjunto de elementos objetivos concretos que autorizam a
deflagração do aparato estatal acusatório, e punitivo. Dentre eles, Aury Lopes Jr (2019) sublinha o
controle processual do caráter fragmentário da intervenção penal, isto é, um autocontrole por parte do
sistema de justiça criminal que, privilegiando outras ferramentas não dependentes da punição, impede
a inauguração de uma persecução penal diante da tomada de providências outras para a construção do
justo.
Diante disso tudo, é possível perceber com mais clareza a fragilidade do famigerado princípio
da obrigatoriedade da ação penal. Elemento da processualística penal brasileira que, mesmo derivado
de uma construção doutrinária-jurisprudencial sem previsão expressa em nenhum texto de lei
vigente37, frequentemente é utilizado como justificativa para padronizar a incidência do poder estatal
punitivo como regra procedimental a todo cenário conflitivo juridicamente tido como criminalmente
relevante, ao passo que, no nosso entender, tal incidência deveria servir como expediente residual.
Nesse sentido, em contraponto à suposta obrigatoriedade da ação penal, está o princípio da
oportunidade como ética processual, para se evitar o automatismo punitivista e se buscar a promoção
do cuidado das necessidades humanas envolvidas em dado conflito – em especial as da vítima, que
deveria ter voz ativa e altiva sobre as consequências em torno de algo que afetou sua vida de maneira
tão profunda e significativa.
Para além de um devido processo penal, como colocado por Adauto Suannes (2004), norteado
pelos tradicionais princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, entendemos ser
possível pensar em um devido encaminhamento restaurativo com base em um repertório
principiológico norteado por uma visão ética diversa ao punitivismo.
37
Pela nossa interpretação, o predisposto no Art. 42, do Código de Processo Penal, ao determinar que “o Ministério Público
não poderá desistir da ação penal,” ao invés de estipular uma obrigatoriedade persecutória, estabelece uma regra de
indisponibilidade estrita da pretensão acusatória, no sentido de vedar ao titular da prerrogativa de acusar criminalmente
eventual abandono, injustificado, do exercício processual acusatório após já inaugurada a ação.
58
Considerações finais
É preciso responder à urgência do agora para lidar com os desafios da violência endêmica à
realidade brasileira. Entendemos que a Carta de 1988, da forma como se apresenta, convida a uma
leitura restaurativa, sem necessidade de reformas essenciais. O princípio da obrigatoriedade da ação
penal não é um preceito expresso no texto constitucional (como dissemos, o seu Art. 129, a nosso ver,
unicamente determina a prerrogativa institucional do Ministério Público para o exercício do poder
acusatório, nos casos de ação penal pública). O que a Constituição estabelece é um comprometimento
ético por mobilização para se lidar com situações conflituosas de relevância social: tal mobilização não
precisa, necessariamente, ser punitivista.
Ao invés de uma obrigatoriedade da ação penal, diante de um episódio juridicamente rotulado
como criminoso, sugerimos uma postura de obrigatoriedade de tomada de providências. Uma postura,
contudo, de engajamento por envolvimento comunitário e participação ativa das pessoas protagonistas
de – e afetadas por – dado conflito.
Por coerência à maneira como oferecemos a presente reflexão, não temos a pretensão de
propugnar a visão da justiça restaurativa como verdade absoluta e exclusiva, ou como a melhor
solução para todos os problemas, até porque temos nos identificado cada vez menos com a
superficialidade e insuficiência da ideia de (re)solução. É, contudo, o caminho que acreditamos como
mais humano, mais potente e mais criativo para atender as necessidades das pessoas na busca por
(re)significar suas histórias diante das dores, traumas, dúvidas, desalentos, no árduo esforço de se lidar
com os desafios inerentes a um cenário conflitivo.
O pronome “nós”, a primeira e, talvez, mais importante palavra do texto da Constituição de
1988, não pode continuar servindo de mera alegoria, perdido e manipulado em um jogo sobre quem
merece ter voz e ser silenciada, quem merece viver e morrer. As pessoas estão sedentas por caminhos
para se sentirem escutadas, percebidas, pertencentes. Que tenhamos a determinação necessária para
nos envolvermos em jornadas por restauração. A nossa saúde convivencial depende disso, hoje mais
do que nunca.
Para qual finalidade queremos ver a aplicação do referencial constitucional brasileiro?
59
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REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO NEGRA COMO JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
PARA REPACTUAR A NAÇÃO BRASIL
Maria Sueli Rodrigues de Sousa1
Introdução
Vivemos no Brasil, um país que faz parte da expansão da territorialidade europeia por meio
do colonialismo aplicado na América Latina, África e uma parte da Ásia, que emerge como outra
estratégia de domínio por meio do pensamento, em que constroem a superioridade na medida em que
produzem a inferioridade de povos. Utilizaram dois elementos – a religião e a cor da pele – para
domínio pelo pensamento por meio da catequese, que serviu de modelo para a escola e a universidade,
fundamentado numa filosofia da consciência (HEGEL, 1992) em que umas pessoas sabem que são
humanos por se reconhecerem como superiores, e outras não sabem da superioridade humana por se
orientarem por outra ontologia e cosmologia.
Tal forma chegou a quem foi inferiorizado como artificio para afirmar que, quem tinha como
sagrado outra vida que não a humana, não tinha consciência da superioridade humana e de que o ser
humano era filho de um sagrado, Deus, o criador do Universo, e à sua imagem e semelhança. Essa
epistemologia orientou a catequese, a educação familiar, a educação escolar, incluindo as
universidades, baseando-se na ideia de que a moral orienta o bem e o mal, resultando numa cultura
punitivista em que quem não obedece deve receber uma punição das autoridades da terra ou do
sagrado.
O artifício da inferiorização – para aqueles que eram considerados os que não tinham
consciência da superioridade humana – foi implementado por meio de bulas papais como a citada
abaixo, em 18 de junho de 1452. Versa a Bula do papa Nicolau V “Dum diversas”, dirigida ao rei
Afonso V de Portugal:
(…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade
Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os
sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer
que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras
propriedades (…) e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e
converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em
perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras
propriedades, possessões e bens semelhantes (…) (Bula Dum diversas, Portal Geledês,
2009, grifo nosso)2
Como se pode notar na citação acima, quando o direito era ditado pela Igreja Católica – na
ainda inconclusa Europa –, o papa Nicolau V deu amplos poderes para escravizar quem não era cristão
1
Doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, advogada popular, professora associada II da
Universidade Federal do Piauí – UFPI, graduação em Direito e Programas de Pós-graduações em Sociologia e o de Gestão
Pública, Secretária da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra da Ordem das Advogadas e dos Advogados do
Brasil – OAB. E Savina Priscila Rodrigues Pessoa, advogada popular, graduada em direito pela Universidade Estadual do
Piauí UESPI.
2
“Quando Portugal e Igreja Católica se uniram para reduzir [praticamente] todos os africanos à escravatura perpétua”,
matéria publicada em Portal Geledês em 03/08/2009. Acesso em 10 de março de 2021: https://www.geledes.org.br/1452-
55-quando-portugal-e-igreja-catolica-se-uniram-para-reduzir-praticamente- todos-os-africanos-escravatura-perpetua/
70
de modo perpétuo, além de se apropriar dos seus territórios e suas posses. Poder que ainda hoje
exercem na América Latina, na África, na Índia e noutros territórios que colonizaram.
Este poder do colonialismo não veio como declaração de guerra; emergiu como o bem da
humanidade em que as pessoas que se consideravam civilizadas vinham fazer o bem, trazendo
civilização e consciência da superioridade humana, rompendo com a estratégia que existia de
dominação, que era a ética de guerra (GROTIUS, 2004). Nesta lógica, uma comunidade política dizia
dos seus interesses à outra comunidade política, e se esta não atendesse, a primeira declarava guerra
dentro dos parâmetros da ética de guerra.
A colonização era feita com assédio moral pela inferiorização do alvo da dominação; ainda
hoje, os territórios colonizados permanecem sob os domínios de quem se classifica como superior,
com submissão do pensamento pela ontologia e epistemologia. Como afirma Fanon (2008), a
intervenção foi na psiquê da pessoa colonizada para que formulasse o desejo, as vontades. Tudo o que
é bom é significado como cultura europeia: a viagem dos sonhos é para a Europa e sua continuação
nos Estados Unidos da América e Canadá! O desejo das pessoas de territórios colonizados, que
permanece como colonialidade (QUIJANO, 1992), é branco – por isso é tão difícil romper com esta
forma de dominação:
Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem este desejo
repentino de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, e sim como branco. Ora
— e nisto há um reconhecimento que Hegel não descreveu — quem pode proporcioná-lo,
senão a branca? Amando-me ela me prova que sou digno de um amor branco. Sou amado
como um branco. Sou um branco. Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz à
plenitude... Esposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca. Nestes seios
brancos que minhas mãos onipresentes acariciam, é da civilização branca, da dignidade
branca que me aproprio (FANON, 2008, p. 69).
Se queremos ser quem nos domina, se torna quase impossível romper com a estrutura que nos
mantém na condição de inferior. Sem contar que tornaram a diferença biológica entre os
pertencimentos étnicos uma espécie de biopoder, conceito criado por Foucault (2008), como sendo “o
conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características
biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia
geral do poder”. E o primeiro teste foi o racial! As pessoas não brancas eram as que tinham como
sagrado vidas não humanas, e essa foi a justificativa para apresentar que não tinham consciência da
superioridade humana, nem que eram civilizados ou tinham cultura. Com a substituição da forma de
domínio da guerra pelo colonialismo, marcado pelo assédio (que ninguém tinha conhecimento), se
tornou fácil implantar o pensamento europeu como universal, e, como os territórios colonizados eram
locais, foi fácil ocultar a civilização e a cultura dos dominados, já que a razão era religiosa.
A Inglaterra fez a imposição para acabar com escravização para fazer nascer outra forma de
escravizar pelo consumo e pelo mercado, e para isso era necessário ter pessoas para consumir o que
estavam industrializando. No Brasil, houve uma qualidade muito típica: criou- se a Lei de Terras, a de
n°. 601 de 18 de setembro de 1850, para que as pessoas negras não dispusessem de terras para
trabalhar, nem para morar, permanecendo na relação de escravização; a Lei Áurea, lei n.º 3.353, de 13
de maio de 1888, em dois artigos, determinou que: “Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei
a escravidão no Brazil; Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário”. Portanto, o que foi
estruturado em 388 anos pelo pensamento, formando uma psiquê de inferiorizado, não foi extinto
nesse processo!
71
Ainda mais que a abolição ocorreu no âmbito do racismo científico com teorias raciais,
justificadas como ciência, que inferiorizavam quem não era branco e, desta forma, classificavam a
humanidade como já era classificada: humanos – os brancos –, e os não brancos – degenerados. O
famoso que deu origem ao racismo científico foi Charles Darwin, ao afirmar a existência de raças
inferiores, e que, após muito tempo, evoluiriam – se seguissem as teorias dos brancos. Outro famoso
foi o naturalista francês Georges Louis Leclerc, ou conde de Buffon, que criou o pensamento de raça
degenerada, o qual serviu para classificar os colonizados que fizeram misturas de raças, afirmando ser
a pessoa negra diante do branco como um asno para o cavalo – ou um não humano, ou macaco –, e um
humano sendo o branco (CONCEIÇÃO, 2014).
Somando-se ao racismo científico europeu, nos países colonizados apareceram cientistas
racistas para explicar, por meio da biologia, a inferiorização que já ocorria desde o início da
colonização, ou seja, os mesmos fundamentos religiosos passam a ser nomeados de científicos,
seguindo a eugenia de Mendel, que orientava quem deveria sofrer segregação sexual compulsória,
esterilizações e eutanásia, para evitar que as raças se misturassem. Stepan (2005) considera que, no
Brasil e na Argentina, ocorreu a eugenia matrimonial por meio de exames pré-nupciais e que foi
característica do México a esterilização.
Depois da lei da abolição, ocorreu a política estatal brasileira para que os europeus migrassem
para o Brasil com o intuito de branquear a sociedade brasileira e ocupar os lugares no mercado de
trabalho remunerado, justificada com a perspectiva biológica de Mendel (1995) e de Lamarck
(MARTINS, 2008), que consideram o meio degenerador das pessoas; portanto, os países colonizados
que não são a extensão da Europa nunca seriam países de brancos. E na extensão da Europa – os
Estados Unidos e o Canadá – era necessário cuidar para não haver mistura de raças.
Monteiro Lobato foi uma grande expressão do movimento eugenista brasileiro, que
caracterizou o típico brasileiro como um degenerado biologicamente. A descrição de Jeca Tatu dizia
que, pela mestiçagem, tornara-se sujo, doente e preguiçoso. E o povo preto é descrito como inferior,
como Tia Anastácia, que é apresentada como macaca em “Caçadas de Pedrinho”.
Wallerstein (1990) considera que a criação da superioridade europeia e a inferiorização das
nações colonizadas gerou um sistema-mundo. Para Dussel (2005), a Europa foi inventada em conjunto
com a América Latina, em que a Europa se tornou superior e a América Latina, estendendo à África e
todos os territórios colonizados, inferiores:
O lugar da futura Europa (a “moderna”) era ocupado pelo “bárbaro” por excelência, de
maneira que posteriormente, de certo modo, usurpará um nome que não lhe pertence,
porque a Ásia (que será província com esse nome no Império Romano, mas apenas a
atual Turquia) e a África (o Egito) são as culturas mais desenvolvidas, e os gregos
clássicos têm clara consciência disso. A Ásia e a África não são “bárbaras”, (...). O que
será a Europa “moderna” (em direção ao Norte e ao Oeste da Grécia) não é a Grécia
originária, está fora de seu horizonte, e é simplesmente o incivilizado, o não-humano.
Com isso queremos deixar muito claro que a diacronia unilinear Grécia-Roma-Europa
(...) é um invento ideológico de fins do século XVIII romântico alemão; é então uma
manipulação conceitual posterior do “modelo ariano”, racista (DUSSEL, 2005, p. 55).
Diante desta estruturação cultural, com domínio pelo pensamento, pelo desejo, o que se pode
fazer para mudar, para que sejamos iguais pertencentes ao pacto da nação Brasil? Mudar a memória
coletiva, com destaque para o protagonismo negro e indígena; mudar museus, livros de história; mudar
a filosofia; nomear nomes de ruas, colégios e outros lugares importantes para a sociedade com o nome
de pessoas protagonistas negras e indígenas; colocar nos museus imagens do protagonismo negro e
72
indígena; refletir sobre a ontologia, ou seja, que se queremos ser e como fazer isso por meio de
epistemologia, que nos faça refletir sobre o futuro que queremos ser.
O texto será desenvolvido com uma parte sobre justiça de transição como meio de pacificar
uma sociedade construída pela inferiorização da maioria das pessoas e dos territórios, e outra sobre
memória coletiva como forma de iniciar os procedimentos sem haver uma decisão governamental que
decida por justiça de transição.
A construção do texto se deu pelo método narrativo (CASTRO; MAYORGA, 2019), na
perspectiva decolonial, por meio de pesquisa bibliográfica orientada pelo itinerário analítico (TILLY,
2004) e organizada por meio das categorias: reparação da escravidão negra como justiça de transição;
memória coletiva; identidade do sujeito constitucional; e igualdade política.
O resultado da discussão é uma narrativa de como emergiu a forma de domínio a que estamos
submetidos através da inferiorização pelo pensamento que se estruturou de modo tão intenso que não
conseguimos enfrentar a subalternização em razão de queremos ser o que nos domina. Portanto, a
reparação da escravidão negra construindo outra memória coletiva com o protagonismo negro e
indígena é a forma de desobedecer este poder que nos domina há tantos séculos, e que, daí, pode
emergir uma repactuação da nação ressignificando o artigo 5.° que nos garante igualdade política de
igual pertencimento.
Justiça de Transição foi um termo cunhado por Ruti Teitel, em 1991, usando como base
empírica transições de processos conflituosos para regimes democráticos, identificando três fases: o
Tribunal de Nuremberg, que estabeleceu fundamentos jurídicos da justiça retributiva; os aprendizados
derivados das experiências de ditaduras na América Latina e da transição do bloco soviético a partir de
1980; e uma terceira fase que contempla a globalização e normatização do termo “justiça de transição”
sob a perspectiva da importância de a democracia ter formas de lidar com o passado violento
(SANTOS, 2010).
Como se pode notar, a autora não considerou, na sua classificação, o passado mais violento,
que inclui a escravização em razão da cor da pele – que se estendeu aos territórios, que foram também
enegrecidos – e a tentativa de genocídio de povos indígenas nas Américas. Estas experiências devem
ser incluídas como reparação da escravização negra e da tentativa de genocídio indígena.
O tema da reparação da escravidão deve ser visto no âmbito dos estados democráticos de
direito a partir da pactuação da igualdade. No caso brasileiro, trata-se de ver a CF/1988 e seus direitos
fundamentais, especialmente o Art. 5°, como forma de reparar o que impede o igual pertencimento ao
pacto de nação.
É preciso ver a igualdade constitucional junto com a memória coletiva e o passado violento
para identificar o que deve ser repactuado na comunidade política e construir alteração na cultura, para
que as pessoas se vejam como iguais membros da mesma comunidade política; portanto, fazer uma
justa transição de um tempo violento que deixou marcas culturais, que estruturam as inferiorizações no
presente.
Baggio (2010) considera que justiça de transição exige verdade e memória para construir um
tempo de paz: “o direito à memória e à verdade, o direito à reparação das vítimas, a responsabilização
dos agentes perpetradores das violações aos direitos humanos e a readequação democrática das
73
instituições que possibilitaram os abusos de poder” (p. 269).
A memória coletiva é marcada pelo racismo, obstáculo à igualdade constitucional. Os danos
históricos da escravidão marcam a memória coletiva, que produz as identidades de sujeitos
constitucionais (ROSENFELD, 2003), portanto, deve haver justiça de transição para alcançar o direito
à memória e à verdade com a responsabilização das violações e recomposição de instituições para que
não se repita o passado.
O racismo dá continuidade à inferiorização da escravização negra como estrutura de todas as
relações sociais e institucionais no âmbito do paradigma da modernidade, portanto, sem a reparação da
escravização negra e a tentativa de genocídio indígena, não podemos falar em democracia. É preciso
readequar as instituições para tratar todas as pessoas como iguais membros da comunidade política
para enfrentar o racismo que estrutura as instituições que se pretendem democráticas.
O que fundamenta a justiça de transição é a justiça retributiva, o paradigma eurocêntrico do
direito – mas não existe apenas esta forma. Por exemplo, a reparação da história e da memória coletiva
não consta no rol da justiça retributiva. Existe a perspectiva de filosofias da resistência que apresentam
outros fundamentos, além do que “se A é, B deve ser” (KELSEN, 1999). Exemplos são a forma como
comunidades indígenas e africanas tradicionais resolvem seus conflitos, com a discussão do conflito
até formar um consenso comunitário sobre a situação conflituosa.
Almeida e Torelly (2011) consideram que, no âmbito da justiça de transição, a palavra
“justiça” não tem o sentido de abstração, como se fundamenta o direito ocidental, mas considera-se
que o conflito é concreto e contingente, o que o territorializa e dá sua marca local, marcando a história
e a memória coletiva – portanto, longe de ser a abstração. A materialidade da escravização racializada
é concreta em cada lugar que o eurocentrismo invadiu, sob a perspectiva de colonizar por meio da
ciência e da tecnologia, do consumo, do mercado, da ideia abstrata de democracia... Tudo isso como
forma permanente de domínio.
A escravização racializada é diferente de outras formas de escravidão, porque permanece
mesmo terminando. Então o que o papa Nicolau V, em 1452, afirmou na bula “Dum diversas”, dirigida
ao rei Afonso V de Portugal, permanece válido: escravização perpétua. A escravização racializada se
tornou muito mais efetiva do que todas as outras formas de inferiorização e escravização por nunca se
acabar, o que demanda justiça de transição para sair do lugar de colonizado e migrar para a
democracia.
Com relação ao colonialismo e suas violências, não ocorreu justiça de transição em nenhum
território que se diz democrático, pelo contrário: impedem que isso ocorra. No Brasil, além de não ter
sido adotada a justiça de transição, nada foi feito para mudar a memória coletiva. Nas escolas, ainda é
ensinado que a Europa fez um grande bem para o Brasil. Ademais, a antiga Lei de Terra de 1850
permanece sendo reformada para continuar entregando o território brasileiro para estrangeiros. O tema
só aparece por aqui na considerada segunda fase indicada acima com relação à passagem da ditadura
militar para o regime democrático, entretanto, com muitas críticas, incluindo o fato atual de uma parte
da sociedade considerar que nem ditadura houve.
Abrão e Torelly (2010) consideram que, para haver transição entre tempo conflituoso e tempo
de paz ou de democracia, é preciso fazer dois diagnósticos: o dever de reparar – como acerto de contas
com o passado – e a concepção de anistia como esquecimento. É possível incluir o “recontar a
história” como direito de saber a verdade e como forma de construir outra memória coletiva nacional,
portanto, outra identidade nacional. Neste sentido estão os elementos indicados por Baggio (2010),
como o direito à memória, à verdade e à readequação institucional.
A justiça de transição da África do Sul buscou enfrentar os conflitos da modernidade, mas
74
adotou os mesmos fundamentos do que dirige a modernidade para o rumo em que se encontra, ou seja:
enfrentar graves conflitos com estruturas socioeconômicas, políticas e morais; mas criou outra
perspectiva de transição que não se limita em aplicar a pena, e cabe recontar a história para evidenciar
a verdade, anistia e reconhecimento da responsabilidade.
A África do Sul viveu o regime de opressão segregacionista chamado de apartheid e
precisava transitar para uma democracia multirracial pacífica, o que exigia diálogo e negociação. A
transição negociada não significa anistia geral que levasse ao esquecimento do passado, mas dar ênfase
à verdade e à responsabilização, com punição em segundo plano (PINTO, 2007). Na medida em que o
fim legal do apartheid não havia eliminado a segregação social, a ideia de superioridade racial, e a
intolerância, tampouco a resistência em aceitar uma igualdade legal, na transição deveriam ser
enfrentadas a ontologia e a epistemologia da sociedade.
A África do Sul teve experiências importantes, como a construção de uma nova história com
celebração de heróis e heroínas africanas que passaram a fazer parte do discurso político – através da
reinterpretação do passado e justificando o compromisso com a revolução democrática, em que o
simbolismo das memórias contribuiu com o refazer da identidade da África do Sul. Como exemplos,
podemos citar: a celebração do Dia de Shaka, um chefe zulu reconhecido pela luta contra o
colonialismo; a reconstrução de estátua em memória de Steve Bantu Biko, o líder negro morto pela
polícia no período do apartheid; a busca da Cabeça de Hintsa, um guerreiro e chefe xhosa que foi
morto pelos britânicos no século XIX e que tinha sido levada para a Escócia (PINTO, 2007).
Vale também ver como a Comissão de Verdade e Reconciliação procedeu com o
reconhecimento da verdade e a rejeição social dos atos cometidos, como a reprovação moral com base
no princípio ubuntu – “um ser humano só é um ser humano por meio de outros e, se um deles é
humilhado ou diminuído, o outro o será igualmente” –, em que nenhum lado pode impor uma justiça
dos vencedores, pois não há uma vitória definitiva e o conceito de justiça visa restaurar, e não punir,
tendo como objetivos: a verdade, a anistia e a restauração. A verdade incluía antecedentes,
circunstâncias, fatores e contexto das violações, além das perspectivas das vítimas, os motivos e as
percepções das pessoas consideradas responsáveis, conduzindo, para isto, investigações e oitivas como
necessárias para a reconstrução da memória que constitui a identidade (PINTO, 2007).
Não haverá justiça de transição se as pessoas que compõem a comunidade política não
reconhecerem a violência sofrida. E, para isso, é preciso que as formas de comunicação atuem no
sentido de informar a violência sofrida no passado e no presente, considerando que as vítimas queiram
contar sua versão da história e serem recompensadas pelos prejuízos sofridos, e que as pessoas
responsáveis pela violência queiram participar do momento de repactuação da história e da memória
coletiva para se ter outras pessoas com identidade de sujeito constitucional diversa da do presente.
Os fundamentos, tanto o retributivo quanto o restaurativo, devem compor a orientação da
justiça de transição para a reparação da escravização e da tentativa de genocídio indígena. Serrano
(2005), ao analisar como povos tradicionais africanos resolvem conflitos, considera que, para resolvê-
los, estas sociedades aplicam penas e enfrentam o conflito pelo debate com todos os membros da
comunidade, visando restaurar os elos cindidos.
Serrano (2005) considera que, para estas sociedades, a oralidade é fundamental, e que a
mesma estrutura os entendimentos da comunidade na ordem social que se quer construir; leva em
conta que o corpo social se orienta pela memória coletiva, a qual é formada pelos entendimentos
coletivos que são formados via discursividade. O autor afirma que a comunicação é a centralidade para
estas sociedades. Seus fundamentos vêm da ancestralidade e são elementos essenciais para a busca de
consensos, em que a socialização é a troca direta da palavra que permite a transferência das
75
experiências no seio do grupo, exemplificando a reprodução da vida social, e figurando a troca de
palavras não como mera troca linguística interindividual, mas como fato comunitário que atravessa
todas as dimensões da comunidade.
Na tematização dos conflitos, o conjunto da comunidade é chamado a participar, e não só
enquanto observador – deve atuar como as partes, com discussões prolongadas que podem durar vários
dias. A busca de um consenso pelas várias partes torna-se mais importante que a punição em si.
Sempre que é referida a palavra ancestral, evita-se a dissensão e recria-se a unidade participativa
desejada pela sociedade (SERRANO, 2005).
No meio deste processo, um discurso pode relatar acontecimentos reais ou fictícios como
forma de encadear os acontecimentos e transformar os fatos em histórias inteligíveis. O lugar que seria
o tribunal atua como espaço cênico onde ocorre a constituição ou reconstituição dos fatos numa
narrativa em várias vozes, feita de versões sucessivas, com as partes contrárias por si próprias, tanto
por defensores de suas narrativas quanto por especialistas.
Os conflitos são tematizados e resolvidos em processos como ritos de passagem com quatro
etapas: tentativa de conciliação; instalação do espaço público como rito de separação, em que as
narrativas são contadas e defendidas; o julgamento, em que os conflitos têm solução com a garantia de
igualdade entre as pessoas no espaço público; e o rito de agregação, onde finalmente se consegue a
volta à normalidade, à harmonia, onde mesmo quem é penalizado, é incorporado no seu grupo
(SERRANO, 2005).
As etapas apresentadas incluem a justiça retributiva e vão à justiça restaurativa por incluírem
o ritual de agregação, o que faz notar que justiça restaurativa não é oposição à justiça retributiva, mas é
um passo além, visando restaurar os elos sociais que podem garantir tempos de paz. Isto leva a crer
que o que vem sendo discutido como justiça de transição não se acomoda no âmbito de um único
paradigma, mas busca o compromisso de pacificar a comunidade política. Como afirma Annan:
A noção de “justiça de transição” (...) compreende o conjunto de processos e mecanismos
associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de
abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de
seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem
ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou
nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da
verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destituição de um cargo
ou a combinação de todos esses procedimentos (ANNAN, 2009, p. 325).
76
As referências indicadas expressam que a justiça de transição não se resume a aplicação de
uma pena e retribuir à vítima; vai além, e busca atender o objetivo de restaurar elos cindidos, visando
transformar a sociedade em que vivem após violações generalizadas de direitos humanos e direitos
fundamentais, especialmente, a memória coletiva.
77
repactuação pela correção da história, com o intuito de a memória coletiva e as identidades de quem
compõe a comunidade política.
Para Halbwachs (2006), o indivíduo vive inserido em grupos sociais, que atuam como
referência para si, portanto, suas memórias não são construídas apenas a partir de suas lembranças de
modo isolado. Sua história de vida tem muitas semelhanças com valores de outras histórias de vida. E
como isso acontece? Pela convivência como ação comunicativa. Portanto, os sentidos dados à vida são
construídos por meio da convivência coletiva. Não vivemos por pensarmos, mas construímos o nosso
pensamento em conjunto. Não se trata do tipo de relação em que umas pessoas sabem e outras não
sabem, como afirma a filosofia da consciência (HEGEL, 1992). Todas as pessoas sabem, e pela
convivência por meio da ação comunicativa (HABERMAS, 1997) construímos o que achamos correto
ou consideramos errado.
Não existe sentido da vida construído individualmente. Pode até alguém construir, mas se a
comunidade não aceitar, não será orientador da vida. Para Halbwachs (2006), os detalhes que são
rememorados podem permanecer abstratos, ou podem formar uma imagem, ou tornar uma lembrança
viva. O que vai ocorrer será definido conforme a socialização por meio dos grupos de referência de
que a pessoa participa. No grupo de referência de que a pessoa faz parte e com ele forma uma
comunidade de pensamento, constrói-se sua memória coletiva pelas interações vividas, fazendo com
que a vida das relações sociais dê sentido às imagens que são lembradas. Isso significa que a
lembrança não é ato individual, mas sim um processo coletivo inserido em processo social que assim
se faz pelas relações sociais ali estabelecidas.
O afeto que uma pessoa sente por determinado conteúdo social dá consistência às lembranças,
bem como era o esquecimento. Aqui entra o Brasil e os países colonizados pela Europa na América
Latina, África e parte da Ásia. Quem é inferiorizado tem suas marcas culturais deslegitimadas pela
inferiorização, vistas como não cultura, como selvagens, não civilizados, o que faz com que as pessoas
apaguem sua cultura pela extrema violência sofrida. Foram apagadas as histórias do Brasil, as
lembranças que as pessoas tinham dos seus ancestrais, que violentamente foram substituídas pela
história do colonizador.
O narrado requer justiça de transição com reparação da memória coletiva por meio do
recontar da história do Brasil com o protagonismo negro e indígena, com o reconhecimento de quem
construiu a história do país. As políticas públicas podem ser corolários, mas não medidas únicas. Se
assim for, as pessoas inferiorizadas são vistas como incapazes. É preciso repactuar a nação para a
igualdade, e que seja tomada como algo concreto, e não uma abstração. Os caminhos passam pela
revisão das memórias que foram violentamente apagadas, pela valorização por meio de museus, nome
de rua e monumentos, além da exposição da real história, afinal, não somos europeus, somos uma
mistura de indígena, africano e europeu. Não numa fusão, nem sem violência, mas com muita
hostilidade e resistência. E quanto mais próximo dos traços africanos e indígenas, mais
inferiorizada a pessoa é. Recontar a história para mudar a memória coletiva e construir a igualdade
política no Brasil para sermos iguais pertencentes ao pacto de nação.
78
Considerações finais
79
Referências
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80
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TILLY, Carles. Itinerários em análise sociológica. In: Revista Tempo Social, revista de sociologia da
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82
83
ALTERCAÇÕES. CAMINHOS UTÓPICOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
DENTRO DO SISTEMA DE JUSTIÇA DISTÓPICO
Amanda Castro Machado1
André Felipe Alves da Costa Tredinnick2
1. Qual multiculturalismo?
Ao tato, fino, liso e retangular. Ao cheiro, inodoro. Ao gosto, nenhum. Ao olhar, o rosto de
um ameríndio de meia idade (meia idade?), com a bocarra aberta em um largo sorriso, mostrando as
gengivas inflamadas e os dentes que lhe faltam, alguns molares da
arcada superior e quase todos da inferior. A barba rala lhe sai do queixo como õkãkema
dependurados dos galhos de uma árvore. Uma placa está presa ao seu pescoço e exibe o número “28”.
Ao modo historiográfico é possível lembrar, não tendo a cabeça cada vez mais “cheia de
esquecimento”3, que a ditadura empresarial- militar queria integrar os ameríndios, naquela lógica
etnocida – novamente em voga – e abriu estradas em suas terras, como a famigerada Perimetral Norte,
que trouxe epidemias, como a de sarampo, que mataram milhares de pessoas dos povos yanomami no
fim dos anos setenta do século passado.
Para lidar com a mortandade, resolve o regime enviar uma missão para
vacinar os ameríndios yanomami. Entendem necessário fotografar e
identificar com um número cada um deles, inclusive crianças, porque os
ameríndios não se atribuíam dados de identificação para a ditadura.
Cláudia Andujar fez as fotografias. Elas formam a série “Marcados”,
editada muitos anos depois, chocando o mundo e produzindo infinitos
questionamentos. Ela própria é sobrevivente do holocausto, sendo
testemunha ocular do extermínio em massa de um povo e sua cultura.
Entre essas fotografias aparece a de “número 28”. Na “série” inteira,
“Marcados”, quase ninguém ri. Ele ri e não se “comporta” para uma
fotografia de identificação. De que ri esse homem? Por que ri?
Figura 1. Série “Marcados”.
Fotografias, como me lembra Guimarães Rosa (2019, p. 68),
Fotografia de Claudia nada apresentam de verdade objetiva. Antes me mantém distraído das
Andujar. coisas mais importantes. Da experiência extrema e séria que é a vida, cuja
técnica exige “o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que
obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra”, a fotografia não retrata, enquadra ou disciplina;
antes, abre caminhos.
Além do que sinto, cheiro, provo e vejo, além do papel que contém a fotografia, devo, como
preconiza Huxley (2011), perceber o mundo além das categorias espaciais, por uma mente ampliada?
Seguindo por essa porta da percepção mundificada, “tudo pareceria ao homem como é, infinito”, nos
versos de Blake (1994), e me levaria a outra experiência, fora de mim por mim.
1
Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR -
FFLCH/USP). Vice-presidenta da Comissão Especial de Justiça Restaurativa da OAB/SP. ID Lattes: 0122329056535078.
ID Orcid: 0000-0002-8228-0215. Contato < amanda@castromachado.com.br >.
2
Pós-graduado em Filosofia Antiga (PUC-Rio). Mestre em Saúde Pública (FIOCRUZ-ENSP). Juiz de Direito e
coordenador do CEJUSC Leopoldina. ID Lates: 3594482709417467. ID Orcid: 0000-0001-8753-9129. Contato
< andre.tredinnick@yahoo.com.br >.
3
A deficiência mental-espiritual do homem branco, categoria que nos lembra Kopenawa (2015).
84
Narro então não a aventura, mas a experiência, que induz, alternadamente, raciocínios e
intuições, como bem lembra Guimarães Rosa n’O Espelho (2019). Então adentro pela fotografia até o
momento em que foi tirada, e voltando no tempo encontro esse homem de 40 anos atrás, estando o que
o ameríndio viu na fotógrafa suíça que lhe fez essa abertura do real.
Olho para a mulher branca com boas intenções, que desafiava a ditadura empresarial- militar
para registrar em sua arte um grupamento de ameríndios yanomami em seu etnocídio contínuo desde a
invasão ibérica do século XVI. Ela acompanhava a missão do regime para vacinar os ameríndios em
uma epidemia de sarampo, a xawára (FERREIRA, 2011).
Rio e não me parece importante que perguntem meu nome. A xawára começou quando o
homem branco, o “povo da mercadoria”4, a libertou ao desmatar e escavar a superfície da terra para
buscar o ouro de sua cobiça e dos seus olhos saltados de ganância.
Então seu mundo me deixa perplexo: pela destruição inútil da floresta, escarificada para a
passagem dos seus veículos velozes, poluentes e barulhentos, vêm as xawára, depois vêm os
garimpeiros, suas armas e outras xawára, e depois vêm a miséria, a fome e a morte. E isso para quê?
Rio das amostras de sangue que tiram do meu braço e do braço dos meus, rio de suas conclusões de
que somos brutos, perversos, que nos matamos entre nós, quando eles, perversos demais, nos
brutalizam e nos assassinam; rio dos seus gestos de boa vontade e, sobretudo, da sua pouca memória.
Assim os nabëbë nada trazem de bom para nós, para nossa floresta. Não conseguem ver
xapiri, desconhecem a palavra de Omama, não escutam a pedra, nem o rio, nem a árvore. Apenas
dormem e sonham apenas consigo mesmos. E agora me falam em justiça?
Pergunto-me como seria a floresta quando era ainda jovem e como viviam nossos ancestrais
antes da chegada das fumaças de epidemia dos brancos. Tudo o que sei é que, quando essas
doenças ainda não existiam, o pensamento de nossos maiores era muito forte. Viviam na
amizade entre os seus e guerreavam para se vingar de inimigos. Eram como Omama os havia
criado. (KOPENAWA, 2015, p. 188).
4
Como David Kopenawa (2015) atualiza o homem branco.
5
Inspirado na dissertação “A Justiça que adoece e a que cura: os sistemas de justiça restaurativa e convencional na
determinação social do processo saúde-doença” (TREDINNICK, 2019).
85
ser descrito. Engenhoso, mas pouco sábio.
Assim como no medievo, tal cosmovisão levou a “busca pela verdade de todas as coisas”
(CARVALHO, 2015 apud ACHUTTI, 2009) que ainda hoje, fruto desse “condicionamento
insuperável do pensamento”, encontra-se nos julgados Brasil afora, quando se fala em verdade6 e mais
verdades7.
A raiz epistemológica do processo penal típico do sistema de justiça convencional remete à
Inquisição, na sua construção da busca da verdade e perseguição ao outro quase culpado, o que
demanda, como diz Achutti (2009): “uma análise da história e uma história das ideias”.
Como observa Achutti, o processo permanece um mecanismo dirigido a tentar “reconstituir o
passado”, através das palavras dos seus personagens, em especial testemunhas, vítimas e acusados. Os
discursos ganham força e formam o que é chamado pelo senso comum teórico de fato (ACHUTTI,
2009, p. 37-8), dentro dessa tecnologia do poder de controle da vida. Como Yoasi, produz um
pensamento cheio de esquecimento e cria os në wãri, comedores de carne humana.
As formas medievais foram sendo gradativamente transubstanciadas na Modernidade, e
depois na Contemporaneidade, em graus de brutalidade às vezes explicitamente repetitivos, às vezes
sutilmente infligidos.
Nesse sentido, pode-se observar a permanência da tecnologia do controle da vida, com o viés
de sua eliminação, no ato do interrogatório, que permanece praticamente inalterado na estrutura de um
sistema processual na contemporaneidade, onde a todo momento o julgador revela que retém um
conhecimento ctônico e privilegiado da culpa do réu e espera que ele o confesse para além da própria
acusação8, como se pode ver, em comparação, no interrogatório de António Viera, no século XVII9.
A tortura como fase do procedimento (HESSELS, 1880, Título LXXXVII) ou como pena, os
“juízos de Deus” ou ordálios (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, p. 670) como modo de decisão, o
julgamento de animais (MEGAHEY, 1993), a apenação de descendentes do acusado (ALMEIDA,
1870, V, t. VI) ou os julgamentos póstumos (LEWIS, 2010, p. 14;
71) e execuções póstumas (VISSCHER II, 1618) deixam de ser formalmente aplicadas,
retirando-se do espaço público, em primeiro lugar, ao reservado, depois ao oculto e, por fim, ao
simbólico e ao não narrativo.
Eclodem na contemporaneidade os julgamentos televisionados ou radiotransmitidos, como os
julgamentos dos vinte e um por um acusador público, como Vyshinnky, prócer da “justiça soviética”
(RUSSELL, 1953), em notável semelhança com o juiz Freisler do regime antagônico no discurso e
símile no controle dos corpos para gerar obediência (BAUER, 1979).
A semelhança com a estrutura dos julgamentos televisionados é sensível, como no caso da
6
“... [Crimes que configuram] verdadeiro câncer destrutivo de todas as instituições estruturais de uma sociedade civilizada,
aniquilando valores que viabilizam a busca e realização do bem comum.” (sic) (BRASIL, 2018).
7
Como na citação de um juiz norte-americano pelo então juiz brasileiro Sérgio Moro, posteriormente Ministro da Justiça
do governo que ajudou a eleger: “Apesar disso e a despeito de todos os problemas que acompanham a utilização de
criminosos como testemunhas, o fato que importa é que policiais e promotores não podem agir sem eles, periodicamente.
Usualmente, eles dizem a pura verdade e ocasionalmente eles devem ser usados na Corte.” (sic) (BRASIL, 2017).
8
“[...] Perfeito, vamos prosseguir. Senhor ex-presidente, o senhor vislumbra alguma contradição na sua posição, o senhor
afirmar que não tem qualquer responsabilidade de todos esses crimes, mas também não reconhece publicamente qualquer
responsabilidade das pessoas que trabalham no partido e no governo?” (BRASIL, 2017, p. 28).
9
“Foi-lhe dito, que sendo certo, e definido de Fé, como ele declarante também agora reconhece, que a mesma Fé, Religião
e Santidade são dons sobrenaturais. De ele declarante no sobredito seu papel aqui apenso, querer insinuar o contrário, como
consta de suas palavras [...] Pelo que de novo o admoestam com muita caridade, da parte de Cristo nosso Senhor trate de
confessar inteiramente a verdade de suas sobreditas culpas, e declare a tensão que teve de escrever, e sustentar as sobreditas
coisas, porque fazendo-o assim se poderá em estado de com ele se usar da misericórdia. E por dizer, que não tinha culpas
algumas que confessar [...] foi outra vez admoestado em forma e mandado à casa de sua reclusão.” (MUHANA, 1995).
86
“mani pulite” (LA7 ATTUALITÀ, 1992). Ali, na geografia da sala de audiências, a quase universal
configuração arquetípica do poder – o “elemento terceiro”, a referência a uma ideia (regra universal)
de justiça e uma decisão com poder executório, ali se encontram na ideologia do julgamento, nessa
“anedota de civilização”:
Uma mesa; atrás dessa mesa, que os distancia ao mesmo tempo das duas partes, estão terceiros,
os juízes; a posição destes indica primeiro que eles são neutros em relação a uma e a outra;
segundo, implica que o seu julgamento não é determinado previamente, que vai ser
estabelecido depois do inquérito pela audição das duas partes, em função de uma certa norma
de verdade e de um certo número de ideias sobre o justo e o injusto; e, terceiro, que a sua
decisão terá peso de autoridade. (FOUCAULT, 2003, p. 26).
Há tortura disseminada desde sempre na América Latina, em crimes bem documentados tanto
nas ditaduras militarescas dos anos 1960-1980 (ARNS, 2000; DENZINGER; HÜNERMANN, 2007,
p. 1096), como decorrente da violência extrema e persistente em todo o continente.
Relatórios de entidades de defesa dos direitos humanos apontam a contradição das
democracias liberais em cumprir com suas promessas de justiça:
[...] em vez de usar os direitos humanos como forma de garantir um futuro mais justo e
sustentável, muitos os governos recrudesceram em táticas de repressão – abusando de suas
forças de segurança e sistemas de justiça para silenciar dissidentes e críticas; permitindo tortura
generalizada e que outros maus-tratos fiquem impunes, [mantendo e persistindo em uma]
crescente desigualdade, pobreza e discriminação sustentada pela corrupção e falhas na
responsabilização e justiça. (AMNESTY INTERNATIONAL LTDA, 2018, p. 27, acréscimos
nossos).
A justiça restaurativa (JR), por sua origem proveniente de povos originários e sua natureza
emancipatória, carrega em sua ocidentalização o mito dos mitos para quem (re)pensa no sistema de
convivência em que nos inserimos, qual seja o entendimento da JR enquanto panaceia contra todos os
males socioculturais. Desmistificando esta desacertada premissa, o que traz vida e sentido à JR, seu
modo de viver restaurativo e suas práticas comunitárias, é a compreensão de que vivemos em conflito
enquanto seres humanos, cada um com diferentes necessidades e vulnerabilizados de diferentes formas
e intensidades. O que oxigena a JR é trabalhar com e a partir do conflito (situação presente),
considerando as vivências únicas das pessoas envolvidas direta e indiretamente (em atenção às
11
Disponível em https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2021/05/reducao-da-populacao-carceraria-
reforca-importancia-de-politicas-judiciarias.html. Acesso em: 05 jun. 2021
88
historicidades de cada ator) e suas necessidades (futuras, geradas pelo conflito).
A invisibilização de violências e da historicidade de sujeitos resulta no esmagamento das
complexidades inerentes a um conflito no empenho de que entremos novamente na conhecida lógica
(falsamente) isonômica de tornar as partes “de mesmo peso e mesma medida”. A consequência é a
extensão da malha penal punitivista, seu dualismo maniqueísta- reducionista e a manutenção da
ilusória ideia de isonomia igualitária prevista em nossa carta constitucional.
Precisamos nos afastar da colonização de um paradigma de justiça restaurativa que perde seu
caráter emancipatório, usada para calar ao invés de ouvir vozes e para aumentar a judicialização
"alternativa" de conflitos que nem seriam visíveis aos olhos ferozes de nosso Estado punitivista.
Os mitos que rondam a ideia de uma "nova" justiça ou um novo meio de se fazer a (velha)
justiça dão contornos arcaicos e conservadores ao que devia ser desprendido e emancipatório. Tentar
encaixar e comprimir a JR nos moldes da sociedade neoliberal em que estamos inseridos é assassinar
sua potência de nos levar a outra forma de cultura e relacionamentos intra e interpessoais, mais
integrada, voltada a valores comunitários e empáticos, e, portanto, mais construtiva para a maioria
(não burguesa).
A repressão da ideia da justiça restaurativa, de suas práticas e nova12 forma de compreender a
relação com conflitos é cotidiana, a começar pela venda de vantagens da justiça restaurativa através de
lentes reacionárias imemoriadas (nabëbë burguês). Estes ditos benefícios, apresentados como soluções
rasas para um sistema judiciário “falho” (que nasceu para “falhar” com certa parte da população 13),
trabalham para que a fábrica do direito, da punição e da justiça continue operando em sua máxima
potência, provendo migalhas em formato de alternativas penais, sem, no entanto, deixar de tomar os
conflitos das partes em seus perversos braços. Mais e mais, a máquina penal se alastra na sociedade,
com a mira nas costas de alvos específicos, sob máscaras de modos progressistas de aplicação de pena.
Mas para quem vale a pena? O que é ser progressista? O que é progresso, e para quem?
As migalhas que temos enquanto cidadãos de um país colonizado sem uma trajetória
decolonial cultural e de justiças de transição após genocídios e ditaduras, ecoam no nosso Sistema
Judiciário, assim como na nossa caminhada legislativa e de proteção social – que positiva direitos
fundamentais mínimos sem garantir sua efetividade (permanecendo dependentes de previsão
orçamentária, na lógica neoliberal).
Este artigo convida a você, pessoa leitora, a fazer a pergunta que tudo transforma e que nos
leva a outro patamar de existência quando se torna cativa em nossa oratória – por quê? Por que em
um governo anterior considerado de esquerda o número de prisões e pessoas aprisionadas escalonou?
Por que em um país capitalista, conservador e atualmente sob um governo de nítido desprezo pela
democracia e que foi denunciado ao Tribunal Penal Internacional em Haia pelo Coletivo de Defesa dos
Direitos Humanos do Brasil (CADHu) e pela Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo
Arns (Comissão Arns) por "incitamento ao genocídio e ataques sistemáticos generalizados contra os
povos indígenas” (THE GUARDIAN, 2019) foi aprovado o artigo 28-A no Pacote Anticrime (hoje,
Lei Anticrime, proposto por Sérgio Moro), prevendo o Acordo de Não Persecução Penal, em tese uma
medida alternativa ao punitivismo que dita todo o referido diploma legal?
O pensamento radicalmente crítico que permeia toda essa obra é necessário para que nos
localizemos com nossos valores e necessidades nos espaços em que tramitamos e aos quais
pertencemos e nos sentimos pertencentes. Não nos cabe aceitar o que nos é imposto se não nos fizer
12
Nova para o Ocidente, o eurocêntrico-branco-masculino
13
Sugestão de leitura: “Código oculto: política criminal, processo de racialização e obstáculos à cidadania da população
negra no Brasil”, de Tamires Gomes Sampaio (2020).
89
sentido. A venda que cobre os olhos de Themis, deusa da justiça14, não nos satisfaz. Não satisfaz que
vendemos nossos olhos e calemos nossas bocas às violências estruturais invisibilizadas que pesam
muito mais nas costas de alguns do que outros, não nos basta a estigmatização de dois lados de um
conflito complexo (bom/mal ou ofensor/vítima), enquanto sabemos que circulamos por todos estes
locais de fala ao longo de nossas vidas. É insuficiente que formatos remodelados (mas com mesmas
limitações e ferramentas do fazer morrer) nos sirvam como migalhas para satisfazerem ideologias
revolucionárias, contentando- se com o reformismo pelo desespero de quem tem pouco e está exaurido
pelo cansaço que toma os trabalhadores e grupos vulnerabilizados da sociedade.
Nosso intento, enquanto defensores da justiça restaurativa comunitária emancipatória, é
desconstruir o projeto colonizatório sobre o tema, que ressignifica perversamente os significados da JR
que acompanham (nominalmente ou não) as culturas de povos originários há séculos. A
ocidentalização da justiça restaurativa precisa ser refreada. A defesa de sua aplicação não deve se
fundamentar na celeridade do trâmite processual, ou porque a formação de facilitador “poderia ser
feita em algumas horas”, ou ainda porque diminui a reincidência/criminalidade, ou, por fim, porque é
uma alternativa ao nosso sistema. Não. Nada do exposto, inclusive, se configura enquanto realidade
fática, conforme muito bem elaborado por Vera Andrade, que discorre sobre a mitologia da justiça
restaurativa no capítulo 10 da obra “Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do poder judiciário”, de
2018.
Propomos aqui uma justiça restaurativa anti-hegemônica, que se sensibiliza e faz sensibilizar
quanto a violências e conflitualidades que permeiam as relações humanas e são sentidas de forma
particular por cada um, atentando-se àquelas estruturais e institucionalizadas, como o machismo, a
lgbtqia+fobia, o etarismo e o racismo, para que seja um movimento de perceber de forma diferente o
mundo, o meio ambiente e as comunidades.
14
Identificada em uma leitura cuidadosa da querida amiga Paloma Graf, inserimos aqui mais uma problematização
subsidiária: na cultura afrobrasileira, tão rica em simbologias e simbolismos, por que ainda nos valemos de uma referência
grega (deusa Themis) como representante da Justiça? Se Themis retirasse a venda de seus olhos, nos olharia a partir do
olhar colonizador e opressor? Já não é passado o momento de utilizarmos simbologias e referências que nos representem
enquanto povo brasileiro, latino-americano e colonizado, ao invés de importar imagens e conceitos europeus que não só
não nos representam, mas também nos violentam?
90
O agir da justiça restaurativa nos orienta para a convivência solidária, íntegra e integral. O
reconhecimento da multidimensionalidade humana (SALM et al., 2012) é mais uma venda que se
desenlaça de nossos olhos, dando lugar às desenganosas lentes do sulear (ORTH; BOURGUIGNON;
GRAF, 2020), que colocam novas referências em nossas bússolas internas, deixando de apontar o
norte-branco-colonizador-eurocêntrico (meio para o “progresso civilizatório”1515) para passar a nos
guiar à nossa historicidade sul-americana.
A multidimensionalidade humana nos adverte que, da mesma forma que uma pessoa é
composta por dimensões múltiplas em diferentes tempos-espaços em que transita (extirpando a ideia
maniqueísta de que alguém pode ser “ruim (ou bom) de nascença”), também o são as histórias-
narrativas. A busca pela verdade única, pelo fato, precisa dar lugar a aceitação de que uma mesma
história pode ser vivida e contada por inúmeras perspectivas (eventualmente, até por uma mesma
pessoa que transforma sua narrativa ao longo de sua vida). Aqui, deixo um último “por que”,
enunciado por Ailton Krenak: “Por que [certas narrativas] vão sendo esquecidas e apagadas em favor
de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história (...)?” (KRENAK, 2020,
p. 19). E adiciono duas perguntas adicionais: por quem são apagadas as narrativas alternativas e por
quem são construídas e propagadas as narrativas globais?
Glossário yanomami para homens nabëbë (a partir de FERREIRA, 2011 e KOPENAWA, 2015)
Õkãkema – cipó.
Omama – o demiurgo yanomama, criador do mundo, produtor de palavras sábias, irmão de Yosi,
criador dos males.
Nabëbë – os brancos, os que falam coisas engenhosas, mas não sábias.
në wãri - seres maléficos da floresta, também são chamados de në wãri kiki (literalmente “valor de mal
– plural de conjunto”), e qualificados pela expressão yanomae th ë pë rããmomãiwi, “os que fazem
adoecer os humanos” ou yanomae watima th ë pë, “comedores de seres humanos”.
Xapiri – o que se pode conhecer como imagens “espirituais” do mundo, que os brancos consideram
“espíritos”.
Xawára - doença, a peste do branco, a epidemia, que ele deflagra quando escarifica a floresta e
chafurda em busca do ouro e de outras cobiças, liberando a fumaça de epidemia.
Yanomam – família linguística que agrupam as diversas línguas faladas pelos povos Yanomami. Pela
compreensão eurocêntrica, os vários povos “yanomami” recomendam que os brancos vejam
pluralidade onde só costumam enxergar unidade.
15
"A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que
havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz
incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na
Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da
história" (KRENAK, 2020, p. 11).
91
92
Referências
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94
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f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.
95
96
AS TEORIAS DA JUSTIÇA E A QUESTÃO RACIAL
Vanilda Honória dos Santos1
Introdução
Neste texto, busco refletir se a questão racial foi considerada na elaboração de algumas das
principais teorias da justiça desenvolvidas no decorrer do século XX e início do século XXI. Trata-se
de uma abordagem introdutória, pois não será possível uma análise ampla sobre a história das teorias
da justiça. O objetivo é destacar alguns aspectos que podem contribuir para a reflexão – delimitados
tempo e espaço específicos – possibilitando compreender as diversas concepções de justiça de acordo
com os contextos nas quais foram pensadas, e como elas refletem o Direito. Salgado (2007, p. 5)
ampara o intuito aqui proposto ao afirmar que o fenômeno da justiça é compreendido como valor
jurídico. Não há como pensar o fenômeno jurídico como uma abstração analítica apenas, mas
geneticamente na sua formação histórica.
O que uma comunidade ou os teóricos compreendem por justiça ao cogitarem os problemas a
ela subjacentes tem implicações diretas na constituição das leis. Por esse motivo, destaca-se a
importância da investigação sobre o que se entendia por direito e justiça no passado, uma vez que ela
também possibilita demonstrar como legisladores e juristas construíram uma ordem simbólica aceita
como vigente e legítima (GROSSI, 2005), assim como sublinha a relevância dessa ordem para o tempo
presente.
Para desenvolver uma reflexão histórica sobre as teorias da justiça, ainda que de forma inicial,
adotei o recorte da questão racial, ou seja, investigo como a luta dos movimentos negros pelos direitos
civis e políticos e contra o racismo, ocorridos em larga escala durante os séculos XX e as primeiras
décadas do século XXI, influenciaram ou não os discursos sobre a justiça. Daí o problema de pesquisa:
a questão racial teve/tem relevância para as teorias da justiça ou estas se pautam na “neutralidade
racial”?
Não se trata de centrar os esforços voltados unicamente para o passado, mas, sobretudo, sobre
a ótica de problemas atuais, visto que o debate racial não foi superado – pelo contrário, está longe
disso –, assim como as concepções de justiça não foram cristalizadas. O questionamento sobre o que é
justiça está sempre em pauta, alinhando-se ao que ocorre com a perspectiva ocidental de direitos
humanos, vez que estes “permanecem sujeitos à discussão porque a nossa percepção de quem tem
direitos e do que são esses direitos muda constantemente. A revolução dos direitos humanos é, por
definição, contínua” (HUNT, p. 27). Portanto, do mesmo modo, o conceito de justiça permanece em
movimento contínuo.
Pensando sob uma ótica global, o século XX contou com duas grandes guerras, genocídios de
amplas proporções, guerras civis pela descolonização de países africanos, os movimentos pelos
direitos civis nos EUA e a luta contra o Apartheid na África do Sul, dentre outros eventos de
dimensões internacionais que implicaram o tema da justiça. No caso brasileiro, destaca-se que na
segunda metade do século XX ocorreu o acirramento da luta contra o racismo e o chamado “mito da
1
Doutoranda em Teoria e História do Direito pelo PPGD/UFSC. Mestra em Filosofia pela UFU (2012). Membro do Ius
Commune – Grupo Interinstitucional de Pesquisa em História da Cultura Jurídica UFSC/CNPq.
97
democracia racial”, o que não se deu de forma isolada do contexto internacional, pelo contrário.
Os teóricos que se empenharam em desenvolver teorias sobre o que é a justiça e suas
implicações na realização do Direito não tiveram como ponto de partida somente a abstração. O
contexto no qual as teorias foram pensadas estimula a indagar sobre a relação destas com a experiência
humana na história, que não se dá de forma linear, mas, sobretudo, imersa em complexidades e
descontinuidades.
1. Teorias da Justiça de matriz ocidental do século XX: igualdade formal e neutralidade racial
2
Embora não declarada no ordenamento jurídico, o racismo científico e a eugenia tiveram implicações de grandes
proporções na realidade brasileira, uma vez que foi política de Estado o projeto de branqueamento da população e extinção
dos negros. Esse projeto foi defendido pelo Estado brasileiro no Congresso Universal das Raças, realizado em 1911, na
cidade de Londres (SOUZA, SANTOS, 2012).
3
Sobre essa questão, veja-se: História Geral da África - VII, África sob dominação imperial, 1880-1935. Editor Albert Adu
Boahen 2ª ed., Brasília: UNESCO, 2010.
4
Veja-se: História Geral da África – VIII: África desde 1935. Editado por Ali. A. Mazrui e Chistophe Wondji. Brasília:
UNESCO, 2010, p. 847-924.
98
continente estejam, de africanos. O Pan-Africanismo foi propagado nos EUA por Marcus Garvey, líder
do movimento pela independência e pelos direitos civis na Jamaica, e influenciou sobremodo o
movimento pelos direitos civis, especialmente os seguidores de Malcom X, o movimento Black Power
e o Black Panther Party. Garvey defendia também a necessidade de uma revolução cultural,
objetivando restaurar o respeito próprio dos negros e o senso de comunidade. Diante disso, os
seguidores organizavam eventos literários, debates, publicavam escritos, realizavam concertos, dentre
outros eventos. Essas teorias também foram e ainda são debatidas no contexto brasileiro, vindo a
influenciar as reivindicações por políticas de promoção de igualdade e de justiça racial e social.
O debate acerca do racismo no âmbito das teorias da justiça não emerge no início do século
XX de forma preponderante, visto que parece não haver nesse período uma real preocupação com a
questão racial quanto se trata de definir o que é justiça. As primeiras décadas do século XX
testemunharam a propagação do antissemitismo na Europa, resultando no holocausto judeu, sendo
este, consequência do racismo propagado em tempos anteriores. Durante as duas primeiras décadas do
século XX, o Apartheid foi sistematizado juridicamente na África do Sul. O mesmo ocorrera nos EUA
em relação à segregação racial e à intensificação de ações de grupos racistas como a Klu Klux Klan,
especialmente nos estados do Sul.
É dentro dessa conjuntura, embora no cenário alemão, que Hans Kelsen publica a obra O que
é justiça? em 1911. Nela, ele retoma a filosofia de Platão para defender que a questão sobre o que é a
justiça coincide com o que é bom ou o que é o bem. Segundo Kelsen, a justiça é uma característica
possível, mas não necessária, de uma ordem social. Ordem esta que é considerada justa quando, ao
regular o comportamento dos homens de modo satisfatório para todos, proporciona a felicidade de
todos; portanto, justiça é felicidade social (KELSEN, 2001, p. 2). Chaim Perelman em seu livro Ética e
Direito, fez uma análise das concepções de justiça do pensamento político contemporâneo,
apresentando, assim como Kelsen, uma crítica às teorias que definem justiça de forma religioso-
metafísica, que afirmam uma noção de justiça pronta e acabada (NUNES JÚNIOR, 2002). De acordo
com Perelman (2000, p. 9), justiça divide-se em concreta ou formal e abstrata.
No contexto global de reivindicação de direitos, sobretudo no que diz respeito à questão racial
e às relações de gênero, as teorias da justiça de matriz ocidental partem das correntes da teoria política
contemporânea: Liberal, Libertária, Utilitarista e Comunitarista. A emergência dos movimentos sociais
e da luta por justiça com base no reconhecimento da diversidade contribuiu de forma significante para
a construção de novas teorias da justiça pautadas no reconhecimento e na diferença.
Em relação à corrente Liberal, destaca-se aqui o Liberalismo Igualitário de John Rawls,
exposta em sua obra Uma Teoria da Justiça (2005), e de Ronald Dworkin, na obra A virtude soberana:
A teoria e a prática da igualdade (2000). O liberalismo igualitário5 de Rawls visa estabelecer
princípios básicos de justiça enquanto equidade, sendo talvez, a teoria da justiça que mais foi
influenciada pelos debates sobre a questão racial, especificamente sobre as políticas de ações
afirmativas, e também a que mais influenciou, considerando o contexto no qual foi elaborada, com
forte atuação do movimento pelos direitos civis nos EUA, bem como seus resultados efetivos. Há
vários trabalhos analisando os debates e as decisões judiciais acerca das políticas de ações afirmativas
como reparação dos danos causados pelo racismo e as desigualdades decorrentes dele à luz das teorias
da justiça de Rawls e Dworkin. Acerca da posição de Dworkin sobre o debate racial nos EUA, Feres
Junior (2014) acrescenta que a sociedade norte-americana já seria fortemente "racializada", o que seria
uma consequência de uma história de escravidão, repressão e preconceito.
5
Veja-se também VITA (2007).
99
A perspectiva libertária será abordada de forma sucinta a partir das teorias de Robert Nozick
em Anarquia, Estado e Utopia (1991) e de Friedrich Hayek em Caminhos da Servidão (1990). Os
modelos de justiça propostos por Hayeck e Nozick se enquadram na perspectiva neoliberal, segundo a
qual a racionalidade é proporcionada pelo mercado e não pelo planejamento estatal, as quais, em razão
de sua amplitude, não serão exploradas neste texto66.
O Utilitarismo a partir da concepção de Will Kymilicka, Liberalism, Communitty and Culture
(1990), é talvez a teoria mais influente na contemporaneidade. De acordo com essa teoria, deve-se
promover a felicidade, a propriedade ou o bem-estar, considerando que são as buscas às quais os
indivíduos se empenham. O diferencial abordado pela teoria é que essa busca deve ser promovida de
maneira imparcial para todos na sociedade, o que implica em ações das instituições estatais e não
unicamente ações individuais, impactando nas políticas públicas. Em linhas gerais, o Utilitarismo é
definido como maximização da utilidade total ou média, sendo que Kymilicka (2006) o considera
como a mais poderosa arma contra o preconceito e a superstição.
A teoria da justiça de John Rawls suscitou um amplo debate com seus opositores, os
comunitaristas, os quais se fundamentam no pluralismo. Entre os autores comunitaristas, destacam-se
as perspectivas sobre justiça de Michael Sandel em Justice and the Good (1984), no qual ele rejeita a
noção de prioridade do Direito e do justo sobre o bem, e de Michael Walzer em seu livro Esferas da
Justiça (2003). De acordo com os comunitaristas, o Liberalismo como desenvolvido por Rawls em sua
concepção de justiça como equidade se pauta em uma ética baseada no justo, enquanto a melhor
resposta para as questões contemporâneas relativas à justiça deve ser buscada a partir dos conceitos de
cidadania e comunidade. Em Public philosophy (2005), Sandel defende as ações afirmativas por
permitirem a diversidade e a convivência com o outro.
A maioria das teorias da justiça desenvolvidas no século XX teve como eixo norteador o
paradigma distributivo. Na última década emergiram novas tendências sobre a justiça que argumentam
que um adequado entendimento do que é a justiça deve, necessariamente, incluir além da luta pela
distribuição igualitária, a luta pelo reconhecimento. Nesse rol surgiram as teorias de Nancy Fraser
(2001) e Axel Honneth (2003a, 2003b). Para a primeira, distribuição e reconhecimento são dimensões
indissociáveis da justiça; para o segundo, o reconhecimento é uma categoria moral fundamental, da
qual a distribuição é uma derivação. Fraser dispõe que o objetivo do desconstrutivismo antirracista é
formar uma cultura que substitua dicotomias hierárquicas raciais por redes de diferenças múltiplas
(FRAZER, 2001, p. 278).
O multiculturalismo é uma das tendências mais influentes do pensamento político
contemporâneo, o que por sua vez contribui para que questões relativas à identidade e à diferença se
tornem amplamente debatidas, sendo incorporadas de forma mais incisiva às reflexões acerca da
justiça no Estado Democrático de Direito, especialmente as que abordam a temática a partir da
perspectiva feminista. Nesse bojo, Iris Marion Young, no livro Justice and the Politics of Difference
(2011), promove uma análise crítica das teorias da justiça de liberais e igualitários, afirmando que é
necessária uma nova concepção de justiça, que contemple a afirmação das diferenças entre os grupos
sociais.
Observa-se que novas demandas foram sendo incorporadas à discussão sobre o que é a justiça.
Nesse ponto levantam-se as questões: quais fatores contribuíram para essa mudança de visão, não mais
vista unicamente de justiça distributiva? Os movimentos de debate acerca da questão racial em
diversos locais tiveram relevância na construção das teorias contemporâneas de justiça?
6
Veja-se mais em: VITA (2007).
100
2. Justiça de Transição e Justiça Restaurativa
As teorias da justiça racial surgem no contexto da Critical Legal Study (CLS), sendo
7
Sobre esse tema, veja-se: BUENO, Tomás Valladolid. Justicia de Transición y Justicia Restaurativa. In: SOUZA
JÚNIOR, José Geraldo de; et al. O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina, 1ª ed.
Brasília: UnB; MJ, 2015 (O direito achado na rua, v.7), p.325-328.
8
Acerca dos princípios e valores, veja-se: SALM, João; SOUZA NEVES, Natália. What initial discussion on the
rationality(ies) of Restorative Justice. In: European Forum for Restorative Justice, v. 20, n. 1, March 2019, p. 4-7.
101
desenvolvidas por um grupo de professores e pesquisadores comprometidos com o combate ao
racismo, sobretudo ao que ocorre no sistema de justiça (o que inclui as escolas de Direito), movimento
este iniciado pelo professor de Harvard, Derrick Bell (1995). Esse emerge mais especificamente na
segunda geração, que se caracteriza por priorizar a prática de nomear a própria realidade, fazendo uma
crítica à primeira geração da CLS tanto por essa ter uma postura injusta com a luta pelos direitos civis,
visto que a considera descartável, quanto pela contradição de criticar a universalização, mas reproduzi-
la em relação às demandas dos demais grupos não brancos, não masculinos e de esquerda. Essa
segunda onda surge da dissidência da Feminist Legal Criticism (Crítica Feminista ao Direito) e da
Critical Race Theory (Teoria Crítica Racial), com o objetivo de abarcar as questões da realidade. Seu
expoente que aqui nos interessa é o já mencionado professor Derrick Bell99.
Essa perspectiva de teoria crítica do direito é fundamental para compreendermos a injustiça
racial e a busca por uma justiça racial não abordada de forma suficiente ou ignorada por teorias
clássicas da justiça, conforme demonstrado acima. De acordo com Derrick Bell (1995), capitalismo e
raça não se desconectam, de modo que a categoria raça é central para a divisão internacional do
trabalho e dos recursos, o que caracteriza o racismo como central no direito liberal moderno.
Já na terceira geração da CLS, inclui-se o conceito de interseccionalidade, cunhado pela
jurista Kimberlé Crenshaw (1995, 2002a, 2002b). Há uma tendência de se compreender o Ocidente
moderno como uma evolução na qual as chamadas “minorias” são incluídas. O que na verdade ocorre
é a concessão de alguns direitos para adiar o enfrentamento que pode de fato alterar as estruturas do
sistema. Esse modo de proceder as construções teóricas é notado em uma análise mais aprofundada das
teorias da justiça e está fortemente presente na concepção neoconstitucionalista ao minimizar o papel
das lutas por excelência.
Na terceira fase das teorias críticas do direito emergem teorias que vão fazer severas críticas
ao binarismo racial e à heteronormatividade da Critical Legal Study, como a LatCrit, a QueerCrit e a
DisCrit (ALMEIDA, ADRIANO, 2020), as quais por conta do tempo e do espaço não serão abordadas
neste trabalho. A questão que aqui interessa é destacar de forma sumariada a importância de abordar
essas teorias que refletem a realidade no tocante a questão racial, o que não se percebe na
formação jurídica no Brasil. Conforme o jurista Philippe Almeida de Oliveira (2018, p. 484), “é
necessário conferir, à ‘arte revolucionária’ das teorias críticas, uma ‘forma revolucionária’ de
educação, que efetivamente subverta a (valendo-nos do léxico de Alberto Luis Warat) ‘semiologia do
poder’ fixada nas escolas de Direito”.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende se caracterizar como um convite à continuidade
de uma reflexão sobre as teorias da justiça por meio de uma abordagem afroperspectivista, a partir da
exposição do texto do filósofo Severino Elias Ngoenha, Ubuntu: novo modelo de Justiça Glocal?
(2011), no qual ele afirma que os elementos centrais da justiça nos círculos de pensamento são “não
unicamente filosóficos, mas também jurídicos e, sobretudo econômicos” (NGOENHA, 2011, p. 63).
Ao mesmo tempo alerta que a centralidade da discussão acerca de temas relacionados à discriminação,
à violação de direitos elementares da pessoa e dos povos e de mortes tenha ficado unicamente na seara
da História, considerando que este é um campo aberto, multiforme e destituído de uniformidades. E
acrescenta que “na primeira metade do século XX o debate de ideias foi dominado pelo estadual-
9
A abordagem sumariada aqui apresentada teve início com a minha participação como ouvinte da disciplina Direito e
Sociedade: Justiça Racial, ministrada durante o 1º semestre de 2021 pelo Prof. Dr. Philippe Oliveira de Almeida no curso
de graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Veja-se também: SILVA, Caroline Lyrio. PIRES,
Thula Rafaela de Oliveira. Teoria Crítica da Raça como referencial teórico necessário para pensar a relação entre direito e
racismo no Brasil. In: Direitos dos conhecimentos. CONPEDI/UFS, Coordenação: Fernando Antonio de Carvalho Dantas,
Heron José de Santana Gordilo, Wilson Antônio Steinmetz. Florianópolis: CONPEDI, 2015, p. 61-85.
102
centrismo intra-europeu e, na segunda metade, pelo conflito ideológico entre os blocos de esquerda e
direita” (NGOENHA, 2011, p. 63).
Ngoenha chama atenção para o fato de que a solução liberal-econômica não foi capaz de
cumprir a promessa de dar a eudaimonia para o maior número de pessoas, conforme foi delineada pelo
utilitarismo de Bentham e Stuart Mill (NGOENHA, 2011, p. 67). O mesmo ocorrera com diversas
outras abordagens teóricas que em muito influenciaram as teorias da justiça. Segundo Ngoenha (2011,
p. 68): “A verdadeira questão glocal de hoje – no sentido que interpela as relações entre grupos no
interior de todas as sociedades, mas também a relação entre as diferentes partes do mundo – é a
justiça”.
Diante disso, o autor assevera que a centralidade da justiça já estava posta na filosofia da
libertação latino-americana e que foi antecedida pelo movimento Black Theology of Liberation dos
EUA, alicerçado em todo o movimento pela igualdade de direitos, isto é, por justiça. Esse movimento
ganha forma nos EUA no período escravista e atinge o seu ápice no movimento Black Rennaissance
no Harlem por meio dos trabalhos sócio-filosóficos de Dubois e de literários como Langston Hugues e
políticos de Marcus Garvey, e ganha uma dimensão ampliada com Martin Luther King, Malcom X e o
movimento Black Power. Todos esses movimentos e teorias demonstraram que os problemas da justiça
desenvolvidos até aquele contexto não obtiveram êxito algum, mesmo que suas bases estivessem nas
construções filosóficas ocidentais desde a Antiguidade, passando pela modernidade e até a
concepção sul-africana através do Ubuntu, compreendido enquanto Justiça Restaurativa (NGOENHA,
2011, p. 68).
Ngoenha prossegue afirmando que se interessar pelas questões da justiça é ir além do âmbito
afro-africano/sul-africano, sendo uma contribuição na seara da filosofia em geral, uma vez que “o
conceito de justiça restaurativa, como foi praticada e como pode ser teorizada, pode constituir uma das
primeiras contribuições importantes do continente africano para um debate das ideias que ultrapassa a
dimensão africana” (NGOENHA, 2011, p. 69). Ademais, o conceito de Ubuntu é assim delineado:
104
Considerações Finais
105
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109
110
E CADÊ “RAÇA” NOS DISCURSOS RESTAURATIVOS? CRÍTICAS ÀS
BRANQUITUDES DO MOVIMENTO RESTAURATIVO INTERNACIONAL
Kennedy Anderson Domingos de Farias1
Fernanda Fonseca Rosenblatt2
Introdução
1
Graduando em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Foi bolsista do Programa de Iniciação
Científica da UNICAP sob a orientação da professora Fernanda Fonseca Rosenblatt, com projeto vinculado ao grupo Asa
Branca Criminologia e cuja pesquisa originou o presente capítulo de livro. E-mail: kennedy.29@outlook.com.
2
Professora da Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora
do International Institute for Restorative Practices (IIRP/EUA). Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Reino
Unido). Mestre em Criminologia pela Katholieke Universiteit Leuven (Bélgica). Membra-fundadora do grupo de pesquisa
Asa Branca Criminologia (UNICAP/CNPq). E-mail: fernanda.rosenblatt@unicap.br.
3
E nós temos preferido a tradução para “roubo” mesmo, e não “furto” ou “apropriação”, como forma de reconhecer a
violência que marca tantas experiências de justiça dominadas pelos profissionais do sistema de controle penal.
4
Para um apanhado persuasório sobre as raízes milenares do que hoje chamamos de justiça restaurativa, vide Weitekamp
(1999).
5
Vale mencionar que é um dos instrumentos políticos sobre justiça restaurativa mais comemorados na atualidade.
111
a punição depois do veredicto final). Por outro lado, dá voz às vítimas, melhorando a sua experiência
de justiça, na medida em que também se volta à satisfação de necessidades advindas do crime. E mais,
trata-se de um processo inclusivo, no qual a “comunidade” afetada também tem assento, inclusive a
“comunidade de apoio” das partes. É por tudo isso que, na prática, os processos restaurativos são
geralmente concebidos como um encontro “cara-a-cara” entre as partes afetadas pelo delito, como na
mediação vítima-ofensor, nas conferências restaurativas (nas quais a família das partes geralmente está
presente) e nos círculos restaurativos (maiores, com a inclusão de outras pessoas da comunidade local)
(ROSENBLATT, 2015b).
As pesquisas empíricas conduzidas mundo afora apontam para uma série de benefícios dos
processos restaurativos (em contraste ao processo penal convencional), dentre eles: (1) O índice de
satisfação das vítimas que participam de encontros restaurativos é alto e tem sido consistente em todas
as localidades, culturas e independentemente da gravidade do crime (VANFRAECHEM; BOLÍVAR;
AERTSEN, 2015); (2) Os processos restaurativos criam espaços reais para a vítima falar e ser ouvida
dentro do processo de resolução do “seu” próprio conflito, levando a vítima a experimentar, mais
facilmente, a chamada “justiça procedimental” (PEMBERTON, A.; VANFRAECHEM, 2015;
TYLER, 1990); (3) O diálogo com “seu” infrator permite que vítimas tenham respondidas perguntas
que lhes são importantes inclusive na tentativa de “passar a página” (ou, em inglês, atingir closure)
(ROSENBLATT, 2015b); (4) Os processos restaurativos tendem a reduzir os níveis de estresse pós-
traumático das vítimas (BOLÍVAR, 2019); (5) A lógica dialogal e menos formal de resolução de
conflitos tende a criar um ambiente propício e seguro para se discutir conflitos subjacentes ao delito, às
vezes mais importantes para as partes do que o próprio crime reportado à polícia (CNJ, 2018a); (6) E
até algum impacto nos índices de reincidência tem sido reportado na literatura a partir de pesquisas
empíricas de avaliação de programas de justiça restaurativa (v.g., BONTA et al., 2006; LATIMER;
DOWDEN; MUISE, 2005; SHERMAN et al., 2015), muito embora a fragilidade metodológica desses
estudos convidaria um capítulo só sobre o tema (v.g., STRANG; SHERMAN, 2015).
Então o que nos preocupa na justiça restaurativa? Ou, mais precisamente, sobre qual
preocupação (das muitas) pretendemos nos debruçar no presente capítulo? Bom, como já restou dito, a
justiça restaurativa é, muito marcantemente, um movimento guiado pelo crescente e já antigo
descontentamento com o modo de funcionamento do sistema de justiça criminal. Sendo assim, era de
se esperar que as questões de raça figurassem de forma proeminente nos discursos restaurativos.
Realmente, existem evidências empíricas suficientes de que o sistema de justiça criminal, de bases
racistas (além de classistas, sexistas etc.), opera de modo seletivo, voltando-se com mais força (e em
maior número de providências) contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade, notadamente
contra o (jovem) negro (FLAUZINA, 2017). Com efeito, não se pode negar que a categoria “raça” é
usada como elemento estruturante do funcionamento do controle positivado, sendo essa categoria
“mais uma variável de explicação do processo de seletividade do controle penal” (PRANDO, 2018, p.
74). Ocorre que as pesquisas e práticas em justiça restaurativa parecem ter sido desenvolvidas
praticamente à revelia da dimensão de raça, no que começa a ser denunciado por alguns (v.g., DAVIS,
2019; EMLING, 2020; GAVRIELIDES, 2014) como um grande paradoxo: como pode a justiça
restaurativa ser apresentada como um novo paradigma de resolução de conflitos criminalizados, sem
que as questões de raça tenham sido endereçadas em suas promessas, aspirações e aplicações? Ou,
dito doutro modo, como é que a justiça restaurativa pretende romper com o modo de operar do
vigente sistema de justiça criminal sem que sejam inseridos debates sobre relações raciais nas
pesquisas, práticas e políticas ditas restaurativas?
Portanto, é no intuito, não necessariamente de encontrar respostas a tais perguntas, mas de
112
chamar atenção para elas (e tantas outras relacionadas) que escrevemos o presente capítulo. E o
escrevemos a quatro mãos. A segunda autora, Fernanda, professora branca do primeiro autor. O
primeiro autor, Kennedy, aluno negro que a provocou a sair da sua zona de conforto, mas que também
lhe garantiu uma cadeira confortável ao longo desse processo: a de aluna6.
Explicar o que é justiça restaurativa, como se pode perceber do esforço introdutório, não é um
exercício linear. Não existem pontos certos de saída e de chegada, nem mesmo quando elegemos
trabalhar (ou organizar o nosso trabalho) a partir de uma definição “oficial”, como aquela acima
apresentada, do Conselho da Europa. E isso porque a justiça restaurativa, hoje, mais do que uma
experiência processual de reconciliação entre vítima e ofensor, como naquele primeiro caso
canadense7, transformou-se em algo maior: em um verdadeiro movimento, ou seja, “um
empreendimento coletivo que busca transformar vários aspectos da sociedade contemporânea”8
(JOHNSTONE, 2008, p. 59; vide, também, JOHNSTONE; VAN NESS, 2007).
Com efeito, embora os debates sobre a justiça restaurativa ainda se voltem, majoritariamente,
à análise de processos restaurativos em matéria criminal (ou, às vezes, de apenas um tipo de processo
ou prática9), este movimento – o “movimento restaurativo” – não se limita (mais) ao objetivo de
(apenas) mudar o procedimento com o qual lidamos com o crime. Conforme explica Johnstone (2011,
p. 144), o foco da “campanha restaurativa” tem mudado significativamente ao longo dos anos:
[...] expandiu “para baixo”, deixando de englobar apenas o crime para abranger, também,
problemas mais cotidianos de comportamento disruptivo, mau desempenho nas escolas e nos
locais de trabalho, e outras condutas lesivas do dia a dia; e “para cima”, indo além dos crimes
comuns para abarcar graves violações de direitos humanos, genocídio e injustiças históricas de
grande escala.
Segundo o mesmo autor, o movimento restaurativo possui, pelo menos, cinco agendas
distintas:
6
E, por óbvio, essa última frase foi escrita por ela somente, a “professora”, em agradecimento a Kennedy, por tudo que ele
me ensinou e me ensina. Por ele representar tantas lutas e vitórias – das políticas públicas de acesso à educação superior e
de inclusão social, que marcam a nossa ainda recente história, à necessidade de resistência diante do sucateamento e do
desmonte da educação e da pesquisa num país, hoje, desgovernado...
7
E a reconciliação, hoje, nem é mais um objetivo central da justiça restaurativa. Com efeito, na medida em que sua
aplicação se expandiu, mesmo ainda dento do sistema de justiça criminal (por exemplo, para casos de violência doméstica),
percebeu-se que, diferentemente de uma meta, que pode findar por forçar as pessoas a seguirem numa direção avessa
àquela que gostariam de seguir, a reconciliação é uma mera possibilidade ou, simplesmente, um “subproduto” (byproduct)
eventual de um processo restaurativo voltado para outros objetivos principais (ROSENBLATT, 2015b).
8
Todas as traduções para a língua portuguesa de passagens originais em língua inglesa foram feitas livremente pelos
autores.
9
Aqui no Brasil, muito comumente, aos chamados “círculos de paz” (CNJ, 2018b).
113
conflitos e “baixo desempenho”.
4. Promover a justiça restaurativa como parte da solução para o problema de se alcançar a
reconciliação política após eventos de violência em massa e opressão.
5. Criar uma sociedade justa, definida como uma sociedade na qual todas as necessidades
humanas são atendidas e – como um aspecto disso – transformar a maneira como as pessoas se
entendem, bem como a relação que temos com o mundo ao nosso redor (JOHNSTONE, 2008,
p. 61).
O argumento daqueles que exortam o [movimento restaurativo] a seguir essa agenda [agenda
5] é que o projeto de justiça restaurativa mais convencional (por exemplo, agendas 1 e 2) é
muito limitado e conservador. A justiça restaurativa visa reparar o dano criado e revelado por
atos injustos. No entanto, argumenta-se, ela concentra a atenção em uma gama muito limitada
de atos injustos – aqueles que são oficialmente classificados como criminosos, enquanto ignora
muitos comportamentos que não são classificados como criminosos, mas são igualmente
injustos e causam grandes danos. Na verdade, de acordo com alguns defensores, inúmeros atos
danosos ocorrem todos os dias como parte da interação social normal em uma sociedade que é
estruturalmente violenta (JOHNSTONE, 2008, p. 75).
E adicionaríamos um ponto à provocação acima. Por um lado, de fato, existem atos injustos
que causam danos, mas que não estão criminalizados e, portanto, tendem a ficar fora do “radar
restaurativo”. Por outro lado, é essencial acrescentar: existem atos classificados como criminosos que
não provocam danos reais (ou sentidos) e que têm levado programas de justiça restaurativa a
importarem certos dogmas e artificialidades do sistema de justiça criminal – por exemplo, o esforço de
encontrar uma vítima e de construir uma narrativa de provocação de danos em casos de posse de
drogas para consumo pessoal11.
É com esse olhar mais ousado sobre o problema que é o sistema de justiça criminal e a
necessidade, daí, de ir para além dele, que a justiça restaurativa tem alcançado cenários que, no início
do movimento, foram mantidos distantes. Por exemplo, hoje, o movimento restaurativo tem se
ocupado, principalmente nos EUA, de debates sobre o papel da justiça restaurativa nos empenhos
contemporâneos pela reparação da escravidão negra (JOHNSTONE, 2008). E embora essa temática
possa parecer distante da mais focada necessidade de transformação do sistema de justiça criminal, é
10
Para uma discussão mais detalhada sobre a relação e os limites entre as justiças restaurativa e de transição, inclusive com
indicação de autores que se posicionam de tal ou qual forma, vide Rosenblatt e Weitekamp (2019).
11
Mais sobre esse agir artificial em casos de drogas, vide Rosenblatt (2015b).
114
apenas para os olhares mais desatentos e embranquecidos que ignoram a relação histórica e viva entre
o legado da escravidão e o operar racista desse sistema (DAVIS, 2019).
Quer dizer, mesmo que nos limitemos às agendas mais ligadas ao sistema de justiça criminal,
como por vezes acabaremos por fazer no desenvolvimento do presente capítulo, é imprescindível, para
a manutenção de alguma coerência, termos uma visão do movimento restaurativo como um todo. A
sugestão de Johnstone, no final das contas, a qual decidimos seguir, é de que os interessados em
agendas específicas – por exemplo, na agenda voltada a promover o uso de processos restaurativos
(círculos restaurativos, conferências, mediação vítima-ofensor etc.) como parte fundamental da
resposta social ao crime – “devem estar cientes de que ao discutir uma agenda específica, eles não
estão discutindo a justiça restaurativa em si, mas apenas uma dimensão dela” (JOHNSTONE, 2008, p.
76). Não enxergar as variadas dimensões da justiça restaurativa, inclusive, é ignorar movimentos
essenciais que estiveram em sua gênese: o movimento pelos direitos civis e pelos direitos das mulheres
das décadas de 1960/70, o movimento pelo direito das vítimas (victims’ rights movement), o
comunitarismo, os movimentos pela emancipação de povos indígenas e pelo desencarceramento, o
abolicionismo penal, entre outros (WALGRAVE, 2008).
Ao fazermos uma análise intencional da literatura em busca de textos que trouxessem raça
para o debate sobre justiça restaurativa, percebemos que o tema racial, quando presente, em regra
aparece de modo inexpressivo ou en passant. É o que ocorre, por exemplo, no Manual da Organização
das Nações Unidas sobre Programas de Justiça Restaurativa, mesmo em sua mais recente edição de
2020, o qual apenas tangencia o assunto e de maneira breve1212. É também o que constatou Fania
Davis quando, há época em que ainda era nova à temática restaurativa, fez uma busca no Google por
textos que trabalhassem a intersecção entre as justiças restaurativa e racial e encontrou “nem sequer
um punhado de publicações no campo da justiça restaurativa que tratasse de raça, branquitude, o
movimento dos direitos civis, encarceramento em massa e a representação excessiva de pessoas de
cor13 no sistema de justiça criminal” (DAVIS, 2019, p. 30). Ela também relata não ter encontrado,
naquele tempo, conferências ou eventos especificamente tratando dessas intersecções. “O movimento
de justiça restaurativa parecia não ter consciência racial!”, exclama a autora (DAVIS, 2019, p. 31).
Na verdade, como nos lembram cerca de 20 autores “de cor” que contribuíram para uma
recente coletânea intitulada “Colorizing Restorative Justice”14 (VALANDRA, 2020), os danos
institucionais, sistêmicos ou estruturais nunca ocuparam um lugar de destaque no radar da literatura
mais estabelecida (ou mais antiga) sobre justiça restaurativa. Pelo contrário. A narrativa dominante é
de que danos e conflitos são predominantemente uma consequência de escolhas pessoais, sem uma
devida atenção aos elementos estruturais que geram essas experiências. Assim, ao longo dos primeiros
30 ou 40 anos do movimento restaurativo contemporâneo, restaurativistas dos mais renomados e/ou
atuantes foram institucionalizando (ou promovendo a institucionalização de) práticas ditas
restaurativas “de olhos fechados para como as instituições dominadas pelos brancos silenciam o povo
12
Por exemplo, quando sugere um dever de cuidado dos programas na escolha de facilitadores que sejam da mesma etnia
dos participantes (UNODC, 2020, p. 51).
13
É comum, principalmente nos EUA, utilizar a expressão “people of color” (pessoa de cor) para se referir às pessoas não-
brancas (incluindo afro-americanos, latino-americanos, asiático-americanos, nativo-americanos etc.).
14
Em português, “Colorindo a Justiça Restaurativa”.
115
de cor que ali trabalham, ou têm essas pessoas como mero tokens15” (VALANDRA, 2020, p. 8).
A ausência do debate sobre relações raciais não é um problema novo, nem circunscrito à
temática restaurativa. E essa ausência decorre, em parte, de o assunto “raça” ser, ainda hoje, proibido.
É o que nos ensina Abdias Nascimento (2016), em sua obra “O Genocídio do Negro Brasileiro:
Processo de um Racismo Mascarado”. Nascimento denuncia a incineração, em 1899, de todos os
documentos referentes à escravidão, tráfico negreiro e africanos escravizados no Brasil, incluindo
dados estatísticos, demográficos e financeiros, demonstrando uma proibição de se discutir o tema
racial, a qual tem reflexos na atualidade. Ainda segundo ele, tal proibição também pode ser
identificada na “decisão de eliminar dos censos toda informação referente à origem racial e à cor
epidérmica dos recenseados, dando margem às manipulações e interpretações das estatísticas segundo
os interesses das classes dominantes” (NASCIMENTO, 2016, p. 93). Decisão essa que, apesar de ser
de 1970, reverbera ainda hoje. Por exemplo, nas pesquisas empíricas conduzidas pelo grupo Asa
Branca Criminologia ao longo da última década, sempre foi um desafio traçar o perfil socioeconômico
das populações estudadas, notadamente em decorrência da reiterada ausência de informação sobre raça
nos documentos primários que tipicamente servem de base às nossas análises documentais (v.g.,
inquéritos policiais, processos judiciais etc.).
Outra questão relevante é a partir de onde (ou de quem) se produz o conhecimento sobre a
justiça restaurativa. Que tipo de formação receberam os teóricos e práticos da justiça restaurativa? Que
autores leram? Para tentar compreender a carência de debates raciais nos ditos, escritos e feitos
restaurativos, é essencial refletir sobre questões desse tipo. Com efeito, o genocídio da população
negra, além de uma decisão a respeito de quem pode viver ou morrer (MBEMBE, 2018), utiliza outras
estratégias de dominação, como o embranquecimento cultural (NASCIMENTO, 2016) e a negação do
conhecimento produzido pelos grupos dominados, isto é, o epistemicídio (CARNEIRO, 2005). Como
observa José Jorge de Carvalho, ao debater a refundação étnica, racial e epistêmica das universidades
brasileiras:
Apesar de uma virada epistemológica mais recente, inaugurada por autores como Fania E.
Davis, irmã da ativista política e filósofa Angela Davis, sobre a qual falaremos mais a seguir, ainda é
fato que a maior parte conhecida da literatura sobre justiça restaurativa foi, é, e continua sendo
produzida por pessoas brancas. Isso ajuda a explicar, em parte, o não lugar ocupado pelo tema racial
no campo restaurativo. De fato, inexiste preocupação em se classificar algo racialmente quando a
pessoa que classifica é referência cultural, como aponta Adilson Moreira (2019, p. 166-167):
15
O termo “tokenism” (que tem sido traduzido para “tokenismo”) se refere a práticas superficiais ou artificiais que visam
dar apenas uma aparência de igualdade racial ou sexual, por exemplo, dentro de uma força de trabalho. Mais sobre o termo
e a sua origem, atribuída a Martin Luther King, pode ser lido aqui: https://www.politize.com.br/tokenismo/ (acesso em 22
jul. 2021).
116
[...] os juristas que negam a relevância social da raça obviamente ignoram o fato de que ela tem
um papel central na vida de pessoas brancas. Ela marca o lugar social delas e esse lugar é a
acumulação de privilégios decorrentes do pertencimento ao grupo racial majoritário. Juristas
brancos não se classificam racialmente. Eles são apenas pessoas, eles são apenas indivíduos. É
difícil perceber a discriminação quando a cor da pele não levanta dúvidas sobre sua integridade
moral. Aliás, ela aparece como a personificação da superioridade moral, pois todas as
representações culturais da honestidade são brancas. Por que pessoas brancas achariam que a
raça tem relevância na vida delas? Afinal, elas nunca foram seguidas em shopping centers, uma
experiência pessoal constante. Ser branco dentro da nossa sociedade não marca um lugar social
específico, marca uma referência cultural a partir da qual todas as pessoas são julgadas. É por
isso que muitos autores dizem que ser branco é um lugar de transparência total porque não há
sentido em se classificar racialmente quando a pessoa é a referência cultural.
16
Quarentona porque, como dissemos no início, estamos falando da justiça restaurativa documentada, quer dizer, daquela
que vem se desenvolvendo do final dos anos 1970 ou início dos anos 1980 em diante (vide a Introdução ao presente
capítulo).
17
Inclusive, por exemplo, The International Journal of Restorative Justice está preparando uma seção especial de resenhas
inteiramente dedicada à revisão desses quatro volumes.
18
“O Pequeno Livro sobre Raça e Justiça Restaurativa”.
19
“O Pequeno Livro sobre Cura Racial”.
117
(DEWOLF; GEDDES, 2019); “Institutional Racism and Restorative Justice”20 (EMLING, 2020); e o
já mencionado “Colorizing Restorative Justice” (VALANDRA, 2020). Hoje, o tema também aparece
com mais frequência em textos e coletâneas dedicados à discussão de outras questões, numa (talvez
ainda tímida) demonstração sobre a impossibilidade de falar de justiça restaurativa sem tratar de raça.
Vide, por exemplo, os recentes “Routledge International Handbook of Restorative Justice”21
(GAVRIELIDES, 2019) e “Listening to the Movement”22 (LEWIS; STAUFFER, 2021) – ambos
possuem mais de um capítulo que enfrenta o tema racial.
Esses esforços têm chamado atenção para o fato de que a justiça restaurativa, como até hoje
concebida, promovida e praticada: (a) não é um projeto de diversidade; (b) é tipicamente tida (e
operada) como um novo programa, simplesmente, e não uma mudança de paradigma; (c) sendo assim,
não existe preocupação suficiente em torno da sua incapacidade atual de reduzir as taxas de
encarceramento (e, muito atrelado a isso, são pouquíssimos os esforços para discutir o uso de práticas
restaurativas em casos de crimes de droga); (d) as capacitações em justiça restaurativa, em regra, não
incorporam a necessidade de compreender que a violência é, ao mesmo tempo, interpessoal e (sempre)
estrutural, e que toda prática e mentalidade restaurativa deve refletir essa inter-relação; (e) aliás, os
currículos das capacitações em justiça restaurativa não costumam incluir pontos sobre racismo, sobre a
natureza sistêmica dos danos raciais e sociais ou sobre descolonização; e assim por diante (v.g.,
LEWIS; STAUFFER, 2021; VALANDRA, 2020).
Esta “virada” na literatura também nos leva a lançar um olhar mais crítico sobre a
institucionalização de programas de justiça restaurativa – como ela ocorre, quais são as consequências
e como ela atropela o “potencial ético-político radical”23 da proposta restaurativa? É nesse sentido o
alerta de Maglione (2019, p. 22):
20
“Racismo Institucional e Justiça Restaurativa”.
21
“Manual Internacional da Routledge sobre Justiça Restaurativa”.
22
“Escutando o Movimento”.
23
Expressão utilizada por Maglione (2019).
118
[...] o acesso à certificação pode se tornar domínio de elites profissionais educadas, o que
exclui profissionais marginalizados, pessoas diretamente afetadas e a sabedoria da comunidade.
Em outras palavras, a certificação pode ser inerentemente opressiva.
De fato, muitas “pessoas de cor” abraçam o trabalho da justiça restaurativa e querem praticá-
lo, mas esbarram em barreiras institucionais. O credenciamento de padrões acaba funcionando como
uma forma de controle dentro do movimento restaurativo (VALANDRA, 2020).
E esses argumentos aqui listados não são, ao nosso ver, uma “ode” à não institucionalização.
Diferentemente disso, trata-se de reconhecer suas consequências para das duas, uma: evitar a
institucionalização sempre que possível e, reconhecendo que não será sempre possível, problematizá-la
a fim de garantir um olhar aberto, diverso, atento e proativo frente aos riscos que ela representa. Como
coloca, de novo, Lewis e Stauffer (2021, p. xxi):
O impacto da opressão deve ser compreendido desde o próprio círculo micro-interpessoal até o
macro design de novos processos de justiça restaurativa, para fornecer recursos aos paradigmas
indígenas [e comunitários, não-institucionalizados] de pacificação, abordar os danos históricos
e garantir a diversidade real nas estruturas de liderança nacional, para citar algumas
coisas (grifo nosso).
O grifo acima não poderia deixar de ser dado em nosso texto, um texto publicado num país, o
nosso, dominado por uma justiça restaurativa de caráter “judicial” (CNJ, 2018b). Isto é, num país
marcado por um movimento restaurativo liderado e protagonizado pelo Poder Judiciário24.
A inclusão da variável “raça” nas nossas investigações acerca do movimento restaurativo
internacional e discussões sobre que tipo de justiça restaurativa queremos para o Brasil, também nos
leva a enxergar experiências desenvolvidas fora do eixo Europa-EUA. Com efeito, embora a literatura
a respeito da justiça restaurativa seja produzida, sobretudo, pelo Norte global, a partir da experiência
principalmente de países europeus e norte-americanos, existem experiências e conceitos restaurativos a
serem pesquisados a partir do Sul global, destacando-se, por exemplo, aquelas vividas no continente
africano. O arcebispo Desmond Tutu, presidente da Comissão da Verdade e Reconciliação da África
do Sul, em uma entrevista sobre o seu funcionamento, teria dito: “A justiça retributiva é amplamente
ocidental. O entendimento africano é muito mais restaurador – não tanto para punir, mas para reparar
ou restaurar um equilíbrio que foi derrubado. A justiça que esperamos é restauradora da dignidade das
pessoas” (SKELTON, 2004: 215). Na verdade, como complementam Rosenblatt e Weitekamp (2019,
p. 155):
[...] os métodos tradicionais africanos de resolução de conflitos têm muitas características que
podem ser rotuladas de restaurativas e, embora muitos desses métodos tenham sido
adulterados, enfraquecidos, anulados ou, até mesmo, “eliminados” por causa da colonização, a
rica história africana de resolução de conflitos oferece um terreno fértil para a justiça
restaurativa (ROSENBLATT; WEITEKAMP, p. 155).
24
Para uma crítica mais demorada e cuidadosa ao protagonismo (quase?) “solo” do Judiciário no movimento restaurativo
nacional, além do Relatório por Vera Andrade e equipe ao CNJ (2018b), vide o capítulo de livro “Justiça Restaurativa e o
Sistema de Justiça Juvenil Brasileiro: Reflexões a partir da Experiência Inglesa”, por Fernanda Fonseca Rosenblatt, Renata
Soares Ramos Falcão e Júlia Palmeira Macedo. O referido capítulo já foi submetido para compor a coletânea
provisoriamente intitulada “Propostas para uma Justiça Pós-Penal”, editada por Clécio Lemos e Daniel Achutti, a qual será
publicada pela Editora Letramento – provavelmente em 2022, mas possivelmente depois de alguns lerem esta nota de
rodapé. Qualquer dificuldade em encontrá-lo, favor contatar Fernanda.
119
Inclusive, como nos lembra Skelton (2007, p. 468), o cenário para aquele famoso artigo de
Christie (Conflitos como Propriedade, de 1977) era uma “encosta ensolarada” em Arusha, na
Tanzânia. De fato, para trazer seus argumentos à vida, Christie propôs um processo de resolução de
conflito semelhante ao modelo da Tanzânia, que ele descreveu em detalhes como de base comunitária,
orientado para a vítima e com a reparação adequada pelo ofensor. Este é um lembrete importante de
como os desenvolvimentos modernos da justiça restaurativa e os modelos tradicionais africanos de
resolução de conflitos estão intimamente ligados (ROSENBLATT; WEITEKAMP, p. 145). Mais que
isso, é um lembrete sobre o “embranquecimento cultural” e o “epistemicídio” os quais denunciávamos
há alguns parágrafos atrás, e um alerta para o fato de que o desenvolvimento do movimento
restaurativo internacional seguiu, por tempo demais, de portas fechadas a uma formação
intencionalmente antirracista e descolonizadora.
E, embora não insensível à diversidade dos saberes não ocidentais criados e reproduzidos
pelos negros, indígenas e demais povos tradicionais – por exemplo, é comum a referência às raízes
indígenas das práticas restaurativas contemporâneas –, o olhar sobre esses saberes e práticas é, muito
comumente, colonizado. Conhecemos apenas as práticas indígenas que alguns ocidentais, algumas
figuras do eixo de produção de conhecimento de sempre, escolheram observar e promover. E as
conhecemos, em regra, através das lentes desses ocidentais brancos (v.g., as lentes de Kay Pranis). Por
exemplo, a forma “indígena” de justiça restaurativa mais conhecida entre os ocidentais são os círculos
de construção de paz. Ocorre que as comunidades indígenas caracterizam suas próprias práticas das
mais variadas formas – alguns sequer concordam com a expressão “construção de paz” (LEWIS;
STAUFFER, 2021). Com efeito, como pontuado por Lewis e Stauffer (2021, p. xxiv), “os povos
indígenas têm uma enorme gama de práticas circulares complexas e particulares que não devem ser
reduzidas e simplificadas como um processo”. E eles continuam alertando para a importância de uma
visão diversa sobre como a justiça restaurativa pode se manifestar: “Há uma tendência na mentalidade
ocidental de aprender uma prática ou habilidade e então afirmar que esse é o caminho ou o modelo.
Isso replica uma mentalidade colonial e apaga as muitas tradições e nuances de diferentes tradições de
círculos indígenas”. A reflexão desses autores nos ajuda a compreender o quanto o movimento
restaurativo perde enquanto embranquecido for.
120
Considerações finais
Foram muitas as perguntas que motivaram o projeto de iniciação científica que deu origem ao
presente capítulo, sendo “cadê raça nos discursos restaurativos?” a que melhor resume as inquietações
que Kennedy trouxe para Fernanda quando da nossa primeira conversa sobre o que, no campo da
justiça restaurativa, deveríamos pesquisar juntos. Muitos pesquisadores e práticos da justiça
restaurativa não trazem o debate sobre relações raciais para a justiça restaurativa, não de forma
estratégica, como uma maneira pensada de perpetrar o racismo e manter o poder na mão das classes
dominantes. Kennedy sempre gostou de ressaltar isso. Mas também ressaltar que não se pode fugir da
realidade da diversidade étnica no país e o que isso significa para a justiça restaurativa no Brasil, uma
vez que a cor da pele traz consequências distintas para quem é negro e para quem é branco. Fernanda
demorou um pouco para compreender o que isso significava, e segue tentando entender a fundo. Mas
ao longo dessa jornada, Kennedy e ela chegaram a vários denominadores comuns.
E o denominador comum que melhor resume os demais é que ambos – Fernanda e Kennedy –
entendem que o movimento restaurativo precisa seguir mais consciente dos racismos estruturais e
institucionais que operam e que tendem a continuar operando dentro das práticas ditas restaurativas.
Entendemos que, para isso, precisamos adicionar mais perguntas às reflexões sobre a justiça
restaurativa, certamente em nosso país: Quem é facilitador no país? Quem é voluntário e quem pode se
profissionalizar, ser pago para praticar justiça restaurativa? Que vítimas e ofensores têm acesso a
programas de justiça restaurativa no Brasil? Como a branquitude moldou a justiça restaurativa que
conhecemos hoje?
Entendemos que, embora a justiça restaurativa tenha, por meio de suas práticas, o potencial de
desafiar os desequilíbrios de poder existentes em certos casos25, para implantar os processos de justiça
restaurativa dessa forma é necessário que os profissionais atuantes no campo usem uma lente anti-
opressiva interseccional:
Shah e Geddes usam a linguagem de uma “lente anti-preconceito”, uma “lente anti-racista” e
uma “análise anti-opressão” para chamar a atenção para a necessidade de ver e nomear as
formas em que o racismo estrutural, patriarcado, heterossexismo, xenofobia, adultismo e outros
sistemas de opressão levaram a qualquer dano e as respostas a ele, e como eles funcionam
como fontes contínuas de violência e danos estruturais (STAUFFER; TURNER; 2019, p. 454).
Entendemos que, certamente em nosso país, as práticas de justiça restaurativa devem ser
enxergadas como uma oportunidade de trazer à superfície o racismo e outros ismos que, no modelo de
justiça criminal que conhecemos, ficam escondidos por debaixo dos conflitos interpessoais, aqueles
que cabem num Boletim de Ocorrência ou numa Denúncia. Se, por um lado, a justiça restaurativa não
pode ser uma “panaceia” contra todos os males sociais, ela não pode fechar os olhos para as injustiças
sociais. Como nos ensina Davis (2019), se o movimento restaurativo não se ocupar de temas da
magnitude do racismo e da colonialidade, então ele vai funcionar de modos racistas e colonizadores,
porque é esse o padrão.
Entendemos pela imprescindibilidade de desafiarmos as culturas organizacionais, as normas e
os valores que excluem a experiência vivida pelas “pessoas de cor” (no sentido estadunidense do
termo). Por exemplo, políticas e procedimentos que valorizam a razão (em exclusão à emoção), o
individualismo (no lugar do coletivo), a produtividade (em detrimento dos relacionamentos), a
25
Vide, por exemplo, os argumentos a favor de seu uso em casos de violência doméstica (CNJ, 2018a).
121
hierarquia (e não a comunidade), credenciais brancas (em prejuízo de experiências vividas), e
estatísticas (para substituir histórias).
Concordamos com os autores da já mencionada coletânea Listening to the Movement que é
necessário ampliar a “tenda” do movimento restaurativo para que seja superado o “pensamento
dicotômico autoimposto” e para que se incorpore uma agenda transformadora onde as transformações
individuais e sistêmicas sejam “tão bem integradas que se tornem indistinguíveis” (LEWIS;
STAUFFER, 2021, p. xvi). Qualquer outra opção é mais do mesmo. Não é justiça restaurativa porque,
também concordamos, “A justiça restaurativa é uma grande ideia que compreende muito mais do que a
reforma do sistema de justiça criminal... O movimento restaurativo sempre foi um veículo para
construir um futuro diferente” (BOYES- WATSON, 2019, p. 17).
A abertura do “Congresso Internacional de Justiça Restaurativa”, organizado pela Comissão
Especial de Justiça Restaurativa da OAB/SP, foi marcada por uma das mais esperadas e aplaudidas
palestras, pelo menos por aqueles que perceberam no subtítulo do congresso (“Discursos Dominantes e
Caminhos de Resistências e Potências”), bem como em sua programação, o tom do evento: a palestra
de Fania Davis. Para a nossa surpresa, a fala de Davis gerou, por parte de alguns poucos barulhentos,
um “motim” no chat que acompanhava a transmissão pelo YouTube. Na ocasião, chocados,
registramos algumas falas:
Achei que o tema fosse justiça restaurativa e não sobre ideologia política e posicionamentos pessoais.
Deveriam ter avisado que seria pro ativismo político. Não foi essa a divulgação do evento.
Eu tô [sic] esperando começar o congresso, até agora só foi militância política e reclamação...
Essas e tantas outras manifestações em sentidos parecidos nos dizem muito: a importância da
fala de Fania; a importância do congresso como foi concebido, planejado e executado; a importância
deste livro para o qual temos a alegria de contribuir e, esperamos, a importância das discussões
ventiladas acima... Não, a justiça restaurativa não é neutralidade. Sim, justiça restaurativa é política.
Realmente, você não entendeu: um congresso (ou qualquer manifestação) sobre justiça restaurativa
que não seja político, que não discuta ideologias, é mero tokenismo26. Como nos ensina Valandra
(2020, p. 10), “o que estudamos ou implementamos nas práticas restaurativas e como enquadramos os
danos que exigem reparo dependem de como selecionamos o que queremos saber ou alterar. E ele
continua: “[n]ão se engane: selecionar o que examinar, praticar ou reparar são questões políticas”. E
como alerta o time de autores do Colorizing Restorative Jutsice (VALANDRA, 2020), a justiça
restaurativa deve aumentar sua autoconsciência crítica, especialmente no que diz respeito à sua
26
Vide nota de rodapé n. 15 acima.
122
cumplicidade com instituições opressoras e colonizadoras. E nessa empreitada, a neutralidade não
pode ser irresponsavelmente reverendada como condição para se ter ou falar sobre justiça restaurativa.
Sequer a esperada imparcialidade do mediador ou facilitador deve servir de desculpas para um não agir
combativo contra opressões27.
27
O excesso de transcrições numa conclusão não é prática comum para escritos antenados com a melhor prática acadêmica,
mas a inclusão dessas transcrições, todas originalmente em inglês, foi proposital. O nosso objetivo – não apenas aqui na
conclusão, mas em todo o capítulo – também foi de compartilhar uma literatura ainda pouco acessível a muitos aqui no
Brasil por conta da barreira linguística. Uma literatura para além dos clássicos e necessários Howard Zehrs que já estão
traduzidos para o português. Sentimo-nos, ademais, confortáveis em assim fazer num livro de espírito anti-hegemônico
como esse. Agradecemos às organizadoras do livro por aceitarem que assim fosse feito.
123
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127
128
RACISMO É (MUITO MAIS QUE) CRIME: LIMITES E DESAFIOS DOS
CRIMES RACIAIS NO ENFRENTAMENTO AO RACISMO ESTRUTURAL E
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA
Eduardo Maurente Oliveira1
Introdução
1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo
INTROCRIM.
2
A Lei nº 7.437/1985 atribuiu nova redação à Lei Afonso Arinos. As contravenções penais estão expostas nos artigos 3º ao
9º da lei.
3
Art. 5º, XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da
lei;
4
Crimes expostos nos artigos 3º ao 20 da lei.
5
5 É o caso da Injúria Racial exposta no art. 140, §3º do CP:
“Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos
referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:Pena - reclusão de
um a três anos e multa”.
6
São elas: “2 – Que se torne matéria de lei, na forma de crime de lesa-pátria, o preconceito de cor e de raça”; e “3 - Que se
torne matéria de lei penal o crime praticado nas bases do preconceito acima, tanto nas empresas de caráter particular como
nas sociedades civis e nas instituições de ordem pública e particular”. Documento disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/artigos/memoria-convencao-nacional-do-negro-brasileiro-de-1945. Acesso em: 27 de maio de
2021.
7
Como observado em notícias de jornal da época. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/115567. Acesso
em: 27 de maio de 2021.
129
No entanto, mesmo com tais vitórias no âmbito normativo, constata-se que a criminalização
do racismo no Brasil ainda instiga enormes desafios. Certamente, o maior desafio sobre o tema ainda é
a lamentável ineficácia social dos crimes raciais no país8. Seja pelo grande número de denúncias e
inquéritos policiais encerrados por decadência ou pela rejeição das denúncias por falta de provas
consideradas consistentes pelos magistrados, pode- se afirmar que os crimes raciais no Brasil são tipos
penais com efeitos simbólicos.
Diante de inúmeros estudos robustos e importantes sobre essa questão (MONTEIRO, 2003;
SANTOS, 2015; DPU, 2020), opta-se no presente trabalho para uma mudança de foco. Assim, ao
confrontar tais delitos com a mais avançada compreensão de racismo que temos na atualidade,
perspectiva estrutural, objetiva-se aqui expor uma análise teórica e crítica desses tipos penais
destacando seus principais desafios e possíveis soluções.
Dessa maneira, o artigo irá se dividir em três tópicos.
O primeiro deles apresentará uma introdução teórica e necessária para a melhor contribuição
do tema. Nesse contexto, demonstrar-se-á a diferença entre racismo e as categorias do preconceito e da
discriminação racial. Em seguida, o conceito de racismo será aprofundado ao explorar suas diferentes
concepções.
O segundo tópico irá abordar os fatores observados pela pesquisa que dificultam a aplicação
dos crimes raciais no enfrentamento racial, quais sejam: i) o alcance individualizante e, por isso,
limitado dos tipos penais em relação às violências estruturais da sociedade; ii) a elaboração equivocada
dos crimes raciais sobre as categorias de discriminação racial e racismo; iii) a pretensa neutralidade e
racionalidade do Estado Liberal que contradiz a perspectiva estrutural e sistemática de racismo ao
afirmar que o Estado não é neutro; iv) e a cooptação ideológica dos crimes raciais que recruta o Direito
Penal como protagonista da luta antirracista.
Por fim, a pesquisa sugere como a Justiça Restaurativa constitui o instituto jurídico mais
recomendável para combater tais desafios. Ao entender o crime como um dano interpessoal e não
como uma irracionalidade, a abordagem da JR apresenta mais sintonia com a teoria do racismo
estrutural. Além disso, com o foco mais voltado aos fatores sociais geradores do crime, a JR também é
capaz de ultrapassar o alcance limitado dos tipos penais e amenizar a elaboração teórica equivocada
dos crimes raciais.
Com base no pensamento de Fania Davis, conclui-se que a JR não tem só a melhor
capacidade teórica para abarcar os crimes raciais que pretendem enfrentar o racismo estrutural, mas
também traz consigo um compromisso autêntico de enfrentar tais violências estruturais da sociedade.
Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o racismo, associada a uma análise
do sistema normativo e o arrolamento da produção acadêmica nacional stricto sensu sobre o tema.
Conforme leciona Almeida (2019), para que o racismo seja bem assimilado é necessário,
antes de tudo, diferenciá-lo de outras categorias que também se relacionam com a questão racial: o
8
Vários estudos denunciam esse fato, mas o “Relatório sobre o tratamento dos Crimes Raciais no Estado do Paraná” da
Defensoria Pública-Geral da União parece ser o mais recente. No corte cronológico do relatório (2016 a 2019), observou-se
que das 5330 ocorrências de crimes raciais apenas 334 estão em trâmite no Tribunal de Justiça do Paraná (0,062%) e
somente 101 dos casos se tornaram denúncia (0,018%). Para maiores detalhes, o relatório está disponível em: <
https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/39/Relatorio-gt-politicas- etnorraciais.pdf>.
130
preconceito e a discriminação racial.
Nesse sentido, a categoria de preconceito racial se caracteriza pela discrição intelectual, pré-
concebida e estereotipada acerca de indivíduos pertencentes a determinados grupos racializados
(ALMEIDA, 2019). Com isso, o preconceito racial age, sobretudo, no inconsciente do preconceituoso,
podendo resultar em práticas discriminatórias.
Por sua vez, a discriminação racial se refere aos atos materiais de tratamento diferenciado que
são destinados a membros de grupos racialmente identificados (ALMEIDA, 2019) e se divide na
forma direita e indireta. A forma direta, que é a mais importante para as finalidades do presente
trabalho, se caracteriza pelo repúdio ostensivo e intencional contra pessoas racializadas. Já a forma
indireta está mais ligada com a ignorância, omissão institucional e a chamada cegueira racial (color-
blind) (ALMEIDA, 2019).
Dessa maneira, pode-se concluir que a discriminação racial possui uma dimensão mais ampla
que o preconceito racial, pois enquanto este age principalmente no campo intelectual, a discriminação
racial se configura como um ato material e concreto de poder.
Tudo isso se difere do conceito de racismo, o qual pode ser definido como “um processo em
que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem
nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” (ALMEIDA, 2019, p. 34). Com isso, é
possível afirmar que o racismo não se resume a um ato isolado, como nos atos discriminatórios, mas
sim num processo social complexo, histórico e de origem secular.
No entanto, essas categorias são muitas vezes confundidas ou até igualadas. Esse é o caso da
concepção individualista de racismo que reduz todo o fenômeno racial aos casos isolados de violência,
escondendo, com isso, o entendimento mais profundo de racismo.
Dessa maneira, outra demarcação teórica se mostra importante aqui: as diferentes
compreensões de racismo. Mais uma vez utilizaremos as orientações de Almeida (2019), que delimita
e diferencia a concepção individualista, a institucional e a estrutural de racismo.
Segundo a concepção individualista e liberal de racismo, a violência racial é concebida como
espécie de desvio moral ou patológico atribuído a um indivíduo ou a um grupo isolado de indivíduos
(ALMEIDA, 2019). Por essa visão, a sociedade nunca pode ser vista como racista, pois racista é
apenas aquela pessoa imoral e “mal-educada” que explicita um desvio irracional e anormal de
comportamento.
Dessa maneira, a concepção individualista não admite a existência de racismo como um
fenômeno estrutural e estruturante da sociedade, mas somente como um ato isolado de preconceito ou
discriminação. Em suma, ao igualar essas últimas categorias com a compreensão de racismo, a visão
individualista cai num evidente e arriscado reducionismo.
Por sua vez, segundo a concepção institucional de racismo, a violência racial não se localiza
apenas no plano comportamental do sujeito, porém abrange, principalmente, o conjunto de atividades
das instituições sociais. Para esse entendimento, o racismo tem origem na atuação institucional que
impõe tratamento diferenciado aos indivíduos racializados e confere, ainda que indiretamente,
desvantagens e privilégios com base na raça (ALMEIDA, 2019).
Por fim, a concepção estrutural do racismo aprofunda melhor o tema. Para essa compreensão,
se há racismo institucional é porque essa relação de dominação é vinculada à ordem social. Ou seja,
não é no comportamento subjetivo ou nas intuições sociais onde “nasce” o racismo; ao contrário, é o
racismo que estrutura a sociedade e dessa estrutura racista “nascem” as discriminações subjetivas e
institucionais. Em síntese, o racismo é estrutural (BONILLA-SILVA, 2006).
Nesse sentido, ao contrapor as concepções institucional e estrutural de racismo:
131
Desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de
regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social
que ela visa resguardar. Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma
estrutura social previamente existente – com todos os conflitos que lhe são inerentes –, o
racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura. As
instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização
que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as
instituições são racistas porque a sociedade é racista. Esta frase aparentemente óbvia tem uma
série de implicações. A primeira é a de que, se há instituições cujos padrões de funcionamento
redundam em regras que privilegiem determinados grupos raciais, é porque o racismo é parte
da ordem social. Não é algo criado pela instituição, mas é por ela reproduzido (ALMEIDA,
2019, p. 47).
Dessa forma, a tese central aqui esposada é a de que “o racismo é sempre estrutural”
(ALMEIDA, 2019, p. 20) e que os comportamentos individuais e institucionais são derivações dessa
característica estrutural da sociedade9. Nesse sentido, o objetivo não é trazer mais uma classificação
específica de racismo, mas sim criar uma de teoria geral10 sobre esse fenômeno social, de tal forma que
todas as outras classificações terminem por representar um modo parcial e incompleto de compreensão
(ALMEIDA, 2019).
Assim, como sintetiza Almeida, o “racismo no cotidiano, seja nas relações interpessoais, seja
na dinâmica das instituições, são manifestações de algo mais profundo, que se desenvolve nas
entranhas políticas e econômicas da sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 21). Dessa forma, essa visão
contribui para deixar claro que o racismo é uma manifestação normal da coletividade e não um ato
irracional ou uma exceção social.
Inclusive, sobre essa pretensa “irracionalidade” do ato racialmente discriminatório é importante
destacar que o racismo passou por um processo de justificação racional, o que é denominado de
racismo cientifico. Como demostra Almeida (2019), o racismo foi objeto de estudos científicos que
promoveram a sua justificativa na sociedade, ou seja, houve uma clara fundamentação formal e
racional do racismo.
Por tudo isso, o sujeito que comete um crime racial não o comete por estar avulso na sociedade
ou vivendo como sujeito moralmente isolado, mas por explicitar uma violência intrínseca da sociedade
em que vive.
Desde criança o sujeito aprende a ver as pessoas racializadas como inferiores. Ao ligar a TV, só
observa pessoas negras em posição de destaque no esporte ou no núcleo pobre da novela. Ao entrar em
qualquer hospital ou tribunal do país, quase nunca se enxergará negros e negras em posições de
comando. Mas é só observar atentamente no canto da sala que provavelmente estará presente uma
pessoa racializada trabalhando na limpeza, na segurança, ou como réu de um processo penal.
Em suma, a posição de inferioridade social sofrida pelo povo negro é tão normalizada que
forma o modo como as pessoas pensam e veem os negros, ou seja, o racismo é uma ideologia que
molda o inconsciente (ALMEIDA, 2019). Assim, o racismo não é uma anormalidade ou uma
9
Mais uma vez, conforme afirma Silvio Luiz de Almeida: “Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura
social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não
sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e
processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção.” (ALMEIDA, 2019, p. 50).
10
Como teoria geral, ressalta-se que o “racismo” não é apenas aquele contra pessoas negras, mas sim contra todas as
pessoas racializadas.
132
irracionalidade de um indivíduo desviante, o racismo é a regra social, é um componente orgânico da
coletividade. Em um país com uma gênese colonial e escravagista como o Brasil, o racismo estará
sempre evidente nas relações sociais. Basta abrir bem os olhos.
Ainda que o direito penal não sofresse da função de seletividade, que o manteve ao longo da
história de formação das identidades nacionais latino-americanas como parte importante da
estratégia de biopolítica para o controle e manutenção das desigualdades e hierarquias raciais,
sua natureza não comporta o enfrentamento de práticas sistêmicas e estruturais como o
racismo, sobretudo por seu alcance individualizado e pelo exercício de uma função que,
ao estabelecer uma sanção, busca punir os comportamentos desviantes e não as práticas
sociais consolidadas, contradizendo a própria lógica das lutas antirracistas, que
denunciam o enraizamento social do racismo (BAGGIO; GONÇALVES; RESADORI,
2018, p. 1854, grifo nosso).
Por possuir esse alcance limitado, os delitos penais padecem de uma abrangência mitigada em
relação às violências estruturais da sociedade, como o racismo e o sexismo, sendo incapaz de abarcá-
las plenamente. Com isso, podemos concluir que o Direito Penal só é apto para a tipificação dos atos
discriminatórios diretos11, pois são essas as categorias que representam condutas isoladas de violência
voluntária e explícita. Isso é próprio da natureza do Direito Penal que, fundamentado nos princípios da
culpabilidade e da individualização da pena, tem por finalidade o controle social de condutas humanas
que ferem bens jurídicos determinados.
Como as opressões sistemáticas tem origem histórica e social, elas não podem ser reduzidas a
comportamentos individuais. Tais violências são as próprias estruturas sociais que geram e
reproduzem os comportamentos discriminatórios. Em síntese, o Direito Penal só é capaz de abarcar a
11
Diante disso, defende-se que, se a norma penal pretende ser condizente com a concepção de estrutural de racismo, a
melhor denominação a ser adotada seria “crime de discriminação racial”. À primeira vista essa diferença pode parecer
banal e preciosista, mas acreditamos que com ela se afasta melhor a ameaça reducionista da concepção individual de
racismo, além de trazer maior cientificidade para o ordenamento jurídico brasileiro.
133
ponta do iceberg das violências estruturais. Ainda assim, ignorando tal compreensão, o sistema penal
brasileiro tipifica o “crime de racismo”.
Nesse contexto de tipificações, a dogmática penal difere os delitos de injúria racial e o de crime
de racismo.
Muito embora digam respeito aos crimes associados ao preconceito de raça e cor, segundo a
lei, há diferença entre injúria qualificada por preconceito e o racismo, em si mesmo. A injúria
consiste em uma ofensa contra uma única pessoa, atingindo-lhe o decoro e a percepção que ela
tem de si mesma, caracterizando a chamada ofensa à honra subjetiva. Já o racismo é
compreendido como discriminação a qual tem como objeto um grupo inteiro de pessoas
(SANTOS, 2015, p. 186).
Dessa maneira, segundo a lei, o racismo é sim uma conduta tipificada que se volta à
discriminação de um grupo inteiro de pessoas. Assim, observa-se que esse entendimento normativo
iguala o conceito de discriminação racial direta com o de racismo, se posicionando em total desacordo
com a compressão estrutural dessa violência. Enfim, pode-se afirmar que os crimes raciais no
ordenamento brasileiro são baseados numa elaboração teórica equivocada sobre o que é racismo.
Em síntese, não existe discriminação racial que atinja uma só pessoa, bem como não é possível
reduzir o racismo a um ato isolado de discriminação. Esse entendimento normativo está
completamente afastado da realidade social e, para se adaptar a perspectiva estrutural de racismo,
merece o debate de uma reforma legislativa. Por tudo isso, defende-se aqui que o racismo é muito mais
que um crime e, portanto, não será superado por meras tipificações penais.
Além dessas incompatibilidades, outra mais profunda diz respeito ao entendimento liberal de
Estado Moderno. Como esse entendimento se baseia numa pretensa neutralidade estatal, há um
evidente desacordo entre ele e a visão estrutural de racismo.
Como demonstrado no presente trabalho, o racismo não é uma anormalidade ou uma exceção
em relação à racionalidade estatal, ele é a própria racionalidade que estrutura a sociedade, tendo sido,
inclusive, objeto de justificação científica. Diante disso, a teoria do racismo estrutural nos ensina que
não há nada de neutro e inocente no Estado Moderno, muito pelo contrário, essa pretensa neutralidade
e “inocência”, muito baseada no mito da democracia racial, são símbolos típicos do racismo estrutural
da nossa sociedade. Em síntese, o Estado não é neutro frente ao racismo, muito pelo contrário, ele o
reproduz em sua forma institucional12.
Por outro lado, a concepção individualista, que nega a origem social do racismo e o iguala à
categoria de discriminação racial direta, apresenta afinidade com essa ideologia liberal do Estado
Moderno. Ao ver o racismo como uma questão comportamental de um indivíduo desviante e
irracional, a noção individualista naturalmente elege a punição “neutra e racional” do Direito Penal13
12
Há inúmeras formas de racismo institucional sustentadas pelo Estado Moderno. O genocídio da juventude negra pelos
aparelhos de segurança pública, o encarceramento em massa dessa mesma população e a constante negação de direitos
sociais são apenas os mais notórios. No que tange os crimes raciais, o mais evidente é a extrema “dificuldade” da
condenação dos infratores. Como citado na introdução, há inúmeros estudos que denunciam o descaso do sistema judiciário
sobre os crimes raciais, evidenciando o racismo implícito da classe jurídica. É por essas e outras que a neutralidade estatal
não passa de um mito criado pela ideologia liberal.
13
É importante ressaltar que para alguns autores, o uso do Direito Penal como ferramenta de enfrentamento ao racismo
detém a característica reducionista logo na sua origem. Esse é o caso da professora norte-americana Tanya Hernadez que
afirma que essa solução penal “está profundamente enraizada na imagem latino-americana de inocência racial”
(HERNANDEZ, 2017, p. 99). Nesse mesmo sentido, os autores colombianos Rodríguez Garavito e Baquero Díaz
sustentam que essa “fuga pelo direito penal se funda em uma reinterpretação liberal- integracionista que, ao se concentrar
nas sanções individuais, dilui e fragmenta as reinvindicações de justiça racial mais radicais” (GARAVITO; BAQUERO
134
como uma das soluções principais para o racismo.
Nas teorias liberais sobre o Estado há pouco, senão nenhum, espaço para o tratamento da
questão racial. O racismo é visto como uma irracionalidade em contraposição à racionalidade
do Estado, manifestada na impessoalidade do poder e na técnica jurídica. Nesse sentido, raça e
racismo se diluem no exercício da razão pública, na qual deve imperar a igualdade de todos
perante a lei. Tal visão sobre o Estado se compatibiliza com a concepção individualista do
racismo, em que a ética e, em último caso, o direito, devem ser o antídoto contra atos
racistas. (ALMEIDA, 2019, p. 89, grifo nosso).
Em suma, toda vez que o Direito Penal aceitar o papel de protagonista e solucionador do
racismo estará, em última análise, sendo cooptado por uma visão reducionista, uma vez que o sistema
penal só pode auxiliar e ter papel secundário para um problema estrutural da sociedade.
O propósito desse olhar mais complexo é afastar análises superficiais ou reducionistas sobre a
questão racial que, além de não contribuírem para o entendimento do problema, dificultam em
muito o combate ao racismo.
(...) Ou seja, pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual
sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário: entender que
o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda
mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas. Consciente de que o racismo é parte
da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-
se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável,
certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo. A
mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo:
depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas
(ALMEIDA, 2019, p. 51-52).
Art.1º, I – é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das
suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da
comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores
restaurativos;
II – as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em
técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça
Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por
entidades parceiras;
Somado a isso, a JR representa uma ótima oportunidade para o sistema penal demostrar o
compromisso genuíno no enfrentamento ao racismo estrutural. Conforme Fania Davis, a adoção de
uma visão reduzida do dano racial e a omissão diante de sua causa estrutural representa uma solução
rápida que aborda apenas os sintomas, mas não as causas subjacentes (DAVIS, 2019, p. 36). Nessa
perspectiva, a autora defende o entendimento de que o compromisso da JR de corrigir um dano
interpessoal automaticamente a leva ao compromisso de transformação estrutural da sociedade.
Ora, quais seriam os “fatores sociais motivadores” do conflito nos crimes raciais, se não o
próprio racismo estrutural? Como dito anteriormente, o racismo é um processo sistemático e histórico
da sociedade e os atos isolados de preconceito ou discriminação racial “não passam” da explicitação
desse fenômeno. Desse modo, pode-se afirmar que o racismo estrutural é o fator social mais profundo
que motiva os casos de crimes raciais. Nesse contexto, a Justiça Restaurativa tem o dever de
conscientizar todos os envolvidos nesses casos sobre o racismo estrutural.
Tal função informativa é a etapa originária na construção de uma postura efetivamente
antirracista nos casos de crimes raciais e, inclusive, nos processos que envolvam outras violências
estruturais.
Essa finalidade informativa, aliada a uma adequada capacitação dos facilitadores restaurativos
e a contribuição dos representantes dos movimentos populares, permite a Justiça Restaurativa
amenizar os limites sofridos pelos crimes raciais aqui expostos.
Em relação ao alcance limitado dos tipos penais e a elaboração equivocada dos crimes raciais,
a JR não é capaz de ultrapassar a natureza individualizante do Direito Penal e nem modificar a norma
legal, mas pode reforçar a compreensão dos envolvidos de que aquele determinado conflito não reduz
todo o fenômeno racial. Dessa forma, essa visão mais abrangente do racismo permite ultrapassar o
alcance limitado dos tipos penais e mitigar a elaboração teórica equivocada dos crimes raciais.
Quanto à pretensa neutralidade do Direito Penal, entende-se que a conscientização somada a
visão do crime como um dano interpessoal é mais condizente com a compreensão estrutural de
racismo. Assim, é possível rechaçar, ainda que não em todo alcance, o mito do Estado Moderno
neutro.
137
Considerações finais
Ao demostrar uma breve leitura dos crimes raciais sobre a perspectiva do racismo estrutural,
percebe-se que os tais delitos penais detêm alguns limites que devem ser enfrentados. Seja pelo
alcance limitado dos tipos penais, seja pela equivocada elaboração teórica dos crimes raciais, ou pela
pretensa neutralidade do Estado Moderno que contradiz o racismo institucional, a abordagem dos
crimes raciais ainda tem muito que avançar.
Nesse contexto, a fim de propiciar ao judiciário uma prática antirracista efetiva, entende-se que
a Justiça Restaurativa representa uma alternativa condizente com a perspectiva do racismo estrutural.
Conforme o pensamento de Fania Davis, a JR tem o compromisso de combater as causas estruturais
dos donos interpessoais. Esse compromisso pode ser espelhado normativamente pela finalidade
conscientizadora do processo restaurativo. Assim, entende-se que tal função informativa é a etapa
originária de uma postura efetivamente antirracista do sistema penal.
Por todo o exposto, defende-se que a Justiça Restaurativa representa a alternativa mais
apropriada para o enfrentamento ao racismo estrutural nos casos de crimes raciais.
138
Referências
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
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atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil, dando nova redação à Lei nº
1.390, de 3 de julho de 1951 - Lei Afonso Arinos. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7437.htm> Acesso em: 17 de maio de 2021.
BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
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transformation. New York: Good Books, 2019.
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no Estado do Paraná. Disponível em: <
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139
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ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
140
141
VOZES DA CURA: UM BREVE RELATO DA EXPERIÊNCIA DO NÚCLEO
DE MULHERES NEGRAS
Apresentação
O Núcleo de Mulheres Negras - O amor cura nasceu a partir de uma experiência formativa
em Justiça Restaurativa e ultrapassou os limites do seu nascimento. O texto que se segue é uma
tentativa de resgatar as experiências com os círculos de paz e do processo de restauração das cicatrizes
da discriminação de raça, classe e gênero, além de outras violências. O artigo disserta sobre a
possibilidade de construção de espaços potenciais de vida que apesar desse “aparente” fim da
experiência – tendo em vista o encerramento das atividades do núcleo – se estabelece em nossas vidas
e trajetórias como ponto de mudança e resiliência. Para tentar tornar compreensível essa imersão em
estórias, sentimentos, sabores e cheiros, vamos começar pela gestão.
1. Fecundação
142
As atividades realizadas durante os cursos suscitaram
dores muito profundas que apontaram a necessidade de
serem cuidadas; ficou evidente que as histórias de vida
das mulheres periféricas, em especial mulheres
negras, eram marcadas por tristes semelhanças,
consequentes da pobreza, do racismo e do machismo –
explicitadas nas falas e muitas vezes evidenciadas nos
corpos. Nascia, então, uma necessidade de unir essas
mulheres numa perspectiva de romper com o
silenciamento através das práticas restaurativas
ofertando um espaço seguro, com sigilo e ausência de
Figura 1: Imagem tirada antes do encontro Fonte:
Arquivo do Núcleo de Mulheres Negras julgamento, com a premissa de que se pudesse partilhar
de histórias buscando atender um desejo de estar perto de outras mulheres na certeza do acolhimento.
Para as mulheres que se achegarem, foi preciso aprender que as nossas necessidades eram
importantes, que naquele espaço poderíamos, pelo menos por algumas horas, nos despir da capa de
mulher negra, forte, herança de nossas mães, nossas avós, num passado marcado pela escravidão onde
esconder os sentimentos era o meio de sobrevivência. Olhar para esse estigma era também
ressignificar o que entendíamos por amor, cuidado e afeto na busca de romper as barreiras do discurso
e materializá-los.
O que para algumas mulheres com certos privilégios pode ser considerado rotineiro, para nós,
mulheres negras, ainda é uma realidade distante. Uma mesa posta, com flores, toalhas, um farto e
bonito café da manhã com direito a música de fundo em um lugar agradável, com horas de conversas
despretensiosas, regadas a sonoras gargalhadas, como se ali o tempo parasse e, assim como uma
prática ancestral de amor e cuidado, o círculo estava pronto para começar. Construir o espaço
exclusivo para mulheres negras foi imensamente desafiador. Nós conversamos aos cantos sobre como
as demais mulheres na nossa rede se sentiriam e se era realmente necessário um lugar exclusivo.
Foram muitas crises, e da primeira conversa ao primeiro encontro foram exatamente cinco meses de
medo e insegurança. Poderíamos nós, mulheres negras, criar um espaço exclusivo de fala e escuta?
Poderíamos nós depender do nosso tempo e recurso para “nosso cuidado”? Superadas as crises, o
núcleo se fez presente em nossos ventres. O que vão ler a partir de agora é um relato em primeira
pessoa de inúmeras mulheres negras que circularam nos nossos encontros, ciclos, círculos e conversas.
São relatos e histórias escrita por múltiplas mulheres, mas decidimos manter a primeira pessoa, então,
eu, Núcleo de Mulheres Negras, partilho com você, leitora, nossas histórias.
2. Gestação
143
minimizar a dor da outra – que também era nossa. Para escrever sobre os processos vividos ao longo
dos dois anos de encontros mensais do Núcleo de Mulheres Negras - O amor cura, é preciso falar sobre
a movimentação de afetos, cuidados e trocas, todas intensamente comparti- lhadas entre as 22 ou mais
mulheres que circularam entre nós, nos oferecendo o que todas nós mais desejávamos naqueles
momentos: um espaço para escuta e fala, um momento para olhar para si e para outras iguais a ti –
circularidade.
Uma das primeiras lições que aprendi no núcleo tem a ver com o imaginário social que nos
faz acreditar desde muito cedo que existem alguns critérios e padrões para você se identificar como
negra. Eu participei da roda de conversa com as primeiras ideias sobre a criação do núcleo de mulheres
negras e lembro que fiquei muito eufórica, pois para mim era a primeira vez que participaria de algo
grandioso com mulheres que eu admirava muito, afinal, eram escritoras, poetas, ativistas,
empreendedoras, engajadas, que usavam roupas lindas e que transmitiam poder, alegria e liberdade nos
tons e nas estampas, saias, sapatos, turbantes que, para mim, era um mundo até então visto apenas de
longe.
Em poucos dias o núcleo iniciou os encontros e, como não tinha recebido o convite formal (na
minha cabeça), passei a questionar a minha identidade. Qual será o critério para participar do grupo?
Será que é preciso participar de algum coletivo com frequência? É preciso ter engajamento teórico
sobre autores que falam sobre negras? Ou será que é meu tom de pele que não se encaixa, mesmo eu
sendo filha de um relacionamento inter-racial?
Ou será que é porque o fio do meu cabelo é
4c?
A essa altura, uma colega participava
ativamente do grupo e, sempre que tínhamos
oportunidade, ela me contava da experiência e
eu vibrava com ela. Até que, um dia, ela
comentou comigo sobre um TED Talk da
escritora nigeriana Chimamanda, eu como já
tinha assistido, tomei coragem e perguntei se
eu não podia participar. Para minha surpresa,
minha colega disse que as outras meninas
também já haviam perguntado o porquê eu não participava. Naquele dia, fiquei feliz e ao mesmo
tempo ansiosa para o meu primeiro dia no grupo. Enfim fui aceita, embora não soubesse qual era o
critério, eu fui aceita.
Eu encontrei muitas mulheres que acompanhavam o meu trabalho e que nos espaços culturais
nos víamos com frequência, mas não tínhamos proximidade, isso me deixou curiosa para saber como
aconteciam esses encontros. Comecei a participar da roda e de um lugar especial que era de receber e
não de oferecer. Digo receber porque na maior parte das experiências que tive em rodas foi facilitando
alguma dinâmica muito por fazer parte dos desdobramentos do meu trabalho. Ali eu estava para
aprender e dividir para além de oferecer. É fato que nós, mulheres negras, temos muito mais facilidade
em oferecer e cuidar de todos do que receber.
Esses dias foram para exercitarmos o silêncio e o protagonismo da fala. O silêncio da escuta
atenta, acolhedora e curativa. Curativa porque muitas daquelas falas se assemelham às minhas ou de
outras histórias que eu conheci. Já no exercício da fala, que eu prefiro chamar de silenciamento, acabei
reconhecendo que estava há muito tempo sem me escutar e sem falar de mim.
Foi uma época em que o tema solidão da mulher negra estava muito latente e me recordo de
144
ter ouvido muitas histórias de como essa solidão se apresenta em suas variadas facetas. Em cada fala
me conectava com uma mulher negra em mim. Nós choramos, rimos, soluçamos, suamos, discutimos,
dançamos, poetizamos, cantamos, cozinhamos, fizemos exercícios físicos e terapêuticos, construímos
laços afetivos e de cuidado que perduram até hoje. Nos permitimos ir além do que a sociedade espera
de nós.
3. O parto
A dinâmica do encontro no meu primeiro dia tinha como tarefa desenhar nossa imagem,
nossas curvas, nossos traços, nosso cabelo, a roupa e as cores. Eu desenhava e elaborava meus
argumentos, pois nesse grupo outra característica é que sim, temos lugar de fala, e o tempo de escuta
somos nós que determinamos – raridade ainda nos dias de hoje.
Durante a partilha do desenho falei sobre
minha inquietude e as perguntas sobre os
critérios e, para minha surpresa, uma das
meninas idealizadoras declarou como nossas
impressões são muito loucas. Ela disse: “Você
acredita que quando perguntávamos sobre
você, dizíamos ‘será que ela não se reconhece
ainda como negra? Será que ela não se acha
negra?’”. Foi um misto de risada com espanto,
e daquele encontro em diante aprendi o quanto
a fala cura, fortalece suas raízes, desconstrói mitos e faz repensar as perguntas. O que é ser negra?
Quando você se reconheceu negra? Qual o significado da negritude em você? A partir dessas
perguntas, minha voz foi ganhando volume e clareza.
Desde a minha adolescência, em todos os processos que vivenciei, fui sendo moldada numa
ideia de que eu era uma menina e mulher muito inteligente, e as mesmas falas que diziam isso também
deixavam claro que eu tinha um corpo, uma cor e um cabelo que não correspondia com a minha
inteligência e clareza nos argumentos, então, eu cresci com uma ideia dissociada entre corpo e mente,
como se fossem duas pessoas totalmente diferentes –meu corpo, minha autoestima, a minha cor, meus
sentimentos. Eu achava que isso era normal, e continuei vivendo e sobrevivendo, afinal, a vida deve
ser isso mesmo.
Sem muito tempo para pensar em mim, pensar nos meus sentimentos; e é isso, vamos viver.
Eu nunca parei para pensar que isso tinha a ver com o fato de ser uma mulher negra, só consegui
pensar isso no Núcleo ouvindo as outras mulheres, porque ouvir as outras mulheres e me dar conta de
que muitas delas tinham vivido coisas tão semelhantes às minhas, me fez perceber que não era a única,
e que isso tinha uma importância. Fez muita diferença ouvir as mulheres e falar para elas sabendo que
elas eram capazes de entender o que eu sentia; em alguns momentos, cheguei a pensar que jamais teria
a coragem de falar aquilo em um encontro com mulheres brancas.
Os encontros que seguiram, para mim, eram como rituais; o café era compartilhado, e como
ouvi uma vez, as relações afetivas se constroem na cozinha – e de fato isso aconteceu no nosso grupo.
Eu acordava sempre cedo ou fazia a receita no dia anterior, o bolo de banana com canela era o meu
preferido de fazer. Durante o preparo eu pensava em todas aquelas mulheres, nas gargalhadas, no café
quentinho, nas histórias, devaneios e causos que compartilhamos durante o café.
Por vezes, o café durava mais de duas horas e eu fazia questão de ser uma das primeiras a
145
chegar porque não queria perder nenhum detalhe, tudo ali naquele cenário me enchia, fazia brilhar
meus olhos, gargalhar até perder o ar e me emocionar de encher os olhos de lágrimas e chorar
copiosamente se fosse preciso. A convivência com essas mulheres me ensinou muito sobre mim, como
a história da outra te ajuda a elaborar sua própria história. Aos domingos, eu não tinha relógio; meu
celular era em modo avião; em casa, a família já sabia que era dia do Núcleo de Mulheres Negras e só
depois das 17h, quem sabe, eu estaria disponível. Estar com elas nesse dia sempre me bastou.
Para empoderar mulheres é preciso criar um ambiente seguro, com cheiro, som, sabores, com
bebidas – quentes e geladas; é ter almofadas, colo, abraços, mãos dadas, mãos soltas; é garantir o
silêncio, os olhares, a escuta, a risada, a gargalhada, as reflexões, e aprender que a empatia vem
quando temos disponibilidade para conviver e praticar nos detalhes o não julgar. É saber que seu
tempo de fala está no seu próprio tempo, e que cada um tem o seu próprio tempo – e sempre está tudo
bem.
Sempre me senti sozinha no mundo, isolada e única, principalmente ao que tange ao
sofrimento; pensava que era normal ser rejeitada e pensava que tinha que sofrer, que tinha que
trabalhar dobrado e que tudo que era problema meu. Meu grande exercício dentro das rodas era ouvir
as outras como se estivesse me ouvindo. Senti que estava crescendo muito; cada fala, cada mulher
negra, seus jeitos eram um pouquinho do que eu era, como se completassem um espaço dentro de
mim, uma lacuna, e respondessem uma interrogação das minhas experiências. Eu me envolvia e
chorava muito, não somente pelo depoimento da outra, mas era como se fosse o meu próprio
depoimento verbalizado por outra mulher, eu me sentia muito grande porque eu sabia que eu não era a
única e, assim, eu fui me percebendo não mais sozinha.
A partir de cada escuta me senti fortalecida, com identidade e posicionamento muito fortes,
porque eu me espelhava. Ao longo da minha caminhada, fora daquele ambiente, esse espelho se
reproduzia; a escuta me tocou muito, ouvir foi um exercício de não ficar projetando coisas, a escuta
despertava gatilhos sobre a minha própria vida e eu ficava dividida entre ouvir e refletir, mas entendia
que naquele momento era mais importante escutar.
Com avanço da experiência, chegou à nossa roda as psicólogas do instituto AMMA Psique e
Negritude, Maria Lúcia e Jussara. Foi algo que alavancou as possibilidades de nos analisarmos
enquanto indivíduos no coletivo, e assim se deu meu mergulho com profundidade no meu “eu”, mas
que de certa forma tinha todas aquelas mulheres segurando as minhas mãos mesmo que elas não
soubessem como reverberava o meu íntimo. Me sentia ancorada como se ouvisse o eco das minhas
ancestrais. Muitas vezes ouvia uma delas em forma de recado do que precisava naquele momento. Eu
acredito que esse tipo de conexão acontece quando nos abrimos e sentimos segurança na troca e no se
reconhecer na outra.
4. A criação
Nós nos encontramos muitas vezes, encerramos buscando a força daquelas que vieram antes
de nós, acionando as tecnologias que elas produziram de vida, reconhecendo seu amor… Cantávamos.
Como elas já haviam cantado:
Pedir esse cuidado e proteção permitia que déssemos nossos passos. O cuidado das nossas
ancestrais se fazia presente na amorosidade do olhar das nossas companheiras e na força de todo
146
processo que estávamos criando. Nesses encontros soltamos a voz, falamos de nossas dores, culpas,
ressentimentos, atitudes e acontecimentos de nossas vidas, bons ou ruins, que com certeza não
falaríamos com qualquer pessoa por serem muito nossos. Nossos encontros foram cura. Eu, mesmo
sendo uma das mais velhas, consegui observar sentimentos, atitudes e todos os tipos de emoções e
energias que emanavam nos encontros. Consegui me ver e imaginar fatos de nossa vivência como
mulheres negras periféricas e muitas vezes sozinhas diante do mundo.
Quando recrio meu imaginário penso numa espiral que representa a vida. Sempre passamos
pelos mesmos lugares em tempos diferentes. Esse exemplo se mostra no Núcleo de Mulheres Negras.
Oferecer, receber, escutar e ser escutada, me reconhecer nas outras e me reconectar comigo,
reconhecer minhas potências e oferecer novamente de outro lugar mais potente que antes. Hoje, o meu
trabalho com outras mulheres carrega muito de tudo que experimentei no núcleo. Faz parte dos hábitos
de autocuidado praticarmos a escuta e a fala para mantermos nossas saúdes resilientes.
Ao final, fico pensando que tudo que nos pertence encontra um jeito de nos encontrar. Foi
assim com a construção do núcleo de Mulheres Negras e tantos outros elementos que chegaram até
nossas vidas: roupas, histórias, crenças e até mesmo desejos. Como diria um provérbio africano: “É
necessário uma aldeia inteira para educar uma criança”. Essa frase ganhou muito sentido e significado
quando entrei no Núcleo de Mulheres Negras.
Tinha uma rotina exaustiva, por experimentar minha primeira maternidade, o desejo de ser
uma mãe presente e potente, ao mesmo tempo em que a distância entre a casa e o trabalho desconstruía
de maneira muito dolorida meus sonhos. Uma culpa me acompanhava diariamente quando pensava em
não poder acompanhar o crescimento do meu filho, por ter que deixar na conta da minha mãe essa
responsabilidade.
Afinal de contas ela já tinha criado os filhos e o dever era apenas em ser avó. E os medos?
Minha mãe não foi criada em um ambiente de amor e cuidado, e mesmo com o nosso forte vínculo de
mãe e filha eu me perguntava: era possível que ela ensinasse ao meu filho aquilo que não aprendeu? A
solidão e a necessidade de pensar na sobrevivência é tão ancestral na nossa vida que nem mesmo
paramos para pensar nosso lugar de cuidado conosco, e nomear essa solidão – que não é só amorosa e
abrange tantas áreas da nossa vida – foi algo que só consegui perceber no núcleo.
5. Trilhar com nossos pés os passos que nossas mais velhas ensinaram
Para minha surpresa, a acolhida do grupo me ensinou de maneira concreta e profunda sobre
ancestralidade, sobre escuta, vínculos, compreendendo a força da cumplicidade das mulheres que me
cercavam e, sobretudo, da importância da minha mãe na minha vida e no cuidado também com meu
filho. Foi importante entender que posso sim contar com ela e que o amor reverbera e transborda para
meu filho e, assim, a aldeia inteira se fortalece.
Toda a formação que vivenciamos sobre o ciclo da violência nos trouxe a importância de
nomear e de transformar em palavras as dores que doíam há tempos, de encarar as negações, as perdas
e os sentimentos a elas atrelados. Inicialmente, o incômodo era, talvez, de que não fosse possível
sentar-se de frente com meus agressores, mas fosse, fundamentalmente, ocupar o lugar de cuidado das
minhas feridas. A velha história: o que vou fazer se fizeram com a gente?
O curso foi um pontapé inicial nesse processo, mas precisaríamos de um lugar exclusivo de
encontro com outras pessoas que pudessem entender essas dores, e isso só seria possível diante de
outras mulheres negras. Aquelas que naquele momento poderiam ser um espelho, que ajudavam a
147
refletir nós mesmas, que em suas lembranças pudessem desenhar nossa história, que ao falarem de
suas maternidades pudessem nos lembrar da mãe que somos ou das mães que tivemos.
Os sorrisos, as gargalhadas, os prantos, o falar sem julgamento e ser acolhida pelo olhar
amoroso e compreensivo. As pausas e os silêncios que só outras mulheres marcadas pelo território,
pelas experiências que vivemos, poderiam entender. O núcleo era composto por mulheres de faixas
etárias próximas, uma geração da década de 80. Era muito fácil dividir nossas particularidades,
trajetórias, desejos, singularidades e as experiências corporais que retratavam nosso comportamento no
mundo.
Eu sempre fui muito tímida e fazer parte daquele grupo com mulheres que tinham uma
relação diferente com seu corpo, livres de amarras impostas pelo machismo estrutural também ajudou
a ressignificar meu próprio corpo. Saias curtas, sem sutiã, sem calcinha, eram marcadas ali como
liberdade de expressão, um ato muito simbólico e estético de empoderamento. As falas carregadas de
autoconfiança, segurança e engajamento romperam com crenças limitantes que eu tinha.
Eu sempre tive muito medo do julgamento das pessoas. Uma vez um africano me disse que os
negros brasileiros se cobravam demais. Eu sempre me cobrei muito e falava que não perdoam os erros
das mulheres negras e que o “pau que bate em Francisca não bate em Chico”. Afinal, Francisca é
mulher e negra. No núcleo, pude perceber que a maior julgadora sou eu mesma, que aprendi desde
muito cedo a não gostar de ser quem sou. Uma coisa é viver o núcleo sozinha. Outra coisa é viver com
sua família.
O medo do julgamento da minha mãe era muito grande, de ser reprimida, desautorizada a ser
quem eu estava me descobrindo dentro do núcleo. E para minha surpresa, minha mãe, Dona Juju,
também estava participando do núcleo e foi muito importante para ela, a mais velha do grupo. E junto
com minha mãe e meu filho, íamos todos, a família inteira aprendendo a olhar para si e para cada um;
com amor, porque o amor cura.
A sabedoria e experiência de vida da minha mãe nos conectaram ainda mais e, para minha
surpresa, as dores e histórias partilhadas ali não se tornaram pautas na nossa casa. Mas, ao contrário,
foi nutrição para nossa relação. Ressaltamos muitos sentimentos e os mais duros foram acolhidos e
confortados com amorosidade. A ancestralidade mais uma vez potencializada por estarmos naquele
contexto construindo nossas individualidades no coletivo. Entender juntas a minha maternidade e que
está tudo bem não dar conta de tudo, que precisamos nos cuidar e deixar sermos cuidadas.
Como eu já disse... nos encontra. O desejo também caminha por terras e encontra a gente. É
isso que chamamos de ancestralidade. Sentadas em roda partilhando dores que tanto no passado
distante de outras mulheres negras, como na juventude na periferia, não podíamos partilhar – aliás, não
era permitido sentir. Um desejo gigante de humanidade, de sentir, de falar e contar de cabeça erguida
as histórias que fizeram de nós quem somos. Durante aquela roda se desenhava o desejo ancestral que
pudéssemos ser mais. O desejo expresso na voz da Dona Juju e que ecoava de tempos distantes.
É permitido ser integralmente as mulheres que já éramos para nascer a potência das mulheres
que poderíamos ser. Se, no passado, as irmandades de mulheres negras fizeram muito pela liberdade
de outros escravizados, naquele momento o Núcleo nos permitia também outras liberdades ainda em
curso, para que outras gerações pudessem ser. Aliás, desde o início somos crianças e somos aldeias.
A imensidão do Núcleo era algo de uma profundidade, um grande mar de águas fortes e de
muitas turbulências; muitas vezes o silêncio nos levava a lugares de necessidades básicas e de muitas
intensidades. O orgulho de ver que são caminhos tão parecidos, mas também tão distantes, nos fazia
ver no olhar da outra, dando a possibilidade de um abraço. Um ombro para levantar-se, um apoio para
seguir.
148
Escrever algo tão presente nessa vivência é um grande mistério. Difícil de traduzir, pois está
cheio de cheiros, sabores e amores que são difíceis de transcrever em palavras. É um sentir-pensar,
uma escrevivência. O Núcleo de Mulheres Negras representa uma continuidade de saberes por meio de
nós para nós e, com isso, quem ganha é toda aldeia.
Eu quero agradecer as energias dessas mulheres que se sentaram nessa minha roda nesse
tempo/espaço, criando e entregando a elas por antigas gerações; eu, Núcleo de Mulheres Negras,
espero ter cumprido o papel que me coloquei. O amor cura. Eu, de todas as formas, tentei cuidar das
suas feridas e amenizar suas cicatrizes; vocês que circularam nesses encontros, cantaram músicas que
não conhecia, me ensinaram danças, dividiram seus desenhos, suas histórias e afetaram meu sentido de
viver. Hoje moro em cada parte de vocês, porque vocês me fizeram, não posso esquecer seus nomes.
Andréia Arruda; Alessandra Tavares; Mariana Brito; Cibelle Borges; Maria Edjane; Flávia Rosa;
Gabriela Ferraz; Carmen Faustino; Marina Faustino; Lucila Faustino; Débora Marçal; Dandara
Gomes; Priscila Obaci; Formigão; Ivani Oliveira; Joyce Oliveira; Gislene da Penha Barbosa; Luana
Bayo; Dani Braga; Jenyffer Nascimento; Jussara Machado; Cris Oliveira; Marisa Araújo; Jerusa
Machado; Carla Souza; Débora Mendes; Maria Lúcia e Jussara, AMMA Psique e Negritude, nossos
agradecimentos por tudo que trouxeram na minha roda.
149
MULHERES EM CÍRCULO E EM LUTA: PERIFERIA SEGUE SANGRANDO
E NÃO ESTANCA!
Por toda extensão da periferia, lidamos com várias dores que ficam escondidas entre leis e
mobilizações, mas que com um olhar mais aprofundado remetem às subjetividades das pessoas,
principalmente quando olhamos para questões que não estão sendo julgadas, como o machismo
estrutural, o racismo e o heterossexismo e suas sequelas na vida das mulheres.
Os círculos restaurativos que o Periferia Segue Sangrando vem desenvolvendo têm alta
relevância nesse lugar, ao mesmo tempo geral e restrito, que é o dia a dia das mulheres que vivem em
uma sociedade em que as violências foram naturalizadas. Como coloca Gloria Anzaldúa, nosso círculo
nasce no desejo de encontro com outras mulheres periféricas, de todas as cores, que partilham
experiências próximas às nossas e, como nós, sabem mais de cuidar do que de ser cuidadas. O que
inicialmente era uma ação pontual no dia 8 de março tornou-se um desejo de ficar, de estar juntas, de
gestar e criar um fazer com nossa cara, nossa marca e nosso cheiro. E como Anzaldúa diz:
Minhas queridas hermanas, os perigos que enfrentamos como mulheres de cor não são os
mesmos das mulheres brancas, embora tenhamos muito em comum. Não temos muito a perder
– nunca tivemos nenhum privilégio. Gostaria de chamar os perigos de “obstáculos”, mas isto
seria uma mentira. Não podemos transcender os perigos, não podemos ultrapassá-los. Nós
devemos atravessá-los e não esperar a repetição da performance (ANZALDÚA, 1981, p. 229).
150
Nesse contexto, nasce o círculo Periferia Segue
Sangrando, em oito de março de 2015, com o
propósito de questionar nosso grande infrator numa
sociedade patriarcal: o machismo! Não o machismo
sem cara ou abstrato, mas a partir de nossa própria
pele, das nossas vivências. Nasce com o anseio de
ser um espaço que utiliza das práticas circulares
para que mulheres, de diferentes idades e histórias,
possam se elaborar e falar de suas dores num
espaço seguro, sigiloso e sem julgamentos.
Inicialmente formado por diversas mulheres da
periferia da Zona Sul, organizadas ou não em coletivos, o Periferia Segue Sangrando se configurou
numa ação conjunta de muitas mulheres desse território, que se reuniam anualmente desde 2015,
alcançando no ano de 2019 a sua 5ª edição consecutiva.
Há uma discussão sobre as bases do Periferia Segue Sangrando. Se, por um lado, ele nasce a
partir de nossa formação e experiência em Justiça Restaurativa, ele começa a ser gestado ainda em
2011, quando nós, mulheres que frequentamos os saraus, nos colocamos contra os assédios dos
homens nesses espaços e decidimos realizar uma ação. Na casa de uma dessas mulheres periféricas nos
reunimos e partilhamos pela primeira vez nossas histórias íntimas. Narrativas assoladas pelo silêncio
imposto aos nossos corpos. Só voltamos a falar em 2015; antes, apenas sussurrávamos.
As violações inscritas no corpo feminino (literal e figurativamente) e as formações discursivas
em torno dessas violações, como vimos, tornaram visível a imaginação da nação como uma nação
masculina. O que isso fez à subjetividade das mulheres? (DAS, 2011, p. 11). Essa não foi nossa
pergunta de partida. Essa foi nossa resposta. A vivência do gênero no território periférico perpetra em
nós as mesmas analogias: mulher, igual à periferia. Mulher, igual ao território. No primeiro encontro,
descobrimos que as violações, o genocídio, a ausência de defesa de direitos, a pobreza, a precariedade
e a negligência eram vividas em nossos corpos e nossas vidas. Simultaneamente, potência, cultura,
articulação, cuidado, tecnologias de sobrevivências, negociações e superações também eram
vividos. Por isso, a periferia segue sangrando, como nossas histórias, e não estanca – e negamos
esconder nosso sangrar.
1. Mulheres em círculo
Peço licença para minhas ancestrais. Gostaria de colocar minha contribuição aqui, no sentido
1
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo
151
de dizer não apenas como surge o Periferia Segue Sangrando, mas principalmente como eu e
outras mulheres da minha rede, que ainda não era essa rede, chegamos nesse círculo. A
princípio não fazia ideia do que seria um encontro restaurativo. Seria um encontro para
restaurar? Não sabia dos sentidos, mas pela confiança nas meninas da rede, resolvi me achegar
nessa roda. Talvez estivesse no textinho da chamada que recebi, provavelmente não prestei
atenção. Memória, está aí algo que sempre me faltou, mas aquele encontro com o tapete de
retalhos ao meio de um círculo ainda é vivo em mim. Falar da minha mãe em 2015, ano que
fez 10 anos de seu falecimento, mexeu em lugares adormecidos e que ainda sangrava –
falando, estaria eu restaurando algo? Sei não, mas falar e ser ouvida naquele momento foi
importante, libertador e, me arrisco a dizer, foi o primeiro movimento de perdão. Falando em
memória ainda me sinto confusa com os efeitos do Periferia Segue Sangrando, não consigo
identificar se o que me motivou a me mover em torno do perdão, do acerto de contas com
minha mãe e dos monstros internos existentes foram as práticas de Justiça Restaurativa ou o
batuque do Baque Atitude. É preciso reconhecer que o cortejo é uma atração à parte das
práticas restaurativas que me restaurou. Enquanto escrevo, viajo em meus pensamentos
restaurativos, estou aqui tentando recontar e reconstruir a história de minha vida para mim
mesma. Queria que minha mãe estivesse aqui, queria poder se sentar nesses círculos de retalhos
com ela e costurar uma nova história para a gente. Em 2018, uma família de mulheres negras
participou do PSS – Periferia Segue Sangrando – (mãe, duas filhas e um neto), naquele ano eu,
que tanto falava, passei a observar com bastante atenção aquela família. O que elas estavam
fazendo ali? O que círculos restaurativos tinham a ver com uma família tão linda, preta e
estruturada? Estariam ali pelo cortejo, pelo rastro de tintas nas vielas, pelas intervenções
femininas nos muros do bairro? Não sei dizer. Eu sei que no final elas me pediram um abraço,
elogiaram o frango bem temperado (comida é uma das formas mais lindas de afeto) e
agradeceram a oportunidade de participar do corredor do amor (prática de cuidado mediada
por mim e outra lésbica). A propósito, passei de participante para facilitadora sem ter formação
em JR. (depoimento enviado de uma das integrantes do PSS)
152
Já era noite e esse momento representou o final do cortejo realizado pelo núcleo Periferia
Segue Sangrando. O núcleo é formado por diversas mulheres, organizadas ou não organizadas
em variados grupos. Um pouco antes disso, durante o cortejo, caminhamos pelas subidas e
descidas das vielas, ruas e becos do Jardim Ibirapuera, ao som do maracatu Baque Atitude. O
protesto e a andança se misturavam com as sensações experimentadas anteriormente no círculo
de mulheres durante a tarde e iam ganhando ainda mais intensidade ao passo que sentia a
beleza das pinturas africanas no rosto das mulheres jovens e adultas, com a interação
promovida pela distribuição de folhetos com textos sobre violência contra a mulher e violência
policial e com a mancha da tinta vermelha que ia sendo jogada pelo chão por onde passávamos,
para simbolizar todo o sangue que é derramado na periferia. Viver esse momento despertou
muita dor, por trazer à tona violações diárias de nossas vidas, mas, por outro lado, manifestou a
vivência de uma força coletiva feminina poderosa, entoada pela trilha grave, ancestral e
profunda dos tambores. Essa programação teve início no horário de almoço, com caldos e café
feito pelas mulheres que organizavam o evento, entre elas, mulheres da coletiva Fala Guerreira,
que nos receberam afetivamente no Bloco do Beco, espaço acolhedor, iluminado e com uma
sala ampla. Ao longo do dia, ocorreram ali várias atividades. Quem chegava ia se ambientando
e de forma orgânica notava-se pequenos grupos de mulheres espalhados pelo ambiente, elas
conversavam, pintavam, escreviam poesias, riam, choravam e comiam em pé ou sentadas.
Abraçadas umas às outras, encostadas pelo chão ou em silêncio com as crianças que corriam
entre nós, o clima era de intimidade e acolhimento. Depois desse momento de convivência
espontânea, todas as mulheres presentes foram convidadas ao espaço central para dar início às
atividades. Três mulheres da organização do evento iniciaram lendo um poema. Uma por vez,
recitavam versos que suavemente falavam sobre dor, amor e força. A partir da identificação
com o tema de cada texto, cada mulher foi conduzida para a atividade seguinte: os círculos.
Guiada pelo poema “A ferida”, eu participei do círculo “dores e sombras”, embora ainda não
soubesse que este seria o tema. Após a formação dos grupos, o nosso foi direcionado para o
ambiente externo, repleto de plantas e pequenas árvores, flores e bancos coloridos que estavam
dispostos em círculo. No centro, alguns objetos criaram uma ambientação: havia livros,
espelhos, remédios, lápis coloridos e papéis. Já sentadas, em meio a outras mulheres,
conhecidas e desconhecidas, apresentamo-nos e em seguida conversamos sobre a pergunta
disparadora: “Qual a minha dor?”. A partir dos princípios que fazem parte dessa proposta (o
sigilo, falar somente a partir de si e não opinar na fala das outras mulheres), de maneira
circular, cada mulher pôde se expressar a partir do “objeto de fala”, ou seja, só poderia falar
quem tivesse segurando um objeto na mão, que nesse caso, era um tecido um pouco longo e
colorido que traria mais conforto e segurança ao amassá-lo e manuseá-lo enquanto falávamos.
Assim, cada mulher em seu tempo contou, chorou e desabafou sobre os variados processos de
violência que enfrentam” (ASSUNÇÃO, 2018, p. 23).
O círculo renova nossa narrativa, ele propõe novas questões e lutas por uma perspectiva
coletiva. Entre diversas escutas e possibilidades que cada encontro trazia dentro de mim, novas
questões sobre minha vida e atuação surgiam. O círculo restaurativo promove em sua formação a
possibilidade de tornar todas protagonistas de cada história, sentindo, por meio da narrativa de cada
mulher, viver a sua história. A conversa no grupo é sobre mulheres negras e violência, não apenas a
violência infligida pelos homens negros, mas a violência que as mulheres negras cometem com as
crianças, e as violências que praticamos umas com as outras (hooks, 2019, p. 97).
O próprio círculo de mulheres é um ato revolucionário, pois passando uma vida estruturadas
em um machismo que nos coloca como rivais, quando eu escuto uma mulher mais madura no círculo,
eu escuto a minha mãe; quando eu ouço uma idosa eu escuto a minha avó, e assim reativamos laços de
entendimento e perspectiva histórica de realidades vividas nas gerações de mulheres.
A modernidade como se apresenta para as mulheres periféricas vem como máxima exploração
da força produtiva e reprodutiva, o que tem nos trazido uma grande falta de tempo. Tempo para o
153
encontro, para reflexão, para fazer um chá, um escalda-pés, para pensar no bem-estar, comer uma
comida preparada para mim como um presente, para chorar dores que não cabem em corredores de
transportes públicos ou que não podem ser desabadas na frente dos filhos. Esse encontro é a
possibilidade de se restaurar lugares. O cuidado, que sempre é tão atrelado às mulheres, mas que mães
trabalhadoras muitas vezes não conseguem se proporcionar.
O círculo Periferia Segue Sangrando é uma metáfora de luta ou sonho de um dia que começa
com um autocuidado, com a experimentação artística, e termina em um ato que compartilha
publicamente a necessidade do reconhecimento da possibilidade do espaço político e social das
mulheres.
Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser útil contra opressões,
pessoais e institucionais, que são a origem dessa raiva. Usada com precisão, ela pode se tornar
uma poderosa fonte de energia a serviço do processo e da mudança (LORDE, 2019, p. 159).
2. Mulheres em luta
Em 2020, fomos surpreendidas pela pandemia, o (não) isolamento social e toda devastação
causada pela Covid-19 nas quebradas. Este era – e ainda é – um momento que colocava em risco a
integridade de nossos corpos, dos corpos de outras mulheres e de homens que ocupam esse território
sul.
Munidas de coragem e da fé que botamos nas matriarcas, mas não sem medo da morte,
unimos forças com algumas coletivas de mulheres para tentar diminuir o impacto negativo da fome
que sempre esteve por essas bandas. Para isso, criamos uma vaquinha on-line com o objetivo de
angariar fundos financeiros e doações de alimentos, produtos de limpeza e higiene, pensando em
amparar famílias que tiveram perdas imensuráveis, inclusive nossas próprias famílias.
154
Nossa maior preocupação naquele momento era com a saúde
de todas e todos, porém a fome nos atravessa, as contas se
acumulam e as noites de sono viram horas infinitas de
pesadelos. Como manter a imunidade alta de barriga vazia?
Quem nos respalda quando um colapso está em circulação? É
possível confiar no Estado? Esse mesmo Estado que, quando
não nos mata com seu braço armado, nos deixa morrer de
fome?
O que estamos querendo dizer é que essa mobilização existente
da rede de mulheres não é sobre caridade, não é sobre
solidariedade, não é sobre ajudar ao próximo. Hoje, por meio
das tecnologias digitais, por conta do distanciamento social,
estamos realizando o levantamento de cestas básicas, que era
algo inaceitável anteriormente e que se tornou aceitável por
causa da condição de guerra que a periferia vive na pandemia
(e antes dela), porque o genocídio por aqui não parou. O hospital era ruim e agora é pior; a escola já
era ruim, agora nem temos o acesso. Então, quando fazemos essa rede, essa solidariedade, é a mesma
coisa que fazíamos nos anos de 1980, quando a nossa mãe falava: “vai lá na casa da Zefa e pede pra
ela uma xícara de açúcar que a nossa acabou”. É a mesma coisa, só que em situações diferentes.
Porque mesmo lutando, trabalhando e estudando, a precariedade não nos abandona. Ela está ali,
cercando, e ao mesmo tempo que a gente está fazendo pelos nossos vizinhos, pelos nossos
conhecidos, pelas nossas comadres e toda essa rede de parentesco, nossas avós, nossas famílias, a
gente também está fazendo por nós, porque hoje você tem o dinheiro completo do aluguel, da comida,
de tudo, mas mês que vem você não tem.
Então, a gente tenta usar todos esses recursos, nossa escrita, nossa voz e nossa rede interna e
externa para uma tecnologia de sobrevivência. O que nós estamos fazendo desde 1.500, senão tentar
sobreviver? Porque o Estado nos mata sem parar.
Periferia segue sangrando e não estanca. Em nome desse sangue é que nós, mulheres
periféricas, negras, faveladas, nordestinas, donas de casa, trabalhadoras, chefes de família, artistas,
lésbicas, trans, estudantes, mães-solteiras, nos levantamos em sentimentos, voz e ação para bradar
todas as violações as quais estamos submetidas diariamente. O sangue que escorre também é o nosso.
É chegado o tempo de deixar para trás o pesado fardo do silêncio, que há muito recai sobre nós como
mácula. Por isso, levantamos para dizer não! Para dizer basta! Levantamos para irmos além do ontem e
do agora.
NÃO à padronização comportamental que nos categoriza como sexo frágil e nos quer
submissas para suprimir nossa potência;
NÃO à escravidão estética que busca nos transformar em um exército de mulheres ideais para
consumo, excluindo e ridicularizando qualquer uma de nós que não se encaixe nesse modelo; NÃO à
155
agressão física e psicológica exercida por companheiros, travestidos por um suposto discurso de amor,
mas que no fundo são apenas estratégias de exercer o controle e a punição voltados para manutenção
de seus privilégios;
NÃO à violação dos nossos corpos, não aos inúmeros abusos sexuais cometidos, que
subjugam a nossa humanidade como se fôssemos criaturas disponíveis apenas para o sexo, à mercê da
vontade alheia;
NÃO ao feminicídio que extermina mulheres todos os dias, apoiado no discurso misógino que
propaga o ódio, baseado puramente em nossa condição de gênero. Morremos simplesmente por sermos
mulher;
NÃO à diferenciação salarial que inferioriza nossa força de trabalho, nossa intelectualidade,
nossa potência criadora. NÃO ao abismo salarial que atinge ainda mais as mulheres negras e pobres;
NÃO à desvalorização da arte produzida por mulheres. NÃO à monopolização do acesso aos
espaços culturais e artísticos e aos constantes boicotes com intuito de nos invisibilizar;
NÃO aos contratantes das empresas e aos locatários de imóveis que se valem da quantidade
de filhos que a mulher possui para dificultar ou impossibilitar sua entrada;
NÃO à reprodução cômoda do papel social que coloca as mulheres como única responsável
pelas tarefas domésticas, sem qualquer divisão de tarefas entre os homens da casa;
NÃO ao descaso e à falta de reconhecimento às mulheres chefes de família, que cumprem
jornada de trabalho dentro e fora de casa, com a vida voltada para os outros, e pouco tempo de olhar
para si na busca por emancipação;
NÃO à violência obstétrica que impera nos hospitais públicos, incapaz de disponibilizar apoio
ou acolhimento durante o parto. Violência essa que culpabiliza a mulher por sua condição;
NÃO à discriminação e falta de apoio às mulheres que optam pelo aborto, muitas vezes
realizados de maneira precária pela falta de condições econômicas, que arriscam sua saúde e não
possuem qualquer apoio emocional ou psicológico em sua decisão;
NÃO aos homens que não possuem comprometimento na criação dos filhos, delegando à
mulher toda responsabilidade na educação, sustento e afetividade da(s) criança(s);
NÃO à ridicularização de nossas opiniões e ideias no âmbito público e no privado, que tenta
fazer de nós meras ignorantes. Não à ridicularização do discurso e prática feminista, que
pretensiosamente busca deslegitimar nosso posicionamento de luta.
NÃO ao assédio cotidiano de cantadas medíocres que nos expõe, amedronta e ameaça o nosso
direito de ir e vir com tranquilidade;
NÃO ao discurso que cria uma rivalidade e competitividade forjada entre mulheres, como
forma de destruir nossos laços ancestrais de união e conexão.
NÃO ao preconceito e à ridicularização às lésbicas, transexuais e travestis por sua identidade
de gênero ou por sua orientação sexual;
NÃO ao julgamento moral às mulheres que vivem sua sexualidade livremente, principalmente
aquelas vítimas de crime virtual que têm suas intimidades expostas, por mera covardia;
NÃO a toda forma de opressão, repressão, humilhação, inferiorização e subjugação que
vivenciamos há séculos e décadas.
Nossos corpos tratados como propriedade estão cansados de serem objetos, exaustos de serem
controlados e moralizados. Estamos cansadas de sermos tratadas como se o nosso corpo fosse um
“perigo iminente”. Por isso nos levantamos contra o machismo que cerceia nossa liberdade através
de discursos e práticas arbitrárias. Perigoso e nefasto é o machismo.
156
É pela grandeza do feminino que traz consigo o sagrado, a fertilidade e a vida que
reivindicamos o corpo como nosso território por direito! Se é pelo corpo que manifestamos a essência
do eu-mulher, será também através dele que faremos a nossa reintegração de posse, em resposta a
todas essas violações. A começar pelo nosso sangue que escorre de nós!
Se antes sangrávamos em solidão, sangraremos todas juntas para expelir essas dores. Se antes
sangrávamos pelos filhos e maridos assassinados pelo genocídio, sangraremos todas juntas para nos
opor à violência.
Se antes sangrávamos pela opressão e pelo medo, sangraremos todas juntas empenhando
nossas lutas.
Se antes sangrávamos pelo esquecimento, sangraremos todas juntas até o fim pela esperança
viva de mudarmos o curso de nossas histórias.
Periferia Segue Sangrando. Aqui nos levantamos, para irmos além do ontem e do agora.
Versão 2017
Periferia segue sangrando e não estanca. Em nome desse sangue é que nós, mulheres pobres,
periféricas, negras, brancas, indígenas, faveladas, nordestinas, donas de casa, trabalhadoras, chefes de
família, mães solas, moradoras de rua, estudantes, trans, lésbicas e todas, nos unimos em sentimentos,
voz e ação para falar em alto e bom som contra todas as violações que marcam nosso corpo e nossa
alma diariamente. O sangue que escorre também é o nosso. É chegado o tempo de deixar para trás o
silêncio imposto a nós, já não podem mais nos calar! Por isso, estamos juntas para dizer NÃO! Para
dizer BASTA! Estamos juntas para dizer SIM à nossa existência. Estamos juntas para ir além do
ontem e do agora.
Nossos corpos tratados como se não nos pertencessem, estão cansados de servir apenas como
objeto de desejo ou de exploração dos outros. Estamos cansadas de sermos tratadas como se os nossos
corpos fossem a fonte de pecados do mundo. Não queremos que decidam como vamos nos comportar,
agir e pensar. Por isso, nós estamos juntas CONTRA TODA FORMA DE MACHISMO que
aprisiona a nossa liberdade, não nos deixando ser como somos. O MACHISMO vem para controlar
nossos passos e nossos desejos. As falas machistas que ouvimos em casa, no trabalho, nas ruas da
cidade e em nossos relacionamentos só existem para nos explorar e pôr medo, para que a gente não
tenha sonhos nem vontade própria. O MACHISMO é perigoso porque é VIOLENTO, porque ele
mata mulheres todos os dias!
Dizemos NÃO:
NÃO somos sexo frágil e não somos inferiores! Essa é a maior mentira da História!
NÃO queremos ser “belas, recatadas e do lar”, somos mulheres e cada uma tem seu jeito e sua
vivência
NÃO à beleza padrão vendida nos comerciais de TV, das novelas e capas de revistas
157
NÃO aos homens que dizem nos amar e nos matam quando contrariamos suas vontades
NÃO à violência doméstica exercida por maridos, companheiros, namorados, pais, padrastos,
irmãos, que atinge uma mulher a cada cinco minutos
NÃO à diferença de mais da metade do salário entre homens e mulheres. E a metade da
metade quando essas mulheres são NEGRAS.
NÃO ao assédio de todo dia que invade nosso corpo, rouba nossa paz e nos traz medo de
andar nas ruas
NÃO à falta de creche para deixarmos nossos filhos
NÃO às imobiliárias e aos donos de casas de aluguel que não aceitam mães com filhos.
NÃO à obrigação de lavar, passar, cozinhar, cuidar dos filhos, enquanto os homens ficam de
braços cruzados vendo TV ou vão para a porta do bar
NÃO aos covardes que abandonam seus filhos, não pagam pensam e não ajudam com nada
NÃO à pressão para sermos mães e esposas, mesmo quando isso não é o que queremos NÃO
ao ódio que os homens despejam em nós mulheres, apenas pela nossa existência
NÃO à competição estimulada entre nós desde a infância, isso não é algo natural, natural é a
nossa conexão
NÃO à violência nos partos dos hospitais públicos, por acharem que nós que somos negras e
pobres temos que aguentar a dor!
NÃO ao silêncio e ao medo que nos corrói por dentro depois de passarmos por alguma
violência física ou psicológica, que impede que nossa voz e denúncias sejam ouvidas
NÃO a toda forma de humilhação, maus-tratos, violência, tortura e apagamento que há
séculos e séculos recai sobre o nosso corpo de mulheres.
Nós, que somos a natureza e a fertilidade da vida, dizemos que nosso corpo é o nosso
território, nossa morada, e pertence apenas a nós! Nosso corpo é nossa arma, nossa proteção e por isso
ocuparemos os becos, as vielas, as ruas e avenidas em resposta a todas as violências, em resposta ao
MACHISMO. Vamos deixar marcado com sangue os lugares por onde passamos para que não se
esqueçam, nem um dia sequer, que nós não aceitamos mais sangrar de forma cruel nas garras do
MACHISMO e dos MACHISTAS.
Se antes cada uma sangrava sozinha, sangraremos todas juntas derramando nossas dores. Se
antes a gente sangrava pelos filhos e companheiros assassinados, sangraremos todas juntas contra essa
brutalidade, essa violência que atinge a nós todos os dias. Se antes a gente sangrava pelo abuso, pela
exploração e pelo medo, sangraremos todas juntas em forma de luta. Se antes a gente sangrava pelo
esquecimento, sangraremos todas juntas, até o fim do nosso caminhar pela esperança viva de mudar o
rumo das nossas histórias e das histórias das outras mulheres.
Dizemos SIM:
Por nossas bisavós e nossas filhas, por nossas mães e sobrinhas, por nossas ancestrais e por
aquelas que ainda virão!
Mãe dos filhos negros – Lutamos com vós! Mãe dos filhos sem pai – Lutamos com vós!
Mães que abriram mão de seus filhos - Lutamos com vós! Maria dos filhos assassinados – Lutamos com vós!
Mãe dos filhos descalços – Lutamos com vós! Mãe das crianças sem creche – Lutamos com vós!
Mulheres dos abortos clandestinos – Lutamos com vós! Maria dos sexos forçados – Lutamos com vós!
Maria dos anseios – Lutamos com vós!
Maria dos corpos violados – Lutamos com vós! Maria dos abandonos – Lutamos com vós!
Maria das jornadas duplas – Lutamos com vós! Maria das dores – Lutamos com vós!
Maria dos partos violentos – Lutamos com vós! Maria das ocupações periféricas – Lutamos com vós! Maria das
lutas e coletivos – Lutamos com vós!
Rainha das empregadas domésticas – Lutamos com vós! Rainha dos bares – Lutamos com vós!
Rainha dos homens – Lutamos com vós! Rainha curandeira – Lutamos com vós! Rainha do lar – Lutamos com
vós!
Filhas do corpo reprimido – Lutamos com vós! Maria de todas as Silvas – Lutamos com vós!
Homens sejam coparticipativos na Luta - Estamos com vós!
Deusas e deuses a vós suplicamos que nossas mulheres sejam ouvidas e que conceda a força para continuarmos
na batalha, firmes e fortalecidas, agraciadas pelo empoderamento nosso de cada dia.
159
Amém. Axé. Awere.
160
Referências
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro
mundo. Estudos Feministas. 1981, p. 229-236.
ASSUNÇÃO, Sulamita. Quebradas feministas: Estratégias de resistência nas vozes das mulheres
negras e lésbicas negras da periferia sul da cidade de São Paulo. 126 f. Dissertação (mestrado) -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós- Graduados em Ciências
Sociais – PEPG em Ciências Sociais, São Paulo, 2018.
hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Bocaiúva Maringolo. São
Paulo: Elefante, 2019.
LORDE, Audre. Irmã outsider. Tradução: Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2019.
161
162
CORPOGRAFIAS DAS RESISTÊNCIAS SUBTERRÂNEAS
Dina Alves1
Introdução
Neste ensaio, debrucei-me sobre o assassinato de Luana Barbosa dos Reis Santos (mulher
negra, favelada e LGBTQIA+)2. Nos meus deslocamentos de São Paulo a Ribeirão Preto, na condição
de advogada ativista, acompanhei oito audiências de instrução e julgamento, entre os meses de julho
de 2018 a agosto de 2019, nas quais atuei a convite da família de Luana. Minha assessoria jurídica
ajudou a “usar” o Direito como um campo de ação política para construir uma narrativa alternativa ao
regime de criminalização contra familiares e a vítima3.
A partir disso, apresento, neste ensaio, alguns episódios que ocorreram durante as audiências
nos depoimentos familiares e de policiais e no repertório dos movimentos feministas que estiveram
presentes durante estas audiências, e a construção das suas agendas políticas 4. Neste sentido, considero
duas estratégias corpográficas que apontam o processo de resistências subterrâneas. A primeira mostra
como Luana, a partir de sua resistência, desafiou o Estado penal-heterossexual e, ao fazê-lo,
ressignificou a economia do corpo como veículo de confrontação à ordem estabelecida. A segunda
revela como o abolicionismo penal subterrâneo, desenvolvido através de práticas reais e imediatas
pelos movimentos sociais e feministas, elabora formas de reivindicar justiça, memória e reparação. Se,
de um lado, a produção das mortes, a exclusão social e o regime de punição feminina afirmam o
projeto genocida, de outro, as experiências coletivas e feministas reinventam, reatualizam e elaboram
novas pedagogias de resistências.A produção da resistência: morreu porque resistiu!
No dia em que Luana Barbosa foi abordada por três agentes policiais, ela avisou de antemão
“eu sou mulher”, e exigiu a presença de uma policial feminina. Os policiais, ao serem questionados
por esta exigência, chutaram-lhe as costas e, nesse momento, Luana revidou a agressão e desferiu um
soco na boca de um deles e chutou o pé de outro. Ela foi algemada e espancada e colocada na viatura,
1
Advogada, Doutora e Mestra em Ciências Sociais na área de Antropologia pela Pontifícia Católica de São Paulo; Autora
da pesquisa Rés negras, judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da
punição em uma prisão paulistana (2015). Atriz, abolicionista penal, feminista negra e cofundadora do Coletivo Autônomo
de Mulheres Pretas - Adelinas
2
Ver mais em https://www.youtube.com/watch?v=TixZp68EZrw e em http://www.onumulheres.org.br/noticias/nota-
publica-do-alto-comissariado-de-direitos-humanos-das-nacoes- unidas-para-america-do-sul-e-da-onu-mulheres-brasil-
sobre-o-assassinato-de-luana-reis/.
3
TRIBUNAL de Justiça do Estado de São Paulo comarca de Ribeirão Preto, foro de Ribeirão Preto, 1ª vara do Júri e das
Execuções Criminais. Processo criminal 0011942-10.2016.8.26.0506.
4
Optei por preservar os nomes de algumas interlocutoras, especialmente daquelas que integram o processo criminal como
testemunhas de acusação, por proteção à sua integridade, uma vez que o processo está em andamento com sentença de
pronúncia dos acusados. Algumas testemunhas do processo já estão com sua qualificação sob sigilo da justiça de acordo
com provimento n.º 32 do Tribunal de Justiça que “garante” a sua proteção.
163
mas continuou resistindo às violências contra seu corpo: chutou a porta da viatura, se debateu e,
segundo a população e os próprios policiais, gritava “ratos cinzas”, “vermes”, “desgraçados”,
“repressão”. A porta foi prensada contra suas pernas, e ela continuou chutando e resistindo à prisão.
Luana morreu vítima de traumatismo crânio encefálico com isquemia cerebral em decorrência de
espancamento5. Como o corpo de Luana desafiou e confrontou a nação hegemonicamente
androcêntrica e heterossexista?
A resistência de Luana nos encontros com os agentes de segurança pública revelou que seu
corpo (in)governável desafiou e confrontou a lógica heteronormativa e sexual, constituída sob estas
categorias que fundamentam congenitamente o sistema de justiça. O ato de resistir às violências por
meio da violência pode ser lido aqui como uma forma de desnudamento desse projeto de nação. Outra
pergunta possível aqui é: onde o corpo de Luana, “descontrolado”, “agressivo” e ingovernável é
cabível neste projeto constituinte democrático? Ainda que o gesto de dar um soco na boca do policial
seja lido e interpretado pela burocracia jurídico-estatal como lesão corporal e desobediência civil, é um
gesto que deve ser lido como resistência contra a face pública do Estado soberano. Nos depoimentos
abaixo, a própria corporação policial nos revela a explícita resistência de Luana contra a morte brutal a
que fora submetida:
Esclareço que foi usada força estritamente necessária para conter a fúria de Luana [...]. Ela
ofereceu muita resistência. Muita agressividade. [...]. Nós tentamos colocá-la no chão para
algemá-la, como é o padrão. Não conseguimos colocá-la no chão, ela ficou de joelho [...].
Mesmo depois de algemada essa pessoa continuou se debatendo, continuou resistindo.
[...]
Aí nesse interim, nesse tumulto, o rapaz que estava dirigindo saiu para ajudá-los, mas não
conseguiam dominá-la. Puxaram ela para o lado da viatura e ela se debatia chutava. [...] Nisso
o policial puxou ela, aí o outro policial ajudou a colocar ela na viatura, só que não conseguia
fechar a porta [...].
[…]
O senhor disse aqui na polícia, está às fls 34/35, que viu a Luana com as pernas amarradas e
algemada, que viu ela dando cabeçadas dentro do veículo “Sim, depois que foi colocada dentro
da viatura. (g.n.). Ela chutava, ela chutava a porta com os dois pés, estava algemada e batia a
cabeça para trás. Ela ficava esticando o corpo para poder fugir e ficava batendo nas laterais da
viatura” (Resposta à pergunta feita pelo M.P.).
[…]
O senhor chegou a ouvir se ela ofendia os PPMM? Ela gritava desgraçados [...]. […]
Nós tentamos colocá-la no chão para algemá-la, como é o padrão. Não conseguimos colocá-la
no chão, ela ficou de joelho.
5
Ver mais informações no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, comarca de Ribeirão Preto no processo criminal n.
0011942-10.2016.8.26.0506.
6
https://www.facebook.com/ABGLTnaLuta/posts/abglt-por-luana-barbosa-nota-da-abglt-sobre-o- julgamento-do-caso-de-
luana-barbos/2057136874537384/
164
O processo de espetacularização da violência inscrito em seu corpo relaciona-se diretamente
com a construção de um tipo de corpografia da punição/resistência no contexto da história da
escravidão moderna e os experimentos tecnológicos de opressão: tortura, estupros, violência corporal e
psicológica contra negros e indígenas escravizados. A pós-abolição aperfeiçoou e reinaugurou o
processo de desumanização da população não branca. Em vez de ser inserido no projeto de cidadania
da jovem República, este grupo social viu-se jogado à sua própria sorte, numa profunda e persistente
exclusão social. E, ao mesmo tempo, o Estado republicano não os incorporou como sujeitos de
direitos, iniciando-se aí a produção política de corpos vistos como perigosos. Nesse sentido, o
continuum de exclusão promovido pela escravidão à liberdade formal demonstra que a abolição se
configurou apenas como um ato jurídico simbólico que transportou o regime patriarcal de direitos e
de cidadania racializada. O fio condutor dessas ideias consiste em compreender um tipo de
corporeidade capturada nas diversas teias do sistema patriarcal de justiça, nos processos de
espetacularização da violência de gênero e suas experiências prisionais e de mortes sistêmicas
(CONSORTE, 1999; NASCIMENTO, 2016).
7
No contexto das diversas manifestações das violências sofridas por Luana e sua família na cidade militarizada, é
pertinente evocar o conceito de cidade antinegra para descrever as geografias da morte na cidade de Ribeirão Preto/SP. Ao
analisar a distribuição das mortes no binômio espacial necrópolis/afrópolis, Alves denomina de antropofagia racial
brasileira a forma como a cidade antinegra devora corpos racializados, seja na segregação espacial entre zonas nobres –
onde estão os ricos brancos, com acesso à limpeza, à segurança –, seja nas zonas precarizadas predominantemente negras,
com ausência de direitos à educação, saúde e lazer e por meio da política seletiva de contenção de corpos negros nas
favelas, onde há maiores concentrações de homicídios. Ver mais em The anti-black city: police terror and black urban life
in Brazil [A cidade antinegra; terror policial e vida negra urbana no Brasil]. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2018.
8
https://www.facebook.com/search/top?q=coletiva%20luana%20barbosa
9
Ver mais aqui: https://www.facebook.com/nenhumaluanaamenos
165
Figura 1: Coletiva Luana Barbosa na divulgação da chamada para audiência Fonte: Campanha Nenhuma
Luana a Menos
Estes dois movimentos encabeçaram a organização dos atos em defesa da memória de Luana
nas oito audiências que foram realizadas. As estratégias discursivas passaram por desmasculinizar e
descolonizar as narrativas sobre as subjetividades de Luana na mídia hegemônica e no mundo forense,
além de demarcar a importante denúncia pelo reconhecimento do crime de genocídio e lesbocídio.
Assim, juntamente com outras organizações de mulheres negras, como Geledés, Coletivo Adelinas,
Marcha das Mulheres Negras, Mães de Maio, Mães em Luto da Zona Leste, articularam viagens de
São Paulo a Ribeirão, elaboraram financiamentos públicos, organizaram oficinas de cartazes, saraus,
palestras, rodas de conversas, entre outras diversas ações. Também registro a importância fundamental
das organizações políticas da mídia alternativa e suas atuações contundentes da Ponte Jornalismo,
Alma Preta e Nós, Mulheres da Periferia que estiveram presentes nestes meses de luta, na produção de
contranarrativas em favor da memória e por reparação.
Nesse sentido, pretendo recuperar alguns episódios das audiências e dos atos políticos para
situar estas análises. Nossas presenças nas muitas audiências foram marcadas por um ambiente de
tensão e hostilidade. A frente do fórum era dividida de duas formas: de um lado, os diversos
movimentos feministas citados; de outro lado, policiais – uns à paisana, outros fardados e armados.
Lembro que, em uma delas, nos dividimos sobre quem poderia entrar no fórum e acompanhar a
audiência, e qual grupo ficaria do lado de fora na organização do ato. Algumas ativistas que decidiram
entrar foram imediatamente barradas pelos policiais, sob a alegação de que suas camisetas com a foto
de Luana “poderiam inibir as testemunhas” nos seus depoimentos. Aquele impedimento gerou
estresses, constrangimentos e desgastes entre todos os presentes. Foi um corre-corre para providenciar
camisetas “neutras” e “adequadas” ao momento. Por fim, apenas uma ativista conseguiu adaptar-se à
situação e acompanhar a audiência do início ao fim, já que a maioria estava com camisetas da
Campanha Nenhuma Luana a Menos. As demais, lá fora, negociavam a sua permanência com as faixas
e cartazes na calçada. Os policiais exigiram autorização, por escrito, para a realização daquele ato
político, ainda que não exista nenhuma lei que proíba as manifestações, uma vez que a calçada do
fórum é local público. Sob olhares ameaçadores e em ambiente hostil, as ativistas demarcaram sua
166
presença naquela audiência, dentro e fora do fórum.
Foi assim que a participação ativa dos movimentos sociais e feministas nas audiências
criminais, entre julho de 2018 e outubro de 2019, demarcou uma importante ocupação dos espaços
públicos como palco de performatividade de corpos coletivos, unificados e rebeldes, nos
enfrentamentos contra o Estado heterossexual e racista, e contra os assassinatos de mulheres.
Considere que o assustador incremento da violência de gênero revela a dimensão do genocídio
antinegro no país com o aumento da taxa de homicídios entre mulheres negras que cresceu 29,9%,
enquanto a mesma taxa para mulheres não negras cresceu 1,6% (ATLAS, 2019).
Detalho também alguns momentos em que policiais foram ouvidos, e as estratégias de suas
defesas, lançando mão da criminalização em que gênero e raça são categorias acionadas como uma
gramática que autoriza a violência legal. Ouvimos pelo menos 18 policiais militares, familiares e
testemunhas oculares. É importante ressaltar que a referência à Luana sempre enfatizou aspectos de
sua biografia, de seu território e de sua condição sexual que poderiam justificar a sua morte. Os
depoimentos dos policiais foram marcados pela apresentação dos antecedentes de Luana: “Ela tinha
várias passagens criminais. Ela já́ tinha sido presa por porte de arma, roubo, tráfico de entorpecentes
e corrupção de menores”. É visível que as estratégias da defesa dos policiais têm interesse na
destruição da biografia da pessoa morta, e isso se transforma também em estratégia racial de produção
da inocência dos policiais (JESUS, 2016). Em outros episódios das audiências, a base da destruição da
biografia de Luana foi o território onde ela construiu a sua vida. Neste caso, é o lugar de residência e a
vizinhança que são ativados como marcadores raciais da culpa, portanto da legítima morte.
Finalmente, o comportamento sexual de Luana se mostrou como um dos responsáveis por sua própria
vitimização. Referências quanto a sua identidade sexual apareceram quase sempre de maneira indireta,
mas facilmente associadas a seu comportamento “desviante”. Embora a delegada responsável pela
abertura do inquérito tenha dito que não sabia da identidade sexual de Luana, referências apareceram
em todo o discurso jurídico. Consideremos, por exemplo, as seguintes referências à sua identidade:
A pessoa que conduzia a moto aparentava ser do sexo masculino. [...] Ela estava de roupa
167
masculina, bermuda, tênis, camisa polo. [...] A pessoa que estava na moto aparentemente era
do sexo masculino. A gente foi saber que era do sexo feminino quando ela arrancou a blusa.
Pelo biofísico, pela roupa, parecia um homem.
O Geledés (Instituto da Mulher Negra), por exemplo, fez uma importantíssima intervenção no
processo com pedido de habilitação de amicus curiae10. Seu objetivo era apresentar os temas de
relevância racial ao processo e pontuar o racismo, a violência de gênero, a lesbofobia e a letalidade
policial contra Luana, com a força da organização que trata da proteção dos direitos das mulheridades
racializadas. A magistrada que conduziu o processo nesta primeira fase, apesar de reconhecer a
utilidade do amicus curiae e sua importância para a concretização da justiça, indeferiu o pedido do
Geledés, mostrando total desarmonia com as agendas dos movimentos sociais que fizeram vigílias
em todas as audiências – feministas e LGBTQIA+ que reivindicam a democratização do sistema de
justiça e novas alternativas de enfrentamento à violência e à discriminação de gênero. É possível
verificar uma parte da decisão e seus argumentos:
Caso, hipoteticamente, o processo fosse levado a Julgamento pelo Tribunal do Júri, a presença
do ‘Instituto da Mulher Negra’, cujo âmbito de atuação envolve questões relacionadas a
‘direitos étnico-raciais’, poderia influir no ânimo dos juízes leigos e causar, em certo grau,
parcialidade, além de alterar a situação de igualdade entre réus e vítimas.
As categorias de raça, gênero e identidade de gênero como fatores determinantes para o veto
da participação do Geledés no processo revela algo curioso. Aqui, a identidade da vítima e a
solidariedade política de outras mulheres pesam contra ela. Há a inversão de tudo: se antes a identidade
da mulher negra lésbica se tornou o principal detonador de sua vitimização, agora a justiça desinveste
Luana e suas redes de apoio da estratégia de racialização positiva. Não pode se organizar como negra,
mas sofre como negra. Ainda que a presença da magistrada represente, em certa medida, a
desmasculinização em termos de gênero na justiça, sua decisão esteve intensamente marcada por
elementos próprios de um ethos atrelado à corpografia jurídica que conforma o sistema de justiça
(CURIEL, 2013; SEVERI, 2016; CNJ, 2013, 2018; MALERBA, 1994).
O caso de Luana ainda foi tema de nota da ONU Mulheres e do Escritório Regional para
América do Sul do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), solicitando ao
poder público brasileiro a investigação imparcial e com perspectiva de gênero e raça na elucidação das
violências sofridas por Luana. Da mesma forma, ativistas independentes elaboraram pedidos ao
Ministério Público Federal para a suspensão imediata e expulsão dos policiais envolvidos,
reconhecimento dos crimes de lesbofobia e racismo, e solicitação da devida federalização do caso por
afronta aos Direitos Humanos. Todos os pedidos foram negados. Em outras palavras, o não
reconhecimento da violência de gênero não reconhece que a violência contra Luana se caracterizou
como afronta aos Direitos Humanos. E não afrontou porque alguns corpos, de acordo com sua
condição de raça, gênero e identidade de gênero, são inelegíveis perante a lei. Mesmo diante da
negativa do pedido de federalização e da cegueira estratégica do Poder Judiciário com relação aos
crimes de gênero. Assim, a morte de Luana não dependeu de outro agente que não ela mesma. Morreu
porque estava histérica. Morreu porque vem de lugares de alta vulnerabilidade. Morreu porque
resistiu!
10
A finalidade do instituto jurídico do amicus curiae (amigo da corte) é oferecer subsídios para o debate processual,
contribuindo para a resolução da lide e, ao mesmo tempo, democratizando o processo.
168
As estratégias de resistência mobilizadas pelos movimentos escancaram os efeitos difusos e
acumulativos do genocídio antinegro nas experiências das mulheres negras e reconstroem geografias
destroçadas. Uma das estratégias de reconstrução da memória, por exemplo, podemos ver no
documentário Eu sou a próxima, organizado pela Coletiva Luana Barbosa, que apontou a
prematuridade e precariedade da vida das mulheres lésbicas negras e a importância de contar outra
história:
[...] em seu conteúdo evitamos falar da adolescência e começo de vida adulta na qual Luana foi
criminalizada. Luana era trabalhadora periférica, mãe, estudiosa, entre outras coisas boas. É
essa a imagem que passamos de Luana. Mulher guerreira que não fugiu da luta até seu último
instante. [...] para muitos, Luana era a agressora de PM, que tinha passagens pela polícia e que
não queria sofrer uma abordagem rotineira para nós; Luana nos representou até o último dia,
sobreviveu ao cárcere, à fome, às violências policias, resistiu em uma cidade do interior que é
extremamente violenta com a população negra LGBT. Luana era a sapatão preta que estava
tentando recomeçar a vida; Luana era a fortaleza da família, o braço direito da mãe e a joia rara
do filho (Uma das integrantes da Coletiva sobre o filme).
Você sabe quem foi Luana Barbosa dos Reis? Luana era uma mulher negra, lésbica, mãe,
periférica que foi brutalmente assassinada pela PM de Ribeirão Preto enquanto levava seu filho
ao curso de informática. A mesma foi espancada por se negar a ser revistada por policiais do
sexo masculino (assim como assegura a lei). Após 5 dias do seu espancamento, a mesma veio a
óbito. Isso aconteceu em abril de 2016, e até hoje buscamos por justiça para que os assassinos
paguem. Essa semana a justiça negou o pedido de prisão dos mesmos alegando falta de provas,
como se o laudo de Luana não fosse o suficiente. Vamos somar com essa família, pois o estado
não maneja o cuidado dessas pessoas que desde 2016 vem em um combate para assegurar que
a justiça brasileira seja honesta, lutamos para que o Estado se responsabilize pela vida de
169
Luana e de todas que foram vítimas do racismo e lesbocídio. Luana Barbosa não será esquecida
ou apagada numa ficha guardada! Pedimos o apoio de todos e todas que puderem, para que
compareçam à audiência pública ou que compartilhe em suas redes. Sociais. Acontecerá no
fórum de Ribeirão Preto no dia 18 de julho às 13 horas. Não deixaremos impune esse
assassinato. Luana presente! Estamos fazendo uma ‘vakinha’ online para tentar custear um
busão até Ribeirão, ajude-nos como puder: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/nenhuma-
luana-a-menos.
Estava sol forte, uns quarenta graus. Saímos de São Paulo às quatro horas da manhã, com
previsão de chegada em Ribeirão Preto às dez horas. Éramos aproximadamente dez mulheres
em um diabo de um ônibus escolar desconfortável. Como os coletivos de mulheres negras ali
presentes – Coletiva Luana Barbosa, Adelinas e a Marcha das Mulheres negras de São Paulo –
sempre estão quebrados, sem dinheiro, não havia outra opção que marchar no ônibus escolar
alugado a duras penas. A locação do ônibus custou dois mil reais. Os grupos de mulheres
organizaram um financiamento coletivo com uma “vaquinha” online que arrecadou o suficiente
para a locação e a compra dos lanches para nossa janta e almoço. A viagem para Ribeirão
durou cerca de cinco horas. Nas primeiras horas da viagem, tínhamos assuntos, risadas. Mas
depois quase todas estavam dormindo. Na chegada, o ônibus nos deixou em frente ao fórum e
o sol já estava tinindo com quarenta graus. No momento em que a família da Luana chegou ao
fórum, fizemos uma roda e oferecemos um grande abraço coletivo. O abraço, o choro coletivo,
a leitura da poesia, o círculo humano em volta da família, a demonstração de que não estamos
sozinhas. Este foi o momento mais impactante daquela audiência.
Estas corpografias raciais nos mostram que a condição feminina negra não é estática. O
genocídio se manifesta nas corporeidades aprisionadas de quem passa a vida na fila da prisão (ALVES,
2017; ALEXANDER, 2017) e explicitamente nas execuções sumárias e nos necrodiscursos de regimes
de poder (ALTAS, 2019, BENEVIDES, 2020). Ao mesmo tempo em que esses corpos doídos,
170
brutalizados pelo sofrimento, representam corpos-abjetos que reatualizam a colonialidade da justiça,
também são corpos depositários de novas pedagogias de resistências na medida em que desestruturam,
colocam em xeque determinadas concepções racializadas de justiça e liberdade (GENELHÚ, 2017).
Portanto, são essas corpografias que redefinem o sentido de justiça como paz sanadora e nos apontam
a necessidade da construção de uma sociedade antiprisional e antipolicial no Brasil.
171
Referências
ALVES, D. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção
da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, v. 21, p. 97-
120. Cali, Colombia, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi, 2017.
ALVES, J. A. The anti-black city: police terror and black urban life in Brazil [A cidade antinegra;
terror policial e vida negra urbana no Brasil]. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018.
CURIEL, O. La Nación Heterosexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde
la antropología de la dominación. Bogotá, Colombia: Enero, 2013 GENELHÚ, R. Manifesto para
abolir as prisões. Rio de Janeiro. Revan, 2017.
JESUS, M. G. O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos
processos criminais no tráfico de drogas. Tese (Doutorado) — Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, USP. São Paulo, 2016.
SEVERI, F. C. O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres.
Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 07, n. 13, p. 81-115, 2016.
172
TRIBUNAL de Justiça do Estado de São Paulo comarca de Ribeirão Preto, foro de Ribeirão Preto,
1ª vara do Júri e das Execuções Criminais. Processo criminal 0011942- 10.2016.8.26.0506.
173
JUSTIÇA RESTAURATIVA: CRIME, VIOLÊNCIAS ESTRUTURAIS E O ATO
DE RESPONSABILIZAÇÃO
Aline Cristina Barbosa1
Introdução
Ao receber o convite para escrever neste trabalho, meu desejo era manter a distância e
cuidado para não escrever a partir das minhas vivências e experiências que permeiam o tema Justiça
Restaurativa; um desafio que confesso que desisti.
Ao escrever a partir das experiências alheias, acabei me percebendo um tanto perdida quando
tentei me distanciar das subjetividades que me atravessam para escrever sobre os paradigmas e
paradoxos que tendem a Justiça Restaurativa ainda me responder, então começo dentro de um dos
princípios da Justiça Restaurativa, escrevendo na primeira pessoa.
Eu conheci a Justiça Restaurativa em 2018, em uma vivência na instituição a qual eu
trabalhava na função de educadora social, no Serviço de Abordagem Social (SEAS) da população em
situação de rua, no bairro de Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Neste mesmo ano eu comecei a
trilhar os caminhos de formação em Justiça Restaurativa, realizei as formações de introdução da
Justiça Restaurativa e cursei Educação Popular e Justiça Restaurativa em 2019, formações oferecidas
pelo CDHEP – Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Capão Redondo, zona sul de São
Paulo.
A partir das vivências de formações e trocas entre os pares e grupos de estudos de Justiça
Restaurativa, foram surgindo muitas questões e pretendo apontar as principais, pois acredito que são
tantas lacunas que, em apenas um artigo, não dou conta de abordar todas. No entanto, buscarei refletir
a partir das perspectivas que serão aqui apontadas.
A primeira questão que trago como reflexão: Justiça Restaurativa para quem? Antes de
esmiuçar o tema, é necessário fazer uma breve reflexão sobre a quem serve a justiça retributiva,
punitivista e o cárcere.
É necessário examinar o sistema prisional do ponto de vista histórico, a exemplo da Lei da
Vadiagem, que criminalizava pessoas em situação de rua, e em situação de desemprego. Quem eram
essas pessoas, consideradas livres apenas um ano antes pela Lei Áurea, e ao mesmo tempo presas por
uma legislação penal que punia suas vulnerabilidades?
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não
possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por
meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons
costumes. (ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL, 1990)
1
Aline Cristina Barbosa, licenciada em História, Facilitadora de Processos Circulares e Restaurativa formada em CDHEP e
pós-graduanda em Educação em Direitos Humanos na UFABC.
174
de resignação e reparo histórico: o direito do trabalho remunerado e condições de sobrevivência de
uma vida digna. O que recebem é o contrário: a extrema marginalização, com ausência de políticas
públicas e ao mesmo tempo culpabilização, punição e encarceramento em função das vulnerabilidades
criadas por esta marginalização.
Quanto custa para os corpos marginalizados a sobrevivência nesta república? Custa o
pertencimento, o reconhecimento, a legitimidade. Aos olhos de quem constrói o que se entende por
Justiça, a existência destes corpos marginalizados – que antes não eram corpos, mas fôlego vivo, e,
portanto, sem subjetividade atinente somente àqueles que se tratavam por pessoas – não possui espaço.
Para os corpos marginalizados, tidos como indesejados e sobre quem se exerce poder, a
resposta é o não lugar. É possível construir um novo modelo de justiça sem desconstruir os modelos
respaldados por uma lógica capitalista, hegemônica, e, sobretudo, racista, forjada pela escravidão?
Nesta ótica é que vem sendo pautada a Justiça Restaurativa, tratando os conflitos como
violências e criando uma hipótese mais aceitável para manter o status quo, estado atual das coisas,
como se a violências estivessem e fossem produzidas no micro das relações, quando:
Costumo dizer, então, que a restauração é tratada como um paliativo, como o silenciamento
dos corpos e a manutenção da estrutura da justiça punitivista, apenas. Uma vez que o que é intitulado
crime é um ato contra as esferas de poder, como é considerado e pautado o crime que o Estado comete
em relação aos direitos fundamentais?
Como o Estado se responsabiliza pelas situações danosas que cria e que afetam o oprimido?
Como se reparam as desigualdades sociais? O que se tem é um ciclo perverso de irresponsabilidades,
onde o estado responde culpando, criminalizando, encancerando e classificando aqueles que
marginaliza como os vadios:
Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter
renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência
mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses. (Revogado pela
Lei nº 11.983, de 2009) (BRASIL, 1941).
Existiria uma enorme distorção entre criminalidade aparente, aquela que efetivamente chega a
ser selecionada pelas agências de repressão penal, e a criminalidade real, a criminalidade verdadeira,
mas que não aparece nas estatísticas oficiais em razão da cifra oculta. Neste sentido são as palavras de
Flauzina:
Além disso constatou-se que há uma distância abissal (denominada cifra oculta) entre a
criminalidade real e a efetivamente registrada em termos oficiais. O número de casos que do
acontecimento do fato delituoso à formalização efetiva da denúncia- que passa pelo crivo da
Polícia e do Ministério Público, além da instância judiciária- é efetivamente levado a cabo é
muito reduzido. A criminalidade vai mesmo se perdendo nas malhas seletivas do sistema,
restando apenas uma ínfima parcela de práticas relacionadas em sua maior parte à clientela
preferencial do aparato penal (FLAUZINA, 2006, p. 19).
175
Precisamos lembrar que o primeiro ato criminoso no Brasil não partiu daqueles
sistematicamente criminalizados e marginalizados, mas daqueles que se colocam em posição isenta
para dispensar a chamada justiça.
O primeiro ato criminoso no Brasil ocorreu há 521 anos, com a invasão e apropriação do
território que era de outro povo, também criminalizado e marginalizado.
A onda de crimes continua: a perpetuação de genocídio, estupros, sequestros, trabalhos
forçados, tortura sistemática dos corpos indígenas, africanos, e de seus descendentes. Assim seguimos,
perpetuando 132 anos de um suposto estado de lei e ordem, fundamentalmente higienista, racista,
sexista, homotransfóbico, etarista e capitalista, que criminaliza as “minorias”.
Os esforços para romper com as violências ainda se mantêm nos conflitos, no micro das
relações, como que desenhadas para a ineficácia. Quando as violências são historicamente produzidas
pelas forças das relações de poder descritas acima, o “reparo” histórico que não se dedica a tais raízes
manifesta a intenção de continuar animalizando, criminalizando e culpando as minorias como se
fossem atores de suas próprias mazelas. Gonzales (1984, p. 226), em tom de crítica, destaca: “...Daí, é
natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro
e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou
trombadinha”.
No que diz respeito à estrutura de justiça punitivista ou retributiva, quem é beneficiado e
assegurado se não o patrimônio privado, as classes dominantes, o Estado opressor que exerce o poder
genocida na tortura e no extermínio, seja na manutenção de estado de exceção, fome, desemprego,
falta de moradia, miséria e manutenção das leis que culpa, pune e extermina as minorias? Quem é
violador e violado?
Neste panorama se vem discutindo a justiça restaurativa no Brasil, na autodeterminação dos
indivíduos para a busca da justiça sem reflexão de tratamento pelas estruturas, e a meu ver, como uma
alternativa mais econômica de arquivamento de processos jurídicos, delegando as violências aos
chamados fóruns de pequenas causas, às supostas conciliações em ações familiares, implementando e
institucionalizando o silenciamento das violências estruturais e romantização da construção de cultura
de paz.
O crescimento do debate acerca da Justiça Restaurativa no Brasil reflete, assim como ocorreu
nos países onde esse novo modelo de Justiça Criminal já é utilizado há mais tempo, a
necessidade de encontrar um novo paradigma para lidar com a questão criminal, dentro de um
ambiente público, institucional e sempre adstrito ao princípio da legalidade (e seus corolários).
(SICA, 2008, p. 1)
O princípio da legalidade está para manter o “estado de lei e ordem” como o capitalismo está
para assegurar a propriedade privada, e a Justiça Restaurativa baseada na construção de paz é
sistematizada não para ruptura com estado de opressão, tão pouco com hegemonia; ela tristemente se
estrutura para manter essa ordem pacificando a indignação dos corpos marginalizados por meio da
falácia do fortalecimento.
A Justiça Restaurativa vem se forjando em princípios historicamente opressores e se
esvaziando em propósito para manter a paz da burguesia, que quase não é apontada como produtora de
violência, mas é responsável por grande parte da miséria no país. A burguesia nunca é colocada no
banco dos réus, mesmo colocando um genocida na presidência, mandando crianças negras para a
morte de elevador, ou até mesmo executando operações de extermínio ilegais em comunidades, ou
colocando mulheres em cárcere privado por anos a fio e tirando delas tudo que lhes faz humanas
176
porque não possui a capacidade de varrer a própria casa.
Parece algo digno de extremistas, mas é uma lógica muito vivenciada no campo progressista e
humanista, onde a construção de paz de uns poucos custa o sofrimento e o silenciamento de outros
tantos, normalmente aqueles colados no histórico não lugar, ou em um lugar de “coisa” nenhuma.
Para elucidar esse mecanismo de silenciamento, basta refletir que as energias potencializadas
no Universo por meio da metafísica do que expressa a cultura de paz não são capazes de transformar a
estrutura de poder, as instituições e tampouco as violências estruturais, mas sim de formar sujeitos
obedientes e dominados que supostamente irão aceitar as violências estruturais e a construção de paz, e
efetivamente efetuarão um excelente serviço ao Estado, à burguesia e à manutenção da lógica do status
quo.
Como apresenta Marilena Chaui (1996, p. 337): “A violência reduz o sujeito à condição de
coisa. Esta, como se sabe, é suposta inerte e exibe sua inércia, por exemplo, no fato que, quanto coisa
não fala. Há, pois, violência quando os sujeitos sociais são reduzido ao silêncio”. Neste sentido, a
cultura de paz que se quer instituir é tão opressora e perversa quanto o poder de Estado, que induz a
guerra para que o sofrimento faça com que o oprimido busque o estado de paz. Os discursos
restauradores da cultura de paz em voga hoje, por melhor intencionados que sejam, visam
“recoisificar” o sujeito e mantê-lo feliz e perpétuo no estado de não lugar.
Do não lugar da formação ao não lugar do campo da discussão, uma vez que nós não
produzimos violências, escrevo a partir do meu lugar de existência, de mulher preta, mãe e periférica,
orientadora socioeducativa de um equipamento que prestava serviços para prefeitura de São Paulo no
Serviço Especializado em Abordagem Social.
Escrevo do lugar marginalizado em que aqueles que detêm o poder de contar a História me
colocam. Escrevo de meu lugar de resistência; do lugar de quem se cansa da pacificação forçada.
Escrevo do lugar da minha alma, armada e apontada para a cara do sossego.
Tive meu primeiro contato com a Justiça Restaurativa e, ao mesmo tempo, com a
invisibilidade estrutural e as violências que atravessavam as pessoas em situação de vulnerabilidade e
situação de rua. Sim, violências que vinham de cima para baixo.
Meu trabalho como educadora visava o estabelecimento de vínculo, escuta ativa e qualitativa
das demandas socioassistenciais, para viabilizar as garantias de direitos humanos, articulação de vagas
e encaminhamento para os serviços de acolhimento social, quando era possível, pois o estado
negligencia o suprir das demandas da população, das minorias, dos marginalizados.
Criminosa e violenta é a condição em que as minorias, maioria destituída de direitos, é
colocada, às margens da humanidade, com falta de tudo, desprovidas do mínimo de dignidade para
sobreviver. E quem se responsabiliza? Quem restaura?
Trabalhávamos em articulação de rede para o atendimento e acompanhamento das pessoas em
situação de rua; foi em uma destas articulações de rede que me despertei para pensar as questões a
respeito de uma justiça não punitivista.
Observei que a maioria das pessoas às margens eram pessoas negras, e sofriam de todas as
vulnerabilidades sociais, psicológicas, falta de acesso à saúde e alimentação; mas entre si, eles tinham
um modo específico de organização.
Quando chegávamos nos pontos de concentração, uns cuidavam dos outros, dos pertences,
dos animais – sim, dos animais que tutoram, que são parte de suas famílias. Um dia ouvi de um jovem:
“eles me protegem, já jogaram gasolina nos meus cobertô, ele latiu me salvou”. Ora mediávamos
conflitos, ora nem precisava mediar. Que fique dito que não estou romantizando a vulnerabilidade,
mas sustentando que não é de baixo para cima que se produz violências, e sim de cima para
177
baixo.
É que para eles, “formados” na experiência de opressores, tudo que não seja seu direito antigo
de oprimir significa opressão a eles... É que para eles, pessoa humana são apenas eles. Os
outros, estes são “coisas” ... E isto, ainda porque, afinal é preciso que os oprimidos existam,
para que eles existam e sejam “generosos” (FREIRE, 1987, p. 45).
Nesta perspectiva, “eles” precisam garantir que o neoliberalismo exista também para
manutenção da estrutura hegemônica, do racismo, das relações de poder; eles causam a fome, depois
chegam com as migalhas oferendo aos oprimidos como se fosse caridade, bondade. São cheios das
boas intenções, sabem das desigualdades, no entanto, para “eles” é preciso que se mantenha o status
quo, para julgar os miseráveis que atravessam as violências produzidas e são sempre apresentados
como produtores de violência, um papel que as grandes mídias também reforçam dia após dia, pois
para vender segurança é necessário vender um algoz. Se aumenta o tráfico de drogas, por exemplo,
eles constroem cadeias, e a prisão também alimenta o capital.
Isto é historicamente violento, produz o silenciamento e ainda suscita a lógica da razão do
perdão, mascarando as violências estruturais. E é o que “eles” fazem. Não atendendo as necessidades
dos oprimidos e suprimindo seu grito de resistência, anulando quaisquer possibilidades destes se
reconhecerem como sujeitos de direito, invertendo os papéis, colocando os oprimidos como atores,
produtores de violências. Assim, quem realmente produz e alimenta as violências fica totalmente
isento de responsabilização.
Por falar nisso, façamos uma breve análise: quem são os sujeitos responsabilizados, senão os
oprimidos? E quem são “eles”, os verdadeiros responsáveis envoltos em sombra? A resposta pode
aguardar no reflexo do espelho. E se ela está lá, minha alma, armada, também está. Em riste.
Engatilhada e apontada.
A discussão há alguns meses sobre responsabilização de uma figura pública me levou a
refletir sobre a semelhança da balança da justiça restaurativa e da justiça punitivista. Ambas têm dois
pesos e duas medidas para contextos sociais diferentes, ou como costumo dizer: o pau que bate em
Chico não é o mesmo que bate em Francisco.
Para o Chico, homem pobre, preto e periférico, a responsabilização – ou a pena – é urgente,
dura e necessária; porém quando se trata de Francisco, neste caso específico, Francisca, ou Maria da
Graça, mulher branca, rica e abastada, a responsabilização é contestada. A urgência some, pois, toda
responsabilização precisa ser avaliada com cuidado, e a dureza se torna desnecessária ou assume o
lugar da crueldade – que para Chico, mesmo no pior dos castigos, não existe aos olhos de quem
discute a justiça.
Quando Maria da Graça sugere que os corpos de pessoas sirvam como cobaia em testes
científicos para que “tenham utilidade para a sociedade”, como se restaura esta chaga? Os corpos
criminalizados e marginalizados novamente estão expostos à violência. E a responsabilização, onde
fica?
O primeiro apontamento é: quem é a população no cárcere, senão em sua grande parte pretos,
pobres e periféricos? E quem é Maria da Graça? Examinando estas questões, suas respostas e os
contextos expostos, a única conclusão possível é a de uma lógica eugenista, higienista e hitlerista, com
objetivo de extermínio de uma população considerada disponível, destituída de humanidade.
E como responder? Como responsabilizar? Como restaurar? Participei de uma discussão onde
um grupo sugeria nota de repúdio, outro grupo pautava a exposição e denúncia de Maria da Graça
como ato punitivo – grupo logo classificado como maldoso por quem definia a justiça restaurativa
178
como “construção de paz” –, e um terceiro grupo preferiu não se posicionar. A neutralidade
prevaleceu.
Entendo que a neutralidade é um ato cruel de concordância às barbáries expressas pela fala
genocida de Maria da Graça, figura pública, cujas palavras pesam para muitos; “nesse caso, a
soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem
não é” (MBEMBE, 2020, p. 38-39).
Desse modo, “eles” decidem quem deve ser responsabilizado pelos danos causados e quem
está desobrigado ao ato de responsabilização. A fala desta figura pública e a repercussão dela em torno
de responsabilização na Justiça Restaurativa demostra o quanto as escolas que a estudam e praticam
precisam ter a compreensão das múltiplas existências, das diversidades e pluralidades, e que classe,
gênero e raça não se desassociam da luta antipunitivista no campo da Justiça Restaurativa. Não basta
apenas dialogar a respeito do rompimento com as estruturas hegemônicas, é preciso romper com
relações que estão atreladas às responsabilizações de produção de violências das minorias.
A reparação é fácil. Muitos já trataram o assunto. Basta querer; basta praticar. Não tem
segredo. Precisamos reestruturar a política e a economia para a participação destes corpos disponíveis
no imaginário alvo e privilegiado. Precisamos reorganizar a divisão do trabalho para que as
desumanidades não se manifestem de acordo com a classificação brasileira de ocupações na carteira de
trabalho. Precisamos reconhecer e valorizar estes corpos como pessoas, celebrar suas identidades e
absorver sua cultura como parte essencial do Brasil – coisa que seu sangue já é.
É preciso se ouvir, é preciso identificar o perigo das chamadas “boas intenções”; o lugar e
olhar para situações de violências e conflitos precisa ser diferente. Mesmo com as melhores intenções,
o opressor continua opressor, aliado às causas das minorias, mas ainda sustentando os mecanismos de
produção de violências estruturais, simbólicas e de gênero, reproduzindo o racismo, machismo e se
respaldando ao que é estrutural.
Como costumo expressar, uma vez que o ofensor estabelece uma relação de poder com a
vítima, tem conhecimento e leitura do que está reproduzindo, mas mesmo assim não se responsabiliza,
ele simplesmente – e maliciosamente – “joga ao Universo”.
“Eles” esperam que as estruturas mudem pelo cosmos ou por ação divina; assim a
responsabilização parte do indivíduo e não da estrutura. A sociedade como um todo precisa entender
as relações de força colocadas de cima para baixo – a responsabilização também precisa ser repensada
nesta dinâmica.
A hora da reflexão acabou. Os corpos marginalizados e criminalizados, sobre os quais sempre
quer se exercer poder, não são fôlego vivo. Nunca foram. São um povo de muitas nações violadas
nessa que é a terra brasilis. E se a justiça quiser realmente restaurar, vai ter que esquecer o fiel amigo
da balança mais desigual do mundo; vai ter que sujar as mãos e apontar o dedo em riste para todos os
coleguinhas errados – chegados ou não, mas todos integrantes daquele pacto silencioso onde todo
mundo finge que não é racista.
O povo negro continua banido da cidadania no Brasil. Continua servindo apenas para
trabalhar, entreter, sexualizar, prender e morrer. Maria da Graça não via utilidade nos corpos
encarcerados pelo sistema encarregado de colocá-la no pedestal e nos trancar mais uma vez no porão.
Seus colegas, chegados ou não, não viram utilidade em responsabilizá-la pela sugestão
genocida que fez. Maria da Graça não aprendeu nenhuma lição. E outras vozes, tão violentas e
violadoras quanto a de Maria da Graça, se levantam. Julianas e Giulianos legitimam operações que
ceifam dezenas, centenas de vidas em nossas casas para satisfazer cotas de prazeres homicidas das
fardas. O silêncio impera. Nossa retribuição inexiste.
179
Quem restaura as chagas da opressão? E quem reestrutura as injustiças para trazer mais danos
aos oprimidos? Quem silencia e permite o horror? Que permanece inerte? A quem servem os motes de
justiça restaurativa que só tencionam a me manter – e os meus – de boca fechada?
Para quem minha alma está armada e apontada?
180
Referências
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm. Acesso em: 19 maio 2021.
BRASIL. Decreto-Lei nº 3688, de 03 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm. Acesso em: 19 maio 2021.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
CONCEIÇÃO, Ísis Aparecida. Racismo Estrutural no Brasil e Penas Alternativas: os Limites dos
Direitos Humanos Acríticos. Curitiba: Juruá Editora, 2010.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: O Sistema Penal e o Projeto
Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação de Mestrado submetida à Universidade de Brasília,
UNB, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. GONZALEZ,
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje.
Anpocs. p. 223-244. 1984. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2523992>. Acesso em 16 mai. 2021.
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Tradução de Marta Lança. 1. ed. Lisboa: Antígona, 2017.
MOREIRA, Adilson José. Pensando como um Negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo:
Contracorrente, 2019.
MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020.
181
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas
Athena, 2015
182
JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO: NOVAS
ESTRATÉGIAS EMANCIPATÓRIAS
Carla Zamith Boin Aguiar1
Juliana Tonche2
Michelle Karen Batista dos Santos3
Introdução
A proposta desta coletânea, de reunir artigos que abordam diversos aspectos da Justiça
Restaurativa (JR) que se contrapõem às narrativas hegemônicas, destaca o caráter plural, dinâmico e
interdisciplinar deste modelo de justiça que tem, cada vez mais, se expandido no Brasil.
Se a JR não pertence a nenhum domínio específico do conhecimento ou da prática, e a riqueza
de seu conteúdo parece residir justamente em que ele possa ser disputado pelas mais diversas áreas,
que este capítulo seja, então, um convite para que os saberes emancipatórios que desafiam os discursos
hegemônicos – especialmente aqueles que se colocam contra as desigualdades com base no gênero –
se apropriem da JR como parte de suas estratégias de luta.
Importante destacar que as contribuições da JR para a superação desse grave problema social
que é a violência de gênero não se restringem à sua aplicação na esfera estatal (ainda que possa ser de
grande valia neste âmbito), havendo possibilidade de que seus princípios e valores, alinhados com a
democracia e com os direitos humanos, sejam utilizados em outras áreas da vida social.
Desse modo, o objetivo deste capítulo é apresentar as potencialidades da JR no enfrentamento
dessa violência a partir de dois aspectos principais: um primeiro que indica como este modelo de
justiça pode alcançar problemas estruturais presentes na sociedade, como os são as violências contra as
mulheres, algo que nosso modelo de justiça retributivo não consegue fazer a contento; segundo,
exemplificando de que maneira a JR pode significar ampliação ou fortalecimento da autonomia das
mulheres, expandindo nossa percepção do problema para além do que a utilização da categoria
“vítima” nos oferece (embora reconheçamos que a enunciação como vítimas cumpra um importante
papel no contexto).
Este artigo recupera reflexões de pesquisas qualitativas realizadas pelas autoras neste tema,
que contaram com entrevistas semiestruturadas de profissionais que atuam na área da JR em sua
interface com a violência de gênero, observações de participantes de práticas restaurativas e de cursos
de formação e capacitação, e ainda um estudo de caso que será apresentado mais à frente no texto.
1
Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos da
Diversidade, Intolerância e Conflitos da USP. Instrutora integrante do Cadastro Nacional de Instrutores da Justiça
Consensual Brasileira. Formadora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM.
Professora convidada da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), mentora da implantação da Câmara de Mediação
da Reitoria da Universidade. Coordenadora do Fórum Nacional de Mediação – FONAME. Membro da Comissão de Justiça
Restaurativa da OAB-SP. E-mail: carla@boin.adv.br
2
Socióloga, docente da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) e do Mestrado Profissional em
Segurança Pública, Justiça e Cidadania da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Sociologia pela
Universidade de São Paulo (USP), com período de estágio de pesquisa na Universidade de Ottawa (Canadá). Consultora da
Comissão de Justiça Restaurativa da OAB-SP. E-mail: juliana.tonche@univasf.edu.br
3
Professora, pesquisadora e advogada. Mestra e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS). Coordenadora Adjunta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) no Rio
Grande do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal
(GPESC/PUCRS). Consultora da Comissão de Justiça Restaurativa da OAB-SP. Fundadora da Escola Justiça Restaurativa
Crítica (https://jrcritica.com.br/). E-mail: michelle.kbs@hotmail.com
183
1. Por que é urgente discutir a violência de gênero no Brasil?
Dentre as diversas violências estruturais que atravessam e marcam a sociedade brasileira, não
se desconsiderando que as opressões se sobrepõem e vulnerabilizam mais alguns grupos que outros, a
violência de gênero é uma das mais graves e persistentes.
Dentro da perspectiva interseccional, é possível afirmar que mulheres negras, com condições
socioeconômicas mais vulneráveis e que habitam locais periféricos, e mulheres trans, estão em
particular situação de vulnerabilidade se comparadas a outros grupos de mulheres, evidenciando como
os marcadores de raça, classe, sexualidade, dentre outros, são tão importantes quanto gênero quando
discutimos este particular tipo de violência.
O Brasil detém alguns dos piores índices do mundo quando se trata da vida e da segurança
das mulheres. De acordo com o Atlas da Violência (IPEA, 2020), em 2018, 4.519 mulheres foram
assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do
sexo feminino. Significa dizer que, a cada duas horas, uma mulher foi morta em nosso país naquele
ano. Os números desvelam ainda desigualdades com relação aos marcadores sociais da diferença: se
em um intervalo de dez anos (2008-2018) houve queda na taxa de homicídios entre mulheres não
negras, no mesmo período entre mulheres negras a taxa aumentou 12,4%. Mas os números não se
restringem apenas à violência que resulta em morte: em 2019, registrou-se uma agressão física a cada
dois minutos, o que representa 267.930 registros de lesão corporal dolosa em decorrência de violência
doméstica e um estrupo a cada oito minutos, totalizando 66.348 vítimas (FBSP, 2020).
São números inaceitáveis. Contudo, as naturalizações das diferenças entre homens e
mulheres, que cristalizam as desigualdades entre os gêneros, reforçam papéis estereotipados em nossa
sociedade e que podem resultar em violência persistem, e podem ser encontradas mesmo nos
ambientes que se propõem a combatê-las, como é o caso do nosso sistema de justiça criminal. O
campo do Direito, assim como outros domínios da vida social, reproduz clivagens mais amplas do
corpo social. Desse modo, importa questionar o acionamento deste sistema no enfrentamento da
questão, uma vez que ele opera reificando desigualdades, pode conduzir a processos de revitimização e
produz um dos maiores índices de encarceramento do mundo.
A partir de uma perspectiva decolonial, feminista e abolicionista penal, Maysa Carvalhal
Novais (2020) mostra como as estratégias de enfrentamento da violência contra as mulheres devem
levar em consideração o fato de que este tipo de violência recai com mais peso sobre mulheres negras,
ao passo em que sua via principal de enfrentamento, praticada hoje através do sistema penal, resulta
em reforço da punição sobre (novamente) a população negra. Essa crítica contundente também aparece
nos trabalhos de Ana Flauzina (2018); esta última, embora não aborde especificamente a JR, indica
que talvez, pela primeira vez, estejamos diante de um contexto em que claramente temos um grupo de
vítimas que rechaça a resposta penal (justamente por sofrerem na pele os efeitos perversos do
racismo).
Mas, a pergunta que ecoa é: o que temos feito diante desse quadro como feministas, como
pesquisadoras, como militantes, como mulheres? Apostar (ao menos unicamente) em um sistema que é
todo construído sobre relações de poder não parece muito promissor se o objetivo é justamente
desconstruir essas relações assimétricas em nossa sociedade. Nosso sistema oficial de justiça já foi
amplamente criticado por ser androcêntrico e por reproduzir desigualdades de raça (ADORNO, 1995;
184
ALVES, 2017). É nessa conjuntura, portanto, que propomos uma discussão sobre as potencialidades
da JR no enfrentamento das violências relacionadas ao gênero, sem desconsiderar que estamos
trilhando um caminho que já estava sendo delineado a partir dos inegáveis avanços e contribuições que
os movimentos de mulheres e pesquisadoras proporcionaram nessa área.
A ideia apresentada aqui não é sugerir a completa substituição de um modelo de justiça pelo
outro, já que isso seria incorrer no mesmo erro que estamos aqui apontando em relação ao sistema
penal – que é hegemônico e parece não ouvir a pluralidade de demandas e afetos das mulheres em
situação de violência –, mas apresentar a JR como mais um caminho possível, dentre outros. O modelo
restaurativo poderia compor um leque maior de possibilidades para que mulheres pudessem decidir, de
maneira autônoma, como desejam resolver seus problemas, conflitos e violências. Quando oferecemos
às mulheres apenas uma possibilidade, não é possível dizer que existe um livre exercício de sua
autonomia. Em muitos casos, o sistema de justiça penal pode funcionar, mas, o que estamos
oferecendo para as mulheres que buscam respostas alternativas?
185
criminal, se fundamentando historicamente nas reivindicações de parte dos movimentos pelos direitos
civis e pelos direitos das mulheres (ACHUTTI, 2016). Por esse ângulo, a urgência de uma discussão
séria sobre a JR passa a ser pautada no enfrentamento do sistema dominante, lugar de discriminação
racial em todos os âmbitos e de negação da vítima como elemento essencial nos processos de
responsabilização.
Por essa crítica partir de uma preocupação legítima com relação às vítimas, inspirando
pretensões de transformação que atingem diretamente o núcleo identitário da justiça penal tradicional,
punitivo por excelência, tal modelo de justiça restaurativa passou a ser visto como um paradigma
emergente (ACHUTTI, 2016; CNJ, 2018a; ZEHR, 2008; SICA, 2007). Ademais, a construção desse
novo paradigma de justiça e sociabilidades emerge da necessidade de “resgate do humano e das
múltiplas humanidades perdidas no violento processo de dominação, de desigualdades e de opressões”
(CNJ, 2018a, p. 23) em que as vítimas sociais foram colocadas.
Estando presentes essas características centrais (participação da vítima, o deslocamento da
prisão de sua posição dominante no sistema de justiça comum, a possibilidade de acordo entre as
partes e a retirada dos operadores jurídicos do protagonismo do processo) (ACHUTTI, 2016), resta
identificado um novo modelo de intervenção do sistema criminal. Desvincula-se, nesse sentido, da
burocracia exagerada e do método de culpabilização de um sujeito específico (individualização da
conduta), voltando-se para uma solução mais satisfatória do conflito pelas partes, onde a vítima pode
acessar verdadeiro reconhecimento e reparação em relação à violência sofrida, ao mesmo tempo em
que o agressor pode se engajar em um processo de responsabilização pelo ocorrido.
Entretanto, no que tange a sua aplicação no âmbito da violência doméstica, uma das principais
facetas da violência de gênero, há inúmeras preocupações em cena, já que pode ser contraproducente
para as vítimas receberem outro tipo de intervenção criminal. Ainda predomina certo receio em relação
ao encontro direto entre vítima e ofensor, seja qual for a prática restaurativa desenvolvida,
considerando que talvez nunca haja um equilíbrio total de poder entre os sujeitos envolvidos – além de
que a mulher não poderia ingressar em tal procedimento estando em situação de grande
vulnerabilidade após uma violência sofrida (LARRAURI, 2007).
Nesse sentido, compartilhamos de algumas das preocupações que se seguem com relação às
possibilidades de aplicação da JR nestes casos: a mulher vítima teria o que “mediar”? O que,
exatamente, se pretende restaurar nestas ocasiões? Essas são apenas algumas das questões suscitadas
por essa temática. Verifica-se uma grande desconfiança de que as práticas podem estar a serviço da
salvação da família (LARRAURI, 2007), não se preocupando com as formas violentas de consolidação
dessa instituição ainda persistentes em nossa sociedade.
Por outro lado, a insatisfação das vítimas com o funcionamento do sistema de justiça penal já
seria um forte argumento sobre as vantagens da aplicação da JR (HUDSON, 2002), porque a crítica
mais concisa que ela levanta, desde uma perspectiva da criminologia feminista, alerta para a ineficácia
do modelo hegemônico. Recorda-se, nesse sentido, os principais apontamentos: incapacidade de
resolução efetiva dos casos mais graves e poucas denúncias em relação a eles; condenações
consideradas por muitos como relativamente benevolentes; revitimização da mulher que acessa o
sistema e a falha na erradicação da violência (LARRAURI, 2007). Além disso, destaca-se ainda a
dificuldade de operacionalização do sistema penal quando a mulher não se enquadra no estereótipo da
“vítima ideal” (HUDSON, 2002), o que reforça sua seletividade, na medida em que algumas recebem
mais recursos e melhores tratamentos, enquanto outras conhecem seu lado mais perverso, conduzindo
para uma nova vitimização, só que agora institucional.
Constata-se das pesquisas internacionais que as vítimas participantes de procedimentos
186
restaurativos afirmam terem sido tratadas de forma justa (LARRAURI, 2007; CURTIS-FAWLEY;
DALY, 2005), um aspecto fundamental para essas mulheres. Claro que muitas vítimas não acessam o
sistema penal, o que não pode ser explicado simplesmente como produto do desconhecimento dessa
via de acesso à justiça. O problema que se levanta, portanto, é que em inúmeros casos as mulheres
conhecem essa possibilidade, mas julgam-na inadequada por diversas razões, como vínculo emocional,
medo do agressor, não ter interesse em uma punição etc. Por esse ângulo, uma justiça repressiva dos
atos que causam sofrimento não parece ser suficiente, ou o mais adequado; necessita-se,
fundamentalmente, buscar uma justiça mais atenta às necessidades das vítimas e que possa ser vista
como meio legítimo de alcançar uma solução para a violência sofrida.
Em geral, apostar no papel ativo da vítima e do ofensor seria a alternativa para superar as
falsas promessas da justiça penal, principalmente por romper com a mentalidade de que os
profissionais/especialistas são os mais aptos a decidirem acerca das soluções mais satisfatórias para os
problemas postos. Parece ser coerente afirmar, também, que permitir uma maior participação da vítima
em todo o processo é propor uma dinâmica que favorece maior respeito à sua autonomia (HUDSON,
2002).
Em pesquisas desenvolvidas acerca da participação em processos restaurativos, verificou-se
altos níveis de satisfação entre os participantes, com afirmações de que preferem submeter-se a estes
procedimentos em detrimento do sistema penal tradicional (GIONGO, 2009). Os altos índices de
satisfação estão geralmente atrelados aos sentimentos de justiça informacional, interacional e
procedimental, experimentados ao longo da aplicação das práticas restaurativas, que diminuem as
chances de revitimização e têm potencial para evitar a prática de novas agressões do mesmo agressor
contra a mesma vítima (CNJ, 2018).
O empoderamento da vítima também representa uma das vantagens, pois é a possibilidade
concreta de fala e de construção de planos para seu futuro a partir das suas necessidades e do seu
reconhecimento enquanto sujeito ativo, bem como de participação ativa na resolução da sua situação
conflitiva. Investigações empíricas têm comprovado que a possibilidade de explicar suas histórias e de
serem escutadas favorece o entendimento das vítimas de que a participação na JR é algo positivo em
suas vidas (LARRAURI, 2007). Essa oportunidade se torna extremamente relevante dado que o senso
comum considera, muitas vezes, suas histórias de violência como narrativas exageradas, bem como
comumente as julga por supostamente contribuírem para a violência sofrida.
Do mesmo modo, os ofensores também podem se engajar positivamente no processo, com
possibilidades de ampliação de sua “consciência” para uma reflexão maior sobre seu lugar de
responsabilização e ação, frente à oportunidade de reparar danos e se reintegrar à comunidade. É
possível, ainda, que os membros dessa comunidade (territorial ou de apoio) também sejam
empoderados para gerirem seus conflitos comunitários e para ajudarem a traçar planos de acolhimento
de pessoas envolvidas em situações de violência (ROSENBLATT; MELLO, 2015).
O empoderamento também flui do reconhecimento. Sentir-se reconhecido propicia aos
participantes o encontro em um terreno seguro, capacitando-os para alcançarem melhores
compreensões de si e dos outros. Assim, os dois processos se retroalimentam e são mutuamente
dependentes. Ressalta-se que o empoderamento baseia-se na compreensão das relações de poder, não
como percepções preconcebidas de uma inevitável dominação masculina, mas como um padrão
complexo de ação, de busca de sobrevivência, de autopreservação e, também, de conciliação e de
busca pela paz (PELIKAN; HOFINGER, 2016). Isso leva ao verdadeiro empoderamento, não mais
visto como mero slogan.
As práticas dialogais, principalmente aquelas operadas no encontro direto entre os agentes,
187
seriam outro ponto favorável por terem uma grande utilidade nos conflitos de natureza relacional,
capacitando as pessoas para que possam expressar livremente suas versões dos fatos. Os que defendem
a aplicação desses procedimentos afirmam o elevado índice de probabilidade de resultados efetivos,
por observarem as peculiaridades que envolvem vítima e ofensor, e por possibilitar respostas mais
flexíveis e construtivas – ao contrário da aplicação de regras jurídicas que não consideram tais
aspectos (GIONGO, 2009). Esta flexibilidade viabiliza o reconhecimento de diversos grupos de
vítimas, inclusive as que não querem denunciar ou as que não desejam o rompimento da relação
afetiva.
Outro argumento relevante que sustenta a possibilidade de aplicação de práticas restaurativas
em conflitos domésticos marcados por violência contra a mulher é a verificação empírica de que a
maioria das vítimas não deseja a punição do seu agressor, enxergando o processo criminal como um
procedimento imediato para cessar a violência (CNJ, 2018).
A justiça restaurativa propõe, então, uma nova forma de enfrentar o problema público da
violência doméstica, diversificando a forma de responder a essa demanda social, mediante a ampliação
da rede de proteção e oferecendo à mulher um espaço de tratamento mais humanizado e igualitário.
Em nosso país, a JR já vinha sendo aplicada desde 2005, ano que marcou a inauguração de
três projetos piloto em diferentes estados brasileiros. Entretanto, foi somente em 2016 que ela passa ser
indicada para situações que envolvem violência contra as mulheres, por meio do Protocolo de
Cooperação para a difusão da JR do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como previsto na Resolução
n.225/2016, que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder
Judiciário.
Dados de uma pesquisa realizada pelo CNJ, e publicados em 2019, dão conta da tarefa de
dimensionar a propagação da JR pelo país: dos 32 tribunais, 31 responderam à pesquisa; destes, 25
tribunais de justiça (96% do total de respondentes) e 3 tribunais regionais federais (60% dos
existentes) possuem algum tipo de iniciativa de JR, que se dividem entre programas, projetos e ações
restaurativas. Com relação às áreas de aplicação das práticas restaurativas, violência doméstica
corresponde a 52,3% dos casos (CNJ, 2019).
A violência doméstica corresponde a apenas uma parte das violências de gênero que abarcam
um campo muito mais amplo de violações de direitos. De todo modo, é bastante significativo que esta
seja hoje uma das principais áreas nas quais estão sendo inauguradas experiências restaurativas
contando com o respaldo do Poder Judiciário.
Embora o Poder Judiciário seja um ator importante no processo de propagação da JR no país
(PALLAMOLLA, 2017) e seu protagonismo nesse percurso mereça atenção, é preciso destacar que a
apropriação em curso do modelo restaurativo e sua institucionalização podem obstaculizar outras
possibilidades de sua utilização para além das esferas estatais. Reputamos ainda que sua difusão para
outros espaços é condição para que ela seja vista como um potente instrumento de fortalecimento do
exercício democrático quando se fala em gestão de conflitos.
A seguir, apresentamos um exemplo de possibilidade de aplicação da JR em outro domínio,
tomando como fato que casos de assédio e violência de gênero vêm acontecendo de forma alarmante
em ambientes universitários em diversos países.
188
De acordo com o relatório lançado em 2018, pelas Academias Nacionais de Ciências,
Engenharia e Medicina dos Estados Unidos4, 20% das alunas dos cursos de engenharia e mais de 40%
das de medicina relataram já terem sofrido algum tipo de assédio sexual. O relatório trouxe à tona um
estudo que demonstra que nos EUA a academia fica atrás apenas das Forças Armadas em termos de
incidência de assédio sexual: 58% dos funcionários de instituições acadêmicas afirmaram ter passado
por esse tipo de experiência.
Um estudo realizado com 31 mil estudantes, em 39 universidades australianas, elaborado pela
Comissão de Direitos Humanos da Austrália, revelou que cerca de 51% dos estudantes do país
sofreram algum tipo de assédio sexual, sendo que 6,9% dos estudantes foram vítimas de estupro. Em
fevereiro de 2018, uma das mais renomadas universidades do mundo, a Universidade de Cambridge
(Inglaterra), depois de ter recebido 173 denúncias em menos de um ano, admitiu ter problemas
significativos de abuso sexual. O Centro Nacional de Recursos contra a Violência Sexual do Reino
Unido estima que 90% dos casos de assédio que ocorrem em universidades não são denunciados.
No Brasil, muito se ouve falar de casos de assédio e violência sexual em contextos
universitários. A pesquisa "Interações na USP"5 realizada pelo escritório USP Mulheres e coordenado
pela professora Eva Alterman Blay, aponta que 33% das estudantes autoidentificadas como do gênero
feminino já sofreram violência moral, e 11% sofreram violência sexual.
A tese de doutoramento de uma das autoras desse artigo aborda justamente essa questão. O
trabalho, que se intitula Justiça Restaurativa no Contexto Universitário: Estudo de Caso da
Universidade Dalhousie - CA6 analisou um caso de assédio sexual ocorrido na Universidade
Dalhousie, na cidade de Halifax (Canadá), oportunidade em que foi utilizada uma abordagem
restaurativa para o problema.
No final de 2014, houve o início de um processo de justiça restaurativa na Faculdade de
Odontologia, da Universidade Dalhousie, envolvendo violência de gênero e a rede social Facebook. O
processo ficou conhecido internacionalmente como Dentistry Case e tomou grandes proporções dentro
e fora do Canadá.
Uma aluna do quarto ano da Faculdade de Odontologia da Dalhousie - DDS20157 tomou
conhecimento da existência de um grupo privado do Facebook formado por seus colegas de classe,
chamado Gentlemen's Club. Essa aluna teve acesso a mensagens ofensivas trocadas por treze colegas
autoidentificados do sexo masculino durante uma atividade que estavam realizando no laboratório da
Faculdade.
Segundo relatos informais, acredita-se que um dos colegas da sala, que não fazia parte do
grupo do Facebook, tenha deixado a página do grupo aberta de propósito para que sua colega pudesse
descobrir o que estava acontecendo. As postagens continham enquetes, entre as quais, uma trazia a
pergunta "who would you hate to f..k"?8 Os alunos podiam adicionar nomes ou votar nas respostas já
existentes. Dentre as mensagens lidas, havia a menção dos nomes de três colegas da sala e duas outras
alunas da Universidade. A aluna que tomou conhecimento informou as cinco colegas sobre o que
estava ocorrendo. Tomadas de surpresa e muito abaladas, conversaram entre elas e no dia seguinte
resolveram entrar em contato com o diretor da Faculdade de Odontologia para relatar o ocorrido.
4
https://revistapesquisa.fapesp.br/para-enfrentar-o-assedio-sexual-na-academia/. Acesso em: 22 mai. 2021.
5
http://uspmulheres.usp.br/textos-e-pesquisas/pesquisa-interacoes-na-usp/. Acesso em: 22 mai. 2021.
6
BOIN AGUIAR, Carla Maria Zamith. Justiça Restaurativa no contexto universitário: estudo de caso da Universidade
Dalhousie - CA. 2019.184f. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
7
Dalhousie Dentistry Class - DDS 2015. LEWELLYN, J.; MACISAAC,J.; MACKAY, M. Report From The Restorative
Justice Process. Dalhousie University Faculty of Dentistry, maio de 2015, p. 8.
8
“Quem você odiaria f...r?” (Tradução livre das autoras).
189
Três das alunas, logo de início, expressaram que gostariam de ter a oportunidade de falar
sobre como estavam se sentindo e disseram que uma eventual punição dos alunos, autores das
mensagens, não daria conta de lidar com a questão. Entenderam que a situação demandava uma
abordagem que pudesse cuidar de aspectos envolvendo o ambiente da Faculdade de Odontologia e a
relação do ocorrido com a natureza do exercício da profissão de dentista. Acreditavam que o
comportamento dos alunos era manifestação de uma cultura misógina existente na comunidade
universitária e na prática dos profissionais da área de odontologia.
Notícias sobre o fato acabaram se espalhando entre o corpo docente, discente e funcionários
da universidade. Os meios de comunicação receberam as capturas de telas das mensagens do Facebook
de uma fonte desconhecida, e o caso foi divulgado pelas mídias sociais: a cobertura nacional da
situação aconteceu poucos dias após o fato vir à tona.
O reitor da Universidade se manifestou primeiramente em público para dizer que seriam
oferecidas opções para as alunas escolherem a forma de como gostariam de lidar com a questão.
Enfatizou que iria privilegiar uma abordagem centrada nas vítimas e que possibilitasse uma melhor
compreensão dos fatos e a reparação dos danos causados.
As alunas escolheram encaminhar o caso via JR, embasadas na Política de Prevenção de
Assédio Sexual oferecida pelo escritório de Direitos Humanos, Prevenção de Equidade e Assédio
Sexual da Universidade.
Devido à grande repercussão do caso, houve uma série de manifestações públicas, tanto em
relação à conduta dos rapazes autores das mensagens, quanto à escolha das alunas em endereçar o caso
pela via da JR. Membros da comunidade organizaram uma manifestação pelas ruas da cidade com
cartazes e faixas escritas cobrando uma atitude da Universidade com relação aos alunos, numa clara
posição de repúdio à abordagem restaurativa. Grupos auto identificados como feministas acusaram as
alunas de serem fracas e omissas por não terem processado judicialmente os rapazes responsáveis
pelas mensagens. Os facilitadores dos círculos restaurativos enfrentaram grandes desafios durante o
processo, e o assistente do reitor para assuntos clínicos da Faculdade de Odontologia decidiu
suspender os treze alunos envolvidos.
Estes são aspectos do caso que ilustram as dificuldades que acompanham as tentativas de
aplicação da JR, que precisa enfrentar uma cultura dominante, já estabelecida, que acredita que o
melhor caminho para tratamento dos conflitos é o da institucionalização. Em mesma medida, esse
senso comum, inserido em um marco punitivo com relação à gestão de conflitos, acredita ainda que
apostar em respostas diversas daquela que preconiza a punição seria abrir margem para a impunidade.
A seguir, reproduzimos um trecho do depoimento de um dos alunos envolvidos no episódio de
assédio:
(...) em todo o processo restaurativo, estamos realizando o trabalho necessário para lamentar
com sinceridade, confrontar os males que causamos, aceitar nossa responsabilidade e descobrir
o que é preciso para que possamos nos corrigir e angariar o conhecimento, habilidades e
capacidade de despertar confiança como profissionais de saúde. Essa é uma tarefa custosa e
longa, e é assim que deve ser (BOIN AGUIAR, 2019, p. 170).
190
191
Considerações finais
Em pesquisa realizada por Mello e Tonche (2021), cujo foco foi o mapeamento da produção
intelectual sobre formas não violentas de administração de conflitos, as autoras identificaram que a
grande maioria das teses e dissertações sobre JR defendidas nos programas de pós-graduação no país
entre os anos 2000 e 2019 foi produzida por mulheres. A porcentagem encontrada chega a 70,5%.
Embora as autoras não tenham localizado pesquisas nacionais que tenham especificamente investigado
o processo de feminização que estas formas não violentas de gestão de conflitos podem estar
promovendo no campo jurídico brasileiro, quando falamos das práticas, os indícios sugerem que a
hipótese pode ser verdadeira no caso da JR.
Por isso, estamos falando de uma justiça feita por mulheres e para mulheres. O que está em
jogo é a proposta de um modelo de justiça que passa pela desconstrução de poderes e rompe com os
padrões hierárquicos, hegemonicamente masculinos e violentos do nosso modelo oficial, em um país
marcado pelo machismo e o patriarcado. E isto não é pouco: significa dizer que estamos falando de um
modelo de justiça potencialmente feminista e, por que não, revolucionário.
Apresentamos, no espaço deste artigo, algumas das maneiras pelas quais a JR pode ser uma
aliada nas lutas contra a violência de gênero, pensando os desafios e as potencialidades de sua
aplicação, não só no âmbito judicial da violência doméstica, mas em outros espaços sociais fora do
campo estatal, também afetados pelas desigualdades entre os gêneros. Nosso texto não esgota todas as
possibilidades de utilização da JR com essa finalidade, e convidamos as leitoras e os leitores a se
juntarem a nós, nesse processo de construção conjunta de uma justiça comprometida com as causas
dos movimentos sociais que não se eximem de buscar estratégias de enfrentamento das violências
estruturais que não reforcem o punitivismo, as violências e as desigualdades.
192
Referências
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de administração de conflitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2016.
ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP,
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BOIN AGUIAR, Carla Maria Zamith. Justiça Restaurativa no contexto universitário: estudo de
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FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Lei Maria da Penha: entre os anseios da resistência e as posturas da
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ZEHR, Howard. Trocando lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça; tradução de Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
194
DIÁLOGOS ENTRE JUSTIÇA RESTAURATIVA, COMUNIDADE E
PROTEÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+
Adriana Padua Borghi1
Carolina Fetchir Ribeiro da Silva2
Michelle Fonseca de Oliveira3
Introdução
1
É advogada e atua com pessoas em situação de violências, professora universitária, mestre em Direito, pesquisadora e
facilitadora de Justiça Restaurativa.
2
É psicóloga, especialista em Psicologia Jurídica, professora no ensino superior e facilitadora em Justiça Restaurativa.
3
É advogada e atua com pessoas em situação de violências de direitos no âmbito da Assistência Social, pós-graduada em
Direitos Humanos e Cidadania e facilitadora de Justiça Restaurativa
4
Última definição da sigla do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis, Transexuais e Transgêneros) que
ocorreu em 2008, na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Desde então, as
demais letras foram inseridas de maneira não oficial, através de reivindicações de cunho social.
5
O termo problematiza a normalização de comportamentos a partir do padrão “hétero”, produzindo discriminação de outras
orientações sexuais e a definição de gênero a partir da observação biológica da “genitália”.
6
Fato típico, antijurídico e culpável. Nesse cenário, em 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela criminalização da
LGBTfobia, o que representou uma grande conquista para a população LGBTQIA+, mas trouxe algumas críticas
envolvendo o encarceramento em massa e o ideário do abolicionismo penal, assim como o entendimento de que essa ação
não contribuiria para a garantia dos direitos fundamentais das pessoas LGBTQIA+.
195
1. A Comunidade LGBTQIA+
É possível perceber uma grande discrepância quando se observa os índices de violência contra
pessoas LGBTQIA+. Um dos dados mais relevantes é o que diz respeito às pessoas trans. O Dossiê de
7
A partir do pensamento de pensadores como Patricia Hills Collins podemos definir interseccionalidade como uma
ferramenta analítica que aponta diversos posicionamentos das pessoas no mundo a partir das categorias de raça, classe,
gênero, idade, estatuto de cidadania, por exemplo, e a relação dessas categorias com o aumento das desigualdades sociais.
196
Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020, organizado pela
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) mostra que:
Em 2020, o Brasil assegurou para si o 1º lugar no ranking dos assassinatos de pessoas trans no
mundo, com números que se mantiveram acima da média. Neste ano, encontramos notícias de
184 registros que foram lançados no Mapa dos assassinatos de 2020. Após análise minuciosa,
chegamos ao número de 175 assassinatos, todos contra pessoas que expressavam o gênero
feminino em contraposição ao gênero designado no nascimento, e que serão considerados nesta
pesquisa. É de se lembrar exaustivamente a subnotificação e ausência de dados governamentais
(ANTRA, 2021, p. 7).
O documento reforça o conhecido título brasileiro: de país que mais mata pessoas trans. Este
título evidencia também um número de assassinatos que se destaca ao ser comparado aos demais
países o que se relaciona diretamente com a subnotificação e falta de dados governamentais, assim
como a inexistência de políticas específicas voltadas para o apoio e proteção da população LGBTQIA+
(ANTRA, 2021). Tal cenário é também validado pelo Atlas da Violência de 2020, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que aponta a falta de indicadores como o desafio central no
avanço da causa LGBTQIA+, sinalizando para a necessidade de se incluí-la nos censos oficiais e nas
estatísticas que envolvem a segurança pública, considerando que, sem esses indicadores, é difícil de
evidenciar a predominância de violência contra essa população. A ausência de estudos, avaliação e
monitoramento desse cenário dificulta a intervenção do Estado (IPEA, 2021) na interrupção desses
ciclos de violência. Os dados tornariam esse tipo de violência tangível, expondo a necessidade de o
Estado intervir com políticas públicas e outras ações de proteção e acesso a direitos.
Além dos documentos produzidos pela ANTRA e pelo IPEA, outro levantamento de dados
importante é realizado pelo Grupo Gay da Bahia em conjunto com Acontece Arte e Política LGBTI+.
O Relatório do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ em 2020, coordenado pelas duas
organizações, aponta uma redução no número de homicídios, suicídios e latrocínios, se comparado a
2019. (GASTALDI et al, 2021). Da mesma forma, o Atlas da Violência revela diminuição na taxa de
homicídios (IPEA, 2021).
É preciso refletir sobre esses apontamentos. De acordo com Gastaldi et al (2021) é preciso
considerar a influência da pandemia de COVID-19 nessa redução, destacando que não há motivo para
celebração, já que a violência se perpetua.
É inegável a existência da violência contra essa comunidade. Ao mesmo tempo, destaca-se que
não é uma violência qualquer fruto de um processo de formação socioespacial desigual, é uma
violência que mata, fere e brutaliza esses corpos, expondo-os ao ridículo e a extremos
processos de exclusão por serem quem e como são (GASTALDI et al, 2021, p 11).
Nesse sentido, fica impossível citar a violência contra a população LGBTQIA+ sem
considerar a LGBTfobia. É preciso refletir sobre causalidade e como a violência direcionada a esses
grupos se dá como externalização da LGBTfobia.
Sobre o termo LGBTfobia, é relevante lembrar que, inicialmente, era denominado como
homofobia. Trata-se de um termo excludente que considerava apenas a aversão à homossexualidade e
homossexuais. A alteração para LGBTfobia, assim como a alteração para a LGBTQIA+, busca maior
alcance e considera as diferentes formas de ser, como cada pessoa sofre preconceito e violência a partir
de sua existência fora do padrão heteronormativo.
197
Os padrões sociais que construímos a respeito da sexualidade separam as pessoas em grupos
muito distintos: os que são aceitos socialmente, que podem andar nas ruas sem sofrer rejeição
ou violências, manifestar seus afetos em público e ter suas existências sempre validadas e
reconhecidas; e os demais (PEDRA, 2018, p 16).
A LGBTfobia pode ser definida como o preconceito ou aversão por pessoas LGBTQIA+, em
outras palavras, por aqueles que rompem com o padrão da heterossexualidade, binariedade e
cisnormatividade. Para Gonzaga e Gallas (2019), a LGBTfobia é uma manifestação hostil, que pode se
apresentar de maneira física, psicológica, social ou institucional.
Ou seja, assim como outras formas de preconceito, a LGBTfobia se manifesta de forma
violenta e, considerando a complexidade da violência e todas as suas nuances, pode se dar da maneira
mais sutil, até a mais escancarada.
Nesse sentido, Nogueira e Brito (2020, p. 83) explicam que:
Entre os diversos tipos de violências que perpassam a existência de uma pessoa LGBT,
destaca-se a violência verbal, expulsões da família, da escola ou universidade, além de estupros
corretivos, abusos sexuais, agressões físicas, morais, verbais e psicológicas. Outro exemplo de
violência é a institucional, entendida como um conjunto de dimensões reiteradas e
reproduzidas por instituições e pelo Estado em que excluem e discriminam pessoas por
determinadas condições.
Em vista da violência institucional, é importante olhar para o Brasil como país no qual a
comunidade LGBTQIA+ encontra grandes obstáculos também no que diz respeito ao acesso a direitos,
obstáculos estes impostos pelo próprio Estado.
Nesse sentido, é possível entender a LGBTfobia no Brasil como violência estrutural, já que
ela está presente em diferentes contextos da sociedade. Para Pedra (2018), as diversas formas de
exclusão e discriminação sofridas pela população LGBTQIA+, que são naturalizadas tanto no
ordenamento quanto na sociedade, evidenciam um quadro estrutural.
Ao se observar os indicadores referentes à violência contra a população LGBTQIA+, bem
como sua relação com a LGBTfobia, fica explícita a necessidade de intervenção e ações de
enfrentamento. Apesar de mais de uma década de propostas para a criminalização da LGBTfobia,
nenhuma legislação voltada para essa questão foi aprovada, o que levou o Supremo Tribunal Federal, em
maio de 2019, a uma decisão que determina que violências LGBTfóbicas sejam consideradas como
crime de racismo (HAMMERSCHIMIDT; MADRID; FACHIN, 2019).
Definir que essas violências se enquadrem no conceito ontológico-constitucional de racismo8
e pela literatura negra antirracismo é importante para este estudo, mais do que discutir a criminalização
em si, já que este não é o objetivo proposto. Conforme leciona Vecchiatti9:
8
Visão amparada também pela normativa internacional, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Racismo (artigo 1º, parágrafo 1º): Nesta Convenção, a expressão ‘discriminação racial’ significará toda
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por
objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de
condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer
outro campo da vida pública”.
9
https://www.conjur.com.br/2019-ago-19/paulo-iotti-stf-nao-legislou-equipararhomofobia-racismo#author
198
discriminado de maneira estrutural, sistemática, institucional e histórica, para o fim de
estigmatizar, desqualificar moralmente, expulsar do convívio familiar ou até internar em
hospitais psiquiátricos as minorias sexuais e de gênero (população LGBTI+), em prol de
opressoras ideologias normalizadoras,mediante alterocídio discriminatório. Logo,
heterossexismo e o cissexismo são ideologias racistas ao pregarem a heteronormatividade e a
cisnormatividade, ou seja, a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsórias, punindo
simbólica, moral e/ou fisicamente quem “ousa” viver a vida de outra forma.
Na lógica de zelar pelas necessidades das vítimas de crimes, surge o paradigma restaurativo,
que se fundamenta numa “ética da justiça e do cuidado” (ELLIOT, 2012, p. 168) e se preocupa com
pessoas e relacionamentos afetados, com a reparação dos danos suportados e a participação dos
envolvidos, individual e coletivamente. Assim, se um dano ocorre, a Justiça Restaurativa se propõe a
lidar com os impactos dele nos diferentes campos e podem alcançar enfrentamentos nas categorias
pessoal, relacional, institucional, estrutural e cultural (LEDERACH, 2012, p. 39).
A Justiça Restaurativa seria para além de um mero instrumento de transformação do conflito,
uma oportunidade de criar processos de mudanças que sejam construtivos, reduzam a violência e
aumentem a justiça (LEDERACH, 2012, p. 27). Implica lidar e apoiar a vida e as diferentes nuances
de relações que as atravessam.
Há uma relação intrínseca dessa inteligência restaurativa com a diversidade. A diversidade
é própria dos seres humanos e das relações que estes estabelecem entre si e com seu entorno e, por
isso, contemplar e acolher essa diversidade, deve ser pressuposto de qualquer processo dito
restaurativo. Um dos fundamentos dessa inteligência perpassa por “construir respeito pela
diversidade e promover práticas comunitárias responsáveis” (ONU, 2021, p. 11). Uma das principais
normas nacionais sobre Justiça Restaurativa, a Resolução n. 225 do
Conselho Nacional de Justiça, garante no art. 2º, §4º que:
199
Todos os participantes deverão ser tratados de forma justa e digna, sendo assegurado o mútuo
respeito entre as partes, as quais serão auxiliadas a construir, a partir da reflexão e da assunção
de responsabilidades, uma solução cabível e eficaz visando sempre o futuro (BRASIL, 2016).
Questões como: possibilitar e instigar o diálogo entre os envolvidos, inclusive rompendo com a
dinâmica de atribuir papéis de agressor e agredido; para que com esse diálogo se viabilize a
reconstrução do laço rompido pelo conflito. Ademais, possibilita-se, com este diálogo, que
cada indivíduo tome conhecimento das razões do outro e do impacto sofrido com o conflito e
suas causas, o que proporciona uma retomada de cada indivíduo tome conhecimento das razões
do outro e do impacto sofrido com o conflito e suas causas, o que proporciona uma retomada da
ideia de uma relação que preconiza a solidariedade pelos sofrimentos, razões e consequências,
que são mútuos. (SALM; LEAL, 2012, p. 214).
10
Uma das conclusões do Projeto Responsabilidade e Responsabilização: Diálogos entre Psicologia, Psicanálise e Sistema
de Justiça Juvenil (CNPq/2010) que gerou o volume 109 da revista Brasileira de Ciências Criminais.
200
conceito importante historicamente para pessoas LGBTQIA+ que nos permite compreender a
resistência que possibilitou a existência dessas pessoas.
Historicamente, a construção de comunidades permitiu a conquista de direitos pelas pessoas
LGBTQIA+. A Justiça Restaurativa pode se afigurar como mais um espaço de respeito e promoção
desses direitos e fortalecimento dessa dinâmica já própria do movimento. Nesse sentido, há
possibilidades de encontros e potencialização de estratégias já adotadas por ambas inteligências, já que
a Justiça Restaurativa não apenas oportuniza a prática da resolução democrática dos conflitos
(SOUZA, ACHUTTI, 2018, p. 21), mas promove construção e fortalecimento de comunidades
(ELLIOTT, 2018, p. 266) com potencial para se tornarem fontes de proteção para pessoas
LGBTQIA+.
A Justiça Restaurativa opera em lógica diversa da punitivista, adotando estratégias que
aprofundam o olhar para o conflito, com objetivo o de analisar detidamente os danos gerados,
utilizando-se da promoção de diálogo, restauração de relações, sensibilização, educação, cuidado e
transformação social.
Portanto, ao conjugar diferentes frentes para lidar com as consequências dos danos, as
práticas restaurativas tendem a fortalecer estratégias coletivas e ampliar as formas de lidar com os
impactos das violências, contribuindo para a criação de comunidades de apoio com potencial de
prevenir a LGBTfobia.
201
Considerações finais
202
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204
205
INFRACIONOU, E AGORA? A PERSPECTIVA RESTAURATIVA COMO UM
ESPELHO QUE REFLETE A PLURALIDADE NA JUSTIÇA JUVENIL
José Blanes Sala1
William Vinicius Pinto2
1
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo
(1995) e Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente é professor associado da
Universidade Federal do ABC - UFABC. Coordena o Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Relações Internacionais -
GEDHRI-UFABC e o projeto de pesquisa para internacionalização do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas
e Sociais, do qual faz parte, financiado pelo programa Capes Print e é membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello -
ACNUR da referida universidade
2
Educador Social, Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC - UFABC, Mestre em
Educação pela UNINOVE. Graduado em Pedagogia e especialista em Terapia Familiar e de Casal pela UNIFESP;
Psicopedagogo e Intervenção Psicossocial no Contexto das Políticas Públicas. Atuação nos Direitos Humanos no âmbito da
Política da Assistência de Média e Alta Complexidade, acolhimento institucional, mediação de conflitos, orientação
sociofamiliar e execução das medidas socioeducativas em meio aberto.
3
Neste artigo, será adotada para se referir aos adolescentes e/ou jovens em conflito com a lei a terminologia
‘socioeducando’, conforme muitos programas de execução de medidas socioeducativas já utilizam. Ainda assim, faz-se
importante destacar o disposto no ECA, art. 2º, que considera criança, para os efeitos dessa lei, a pessoa até doze anos de
idade incompletos, e adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade. Nos casos expressos em lei, aplica-se
excepcionalmente este estatuto às pessoas entre 18 e 21 anos de idade. Dessa forma, complementado com o art. 104, são
penalmente inimputáveis os que não completaram dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nessa lei, devendo ser
considerada a idade do adolescente à data da prática do ato infracional
206
medidas de semiliberdade e internação compreendidas nos demais 28%.
Diante desse dado preliminar e em comparação com os dados publicados em série histórica do
Censo do SUAS, de 2012, percebe-se que o número de adolescentes em regime de privação de
liberdade tem diminuído, o que, provavelmente, corresponde à crescente aplicação de medida
socioeducativa em meio aberto que aumentou consideravelmente desde 2010, quando havia 67.045
adolescentes nessa situação, passando para 88.022, em 2011, e chegando a 89.718, em 2012. Ou seja,
houve um aumento de 2010 para 2012 de mais de 34% no número de adolescentes nessa situação.
Logo, este universo amplo torna-se um campo essencial para aplicação da Justiça Restaurativa e dos
princípios da Cultura de Paz.
No que concerne às bases da Política de Atenção à Infância e ao Adolescente, constata-se que
ela se apresenta com uma natureza intrínseca, diferente das políticas setoriais, pois é definida pelo seu
público-alvo – crianças e adolescentes –, e tem por objetivo a promoção e a garantia de todos os seus
direitos fundamentais. Outra especificidade é a interface do Poder Executivo com o Judiciário, que
confere o respaldo para as questões que envolvem sua função precípua de dirimir conflitos, interesses
e mudanças sociais, como é o caso das adoções, guardas, tutelas e na aplicação de medidas pertinentes
aos socioeducandos que respondem pela prática de ato infracional, desde a advertência à privação de
liberdade, conforme disposto no Art. 112 da Lei nº 8069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA)4.
Todavia, o Sistema de Justiça – instituição central na execução das medidas socioeducativas –
ainda não foi descolonizado e perpetua a sua atuação no campo punitivo, influenciando, dando
sustentação jurídica e, por vezes, submetendo a atuação de instituições e profissionais aos ditames da
justiça, que nem sempre se coadunam com os preceitos da socioeducação, por sua vez pautados em
pressupostos de liberdade, alteridade, autonomia dos sujeitos e a construção coletiva de conhecimentos
– princípios estes que se entrelaçam com as bases da Justiça Restaurativa.
As ações socioeducativas realizadas no transcorrer do processo de execução das medidas,
encontram-se respaldadas pelos princípios presentes no Sistema de Garantia de Direitos 5, assim,
devem balizar o destino do socioeducando no processo de acompanhamento. Entretanto, as sugestões
para uma possível progressão, suspensão ou encerramento da medida, quando sugerida, dependem da
posição do Ministério Público e do Poder Judiciário, variando de acordo com a relação estabelecida
por esse sistema e a sociedade local. Salienta-se que a pressão social e o modelo socioeconômico e
sociocultural submetem o Sistema de Justiça às diferentes conjunturas; nessa seara, corre-se o risco de
as decisões serem tomadas de forma arbitrária, seguindo as lentes do modelo retributivo.
Nesse sentido, fica explícito que a exclusiva responsabilização dos socioeducandos, em geral,
sobrepõe-se às consequências que os levaram ao cometimento do ato infracional. O processo
“inquisitório” ao qual são submetidos passa ao largo da análise de possíveis responsabilidades do
Estado, por ausência, omissão e/ou negligência na garantia das políticas públicas básicas, que são
necessárias para a efetivação dos direitos previstos como parte constitutiva da proteção integral de
crianças e adolescentes; além disso, essa inquisição desconhece o valor dos vínculos familiares e
4
Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes
medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das
previstas no art. 101, I a VI.
5
O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme disciplina o art. 1º da Resolução nº 113, de 19
de abril de 2006, é constituído pela a articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil,
na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a
efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal.
207
comunitários.
Ao romper com o olhar estático, refletir de forma anti-hegemônica e com lentes restaurativas,
pode-se considerar que o Estado viabiliza, muito precariamente, a operacionalização da política de
atenção à infância e ao adolescente, sob influência de uma tendência fundamentalmente assistencial,
ou seja, não dá à política pública de assistência social as devidas dimensões especiais. Embora, por
definição, a política de atendimento a crianças e adolescentes seja universal – voltada para toda a
população infanto-juvenil –, há de se observar uma forte concentração desse público em situação de
exclusão, em virtude do estado de pobreza e de vulnerabilidade social, situação crescente em
decorrência da pandemia da Covid-19.
Mediante o contexto, cabe destacar que a Política de Atenção à Infância e ao Adolescente
sofreu profundas alterações com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e das leis: Lei
Federal nº 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e Lei Federal n.º 8742/93 (Lei Orgânica da
Assistência Social - LOAS). A partir delas, ocorreram as estratégias para a implantação de uma
política municipal de atendimento à criança e ao adolescente, tendo como premissa a contemplação de
todas as dimensões que envolvem as ações junto a esse segmento populacional, com ênfase especial
para o processo de municipalização das medidas socioeducativas em meio aberto.
Todavia, essa municipalização não apresenta resultados positivos, ou seja, ao se tratar do
direito dos socioeducandos serem atendidos nas proximidades de sua residência, essa garantia muitas
vezes não é concretizada, principalmente quando se trata das medidas socioeducativas de regime de
internação. Outros entraves também ocorrem, tais como: problemas regionais, especificamente locais
inapropriados para instalação de unidades, preconceito da população diante dos estereótipos atribuídos
a tais instituições, veiculados nos meios de comunicação em massa e limites orçamentários que
dificultam a execução direta das medidas socioeducativas.
Aos estados e municípios da federação cabe a tutela de todos os socioeducandos que cometem
ato infracional, seja por meio de suas próprias unidades de atendimento, seja por seus programas
diretos ou, finalmente, seja por via da rede de proteção social especial de média complexidade, de
responsabilidade dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)6.
Entretanto, a grande maioria dos municípios brasileiros não possui uma rede de atenção à criança e ao
adolescente que contemple seus direitos fundamentais, muito menos programas destinados ao
atendimento a segmentos demográficos com direitos violados, ou que sejam violadores de direitos,
deixando-os à margem e sem possibilidades de efetivar a mobilidade social.
Há de se destacar que o conceito de municipalização não pode ser confundido com o de
“prefeiturização”, que seria apenas o repasse dos encargos ao poder público local. O processo de
municipalização compreende o engajamento de todas as forças sociais representativas de uma
determinada localidade. O poder local não se compõe apenas do Executivo e do Legislativo
municipais; a ele se agregam os movimentos sociais, as organizações não governamentais, as
empresas, os trabalhadores, os sindicatos e as elites. Portanto, o processo de municipalização
pressupunha considerar todas as redes instaladas, formais e informais, de defesa, atenção e garantia de
direitos de crianças e adolescentes.
6
Conforme disposto nas Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social, o CREAS é uma
unidade pública estatal, de abrangência municipal ou regional, referência para a oferta de trabalho social a famílias e
indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos, que demandam intervenções especializadas no
âmbito do SUAS. Sua gestão e funcionamento compreendem um conjunto de aspectos, tais como: infraestrutura e recursos
humanos compatíveis com os serviços ofertados, trabalho em rede, articulação com as demais unidades e serviços da rede
socioassistencial, das demais políticas públicas e órgãos de defesa de direitos, além da organização de registros de
informação e o desenvolvimento de processos de monitoramento e avaliação das ações realizadas (BRASIL, 2011, p. 8).
208
Importante salientar que existem outros documentos legais que norteiam a Doutrina de
Proteção Integral adotada pelo ECA, e tal perspectiva é fortalecida pela Tipificação Nacional de
Serviços Socioassistenciais (2009, p. 24), que define as funções e objetivos dos serviços de proteção
social aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Destaca-se que,
dentre as principais orientações, está a criação de condições para a construção/reconstrução de projetos
de vida que visem a ruptura com a prática de ato infracional e o fortalecimento dos vínculos familiares
e comunitários – perspectiva que também se encontra com as práticas restaurativas.
Além disso, o campo das medidas socioeducativas em meio aberto, que é composto por uma
variedade de atores, fica sujeito a diferentes olhares, assim como as múltiplas possibilidades de
metodologias e ações intervencionistas, configurando-se uma arena na qual o sistema e a doutrina são
colocados à prova, com maior frequência, na medida em que o embate sobre a garantia de direitos que
é provocado pela socioeducação esbarra na violação das regras sociais, cometida pelo socioeducando.
Contudo, refletir sobre isso é indispensável ao processo de atendimento e é uma condição que
possibilita novas abordagens advindas da justiça restaurativa, promovendo assim, um novo olhar frente
às questões apresentadas pelos e para os socioeducandos.
O ordenamento jurídico, que corresponde às bases do poder patrimonialista e rege as relações
socioeconômicas, dita as regras de conduta estabelecidas culturalmente na sociedade capitalista, forma
um campo de submissão no qual o socioeducando, muitas vezes, é obrigado a se curvar por meio de
rituais, que vão gradativamente impingindo-lhe uma condição de subalternidade ao sistema que o
limita, obscurece suas capacidades e fragiliza a possibilidade de diálogo franco e qualitativo com o
orientador/técnico que executa a medida socioeducativa a ele imposta, comprometendo,
significativamente, a eficiência e a eficácia da justiça juvenil.
Sem dúvida com o exposto, percebe-se a indicação da prioridade de adoção das práticas ou
medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas,
dispostas na Lei Federal nº 12.594/2012, intitulada de Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo e que prevê no Art. 35 os princípios que regerão a execução das medidas
socioeducativas, dentre eles: legalidade, excepcionalidade, prioridade, proporcionalidade, brevidade,
individualização, não discriminação e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Diante desse preâmbulo sintético, histórico e jurídico, percebe-se que o discurso protetivo no
cenário apresentado, ainda que previsto no marco legal, soará frágil ao socioeducando, sobretudo
quanto maiores forem as lacunas entre aquilo que se propõe no processo de acompanhamento e a
realidade concreta vivida por ele e por sua família cotidianamente. Por isso, resulta de extrema
importância a aplicação de novas metodologias, abordagens, estudos e investimentos na área da
infância e da juventude, aqui, especificamente, apontando as medidas socioeducativas.
Nesse âmbito, vamos compreender as origens e o processo de evolução das ideias da Justiça
Restaurativa, por isso, é indispensável destacar a existência de um novo paradigma sociológico – o
processo restaurativo –, levando em consideração que ele reconduz às práticas sociais, comunitárias e
de justiça social que se entrelaçam com as lutas por direitos humanos. Um processo contra-
hegemônico que segue outra direção, diferentemente do poder detido pelo Estado moderno, quando
vislumbra, em quase sua totalidade, a aplicação do Direito Penal e da Justiça do Patriarcado.
No contexto histórico, Zehr (1990), uma das referências mundiais por difundir a Justiça
Restaurativa, pontua que o autor Albert Eglash foi o primeiro a expor o termo, especificamente em
209
1977, quando publicou o artigo intitulado: Beyond Restitution: Creative Restitution, na obra
Restitution in Criminal Justice, coordenada por Joe Hudson e Burt Gallaway.
Concernente ao artigo citado, destaca-se a nomenclatura dada às “justiças”, sendo elas:
retributiva, dando a concepção de que ela se baseava na punição; em contraponto, a distributiva, a
qual teria sua ênfase na reeducação e, por fim, conceitua que a restaurativa tem o seu foco central na
reparação do dano e nas relações sociais, levando em consideração os efeitos trazidos para a vítima-
ofensor. Podemos compreender que a intenção do artigo era viabilizar uma discussão com os
encarcerados sobre o quanto as suas ações não são isoladas, trazendo danos para si e para outrem,
refletindo de forma crítica sobre a importância de como reparar os danos causados.
Conforme publicado na edição do Children, Young Persons and Their Families Act em 1989,
a Nova Zelândia foi pioneira na introdução do modelo restaurativo na sua legislação. É importante o
registro de que foi, posteriormente, também adotado um modelo restaurativo na Austrália e América
do Norte. Ainda, há estudos que destacam que essas práticas podem ser as mesmas dos indígenas da
América Central e da América do Sul, e das comunidades africanas.
Segundo Carvalho (2005), a Justiça Restaurativa é uma modalidade inclusiva de justiça que
oferece uma ação reintegradora e restauradora das relações sociais entre diferentes parcelas da
população. Dentre essas, se encontram os adolescentes em conflito com a lei. O autor aponta inclusive
para a compreensão da Justiça Restaurativa como sendo uma abordagem colaborativa para a prestação
de serviços jurídicos, assim como também para a desburocratização e a democratização do Poder
Judiciário.
Já para Pinto (2005), que aborda outras dimensões do tema e converge com os pensamentos
de Zehr (1990) e Carvalho (2005), dá ênfase em que a Justiça Restaurativa tem como um dos seus
objetivos tratar as questões criminais sob a perspectiva de que os crimes causam violações nas relações
afetivas e sociais entre as pessoas. Também aponta que, por causar um mal à vítima, à comunidade e
ao próprio autor do delito, todos esses protagonistas padecem, portanto, da necessidade de tratar e
restaurar o trauma que foi causado nas dimensões individual e social.
Brancher (2008), sustentado pelas pesquisas de Zehr (1990), corrobora que a Justiça
Restaurativa deve ser vista como novo paradigma, necessário para dar resposta ao mundo caótico e
desigual em que vivemos, dando a dimensão de que todos estamos implicados e, portanto, somos
corresponsáveis por tudo que acontece na sociedade, principalmente, quando ocorre a ruptura nas
relações sociais em decorrência dos diferentes tipos de crimes e atos infracionais que,
consequentemente, apresentam um dos aspectos que promovem o encarceramento em massa,
alimentado pelo constante e desenfreado ciclo histórico de injustiças.
Nesse viés, cabe destacar que: "o simples fato de rotular o crime como conflito pode ser
perigoso, porque a violência não é simplesmente uma intensificação do conflito, sendo que as
definições vagas podem minimizar a verdadeira dimensão do dano eventualmente experimentado”
(ZEHR, 2008, p. 172). Dessa maneira, aponta-se que a violência é um fenômeno plural, podendo ter
consequências que deixam marcas e lesões físicas; por outro lado, a violência que não apresenta
marcas é tão ou mais danosa. Ambas deveriam ser consideradas como uma supressão dos Direitos
Humanos7.
7
O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante
em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas
as outras qualidades e relações específicas — exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na
abstrata nudez de ser unicamente humano. E, em vista das condições políticas objetivas, é difícil dizer como teriam ajudado
a resolver o problema os conceitos do homem sobre os quais se baseiam os direitos humanos — que é criado à imagem de
Deus (na fórmula americana), ou que representa a humanidade, ou que traz em si as sagradas exigências da lei natural (na
210
Diante do acima exposto, considera-se aqui que o conceito de Justiça Restaurativa, assim
como a sua prática, especificamente no Sistema Juvenil, se encontra em formação contínua, que só
pode ser captada em seu movimento ainda emergente, conforme a realidade social e o reconhecimento
das demandas do público a quem se pretende aplicar. Zehr (1990), em uma das mais consagradas
referências bibliográficas sobre o tema, decifra que para compreender o sentido é preciso usar outras
lentes (aliás, denominando a obra como Changing Lenses: A New Focus for Crime and Justice) e
destaca que o termo “Justiça Restaurativa” é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série
alternativa de perguntas paradigmáticas. Estas perguntas oferecem uma estrutura alternativa para
pensar as ofensas (ZEHR, 2012, p. 15), partindo de três princípios fundamentais: I) O crime causa um
dano às pessoas e às comunidades; II) Causar um dano acarreta uma obrigação; III) A obrigação
principal é reparar o dano (ZEHR, 2012).
Na esteira da discussão sobre a justiça, também é possível identificar que há tentativas de dar
forma ao modelo de Justiça Restaurativa, orientando onde devem estar ancoradas as suas bases e
subsidiá-las, incluindo determinados princípios. Alguns documentos legais reforçam esta perspectiva.
Cabe mencionar que, no ano de 2016, o Conselho Nacional de Justiça dispôs sobre a Política Nacional
de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, mediante a edição da Resolução 225 de
31/05/2016, destacando no 1º artigo a seguinte definição:
8
A ressocialização é entendida, sinteticamente, como o ato de tornar o apenado apto ao convívio social, conforme o
primeiro artigo da Lei de Execução Penal, no caso de adulto, e no art. 52 da Lei n. 12.594 de 2012, que dispõe sobre o
SINASE. Nesse sentido, o programa mínimo de ressocialização está relacionado à ideia de prevenção social e a não
reincidência, focado na conscientização da conciliação entre a liberdade de escolha do indivíduo com a ordem social.
213
socioeducativa.
9
Youth Criminal Justice Act 2002.
214
Com o campo fértil de atuação com grupos em situação de risco e vulnerabilidades sociais, no
Brasil, as abordagens restaurativas transcendem o sistema de justiça criminal e ocupam outros espaços,
tais como instituições de ensino, repartições públicas e privadas, instituições religiosas e o sistema de
justiça juvenil. Pode-se considerar que a Justiça Restaurativa rompe paradigmas e tem construído
novos caminhos para enfrentar os dilemas sociais. Nesse contexto, cabe mensurar sua importância na
tentativa de dar resposta às consequências da infração penal e atender, de forma integral, vítimas,
ofensores e as comunidades em resposta à violência e à promoção da construção de uma efetiva cultura
de paz, podendo ser considerada como um possível caminho de concretização dos Direitos Humanos
(PRUDENTE, 2008, p. 64).
Para Aertsen (2013), o método utilizado no Brasil frequentemente é intitulado de “práticas
restaurativas”, tal como o círculo restaurativo, uma variação dos métodos restaurativos em que se
podem considerar os grupos de atendimento voltados para a execução das medidas socioeducativas.
Ainda segundo o autor, o método é desenvolvido nos círculos e respeita três etapas: o pré-círculo, o
círculo restaurativo e pós-círculo.
Para Tello (2008) em relação às práticas da Justiça Restaurativa, as formas mais conhecidas
são: I) Mediação vítima-ofensor, que consiste no encontro entre vítima e ofensor;
II) Conferências familiares – nesses encontros, além da vítima e do ofensor, se incluem os
familiares ou pessoas de apoio do ofensor e da vítima, e os demais que tendem a participar na
qualidade de agentes do Estado, como a polícia e assistentes sociais; III) Círculos, além de incluir a
vítima e o ofensor, seus respectivos familiares e apoios, estão abertos a qualquer pessoa representativa
da comunidade que tenha um interesse em envolver-se no assunto. Os membros do sistema judicial
também podem participar. Por outro lado, Prudente (2008) enumera quatro elementos centrais da
prática restaurativa, que são denominados de valores: I) Encontro; II) Participação; III) Reparação e
IV) Reintegração.
Sendo assim, é fundamental salientar que a Justiça Restaurativa e os processos restaurativos
advindos dela, incluem pontos que se entrelaçam com as abordagens sociopedagógicas adotadas na
execução das medidas socioeducativas, pelo uso de técnicas como a mediação, conciliação, reunião
familiar, comunitária e círculos decisórios. E, no âmbito dos resultados esperados, tanto pela medida
socioeducativa como para as práticas restaurativas, levam-se em consideração os acordos construídos
no desenrolar de ambos os processos, que redundam em autorreflexão, respostas e reparações,
restituições e serviço comunitário, sempre com o objetivo de atender às necessidades individuais e
coletivas, corresponsabilizar as partes e viabilizar a reintegração entre os envolvidos.
Algumas considerações
216
217
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Editora Companhia
das Letras, 1989.
BRANCHER, L. Iniciação em Justiça Restaurativa: formação de lideranças para a transformação de
conflitos. [Projeto] Justiça para o Século 21: Instituindo Práticas Restaurativas. Porto Alegre: AJURIS,
2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria
de Edições Técnicas, 1988.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução n. 225/2016. Dispõe Sobre a Política
Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências, Brasília:
2016.
BRASIL. Relatório da Pesquisa Nacional das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Brasília:
Ministério da Cidadania, 2018.
CARVALHO, Luiza Maria S. dos Santos. Notas sobre a promoção da equidade no acesso e
intervenção da Justiça Brasileira. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD). Justiça restaurativa (Org. C. R. de Vito Slakmon e R. Gomes
Pinto), 2005. p. 213-226.
PINTO, William Vinicius. Pedagogia Social e a Socioeducação: concepções e significados das ações
socioeducativas para os adolescentes em cumprimento de medida em meio aberto. 2019. 122 f.
218
Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação) - Universidade Nove de Julho, São Paulo.
ZEHR, Howard. Changing lenses: A new focus for crime and justice. Scottdale, PA: Herald Press,
1990.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça restaurativa. Tradução de
Tonia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
ZEHR, Howard. Artigo lido em Just Peace? Peacemaking and peacebuilding for the New Millenium,
Journey to Belonging – Massey University, Albany, New Zealand, 2000.
ZEHR, Howard. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: Palas Athena, 2012.
219
JUSTIÇA RESTAURATIVA E COMUNIDADE
Aldemara Ferreira De Jesus
João Gomes Da Costa
Introdução
Nestes relatos, tentaremos repassar para você parte da história de vida e das lutas dos
trabalhadores do campo em Alenquer no estado do Pará, nossa cidade com pouco mais de 50.000
habitantes, e com uma economia que vem da agricultura e pecuária. Somos do campo, nascidos de
famílias de agricultores bem humildes do interior de Alenquer. Aldemara Ferreira De Jesus (Mara) e
João Gomes Da Costa (Totó), ambos agricultores que atuam como dirigentes sindicais exercendo
cargos na diretoria executiva do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras
Familiares de Alenquer - PA. João atua desde 2007 e vem da comunidade Sombra da Lua; Mara, desde
2011, e vem da comunidade Nova Olinda. Nossa atuação vem sendo pautada primeiramente em defesa
da vida, pelo direito dos trabalhadores, seus territórios e toda biodiversidade. Quando iniciamos a
trabalhar juntos, o nosso anseio em resolver as coisas nos aproximou, nos encorajou e nos motivou a
buscarmos formas que nos ajudassem a desenvolver nosso trabalho além do sindicalismo comum e
que, principalmente, pudéssemos ajudar as pessoas. Nos deparamos com uma realidade enorme de
disputa de território pela posse da terra, defesa ao meio ambiente e muito conflito entre os próprios
trabalhadores. Até então, tínhamos o conhecimento da realidade isolada das nossas comunidades e de
comunidades próximas. Cheguei ao sindicato e logo me deparei com inúmeros processos judiciais de
reintegração de posse, onde os trabalhadores eram requeridos e que João acompanhava alguns desde
2007; nesse caso, nossa função era trabalhar a organização e a unidade dos trabalhadores. Com o
passar do tempo, percebemos que poderíamos resolver algumas questões de conflitos fazendo a
mediação conforme a formação que tivemos em 2009, realizada pelo Padre José Boeing, e a de Perdão
e Reconciliação de 2011, também ofertada pelo Boeing através da Justiça, Paz e Integridade da
Criação (JUPIC) da Paróquia Santo Antônio em nossa cidade; assim iniciamos as mediações. Padre
José sempre nos ajudou na formação e com seus conhecimentos e atuação jurídica, principalmente em
casos coletivos e de grande abrangência.
Em 2017 conhecemos a Justiça Restaurativa a convite do Pe. Adventino, atual coordenador da
JUPIC em nível de região Amazônica. O conhecemos aqui em nossa cidade quando veio fazer seu
trabalho de evangelização. É alguém que se identificou bastante conosco, com nosso trabalho, com a
região, e sensibilizou-se de imediato com as necessidades e lutas do povo; atuou como líder, não
somente espiritual, mas provocador e incentivador da organização e unidade em busca de políticas
públicas. Neste encontro formativo tivemos o privilégio de termos como facilitadora a Ir. Nelly, que
nos apresentou a Justiça Restaurativa, seus fundamentos, e a forma como o Centro de Direitos
Humanos e Educação Popular (CDHEP) vem formando facilitadores e tem atuado, inclusive em casos
judiciais, quando solicitado. Já saímos desse encontro com data confirmada para a próxima formação,
que levou cinco dias. Tivemos como facilitador, desta vez, o professor Nirson, que tem uma longa
trajetória e experiência com a JR juntamente com sua esposa, que é juíza. Foi mais que um
aprendizado, foram momentos de encontro com nós mesmos, momentos de conhecermos o outro além
do que víamos, momento de testemunhos que nos surpreenderam e nos fizeram a admirar e a gostar
ainda mais de quem estava ali.
Vínhamos trabalhando bastante como mediadores em conflitos, pois com a formação e a
função no sindicato as pessoas sempre nos procuravam para pedir ajuda ou denunciar alguma situação
220
– situações que muitas das vezes já envolviam um conflito coletivo, pois já havia outros membros da
família, vizinhos e amigos envolvidos. Sempre tivemos o cuidado da escuta, de ouvir todos os lados
para entender ao máximo o que estava acontecendo e, assim, tentar fazer os envolvidos entenderem
que a convivência pacífica e harmoniosa é melhor para todos. Sempre destacamos o quanto é bom
poder passar pelas pessoas da comunidade e poder cumprimentar com um “bom dia”, “boa tarde” e
“boa noite”, poder sorrir, olhar nos olhos sem raiva, sem sentimento de desprezo, sem desejar que algo
ruim aconteça à outra pessoa, sem desejo de vingança, sem a sensação de perda ou de vitória por
algum fato que casou sofrimento e inimizades.
Outra situação é fazê-los entender que um processo judicial nunca é bom para nenhuma das
partes, pois ambos precisam ter custos financeiros para pagar advogados, e nunca sabemos quanto
tempo isso irá levar, pois a maioria dos conflitos é por conta de terra. Trabalhar com mediação de
conflitos nos ajudou muito a realizarmos o trabalho com a metodologia da Justiça Restaurativa, e vale
destacar que sem o instrumento sindical seria muito complicado realizar esses trabalhos, pois é através
do sindicato que conseguimos chegar até as pessoas que moram a vários quilômetros da sede do
município. O sindicato, podemos dizer, é o instrumento que nos proporciona os insumos necessários
para a realização desse trabalho.
A Justiça Restaurativa chegou com uma metodologia parecida e ao mesmo tempo diferente,
pelo menos é o que achamos. Na mediação você também precisa conversar com ambas as partes e
perguntar se aceitam sentar-se para dialogar; caso aceitem, a gente faz o diálogo e elaboramos o
documento conforme o ocorrido. Tivemos um caso em que passamos praticamente o dia inteiro indo e
vindo da casa dos envolvidos para que eles aceitassem conversar na presença um do outro. A JR já
exige mais um pouco: temos que fazer o pré- círculo ou os prés-círculos, pois pode haver o caso que
precise fazê-los por mais de uma vez com ambas as partes envolvidas no conflito. O que nos chamou a
atenção na JR e no centro do círculo foi, principalmente, o objeto da palavra, com o qual ficamos
maravilhados. Ao contrário da mediação de conflitos, a JR pode ser utilizada para círculos não
conflitivos, podemos celebrar um aniversário, círculo de amizade, de valores – o que é ótimo –, até
círculo para reunião de trabalho e repasse de informações. Este último, temos utilizado bastante
enquanto sindicato.
Esse caso foi muito interessante, pois Raimundo e Francisco, além de vizinhos, eram amigos
há mais de 30 anos, ambos morando no mesmo local: Ramal da Fortaleza. Determinado dia,
Raimundo resolveu convidar Francisco para tirarem o limite dos seus lotes – aqui chamamos esse
limite também de pico –, e como seu Raimundo tinha aumentado seu pasto, queria fazer a cerca no
pico. Então, tudo ficou certo para realizarem o serviço com ajuda dos filhos. Fomos procurados pelo
filho do seu Raimundo, o Antônio, que nos relatou o seguinte: seu pai e o vizinho, Francisco,
combinaram de tirar o pico do terreno; no dia e hora marcada, estavam todos prontos para o trabalho,
ele, Antônio, seu pai e seu irmão, Miguel, assim como o vizinho, Francisco, e seus dois filhos, José e
Marcos, tudo como os “velhos” – palavras do Antônio – haviam combinado. Antônio e Miguel já
possuem família, mas sempre ajudaram seu pai nos trabalhos braçais, assim como os outros irmãos.
Marcos, o filho mais velho do seu Francisco também tem família e ajuda o pai quando é chamado, ou
seja, ambos criaram filhos obedientes – opinião nossa diante as conversas que tivemos.
221
Continuando com o relato, Antônio informou que iniciaram com o trabalho de tirar muitas
varas para irem balizando a direção do pico, e foi isso que conseguiram fazer no primeiro dia. No
segundo dia começaram o trabalho de roçagem manual com facões e foices, e assim foram dando
continuidade aos trabalhos no decorrer dos dias. Acontece que quando chegou lá pela metade do
serviço, que é uma extensão longa, tendo em vista que a metragem total era de aproximadamente 2.500
metros, o seu Francisco disse que não estava certo sobre a tirada do pico, pois estava indo tudo pra
dentro do lote dele, e seu Raimundo disse que não, que estavam fazendo tudo certo desde o início do
lote. Daí, se iniciou toda uma discussão entre os dois, que envolveu palavrões e xingamentos. Os filhos
de ambos pediram calma e resolveram paralisar os serviços. No decorrer de três semanas, Antônio
procurou o Marcos para tentarem conversar com os “velhos”, para sentarem e darem continuidade aos
trabalhos, tentativa que foi em vão de Antônio e Marcos, pois ambos diziam que não queriam olhar na
cara um do outro e iam procurar seus direitos.
Como associado do sindicato, Antônio nos procurou para buscar informação e se havia
possibilidade de ajudarmos nessa situação, pois estava muito preocupado. A discussão tinha ocorrido e
seu pai não estava nem comendo direito de tanta raiva, segundo ele. Diante dos fatos, nos colocamos à
disposição para conversar com os dois, e falamos como fazíamos em casos como este e perguntamos o
que ele achava. Ele disse que a situação era complicada, mas, por sermos do sindicato, talvez a gente
conseguisse. Então nos programamos na presença do Antônio para nossa ida a fim de realizar o pré-
círculo com o seu Raimundo, seu Francisco e suas famílias.
No dia marcado fomos, primeiramente, na casa do seu Raimundo, que na época tinha 72 anos.
Nos apresentamos e ele nos convidou para ir à casa de farinha, e começamos a puxar conversa e ele
nos contou muitas coisas que viveu na sua juventude; nos contou dos jogos de bola, de caçadas, pesca,
como conheceu sua esposa Luiza, com quem tem 13 filhos – isso mesmo, 13 filhos! Uma mulher já de
certa idade, de cor morena, de um porte forte, cabelos longos, tinha acabado de sair do banho, pois os
cabelos estavam soltos e molhados. Ao nosso ver, à moda antiga, que não se aproximou das conversas
do marido, a não ser para oferecer um café, frutas – mas sempre atenta a tudo que acontece e o que
está sendo dito. Quando percebemos que seu Raimundo estava bem à vontade conosco, falamos que
precisávamos conversar com ele a respeito do pico do terreno, e que tínhamos sido procurados pelo
Antônio. Ele ficou nos olhando nos olhos, olhou para o filho que estava acompanhando toda conversa
e disse: “já que vocês estão aqui, a gente conversa!”.
Então pedimos licença para organizar os bancos em círculo, procuramos por algo no quintal
para utilizar como centro e vimos uma roseira, com rosas vermelhas todas bem abertas, com certeza
plantadas por Dona Luiza, em uma panela grande de alumínio que servia de vaso. Quando chegamos
ela estava regando e percebemos que, ao afastar o galho para molhar melhor, acabou pegando em um
espinho, o que a fez soltar o galho imediatamente, e continuou a molhar a roseira; depois que pegamos
a panela com a roseira foi que a dona Luiza nos confirmou que furou o dedo no espinho. A
convidamos para participar conosco e ela logo nos disse que não podia porque estava com o almoço
no fogo, e foi quando João argumentou, falando da importância de ela participar. Imediatamente ela
disse: “vou tirar a panela do fogo e trazer a garrafa com café e uns beijus que eu fiz pra vocês”.
Quando iniciamos o pré-círculo e apresentamos o objeto da palavra e como seria nosso
diálogo, D. Luiza e seu Raimundo riram de forma tímida, mas logo seu Raimundo falou: “a chave do
carro, é?”, João disse: “é! Esquecemos de trazer outra coisa”, e todos nós rimos. Seu Raimundo
continuou: “rapaz, acho que vou comprar um bicho desse pra mim com a minha velha, quanto foi
esse? Compraram zerado? E que marca é?”, João falou o valor da S10 4X4, que tinha sido comprada
zerada e que era do sindicato. Seu Raimundo fez um cálculo rápido e disse que se ele vendesse um
222
quantitativo de quilos de gado, comprava um. Como estávamos ali já há umas duas horas e como
facilitadores, seu Raimundo foi questionado do porquê de não ter acontecido a tirada do pico, e assim
que pegou o objeto da palavra, ele disse: “eu vou comprar um bichão desse pra nós, achei bonito, eu
não sei dirigir, mas os meninos são novos e aprendem, e levam eu e minha velha pra receber nosso
dinheiro do aposento e fazer nossas compras”, rimos todos novamente. Ele continuou: “tu me dá o
endereço da loja onde vocês compraram esse carro do sindicato?”, João disse que sim e poderia até
ligar pra loja para avisar da ida dele quando ele fosse comprar. D. Luiza por sua vez, chamou a
atenção, dizendo: “vocês disseram que só quem estava com a chave podia falar e vocês já falaram sem
a chave”, voltamos a rir todos mais uma vez. Ele sorriu e disse que passaria no sindicato.
Prosseguindo, seu Raimundo relatou sua versão da história, dizendo que está certo o pico, que nunca
precisou ficar com nada de ninguém, e que o Francisco o atacou com palavras; comentou que já
moravam há muitos anos ali e que nunca haviam brigado, sempre tiveram um bom relacionamento.
Essa versão está confirmada por Antônio e D. Luiza, que além disso falou da preocupação com o que
estava acontecendo e que agradecia a Deus que seus filhos e os filhos de Francisco eram meninos
calmos. A conversa foi demorada pois fizemos questão de deixar eles falarem tudo que achavam que
deviam. Depois fizemos algumas considerações no sentido da importância da amizade, da harmonia,
que as coisas boas devem ser valorizadas, mais que as ruins; falamos que as coisas bonitas às vezes
podem nos causar dor, como é o caso de amizades, ou mesmo uma roseira como a da D. Luiza, que
apesar de nos presentear com rosas lindas, seu espinho feriu a mesma e a fez sentir dor, e nem por isso
ela desistiu de molhá-la para que permaneça bonita e continue florindo. Então perguntamos se
aceitavam sentar-se novamente com a participação do seu Francisco, e a resposta foi positiva. Após
agradecermos pela receptividade e atenção, fomos convidados a almoçar, mas precisávamos ainda
conversar com seu Francisco, além disso, o café com beiju tinha nos deixado bem alimentados.
Saímos em direção à residência do seu Francisco. Chegando lá, nos apresentamos à sua
esposa D. Riza, que informou que ele estava em outro lote que eles haviam comprado em outra
comunidade, chamada Bom Jardim, e que havia saído bem cedinho. Ela nos ensinou com bastante
paciência qual era o lote, pois a comunidade é conhecida, então nos deslocamos em direção à
comunidade Bom Jardim. Chegando no local, percebemos tudo calado, sem movimentação, mas vimos
a moto estacionada embaixo de um jambeiro; gritamos para chamar a atenção e depois de uns quatro
gritos, ouvimos outro grito em resposta: era seu Francisco, que tinha ido verificar a roça, o pasto e as
cercas do novo terreno. Seu Francisco era branco como o seu Raimundo, a diferença é que era bem
mais magro, alto e mais jovem na idade, tinha apenas 65 anos. Já conhecíamos o seu Francisco, pois o
filho Marcos mora com a família na mesma comunidade dos pais da Mara. Ao se aproximar, foi logo
perguntando o que havia acontecido para o pessoal do sindicato estar atrás dele ou se estávamos
perdidos, o que era difícil, pois ele próprio destacou que conhecíamos muito bem a zona rural do
município. Ficamos ali mesmo, embaixo do jambeiro, onde havia um banco grande fixo no chão.
Estava bastante ventilado e seu Francisco, como estava exposto ao sol antes de chegarmos, pediu
licenças para desabotoar a camisa, e claro que não nos opusemos, já que era a casa era dele (risos).
Após isso, falamos da nossa satisfação em saber que havia feito um investimento em um lote de terras
muito produtivas, e ele disse que como ainda faltava um filho pra casar, já estava se preparando, pois
“quem casa, precisa ter casa”, e não queria que os filhos passassem pelas mesmas dificuldades que ele
a esposa passaram no início do casamento. Nos contou que quando casou não tinham nada, sua mãe
lhe deu duas panelas, dois pratos e duas colheres; sua sogra deu uma panela de pressão usada; e sua tia
lhe deu um pote para colocarem água para beber. Relatou que não foi fácil, teve que trabalhar muito
para criar os quatro filhos, mas destacou que quando os meninos cresceram ficou mais fácil, pois já o
223
ajudavam nos trabalhos – e que agora as coisas estavam mais tranquilas.
Aproveitou para nos mostrar o açude que tinha próximo da casa, onde pretendia criar peixe,
com a preocupação de que talvez roubassem, já que ninguém estava morando lá, mas que iria fazer um
teste. Retornamos para o banco da árvore e, nesse retorno, João já pegou um pedaço de madeira e
sentou-se. Não ficamos num círculo, ficamos numa espécie de um triângulo, comentamos no trajeto de
volta. Aproveitamos para relatar ao seu Francisco um pouco do motivo da nossa visita e que
gostaríamos de ouvi-lo a respeito da situação. Ele fez questão de iniciar dizendo que lamentava o
ocorrido, mas que não queria mais conversa com seu Raimundo, e o caracterizou como grosseiro, que
não tinha respeito pelas pessoas e que, por todos os anos que o conhecia, estava enganado a respeito do
mesmo. Continuou dizendo que foi procurado pelo “cara” – palavras dele –, para fazer o pico da
estrema dos lotes, e quando estavam tirando, percebeu que estava entrando no seu lote, então começou
a reclamar e pediu para ser refeito os trabalhos, e aí foi quando o seu Raimundo começou a gritar com
ele e dizer que estava certo e que nada ia ser refeito, a não ser que ele arcasse com todas as despesas, e
ele disse que jamais pagaria sozinho por algo que iria beneficiar os dois. Então a discursão foi ficando
mais feia e os filhos resolveram parar os trabalhos. Lembrou que as famílias sempre se deram muito
bem; inclusive, sempre pela manhã, ia até a casa do seu Raimundo tomar café com ele e jogar
conversa fora, e que pelos motivos relatados ia procurar a justiça, pois agora quem queria o pico dos
lotes era ele e queria em linha reta, pois o outro queria com curva e ele nunca tinha visto pico com
curvas.
Após ouvi-lo, começamos a argumentar como era bacana a amizade dos dois e que por causa
de um pico estava estremecida, situação essa que poderia ser resolvida com a presença de um
topógrafo para balizar o pico, conforme acordo dos dois, e que permitiria que superassem o ocorrido.
Nesse momento, seu Francisco disse que não queria conversa com aquele “cara”. Diante da situação e
após ter ouvido as duas versões, olhávamos um para outro e nos sentíamos no dever de fazer algo pela
amizade daqueles homens, uma convivência de mais de 30 anos não poderia terminar dessa forma.
Voltamos a argumentar novamente com seu Francisco e conseguimos convencê-lo pela fome
(risos), pois ele disse: “já vi que vocês não desistem e eu já estou com muita fome e tenho que voltar
pra casa, marquem essa conversa e me avisem que eu vou”. Aproveitamos o momento e já
programamos duas datas possíveis, pois nosso pensamento foi que, se não desse pro seu Raimundo em
uma, daria na outra – e foi o que aconteceu.
No retorno viemos conversando sobre como foi bom ouvi-los e perceber que, apesar das
mágoas e decepção, mesmo assim, eles conseguiram se lembrar de momentos bons. Chegando na casa
de seu Raimundo confirmamos a data e horário para encontro na sede do sindicato e fomos novamente
a casa do seu Francisco para confirmar o encontro. Retornamos para cidade satisfeitos, com a sensação
de que o dia havia sido produtivo e que Deus esteve presente o tempo todo.
No dia do círculo, conforme combinado, compareceram seu Francisco, Marcos, seu
Raimundo e Antônio. Quando chegaram, já tínhamos preparado o espaço para o círculo no auditório
do sindicato. Demos início agradecendo pela presença dos mesmos e de seus filhos, falamos o quanto
foi gratificante ouvi-los no dia em que os procuramos, conhecer mais um pouco de cada família e suas
histórias, e passamos o objeto da palavra para que eles pudessem nos dizer como estavam se sentindo
com o ocorrido. Era perceptível a expressão daquele que ouvia, como se fosse: eu fiz isso com ele? E
os dois disseram, em comum: “nunca imaginei ouvir o que ele me disse”. Depois de questionamentos e
respostas, perguntamos se estavam dispostos a resolver a situação. O círculo foi longo, nosso objetivo
era fazê-los entender que mais importante que resolver o problema do pico, era que eles pudessem
superar essa desavença – e todos nos ouviam com muita atenção. No final, perguntamos de que forma
224
poderíamos resolver a situação do pico. Seu Francisco pediu a palavra e disse: “por mim, nós coloca
nossos filhos pra resolver isso e o que eles resolverem está resolvido, pois não quero mais confusão;
depois de velho ficar brigando… Nunca meus filhos me viram brigando quando eu era novo e agora
essa situação”. Seu Raimundo também logo cuidou de falar: “eu concordo que meus filhos resolvam
isso, sei que eles só querem o meu bem. E da mesma forma os do Chico, eu nunca tinha tido confusão
com vizinho, não sou homem de briga”. Aproveitamos e perguntamos para Antônio e Marcos se
estavam dispostos, e os dois disseram que sim. Então firmamos o seguinte: a) que iriam contratar um
topógrafo para balizar o pico reto e a despesa seria paga por ambas as partes, b) que a limpeza ficava
por conta dos filhos de Raimundo e Francisco, e que quando não fosse possível para os filhos,
pagariam a diária para alguém substituir, c) com o pico pronto, iriam fazer cerca única com seis fios de
arame liso, e o custo com insumos e diárias seria pago pelas partes. Antônio e Marcos iam acordando e
confirmando com seus genitores que ficavam escutando e observando os dois. Nossa preocupação
continuou, tínhamos que tentar algo para que minimamente pudessem sair dali de uma forma mais
próxima. Então pedimos para que todos se cumprimentassem, para comemorar os encaminhamentos e
as vidas de seu Francisco e seu Raimundo, e pela confiança que demonstraram ter nos filhos. Ficamos
muito felizes com o desfecho desse círculo.
Fomos convidados a sermos facilitadores de um círculo por uma amiga que atua também com
a JR, a Elza. Segundo ela, precisava de ajuda pois não estava sabendo como lidar com a situação e
também porque conhecíamos muito bem as partes envolvidas. Já ficamos curiosos com o que poderia
ser, pois ela tem bastante experiência com mediação e círculos. Em seguida, disse que o problema era
entre o Manoel e o Joaquim, ambos moradores da comunidade Bela Vista. Manoel era um conhecido
nosso, tem mulher e filhos. O outro era Joaquim, também com mulher e filhos. Manoel aparentemente
tinha entre 40 e 45 anos, com um porte forte, moreno, agricultor; Joaquim tinha entre 50 e 55 anos,
baixo, de cor clara, porte franzino, também agricultor. Ambos ativos na vida comunitária, na igreja, no
time de futebol, na participação associativa e sindical.
Nos surgiu uma preocupação quando ela começou a relatar que o caso era complexo, pois
olhava pra nós e sorria, e não conseguíamos entender. Se era complexo, por que então ela sorria? Foi
então que nos contou que envolvia uma suposta traição. Ficamos perplexos, pois com seu Joaquim já
havíamos viajado, participado de encontros e reuniões juntos, e nunca vimos nada nesse sentido. Sua
esposa, D. Estela, das vezes que fomos na sua casa e em reuniões na comunidade, sempre foi muito
tranquila, atenciosa e não era de falar muito. O Manoel era brincalhão, gostava de contar piadas,
sorridente, mas também nunca vimos nada. Sua esposa, D. Ana, é muito falante, brava, dependendo da
situação, e tem muito cuidado com Manoel. Das vezes que fomos para reunião na comunidade e
estivemos em sua casa, sempre comentava alguma situação em que, segundo ela, seu marido estava
envolvido com mulheres.
O certo é que Manoel procurou D. Elza e relatou que estava com medo do seu Joaquim e –
segundo o mesmo –, estava se sentindo ameaçado de morte. No relato de Manoel, tudo começou
durante uma discussão com sua esposa, pois estava bêbado e falou que enquanto ela brigava com ele,
ele poderia estar com outra pessoa. Foi quando sua esposa começou a pressioná-lo para contar quem
era a mulher que ele poderia estar, e ele pedia para ela parar com a aquela conversa, mas ela continuou
insistindo, até que no calor da discussão, Manoel falou que era D. Estela.
Dona Ana não duvidou e foi direto para a casa da D. Estela. Nem esperou chegar na casa: da
225
estrada mesmo já começou a xingar, insultar e a chamava para brigar. Seu filho caçula, que foi junto,
tentava trazê-la de volta pra casa, mas sem sucesso – e D. Estela sem entender o que estava
acontecendo. Foi quando um de seus filhos foi tirar satisfação com Ana, que começou a xingar
novamente e falou que seu esposo e mãe do rapaz tinham um caso, e que ele acabara de contar para
ela. O rapaz a enfrentou dizendo que ela gostava de confusão, que ninguém gostava dela na
comunidade, nem o marido, e se fosse verdade o que ela estava dizendo, era pro marido dela se
preparar, porque ele iria pagar por isso. Nessa hora, D. Ana percebeu que a coisa ficou feia e não era
bem aquele o propósito dela. Seu Joaquim não estava em casa, não sabia do ocorrido, pois estava na
roça, já D. Estela só chorava e dizia ser mentira tudo o que foi dito. Quando seu Joaquim chegou e viu
a esposa chorando, quis logo saber o que tinha acontecido, e foi quando seu filho relatou o que
ocorreu. Foi um baque muito grande para seu Joaquim, pois tinha uma amizade de longos anos com
Manoel, isso tudo o deixou muito inquieto. No outro dia, seu filho foi na casa de Manoel, que negou
tudo e disse que era loucura de sua esposa, que tem muito ciúmes e que estava bêbado, nem lembrava
do que tinha dito – relato este feito pelo seu Joaquim no dia do círculo.
D. Elza nos informou que já havia mandado um convite para seu Joaquim vir falar com ela e
gostaria que aproveitássemos para dialogar logo com os dois, pois no seu ponto de vista, diante da
situação, não dava pra esperar, e que precisava que estivéssemos presentes, pois queria ficar somente
como uma observadora. Então topamos o desafio, mesmo sabendo que não seria fácil. Tínhamos
vínculo com ambos pelo trabalho comunitário e sindical em busca de políticas públicas e regularização
fundiária.
Quando chegamos, seu Joaquim já estava presente, então iniciamos um diálogo; logo depois
chegou Manoel e a esposa, e seu Joaquim perguntou por que eles estavam ali, pois ele conhecia a
metodologia do círculo e ele não sabia que ia se encontrar com aqueles dois. Pedimos desculpas e
falamos que ele não era obrigado a conversar com eles, que jamais faríamos isso, mas diante do que
haviam nos contado, ficamos preocupados com eles e achamos que talvez não tivéssemos tempo para
fazer o pré-círculo. Seu Joaquim ficou pensativo, penso eu que se sentiu traído por nós, mas de fato a
nossa preocupação era para não acontecer o pior. Então nos olhou e disse: “vamos acabar logo com
isso, quero ver o que eles tem pra me dizer”. Chamamos D. Elza, que tinha ido ao encontro do Manoel,
e D Ana, para não deixar eles se aproximarem de onde estávamos com seu Joaquim. Ela se aproximou
e falamos sobre a insatisfação e decisão do seu Joaquim. Então perguntamos ao seu Joaquim se estava
preparado e se podíamos iniciar, ele deu sinal de positivo com a cabeça. Foi um diálogo difícil e
constrangedor por conta do assunto em questão. Manoel com o objeto da palavra pediu desculpas ao
seu Joaquim e afirmou que nunca teve nada com a esposa do mesmo. D. Ana disse que estava
envergonhada e só fez o que fez porque ficou com muita raiva ao ouvir o que seu marido falou e que
depois ficou com medo por entender que colocou risco à vida do marido, dos filhos, do seu Joaquim e
de seus filhos; que naquele momento ficou cega de ódio e ciúmes e que precisava fazer alguma coisa,
mas que estava arrependida e tendo que tratar disso com o pessoal do sindicato. Seu Joaquim, por sua
vez, disse que se não fosse um homem temente a Deus teria feito uma besteira diante do ocorrido, e
que desde aquele dia não queria mais amizade com o Manoel e sua família, que não lhe dirigissem a
palavra. E nós lá, meios bobos, pois a situação era nova para nós. D. Ana fazendo uso da palavra disse
que o culpado de tudo era Manoel por ter falado o que falou. Manoel, numa fala infeliz, disse que ele e
D. Estela não chegaram a ficar juntos, apenas tinham marcado um encontro na cidade, mas que não
deu certo. Nesse momento sua esposa tentou dar-lhe um tapa na cara, e tivemos que pedir para Manoel
trocar de lugar com D. Elza para conter a situação. Dona Ana, por sua vez, chamou o marido de
safado, covarde e que nunca a respeitou, e começou a chorar. Seu Joaquim lamentou a situação e a
226
ausência da sua esposa, pois como ela não estava, não poderia se defender, mas que, como marido,
afirmava que acreditava na esposa com quem já vivia há quase 30 anos, e garantiu que nunca o traiu e
que tudo que Manoel falou à esposa era mentira e que não iria se separar dela, pois a conhecia e ela
nunca havia lhe dado motivo para duvidar. E voltou a afirmar que teria contato com Manoel porque
moravam e frequentavam a mesma comunidade, mas que a amizade que tinham havia acabado e que
ele parasse de difamar a imagem da sua esposa pois, se continuasse, apesar de ser um homem temente
a Deus, não saberia o quanto suportaria.
Tentamos, pelo menos como facilitadores, argumentar: por respeito às famílias, que se
encontram na comunidade – no time – e por respeito principalmente à vida, pois uma situação como
esta fortalece determinados relacionamentos, mas também pode fragilizar. Naquele momento, foi o
melhor que pudemos fazer. Saímos desse círculo com o compromisso de conversar com D. Estela,
conversa esta que realizamos no fim se semana. Foi produtiva, mas era visível sua indignação e revolta
com tudo que aconteceu; conseguimos convencê-la de não se afastar da comunidade e continuar
assumindo suas funções. Que Manoel e D. Ana não falariam mais sobre esse assunto com ninguém e
que seu Joaquim e Manoel fariam um esforço para manter pelo menos uma convivência comunitária
respeitosa, no sentido de se cumprimentarem ao se encontrarem.
Quando saíram, nos olhamos e falamos: “que situação”.
Fomos procurados pelo seu Sebastião, agricultor já aposentado que, por conta do problema de
saúde da sua esposa, dona Creuza, resolveu vender o lote onde morou por décadas e onde criou os
filhos, para morar na cidade e garantir certo conforto para a mulher. D. Creuza tem pressão alta,
diabetes e dificuldade de respirar, e isso deixa seu Sebastião muito preocupado, pois os dois já viviam
sozinhos e a idade já não lhe permitia fazer determinadas coisas. Cicero, irmão de seu Sebastião, nunca
constituiu família, e quando a mãe era viva sempre procurou ajudá-lo, mas nunca se interessou em
conseguir as coisas, sempre gostou de festas. Após o falecimento da genitora, os filhos resolveram
vender o pouco patrimônio e dividiram entre si. A questão foi que Cicero pegou a parte que lhe
pertencia e esbanjou em festas e bebidas – até hoje ele gosta de beber. Com o término do dinheiro, os
amigos de Cicero já não o tratavam como antes, ele chegou a passar fome e não ter onde dormir.
Vendo o irmão naquela situação, seu Sebastião ficou penalizado e o convidou para morar com ele e o
avisou que teria que abandonar a bebida, e Cicero aceitou. Passadas algumas semanas, já começou a
beber novamente, chegar tarde da noite, fazendo barulho e falando palavrões, perturbando a
tranquilidade de quem tinha passado o dia na lida no sol quente. Como seu Sebastião tinha filhos
adolescentes em casa, chamou a atenção de seu irmão e disse que iria construir uma casinha pra ele;
fez esforço e conseguiu construir um quarto e cozinha no seu próprio terreno, e o irmão pagaria o
investimento com trabalho, coisa que nunca ocorreu. Mas seu Sebastião também não cobrava, e apesar
das queixas da esposa, seu irmão permaneceu ali morando e produzindo culturas temporárias. Com o
passar dos anos, os filhos do seu Sebastião foram constituindo suas próprias famílias e saindo de casa,
inclusive há filhos morando fora do país. Seu Sebastião, preocupado com a esposa, resolveu vender
sua propriedade, mas estava tendo problemas, pois ao informar a Cicero, ele disse que não sairia do
terreno, só sairia se fosse indenizado pela casa e pela roça que havia plantando há cerca de três meses.
Diante dos fatos, seu Sebastião foi orientado a procurar o sindicato, pois tinha pedido prazo
de 60 dias para entregar a propriedade, dado prazo de 30 dias para o pagamento, e na próxima semana
já iria receber – estava tudo certo. Seu genro, que estava cuidando das papeladas, nos contou que o
irmão bêbado foi até a sua casa armado de um facão para ameaçá-lo por conta da venda da
propriedade. Dona Creuza implorou muito ao seu Sebastião para não sair para enfrentá-lo. Veio
229
acompanhado da sua filha que mora na cidade, Marcela, que estava preocupada com a situação e
começou a lacrimejar, dizendo que o Cicero estava fazendo uma injustiça com seu pai que o ajudou a
vida inteira. Então nos comprometemos em ir dialogar com seu Cicero e ouvi-lo. Seu Sebastião nos
orientou a ir um dia de semana para tentar a sorte e não encontrá-lo bêbado. Seguimos a orientação, ele
não estava bêbado, mas com bastante ressaca. Chegamos à casa e nos apresentamos, ele disse que
conhecia a gente através do rádio pois escutava o programa do sindicato, mas não nos conhecia
pessoalmente. Com essa deixa, iniciamos a conversa, e após um tempo falamos do motivo da nossa
visita e ele logo foi bem claro em dizer: “eu só saio daqui se ele me pagar, caso contrário, vai ter que
vender comigo dentro”. Percebemos que não seria fácil, tentamos argumentar sobre a importância da
convivência da família, da gratidão e o quanto precisamos das pessoas, mas ele era irredutível. “Não
saio, vocês estão perdendo tempo, ele precisa me dar uma ponta pra eu poder comprar um terreno lá na
vila, se não vou ficar na rua”. Ao percebermos que não íamos avançar, nos despedimos e agradecemos
pela atenção. Cicero era moreno, forte, aparência de pessoa mal-humorada, que nunca estava satisfeito
com nada; parecia estar sempre bravo, pessoa de poucos amigos, pelo visto. Retornamos à casa de seu
Sebastião e comunicamos como foi a conversa, então ele baixou a cabeça, ficou pensativo, e passamos
uns minutos calados; ao levantar a cabeça, vi dona Creuza chorando. Eu, Mara, não consigo ver
alguém chorar e não fazer o mesmo. João, percebendo a situação, falou que talvez, se sentássemos
todos juntos, poderíamos encontrar uma alternativa viável; foi quando seu Sebastião levantou a cabeça
e disse: “se ele topar sentar e se vocês estiverem presentes, eu topo. Pois só com ele e eu não vai dar
em nada”. Então retornamos à casa do Cicero e perguntamos se estava disposto a participar do círculo,
e tivemos resposta positiva.
No dia do círculo, Marcela veio acompanhando o pai. Iniciamos falando de amor e o que
éramos capazes de fazer e suportar. Foi bem tenso o diálogo, pois seu Cicero se manifestava sempre
com tom agressivo, falando alto, sem respeitar o direito de fala, querendo intimidar; em determinado
momento, tivemos que ser firmes como facilitadores para fazê-lo ouvir também. Seu Sebastião e
Marcela pediram que ele reconsiderasse, pois já tinham o ajudado muito e o dinheiro da venda do
terreno compraria a casa na cidade e ajudaria no tratamento de dona Creuza, mas Cicero se mantinha
irredutível, queria dinheiro para poder sair. Houve um tempo de silêncio, os argumentos tinham se
esgotado. O silêncio era enorme na sala, então seu Sebastião, com lágrimas nos olhos, disse: “tudo
bem, vou pagar pra ti sair do que é meu, mesmo sendo injusto, porque todos esses anos tu morou e
plantou e eu nunca te pedi nada. Eu tenho Deus pra me ajudar”. Marcela a essa altura estava aos
prantos, pois segundo ela, nunca tinha visto seu pai chorar, e nós como facilitadores também nos
emocionamos e não conseguimos segurar as lagrimas, não foi fácil segurar a emoção ao ver um
homem daquela idade com lágrimas rolando pelo seu rosto. Cicero o olhava com ar rizo! Nos
recompusemos enquanto facilitadores e demos continuidade, passamos o objeto da palavra a seu
Sebastião que perguntou quanto Cicero queria pra sair. Cicero sorriu e pediu R$ 10.000,00, mas seu
Sebastião disse que era muito e que estava disposto a lhe dar a metade, Cicero disse que aceitava desde
que pudesse desmanchar da casa. Seu Sebastião concordou, mas ia ficar com a roça que ainda estava
pequena. Enquanto se encaminhava esse acordo, Marcela chorava; seu pai a olhou ainda com o rosto
molhado pelas lágrimas e pediu que parasse de chorar. Perguntamos quando seria possível esse
pagamento e seu Sebastião disse que ia ligar para seu genro, marido de Marcela, para ver se ele tinha
para lhe emprestar; caso tivesse, faria o pagamento agora mesmo na nossa frente. Marcela ligou
soluçando para o marido que confirmou o empréstimo. Enquanto o genro vinha trazer o dinheiro,
acordamos o prazo de 15 dias para seu Cicero deixar o local onde morou por aproximadamente 30
anos. Chegando, o marido de Marcela repassou os R$ 5.000,00 para Cicero, e fizemos, além do termo
230
de acordo, um recibo de pagamento.
Para nossa surpresa, passados uns 20 dias, seu Sebastião apareceu no sindicato para nos
comunicar que Cicero não tinha cumprido o prazo para sair, e o prazo para entrega do terreno
se aproximava, então nos comprometemos a ir no outro dia falar com ele. Saímos cedo da cidade,
e quando seu Cicero nos viu, perguntou se tínhamos ido tirá-lo à força, e falamos que jamais
faríamos isso, no círculo, em que ele participou diretamente. Perguntamos sobre o
descumprimento do acordo e ele disse que ia sair; dialogamos sobre a importância de ele
cumprir o acordo e ele nos colocou à prova, dizendo: “saio até agora, se vocês levarem minhas
coisas até a vila, já arrumei um barraco lá pra ficar”. Olhamos um para o outro, pedimos um
tempo para conversarmos, entramos no carro e decidimos que não iríamos perder a chance dele
cumprir o que havia sido acordado – além do mais, a vila ficava a apenas 10 km de onde
estávamos. Foram duas viagens, não tinha muita coisa. Na primeira viagem paramos na casa do
seu Sebastião para contar sobre o ocorrido, ele sorriu e disse: “quer dizer que vocês ainda vão
trabalhar pra ele? Vou dar um jeito numa comida pra vocês, venham almoçar aqui”. Após a
mudança, retornamos para almoçar com seu Sebastião e dona Creuza, foi um almoço prazeroso.
231
Considerações finais
Fazer esse trabalho entre os trabalhadores nos proporciona momentos de angústia, receio,
admiração, mas também muita satisfação. Nos dá a oportunidade de conhecer de fato as pessoas
envolvidas, poder ouvi-las sobre o que sentem e o que estão vivendo. Ver a satisfação em poder
compartilhar fatos vivenciados por eles faz de nós pessoas privilegiadas, onde nos dão a oportunidade
de fazê-los compreender que o outro ser humano nunca é e nem deve ser um problema para o outro, e
se quisermos resolver um conflito, devemos focar no problema e não na pessoa. Podemos dizer que
ajudamos a salvar vidas. Ter a oportunidade, de certa forma, de contribuir para que as coisas se
resolvam, mesmo quando parece que não vai ter solução; lidar com esses conflitos que envolvem
trabalhadores é uma coisa, pois é uma divergência de interesses entre pessoas que têm uma ligação;
outra realidade bem diferente é lidar com conflitos entre trabalhadores, pessoas ou empresas, que
muitas das vezes nunca viram e nem ouviram falar, mas que querem expulsá-los de seus territórios e
acabar com comunidades inteiras, onde existe toda uma história de vida e organização. Que sejamos
instrumentos de construção de diálogos de paz, e assim possamos garantir a vida e boa convivência
com respeito mútuo, apesar das nossas diferenças e interesses.
Seu Raimundo comprou o carro igual ao do sindicato e ficou todo alegre porque teve um bom desconto por ter
sido indicado pelo sindicato. Quando foi buscar o carro, fez questão de ir nos mostrar, era só alegria.
232
PRÁTICAS DE CULTURA DE PAZ E JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SALA
DE AULA: A CONSTRUÇÃO DE NOVOS CAMINHOS
Samuel de Jesus Pereira1
Andrea Arruda Paula2
Introdução
Não se lê criticamente, como se fazê-lo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria por
atacado (FREIRE, 1996, p. 27).
A educação é transformadora por excelência, visto pelo saber acumulado e a sua difusão em
uma relação pedagógica que se estabelece entre educadores(as) e educandos(as), construída em uma
perspectiva histórica de acontecimentos que não são estanques e que em muitos momentos são em
passos aligeirados, no entanto, para que de fato aconteça, requer a busca da transformação dos sujeitos
em agentes políticos para pensar e transformar a realidade perversa, cruel e excludente que os rodeiam.
Afinal, ensinar “não se esgota no ‘tratamento’ do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se
alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível” (FREIRE, 1996, p. 26).
Nessa perspectiva, ancoramos nossos fazeres em uma educação transformadora/
transgressora, insurgente, emancipatória e contra-hegemônica, uma educação que se faz com gente,
jamais antidialógica. Então:
A educação só pode ser transformadora nessa luta surda, no cotidiano, na lenta tarefa de
transformação da ideologia na guerrilha ideológica [...]. Porque ela pode ser transformadora?
Porque o trabalho educativo é essencialmente político e é político que é transformador
(GADOTTI, 1983, p. 162-163).
A unidade escolar e a sala de aula configuram-se como lócus dessa construção sem
necessidade de reforçar ou reproduzir sistemas, exclusão, segregação ou dominação de corpos e
mentes; isto significa que “é essencial que professores e estudantes tenham tempo para conhecerem
uns aos outros, esse processo pode começar com simplesmente ouvir a voz de cada pessoa quando ela
se apresenta” (hooks3, 2020, p. 48).
As diversas vozes precisam de reconhecimento; perceber a existência do “outro”, suas
1
Mestrando em Educação no FORMEP (Programa Formação de Formadores) na PUC-SP, Pedagogo, Arte educador com
Licenciatura em Artes Visuais. Membro do GEPEI (Grupo de Pesquisa em Educação Integral- PUC-SP). Professor da Rede
Pública Municipal de Ensino de São Paulo e Membro fundador do Núcleo de Cultura de Paz e Práticas Restaurativas
Nelson Mandela.
2
Psicóloga com especialização em Ciências Humanas e suas Tecnologias pela Universidade Estadual de
Campinas/UNICAMP. Atuou como professora e gestora da Rede Pública Estadual de São Paulo por mais de 15 anos.
Possui experiência como professora de ensino superior na área de Psicologia Social. Coordenou e atuou como psicóloga e
educadora em projetos com adolescente em medida socioeducativa. Desde 2009 trabalha e pesquisa questões ligadas ao
Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes, Gênero, Sexualidade e Justiça Restaurativa. Mediadora de
conflitos, facilitadora de processos circulares. Cofundadora do Núcleo de Cultura de Paz e Práticas Restaurativas Nelson
Mandela.
3
bell hooks, pseudônimo de Glória Jean Watkins, é uma das mais importantes intelectuais feministas da atualidade; grafa
seu nome com letra minúscula como um posicionamento político que buscar romper com as convenções linguísticas da
academia.
233
limitações, a tolerância com aqueles que não partilham das mesmas ideias, o sentimento de pertencer
ao território onde se insere; então, é crucial que no espaço escolar o respeito seja a condição
imprescindível, para que cada sujeito exercite, na coletividade, a sua individualidade, pois:
4
As primeiras investigações concernentes à construção da sala de aula como um espaço seguro de fala e escuta iniciou-se
em 2015 no Curso PROVE - Programa de Valorização a Vida com Andrea Arruda Paula e Dennysde Souza. Disponível
em: https://drive.google.com/file/d/1jobhBM7CMGASc_xqCRYNK1IFz_91qZLc/view. Acesso em 30/06/2021. Em 2017,
como desdobramentos das nossas reflexões junto ao Núcleo Nelson Mandela, ofertamos o minicurso "Práticas
Restaurativas em Sala de Aula: uma experiência teórica e prática", curso ministrado no âmbito do VI Congresso Brasileiro
de Educação - (CBE) na UNESP/Campus Bauru; já no II semestre de 2019, no 18º Encontro USP-Escola na FE-USP,
ofertamos o curso de extensão: “Cultura de Paz e Práticas Restaurativas em sala de aula: Construindo espaços seguros de
fala e escuta”. In: https://uspdigital.usp.br/apolo/apoObterAtividade?cod_oferecimentoatv=90615.
234
conectamos com a responsabilidade. Confiar significa acreditar na própria habilidade e na de
outra pessoa para cuidar, para se estar atento ao bem-estar um do outro. Ao optar por confiar,
por estar atento, é necessário pensar com cuidado sobre o que falamos, também levando em
consideração o impacto de nossas palavras sobre colegas que nos escutam.
À vista disso, em 2015 ingressei na Rede Pública Municipal de Ensino de São Paulo5 e
comecei uma nova trajetória em minha carreira docente; tenho sob minha atribuição uma turma do 5º
ano do Ensino Fundamental II. Junto à coordenação pedagógica e grupo de educandos e educandas,
planejamos e executamos as atividades norteadas pelos princípios da Justiça Restaurativa e Cultura de
Paz, isto é:
Uma Cultura de paz que vise o aprendizado contínuo com novas tecnologias sociais para o
gerenciamento e a resolução transformativa dos conflitos dentro de um prisma respeitoso e em
permanente diálogo, não compactuando com atitudes desprezíveis, insultos que venham causar
danos e que afetam negativamente a honra ou a dignidade humana; considerando a paz como
ausência de todo tipo de violência seja direta e estrutural, que se efetive com justiça social e
das condições indispensáveis para que ela exista (PEREIRA, 2018, p. 3).
1. “Essa ciranda não é minha só, é de todos nós”: Circularidade e materialidade em uma
educação libertadora6
Inspirados nos movimentos fluentes das cirandas, no deslocamento dos corpos entre
5
Meu ingresso no Magistério se deu em 1995, desde então minha passagem pela educação como docente também se deu
no Ensino Médio e Ensino Superior, além da atuação nos espaços de educação não formal.
6
Lia de Itamaracá e o movimento das cirandas inspira-me na escrita desse item.
235
corredores, pátios, refeitórios, salas de aulas – movimentos esses que, a maioria das vezes, são
controlados, vigiados ou cerceados –, buscamos, com essas práticas, não reproduzir modelos
padronizados e sim fazer uma leitura, análise e reinterpretação, incorporando os saberes construídos a
partir das nossas ações nos reconhecendo como professores/as pesquisador/as reflexivos, que “reflete
sobre a sua prática, que pensa e elabora em cima dessa prática [...]” (NÓVOA, 2001, p. 3).
É sabido que para dançar ciranda “juntamos mão com mão”, assim, nossa conversa sobre
possibilidades de construção de um “espaço seguro de fala e escuta” se dá no início do bimestre.
Apresentamos as possibilidades, dilemas, percursos, desafios em se pensar algo nessa perspectiva.
Objetivamos abordar as possibilidades para efetivação de uma prática educativa pautada na perspectiva
da Cultura de Paz e conectada às Práticas Restaurativas, para uma transformação humana dos sujeitos
envolvidos nesses espaços, principalmente a sala de aula em epígrafe. A intenção é contribuir, ainda,
para uma formação mais ética, cidadã e humana, além do trabalho preventivo de reafirmação das
relações, visando desnaturalizar as situações de violências que ocorrem cotidianamente, melhorar as
relações interpessoais e a busca do diálogo entre todos e todas, como uma prática contínua para
formação de uma sociedade mais justa, humana e equânime; assim, juntarmos essas mãos e dançarmos
plenamente essa ciranda que queremos.
Pranis (2010) expressa que os círculos se valem de uma estrutura para criar possibilidades de
liberdade: liberdade para expressar a verdade pessoal, para deixar de lado as máscaras, além disso, a
sabedoria que surge a partir das histórias e as experiências vividas são mais importantes que os
conselhos (PRANIS, 2010, p. 28).
Para “formar essa roda e cantar uma canção” precisamos estar disponíveis, abrir mão de nossa
vaidade, títulos ou cargos importantes, conquanto não podemos esquecer de convidar os/as demais
envolvidos, pois faremos isso de modo coletivo com coordenadores, diretores, gestores, secretarias de
educação e governantes, ações intersetoriais, um exercício de negociação, uma horizontalidade de
saberes “pra se dançar ciranda”.
Evocando os saberes do mestre Paulo Freire para esse entrelaçar das mãos, lembremos que
“no Círculo de Cultura, o diálogo deixa de ser uma simples metodologia ou uma técnica de ação grupal
e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é
aprender a dizer a sua palavra” (BRANDÃO, 2017, p. 69).
Como seres de palavras, a pergunta da cirandeira reverbera no ar: “A melodia principal quem
guia / É a primeira voz, é a primeira voz”. Nesse processo o facilitador, o professor, guardião ou
mediador desse círculo, facilitará de maneira horizontal – cujos saberes são compartilhados –, cada
cultura valorizada e reconhecida, histórias que caibam em suas pluralidades e humanidades, pois
“existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá- lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se
volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (FREIRE, 2005, p.
90). Uma pronúncia, uma voz, que não deve ser privilégio de alguns e sim para todos e todas – uma
práxis que seja radical e transformadora da realidade perversa e cruel.
2. Ouvindo seus não ditos pela escuta sensível: o encontro com seres humanos que produzem e
reproduzem violências
Estar disponível para uma conversa difícil, mesmo sem termos certeza de qual será seu
resultado, e além de tudo, encontrar maneiras de compreender e respeitar nossas diferenças, reconhecer
a valiosa contribuição de cada pessoa, para criar um espaço comum qualitativamente diferenciado para
236
abrir canal para “ouvir o não dito por uma escuta sensível”, que, nas palavras de Morin (2011), lembra-
nos que:
São essas crianças e adolescentes que habitam o universo escolar, e acompanhá-los faz parte
de nossas atribuições, seja acompanhando para que o sujeito se aproprie dos códigos linguísticos
necessários à leitura convencional ou à apresentação dos elementos necessários, para que ele faça uma
leitura do mundo, crítica e insubmissa.
E é nessa toada que vivenciamos a experiência narrada: com o espaço da sala configurado de
maneira geométrica “circular” em uma manhã, conversando com o grupo sobre assuntos do
componente curricular de ciências naturais, vejo um educando, G.R.7, usando um corretor líquido
(branquinho), cuja embalagem era “cor de rosa”; diante disso, o aluno G.F.8 o provoca. A partir desse
evento, foi necessário interromper a aula para fazermos uma mediação, no entanto, a classe trouxe que
G.R. vinha sofrendo com atitudes preconceituosas e homofóbicas desde os anos anteriores.
Iniciamos o círculo relembrando os combinados, os valores que seriam ainda mais
importantes para o momento. O grupo traz a igualdade, segurança, confiança, responsabilidade,
participação, conexão, entre outros. Relembramos, ainda, o uso do bastão de fala para regulação do
diálogo; “Pode nos contar o que aconteceu?” foi a pergunta disparadora para a conversa. Começamos
a ouvir um a um da classe e o aluno ofendido foi o primeiro a ser ouvido, abrindo espaço para que o
mesmo pudesse expressar a sua dor e seus sentimentos quanto ao ocorrido.
G.R. trouxe a queixa de que, em diversos momentos, sofre com xingamentos por parte dos
meninos e algumas meninas. Desde o momento que chegou à unidade escolar sofre ofensas e insultos,
palavras tais como “viadinho” e “bichinha” são uma constante.
Faço a intervenção solicitando que o mesmo nomeie o que sente ou como se sente. G.R.,
muito emocionado, repete a fala anterior, cita os nomes dos colegas da sala e ressalta que apenas três
(03) meninos e duas (02) meninas não o agridem; também cita aproximadamente um grupo
significativo de meninas que o acolhe e responde que “se sente muito mal com tudo que acontece”.
Após esse momento, passamos o bastão de fala para que os alunos fizessem uso do mesmo e
expressassem seus sentimentos.
Visivelmente muito emocionados, alguns meninos se solidarizam e pedem desculpas. G.F., ao
falar, não consegue reconhecer o dano que causou à vítima, continua se desculpando, dizendo que fez
isso algumas vezes e como uma brincadeira. O grupo tenta contradizê-lo. Intervenho no diálogo e o
aluno conclui com um pedido de desculpas.
As atividades foram interrompidas, pois os alunos teriam aula de informática.
Informo-lhes que retornaríamos no dia seguinte.
7
Chamaremos de G.R. o nome do educando, vítima de homofobia.
8
Chamaremos de G.F. o educando envolvido na situação de perpetração da expressão homofóbica.
237
Continuamos o Círculo com uma “Cerimônia de abertura9” para marcar esse momento como
espaço sagrado no qual os participantes se colocam diante de si mesmos e dos outros com uma
qualidade de presença distinta dos encontros corriqueiros do dia a dia. No centro, diversas palavras
escritas em filipetas de papel (ódio, amor, paz, esperança, vida, outro, natureza etc.) sobre um tecido
colorido, “peça de centro”10. Um a um, os alunos retiravam uma palavra e expressavam o seu
significado a partir das suas impressões e entendimentos.
Após a cerimônia, iniciamos a conversa com a pergunta: “Como você está após ouvir e ver o
que aconteceu ontem aqui na classe? Dormiu bem?”.
Os/as educandas visivelmente silenciados e emocionados começaram a fazer uso do bastão de
fala e diziam que “não conseguiam imaginar a dor do G.R. durante todo esse tempo em que o mesmo
vinha sendo humilhado”.
O educando A.M. emocionou-se muito ao falar do quanto sofreu pelo fato de ter colocado um
tênis com um detalhe cor de rosa e alguns colegas da sua vizinhança começaram a hostilizá-lo. A.M,
muito emocionado, foi acolhido pelo grupo.
Já o educando R.B. verbalizou “que foi até o armário do pai verificar se ele tinha alguma peça
de roupa cor de rosa e perguntou qual era a sua opinião sobre o uso de objetos dessa cor por homens, e
o pai lhe dissera que isso não era problema e que o preconceito, sim, era muito ruim”. Guacira Lopes
Louro lembra que:
Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros- feminino ou masculino- nos
corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas
dessa cultura. As possibilidades da sexualidade –das formas de expressar os desejos prazeres-
também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e
sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes
de poder de uma sociedade. (LOURO, 2015, p. 11).
Assim, essas identidades se definem nas relações sociais, suas pluralidades, hibridismos e
multiplicidades de corpos que precisam de reconhecimento e visibilidade, elementos que a escola se
nega a reconhecer.
O educando G.F., ao fazer uso do “bastão de fala”, disse que não tinha dormido bem, pois
havia pedido perdão ao G.R. e o mesmo não havia aceitado. Explico-lhe que aceitar seu perdão é uma
condição e escolha, que o G.R. decidirá qual será o momento certo, momento esse que precisa ser
respeitado e, independentemente disso, não devemos maltratá-lo ou humilhá-lo. Ou seja:
Nessa medida, o perdão deve primeiro ter-se encontrado com o imperdoável, ou seja, com a
dívida infinita, o dano irreparável. Dito isto, apesar de não devido, ele não deixa de ter
finalidade. E essa finalidade tem relação com a memória. O perdão é uma espécie de cura da
memória, o acabamento de seu luto; liberta do peso da dívida, a memória fica liberada para
grandes projetos. O perdão dá futuro à memória (RICOEUR, 2008, p. 196).
9
“Cerimônia de abertura e fechamento marcam o tempo e o espaço do círculo como um lugar à parte. O círculo é um
espaço distinto porque convida seus integrantes a entrarem em contato com o valor de estar profundamente ligados entre si,
incentivando as pessoas a deixarem cair as máscaras e defesas que normalmente usam e que criam uma distância em
relação aos outros. As cerimônias de aberturas ajudam os participantes a “mudarem a marcha”, a passar do ritmo e tom da
vida comum ao ritmo e tom próprio do círculo. (PRANIS, Kay, 2010, p. 49)
10
Para melhor compreensão dos elementos-chaves dos Círculos, ver: PRANIS, Kay, 2010, p. 49-63.
238
O educando K.D. trouxe em sua fala que não conseguiu esquecer o Círculo anterior e que não
tinha ideia de quanta dor eles causaram ao G.R. Um momento muito marcante foi quando o mesmo,
muito emocionado, levantou-se do Círculo e foi até o educando G.R. e o abraçou, pedindo-lhe
desculpas. Era visível o quanto esse momento era importante para que fosse construído nessa classe
um lugar seguro e acolhedor. Todos muitos emocionados se abraçaram e se acolheram.
É desafiador a construção de processos democráticos em sala de aula, no entanto, as práticas
restaurativas permitem evidenciar as formas mais sutis de violência que reverberam em nossos
relacionamentos, fragilizando os laços sociais e fragmentando comunidades.
Para a finalização desse encontro, fomos ao intervalo juntos e destacamos que não havia
motivos para correria, e sim para refletirmos o nosso cotidiano. Realmente foi um momento
inesquecível.
Após o retorno do intervalo, reiniciamos com a pergunta: “o que precisa ser feito para as
coisas ficarem bem”?
E, assim, alguns alunos(as) expressaram seus pedidos de desculpas ao aluno G.R. e se
comprometeram a zelar pela boa convivência na sala de aula e em outros espaços da escola, e também
fazer intervenções, se porventura vissem outros alunos ou alunas cometerem atitudes desrespeitosas
com o G.R. Muito comovidos e cheios de fortes emoções, se abraçaram mutuamente.
Encerramos o círculo pedindo aos alunos que expressassem em uma palavra ou frase curta
qual foi o significado do encontro para eles.
Alguns objetivos do Círculo de Construção de Paz é criar o senso de comunidade, aprender a
lidar com as diferenças na prática e transformar conflitos. Nossa vivência só confirma essa potência,
pois a partir de então, em nossa sala de aula, não houve problemas dessa natureza e o educando foi
aceito e acolhido com sua singularidade, podendo fazer parte do cotidiano escolar.
A cada bimestre fazíamos nosso encontro cuja finalidade era avaliar o percurso conduzido
pelo grupo. Novamente, o coletivo se reunia com essa intencionalidade avaliando como foi o processo
de apropriação do conhecimento, a contribuição da sala, o papel do professor e a contribuição
individual de cada aluno(a) como protagonistas de suas ações. Convidando e propondo novas
reinvenções da sala de aula, não como um espaço hermético, hierárquico e disciplinador, mas sim
buscando práticas pedagógicas que compreendessem a diversidade e as diferenças entre os sujeitos e
suas singularidades como forma de reinvenção do espaço escolar. Buscamos práticas que questionem o
etnocentrismo, os processos de colonização e as relações de poder e dominação existentes na sociedade
e nas instituições educacionais, bem como favoreçam as relações participativas e coerentes entre o
ambiente escolar e os sujeitos sociais que nela convivem, possibilitando a reflexão e a busca da
desconstrução e desnaturalização das desigualdades (SME/COPED, 2016, p. 28).
Durante o ano letivo, pudemos perceber o quanto o grupo cresceu, pois o modelo tem sua
estrutura pensada para que todos sejam participantes do trabalho. As famílias tinham ciência de como a
sala se organizava, a equipe pedagógica da unidade acompanhava as ações e seus desdobramentos, e
alguns integrantes da unidade também tinham conhecimento das práticas desenvolvidas na sala do 5º
ano.
Ensinar é um ato teatral. E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as
mudanças, a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras para
239
evidenciar os aspectos únicos de cada turma. Para abraçar o aspecto teatral do ensino, temos de
interagir com a ‘plateia’, de pensar na questão da reciprocidade. Os professores não são atores
no sentido tradicional do termo, pois nosso trabalho não é um espetáculo. Por outro lado, esse
trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais, a
se tornar partes ativas no aprendizado (hooks, 2013, p. 21-22).
240
Sou o inexato11.
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MyCxOF1bWcg. Acesso em 30/06/2021
241
Referências Bibliográficas
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos.
1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos- direitos-humanos.
Acesso em: 26 de julho de 2021.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Círculo de Cultura. In: STRECK, Danilo Redin; REDIN, Eucli-des;
ZITKOSKI, Jaime José (org.). Dicionário Paulo Freire. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017b, p.
80-82.
DAVIS, Fania. The little book of Race and Restorative Justice: Black Lives, Healing, and US
Social Transformation. Series: Little books of justice and peacebuilding. New York: Good Books,
2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 46. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
e Terra, 1996.
GADOTTI, Moacri. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. São Paulo. 9ª ed.
São Paulo: Cortez, 1995.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogia da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo
educado: pedagogia da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
hooks, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Trad. Bhuvi Libanio. São Paulo:
Elefante, 2020.
JARES, Xesús. Educar para a paz em tempos difíceis. São Paulo: Palas Athena, 2007.
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não violência. Tradução de Inês Polegato. São Paulo: Palas
Atena, 2007.
MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília,
DF; UNESCO, 2011.
PRANIS, Kay. Processos Circulares. São Paulo: Palas Athena, 2010. RICOEUR, Paul. O Justo. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
SME/COPED. Diálogos interdisciplinares a caminho da autoria: elementos conceituais
para a construção dos direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar: Secretaria Municipal de
educação. Coordenadoria Pedagógica. Divisão de Ensino Fundamental e Médio. São Paulo, 2016
243
JUSTIÇA RESTAURATIVA NA EDUCAÇÃO: O RETORNO DOS QUE NÃO FORAM
Gabriel Rodrigues1
Minha infância se inicia em um núcleo familiar composto, para além dos meus pais, por dois
irmãos mais velhos. Assim, tive um contato direto com duas crianças mais velhas, o que acredito ter
sido de grande ajuda no meu processo de descoberta do mundo, de mim mesmo e no meu processo de
socialização, afinal, foi meu primeiro espaço de convivência.
Muito cedo, com dois anos, isso começou a se transformar, pois saía do meu quintal – até
então, meu mundo – e iniciava meu processo de escolarização, sendo essa primeira experiência no
jardim de infância, como era denominada na época a pré-escola. Tornei-me aluno do maternal da
instituição denominada Jardim de Infância Branca de Neve, localizada na região de Venda Nova, em
Belo Horizonte, instituição que contava com 4 salas e no máximo 60 alunos.
É comum o relato de crianças que sofrem com esse primeiro contato com a “escola”, com a
transição do espaço particular de sua casa para um ambiente comum, para uma nova comunidade: a
comunidade escolar. Porém, esse não foi o meu caso, sendo que, segundo minha mãe, eu chorava
pedindo para ir àquele local, onde haveria outras pessoas, outras crianças, outras atividades, outra
(con)vivência.
Logo após a pré-escola, me inseri no ambiente escolar de fato, iniciando meu ensino
fundamental na Escola Municipal Francisco Magalhães Gomes2, localizada na fronteira da região de
Venda Nova com a região norte de Belo Horizonte.
Essa experiência causou um grande impacto em mim, pois significou um brusco alargamento
do meu horizonte social, até então composto pelo meu quintal, minha família e as pessoas do jardim de
infância. Agora, ele se espalhava em uma grande escola com mais de 50 salas e mais de 700 alunos,
além dos educadores, em suas diversas funções.
O impacto do ensino fundamental logo foi superado pelo impacto de adentrar o ensino médio,
em uma escola localizada no centro da cidade, longe do meu bairro, composta por mais de 2.200
alunos. Assim foi quando iniciei e encerrei meu ensino médio na Escola Estadual Governador Milton
Campos - Estadual Central3.
Considerada uma ótima instituição de ensino público, o Estadual Central foi um choque em
relação ao meu aprendizado, mas principalmente em relação à minha socialização, afinal, uma escola
com mais de dois mil alunos situada no centro da cidade trouxe uma efervescência ao processo de
construção de minha identidade e individualidade, assim como expandiu vertiginosamente meu
horizonte social, uma vez que os alunos que compunham sua comunidade escolar vinham de
praticamente todos os bairros e regiões da cidade, e até de fora dela, revelando para mim a diversidade
de modos de ser e de (con)viver.
1
Facilitador e terapeuta, graduado em Direito e graduando em Pedagogia pela UFMG. Atuou como Facilitador e
Pesquisador de Práticas Restaurativas no Projeto Ciranda da UFMG. Facilitador de Justiça e Práticas Restaurativas,
Professor/Instrutor, com ênfase em Justiça Restaurativa e Comunicação Não Violenta e Tutor do Programa Nós. E-mail:
gamercindo1988@gmail.com
2
EMFMG - Escola Municipal Francisco Magalhães Gomes é uma instituição de ensino público localizada no município
brasileiro de Belo Horizonte, na rua do Mamoeiros, nº 85, no bairro Vila Cloris.
3
3A Escola Estadual Governador Milton Campos, conhecida como Colégio Estadual Central, é uma instituição de ensino
público localizada no município brasileiro de Belo Horizonte, na Rua Felipe dos Santos, nº 245, no bairro de Lourdes.
244
Em um caminho não linear, depois de complementar o meu aprendizado em um cursinho pré-
vestibular, adentrei a Universidade Federal de Minas Gerais cursando Direito, novamente uma
expansão em minha socialização, pois apesar da FDCE estar em uma ilha isolada do restante da
Universidade, ainda assim tive a oportunidade de realizar disciplinas no campus, tendo a experiência
de convivência em uma grande universidade.
Após alguns anos da conclusão de minha graduação em Direito, adentro novamente a UFMG,
dessa vez para cursar Pedagogia na FAE, sendo que esta está localizada no Campus Pampulha. A
graduação ainda está em andamento e é impulsionada pelo meu trabalho como facilitador de Justiça
Restaurativa nas escolas de Belo Horizonte, pelo Programa Nós de Justiça Restaurativa nas Escolas,
razão deste artigo.
Dentro desse panorama geral do meu desenvolvimento como ser humano e de minha trajetória
escolar e acadêmica, deixo em relevo que em todos esses espaços, seja no meu quintal-mundo com
meus irmãos, seja no jardim de infância com meus coleguinhas, no ensino fundamental, médio ou
superior, na rua e em todos os outros espaços, sempre ganhou destaque a convivência, e assim, sempre
esteve presente e em relevo o conflito, sendo esse também um fator comum em todos esses lugares e
contextos.
Porém, infelizmente, muitas das vezes os conflitos resultaram em violência, seja pela falta de
diálogo e outros meios de lidar, seja pela naturalização da violência como uma forma legítima e viável
de lidar com os conflitos, visão desastrosa para nós individual e coletivamente. Basta ver a tensão
social que vivemos no Brasil, em razão dessa forma de se enxergar os conflitos, a convivência e a vida.
Portanto, para mim, o período escolar foi muito intenso no processo de construção da minha
individualidade e no processo de construção dos laços sociais, porém sem esquecer dos outros espaços,
como a minha casa e o espaço entre minha casa e a escola – a rua –, que também teve um papel
importantíssimo na minha constituição como ser social.
Se a escola, central na formação dos indivíduos e de nossa sociedade, fomenta, permite ou se
utiliza da violência como ferramenta para lidar com seus conflitos, ela se torna fonte, vítima, autora e
palco de violências, se tornando um ambiente tenso e inapropriado para a convivência e,
consequentemente, inapropriado para execução de sua finalidade: a educação.
Isso nos leva a pensar na importância de uma escola manter um ambiente saudável e um bom
clima escolar, pois tais fatores impactam diretamente na saúde dos profissionais e dos alunos,
influenciando diretamente no processo de transmissão e construção de saberes, na possibilidade de se
criar não só uma comunidade de aprendizado entusiasmada (hooks, 2013, p. 19), mas também um
ambiente de respeito e possivelmente de pertencimento e cuidado de e para com seus membros,
membros esses que compõem a chamada comunidade escolar.
2. Conflito
Observando a convivência, algo que foi confirmado e ainda hoje se confirma para mim é o
fato de que não importa o quão saudável e boa seja a convivência, haverá conflitos. O conflito é parte
integrante da relação humana, algo natural e inevitável, pois nos traz o grande ensinamento: somos
pessoas diferentes, com necessidades e estratégias diferentes para satisfazer nossas necessidades.
Ou seja, o conflito nos revela a diversidade e, quando enxergado como parte integrante de
nossa socialização, algo natural, nos é dada a chance de fazer dele uma oportunidade, afinal, em uma
relação continuada, este vem revelar o que pode não estar bem nessa relação – suas
incompatibilidades. Assim, se bem conduzido, um conflito pode transformar para melhor tal relação,
245
porém, se mal conduzido, pode levar à violência e outras formas trágicas de lidar com esse.
Em minha casa, um ambiente com três crianças com dois anos de diferença de idade, foi o
primeiro local onde tive contato com o conflito, quase sempre conduzido e definido pela via da
violência, da imposição de força e/ou da hierarquia etária. Porém, quando intervinha, minha mãe,
apesar de às vezes se utilizar de meios violentos, na maioria das vezes buscava, por meio do afeto e do
diálogo, nos levar a refletir sobre nosso ato e sobre a consequência deste, nos oportunizando ou
obrigando a nos desculpar e buscarmos reparar o dano causado. Assim, no meu primeiro ambiente de
convivência iniciei esse processo de socialização, de ser e respeitar as outras formas de ser – nesse
caso, meus irmãos e meus pais –, sendo que, neste intuito, minha mãe se utilizou tanto do diálogo
quanto, nos casos extremos, da violência para lidar com os conflitos entre mim e os meus irmãos.
Ao adentrar no jardim, os conflitos tomaram uma nova roupagem, afinal, não eram meus
irmãos, eram crianças até então estranhas e com vontades e visões muito diferentes das minhas, razão
pela qual, seja no sentido de competição, seja na busca por um espaço, pertencimento e
reconhecimento como sujeito, os conflitos surgiam, não sendo rara a utilização da violência para lidar
com eles. Afinal, o repertório para dialogar e a própria maturidade para isso ainda estavam em
construção, sendo necessária a intervenção das educadoras.
Na Escola Municipal Francisco Magalhães Gomes, na parte de trás de seu terreno, havia um
lixão (buraco no chão onde se despejava toda espécie de lixo não orgânico) e um lago improvisado.
Um dia, durante o recreio, eu e meus colegas estávamos brincando, quando surgiu a ideia de uma
brincadeira: jogar alguém no lixão. Entre os sorrisos de tensão e adrenalina no espaço de tempo entre o
surgimento da ideia e a escolha do candidato a ser jogado, socos e tapas afastavam as mãos uns dos
outros, até que Heitor fora o escolhido, sendo carregado pelos braços e pernas e jogado no buraco
denominado lixão.
Em um rompante de ira, Heitor se levantou e passou a correr atrás de seus agressores, sendo
eu o sujeito alcançado por ele. Em meio a socos e puxões de blusa, fomos interrompidos pela diretora,
que de pronto agarrou bruscamente nossos braços e nos arrastou para a temida sala da diretoria, local
das punições. Mal chegamos, sem qualquer oportunidade para mim ou para ele explicarmos o que
estava de fato acontecendo, já nos foi declarada a tipificação: “brigando na escola”, bem como a
punição relativa, que poderia ser apenas a suspensão. Tudo isso decidido e informado por meio de
ligação para nossos responsáveis, ao som dos gritos e choro de Heitor que só dizia: “mas eles me
jogaram no lixão!”.
Creio que esse caso ilustra bem o modelo tradicional, retributivo e punitivo utilizado em
diversas escolas na década de 90 (quando desse caso) e ainda hoje. Um modelo onde, diante de um
conflito ou violência, busca os transgressores das regras, ao invés dos responsáveis; se baseiam na
regra violada ao invés de buscar e escutar o ofendido para saber o dano sofrido por esse, dano que
servirá de fundamento para se construir a responsabilidade ativa do ofensor responsável por tal dano.
Esse modelo tradicional encontrado na escola, que reflete nossa cultura policialesca e punitiva para
lidar com os conflitos e com as violências em um determinado ambiente, em uma determinada
coletividade, é reproduzido sem grandes alterações no ensino médio e, em certa medida, até mesmo na
universidade é possível observar tal padrão de ação perante os conflitos.
Assim, é importante observar que a forma como se lida com o conflito escolar não se diferia
muito da forma como se lida com os crimes ou atos infracionais de crianças e adolescentes, o que torna
a escola mais uma instância judiciária, desperdiçando a oportunidade de revelar o poder pedagógico de
um tratamento restaurativo, não violento e que ao invés de criar um clima de tensão, fomenta a
tranquilidade de um ambiente que (con)vive em uma cultura de paz e diálogo.
246
3. Violência
Hoje, a partir das lentes da Justiça Restaurativa, consigo enxergar a importância que os
conflitos tiveram na construção de quem sou, e na construção da forma como me relaciono com os
outros modos de ser que me cercam, tendo estes como verdadeiros motores de transformações em
minha vida e em minhas relações.
Porém, em grande parte da minha trajetória, tais conflitos abriram espaço para violências em
suas diversas facetas, seja nos conflitos com meus irmãos e com a violência perpetrada por um contra
os outros, seja pela violência utilizada por minha mãe para “resolver” a situação conflituosa, até as
diversas violências dentro do espaço escolar e acadêmico.
Tal violência era capaz de tornar um ambiente pelo qual chorava para estar e não ir embora,
como o jardim de infância – ambiente lúdico, com diversas crianças e atividades divertidas –, em um
ambiente de angústia, tristeza ou medo, quando a violência era a resposta para os conflitos entre os
alunos ou resposta dos profissionais às atitudes dos alunos. Isso se aplica também ao ensino
fundamental, porém tomando dimensões e intensidades ainda maiores, seja pelo número maior de
envolvidos direta ou indiretamente, seja pelo avançar da idade que traz uma potencialidade danosa
ainda maior para os atos de violência física, por exemplo.
Não era raro que conflitos que se tornavam brigas na Escola Municipal Francisco Magalhães
Gomes resultassem em lesões graves, ou ameaças, utilizando-se das denominadas armas brancas ou da
superioridade numérica de um grupo em relação a outro ou a um único indivíduo. Importante destacar
o fator geográfico desses conflitos: muitas das vezes, por ser uma escola de bairro, conflitos do
território eram transferidos para a escola e, da escola, para as ruas, criando ainda mais tensão e medo.
Estive envolvido em vários desses conflitos e também de vários eventos violentos entre
alunos em meu ensino fundamental, sendo que isso não foi diferente no ensino médio, porém com
alguns agravantes: o primeiro, o fato de vários alunos já terem acesso a armas de fogo; o segundo era a
consciência da capacidade e potencialidades de causar lesões muito mais graves, mesmo sem se
utilizar de armas.
A violência, então, estava presente nas práticas punitivas da escola desde a pré-escola até o
ensino médio, na forma dos profissionais tratarem os alunos, na forma dos alunos tratarem seus
conflitos e de construírem suas relações, individualidade e seus grupos, além das outras diversas
formas de violência que se tinha no centro da cidade – crimes, batidas, policiais agressivos. Isso tudo
demonstra que minha trajetória de vida e escolar reflete a histórica e estrutural violência ensinada,
propagada, sistematicamente utilizada e difundida pelo ser humano em todo seu percurso histórico e
social, revelando que a construção de uma cultura de paz enfrenta o grande desafio da desconstrução
de uma cultura da violência.
Um exemplo disso que utilizo é a lógica do Coliseu romano, aquele local em que as pessoas
iam se divertir observando seres humanos digladiando outros seres humanos ou animais selvagens,
indo à loucura com a violência perpetrada por eles, lógica muito próxima ao “Coliseu” formado pelas
pessoas em roda, circundando uma briga na escola e gritando: porrada, porrada!
4. O trocar de lentes
4
Programa NÓS de Justiça Restaurativa nas escolas: http://ejef.tjmg.jus.br/nos/
5
CIA - Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de BH. O Cia-BH abriga, em um único
249
mas busca lhe proporcionar mais capacidade para tratar outros jovens, comumente tratados em uma
lógica penal muito semelhante à de um adulto no sistema penitenciário, ou seja, de forma desastrosa.
Apesar de todos os avanços do ECA6, das exceções restaurativas cada dia mais presentes e da melhoria
no sistema socioeducativo, é o que percebemos se olharmos esse sistema historicamente.
O sistema retributivo, como regra, seja para o adulto, seja para o adolescente, não tem se
demonstrado eficaz em nenhum lugar no mundo, e não é diferente em Belo Horizonte, muito menos
capaz de reparar os danos de um ato infracional ou crime, e (re)construir os laços sociais necessários
para nos aproximar de um sentido comunitário da transformação dos conflitos, salvo às exceções
Restaurativas, louváveis e importantes, como o trabalho do Projeto Ciranda de Justiça Restaurativa da
UFMG e outros parceiros, junto ao CIA-BH. Não estou simplificando e dizendo que se trata apenas de
transformar a exceção em regra, pois isso é impensável, afinal, o que seria da regra? Todo esse aparato
repressivo construído historicamente na violência estrutural literalmente serviu de alicerce para esse
Estado, principalmente em momentos como os atualmente vividos no Brasil, onde a militarização
extravasou a segurança interna e externa e está presente em todos os ambientes de poder e vem ditando
militarmente práticas violentas e genocidas.
A transformação dessa regra perpassa pela transformação integral do tratamento com o
adolescente no sistema Judiciário, mas ainda mais no sentido preventivo que a educação oportuniza,
pois a escola hoje em Belo Horizonte é algo central da maior parte das crianças e adolescentes da
cidade, sendo um ambiente onde estes passam grande parte do tempo de seu dia, ainda mais no caso
dos atendidos pela Escola Integrada, que ficam dois turnos na escola.
Essa centralidade da escola na vida das crianças e adolescentes, e em um território às vezes
sendo o único aparelho público do local, oferece, quando apoiada pela comunidade e representada
pelos responsáveis dos alunos e moradores do bairro, uma grande potencialidade de fortalecimento
comunitário, construção de uma nova visão sobre a convivência e os conflitos, favorecendo o
enfrentamento à violência e a propagação de uma cultura de paz, potencialidade essa experimentada
por mim e por outros tutores do Programa Nós.
Após toda essa minha trajetória escolar e acadêmica, do sonho à desilusão, até a
transformação, meu trocar de lentes e reconexão com minhas raízes por meio da Justiça Restaurativa,
após todo esse processo interno, era possível finalmente agir de forma restaurativa profissionalmente,
seja como facilitador no Projeto Ciranda UFMG, mas principalmente como tutor do Programa Nós.
Nesse ponto tive certeza de que me havia (re)encontrado com meu sonho de me formar em
Direito e trabalhar buscando agir nas injustiças e desigualdades, pois o mais encantador da Justiça
Restaurativa foi o conectar com o nosso passado ancestral, seja pessoalmente, o que me fez reconectar
e buscar minhas raízes, fortalecendo-as, seja socialmente, nos dando a oportunidade de valorizar a
cultura e saber dos povos tradicionais, das comunidades indígenas e quilombolas, não nos prender às
lentes eurocêntricas, androcêntricas e racistas vigentes em nosso sistema judiciário penal.
Minha experiência no Fórum Nacional de Justiça Restaurativa Comunitária no Brasil,
realizado pelo CDHEP7 em São Paulo, no ano de 2018, serviu para afirmar ainda mais essa certeza de
prédio, a Vara Infracional da Infância e Juventude, a Promotoria da Infância e Juventude, a Subsecretaria de Atendimento
às Medidas Socioeducativas (Suase) e as Polícias Militar e Civil.
6
Estatuto da Criança e do Adolescente.
7
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo.
250
que a Justiça Restaurativa, comunitária por natureza, se apresentava como uma nova forma de se
pensar justiça e se pensar sociedade, pois os princípios (co)construídos por nós no Fórum ainda
orientam minhas práticas, sendo eles:
▪ Diálogo
▪ Participação
▪ Empoderamento
▪ Corresponsabilidade social e individual
▪ Atendimento a necessidades
▪ Consideração de danos
▪ Construção de relações justas
▪ Respeito à diversidade de identidades
▪ Afirmação da igualdade de direitos
Outro ponto importante do Fórum Nacional de Justiça Restaurativa Comunitária no Brasil foi
a reafirmação de que a Justiça Restaurativa é um resgate de práticas ancestrais dos povos tradicionais,
e como era importante para nós, como brasileiros, resgatar e aprofundar pesquisas sobre as práticas de
nosso povo, e não somente povos tradicionais de outros países que iniciaram o movimento social atual
da Justiça Restaurativa em 1970 ou estudado por esses.
Diante disto, saber que tais práticas vêm se transformando historicamente no seio dessas
comunidades tradicionais com o fluir da convivência e o passar dos anos, estando vivas até hoje, sendo
um resgate ou retorno somente para nós é, de certa forma, um retorno dos que não foram.
Assim, após toda essa transformação em meu ser e a transformação em minhas formas de
(con)viver e ver a vida desencadeada pela descoberta e vivência da Justiça Restaurativa – esse trocar
de lentes –, retorno às escolas públicas como tutor do Programa Nós, de volta ao território da
educação; apesar de que, com base em minha trajetória acadêmica e profissional, também pode-se
dizer de um retorno daquele que não se foi.
Porém, a escola pública (por mais que houvesse continuidades, por exemplo, com um modelo
e práticas para lidar com o conflito muito próximas das experienciadas em minha trajetória como aluno
do ensino fundamental e médio) já não é a mesma. Os tempos são outros, as formas de ser e
(con)viver, a moda, os sujeitos e as dinâmicas sociais se transformaram, como quase tudo na
sociedade.
Algumas transformações mudavam os sujeitos, mas não a atividade, como no caso da
constatação na maioria das escolas tutoradas por mim e pelos profissionais, sobre o crescimento das
brigas com agressão física entre as meninas, a ponto de, em muitas dessas escolas, serem a maioria,
tirando esse lugar das agressões físicas entre os meninos, que na minha época de colégio era
certamente a regra.
Outro ponto abordado em meio a uma grande tensão foi o fato do crescente número de
agressões de alunos contra professores, sendo que, em um círculo de diálogo, essa posição ganhou uma
abordagem histórica quando uma educadora disse que os alunos de sua época (por volta dos anos 60),
251
não batiam nos professores, pois morriam de medo, afinal, alguns professores batiam nos alunos; essa
realidade foi presenciada também por mim, já nos anos 90, o que demonstrou a presença da violência
no trato do professor para com o aluno e do aluno para com o professor e demais educadores, seja da
limpeza, portaria, biblioteca ou outro segmento de profissionais da comunidade escolar.
Mas já havia escolas que apresentavam uma tentativa de construção alternativa a essa visão
militar e/ou industrial da convivência e das formas de lidar com o conflito, historicamente presentes na
escola pública brasileira, sendo que, nessas escolas, apresentar uma proposta de construção a partir da
Justiça Restaurativa na educação, novas estratégias e práticas para lidar com o conflito, e assim
influenciar de forma positiva no ambiente e no clima escolar, era bem menos desafiador.
Já nas escolas com a visão retributiva e punitiva mais arraigada, havia um grande desafio na
desconstrução de diversas posturas rígidas e violentas que impediam até mesmo a problematização
sobre se esse modo punitivo gerava resultado; ao apresentarmos uma visão diferente, como a Justiça
Restaurativa, éramos interrompidos com falas do tipo: “então você está dizendo que tem que passar a
mão na cabeça desses meninos?”
É comum essa visão de que ou se é punitivo, ou se é permissivo, porém nós apresentamos que
entre essas duas visões havia a possibilidade de se responsabilizar ativamente, não com base em uma
punição, e sim responsabilizando o sujeito causador da ação danosa, não só pela ação, mas pelo dano
sofrido à pessoa ofendida, que inclusive ganha e é empoderada nesse processo, pois seria responsável
pela definição de seu dano e da forma como reparar, oportunizando a satisfação dessa necessidade.
Além disso, foi possível demonstrar o quanto ações punitivas para lidar com o conflito geram
desconexões, que por sua vez geram ainda mais conflitos, afinal, sujeitos em um mesmo espaço, sem
uma conexão comunitária e sem o sentimento de pertencimento, tendem a gerar conflitos ou praticar
violências, pois não há nenhuma conexão ou sentido que justifique o contrário.
Pelo Programa NÓS, até o momento foi possível realizar como tutor mais de 200 horas em
formações em Justiça Restaurativa e Comunicação Não-Violenta com diversas pessoas dos diversos
segmentos da Comunidade Escolar de mais de 29 escolas diferentes, e realizar mais de 1000 horas em
supervisão nessas escolas. O Programa é composto basicamente por dois momentos: o primeiro é uma
formação de 32 horas, em que as escolas participantes enviaram cinco membros de sua comunidade
escolar para participar; no segundo momento, o tutor vai à escola e tem a oportunidade de realizar
atividades in loco, também por 32 horas, passíveis de extensão.
A supervisão envolve mapear as necessidades e conflitos de uma escola, elaborar e executar
um plano de ação e supervisão capaz de fortalecer a atuação de cinco agentes que passaram pelo
primeiro momento de formação, auxiliar na construção dos NÓS (Núcleo de Orientação e Solução de
Conflitos), mas principalmente, na construção de uma cultura de paz e na mudança paradigmática de
uma visão punitiva para uma visão restaurativa no trato dos conflitos escolares.
Durante essa (con)vivência fui teletransportado à minha infância e adolescência e me
questionei quantos conflitos vividos por mim, por outros alunos e educadores poderiam ter sido
transformados pela visão restaurativa, quantas violências poderiam ter sido prevenidas e quantos
danos, lesões e mortes poderiam ter sido evitados.
Em uma escola, eu havia acabado de fazer a sensibilização de uma turma sobre a
comunicação não violenta e os impactos em nossa convivência, para os preparar para um círculo de
diálogo. Me dirigi à sala da diretoria para confirmar horários e organizar meu trabalho, quando guardas
municipais adentraram a sala e solicitaram falar com a gestora, que me pediu para esperar na sala dela.
Após seu retorno, me é relatada uma situação de violência e a possibilidade de uma aluna estar
portando uma faca, que seria usada contra outro aluno. Houve uma denúncia e, após, a chegada dos
252
guardas municipais. A questão se tornou uma questão jurídica, afinal a posse de uma arma com
potencial lesivo é realmente algo sério e que precisava de uma atitude que viesse a preservar a todos;
houve, então, um encaminhamento à situação, pedi para que me fosse informado os próximos passos,
para que pudéssemos construir uma possível abordagem restaurativa.
Ao sair da escola e me dirigir à minha casa, encontro duas alunas que realizaram a atividade
de sensibilização comigo, que se aproximaram dizendo: “nossa professor, eu dei mole, você ainda
falou aquelas coisas sobre a violência e a raiva, trouxe uma faca para escola e me ferrei”. Abordei
ela com uma pergunta restaurativa, e perguntei o que havia acontecido. Ela me respondeu que vinha
sendo chamada de macaca há muito tempo por outro aluno, que já tinha reclamado, mas ninguém fazia
nada sobre a situação, e que um dia foi aconselhada por um familiar a levar uma faca e furar o olho de quem a
humilhava.
Era uma adolescente que vinha sofrendo uma violência racial por muito tempo, que procurou
ajuda, mas não teve sua necessidade atendida; se sentindo injustiçada e aconselhada por um adulto, se
armou com uma faca para buscar a interrupção de uma violência, por meio de uma atitude violenta,
que levaria a situação de agressão verbal gravíssima à uma agressão física, possivelmente grave por se
utilizar de uma arma. Essa adolescente poderia responder por um ato infracional e, revelando as
injúrias raciais, poderia ter como resposta o envolvimento de outro adolescente em outro ato
infracional. Após os dois lidarem com as consequências e punições do sistema socioeducativo, eles
retornariam à escola estigmatizados e totalmente desconectados pela raiva um do outro – terreno fértil
para a retomada do conflito ou surgimento de outros conflitos e violências, em uma escalada acelerada.
Porém, com a oportunidade de uma abordagem restaurativa, nos é oportunizada a
possibilidade de outro caminho para o trato desse sujeito, primeiramente mapeando o conflito, suas
causas, sujeitos, contexto, sentimentos e emoções, além de todos seus fatores constitutivos, para daí
iniciar uma prática restaurativa.
A priori constatamos a violência estrutural ligada à causa do conflito, o racismo, violência
essa muitas das vezes naturalizada e que era causadora de diversos conflitos e violências, não só nessa
turma, como em todo colégio. Sendo um problema estrutural, exige uma abordagem estrutural, como
círculos de diálogos abordando a questão do preconceito racial, atuando em um sentido preventivo,
mas também construindo o que Luana Tolentino (2018) apresenta como Outra educação possível, uma
educação antirracista.
Era preciso uma ação imediata que mobilizasse os envolvidos diretamente, e capaz de
restaurar os danos sofridos pela adolescente em relação à violência motivada por preconceito racial
sofrida por ela, além dos danos causados pela ameaça com a faca ao ofendido por esse ato e ofensor
pela agressão verbal – além da reparação dos laços sociais rompidos pela situação, fortalecendo assim
a comunidade escolar diante de conflitos.
Utilizo esse caso para expressar a complexidade dos conflitos e violências escolares, o risco
que se corre ao dar respostas violentas, punitivas e descontextualizadas, e a possibilidade que existe de
além de dar uma resposta restaurativa, se utilizar do conflito como motor propulsor de transformações
e melhorias nas relações que compõem a teia de conexões existentes em uma comunidade escolar. Por
essa aplicabilidade e pelos diversos resultados observados também por meio de números e estatísticas8
em relação ao decrescente número violências nas escolas, ou de maneira humana pelos diversos relatos
de resultados positivos e construtivos no trato de conflitos e principalmente, na melhoria do clima e
ambiente escolar, proporcionando uma convivência mais saudável aos educandos e educadores dessas
escolas, que acredito tanto nesse programa.
8
http://ejef.tjmg.jus.br/programa-nos-resultados/
253
Quem sabe poderemos restaurar o sentimento comunitário dos povos tradicionais, seus
valores coletivos e de convivência, construindo por meio da Justiça Restaurativa conexões entre os
membros da comunidade escolar, da comunidade de um bairro, cidade, estado e país; enfim, a partir
dessa visão restaurativa, será possível construir de forma pedagógica e educativa esse valor
comunitário de justiça, por meio da corresponsabilidade social e individual, do diálogo e participação
ativa, do empoderamento desses sujeitos e dessas comunidades, passando pelo atendimento de suas
necessidades, consideração de danos, construção de relações justas, respeito à diversidade de
identidades a afirmação da igualdade de direitos. Dessa forma, revela-se que a justiça se aprende e se
constrói coletivamente e para o todo, e não pode ser imposta, desigual, desumana e nos desconectar de
nossa humanidade individual e coletiva.
Referências
hooks, bell. Ensinando a transgredir: educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2013.
254
A COLABORAÇÃO DAS PRÁTICAS DIALÓGICAS RESTAURATIVAS NA
CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS CIDADES – GENTRIFICAÇÃO E
DROGADIÇÃO
Michel Rosenthal Wagner1
Introdução
1
Advogado (USP, 1983), mestre em Direitos Difusos e Coletivos (PUC/SP, 2014). Presidente da Comissão de Direito
Imobiliário, Urbanístico e de Vizinhança da OAB/SP – subseção Pinheiros. Autor da obra Situações de vizinhança no
condomínio edilício – desenvolvimento sustentável das cidades, mediação e paz social. Consultor socioambiental em
vizinhança urbana, professor, palestrante e escritor. Mediador de diálogos em conflitos coletivos urbanos e facilitador de
círculos de diálogo em justiça restaurativa.
255
emocionais e espirituais à sociedade.
Partindo-se da premissa de que a negligência no planejamento urbano verificada nas cidades
que crescem rapidamente em países emergentes tende a extinguir a vida urbana por conta da pressão
de empreendimentos que empurram a população para as mais adversas condições, essas cidades
necessitam ser repensadas e construídas na dimensão humana. (GEHL, 2013, p. 229)
A principal ferramenta que a legislação brasileira oferece para a construção de urbanizações é
o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que inclui em seu texto o tema da vizinhança urbana,
modelo no qual vivem 83% da nossa população.
Situação de vizinhança é qualquer realidade física que coloque indivíduos em contato por
meio de suas realizações e da sobreposição de interferências, resultantes de estarem com os outros no
mundo. Com esta lente, sobrepomos os interesses imobiliários, o processo de gentrificação destrutivo
de tecidos sociais e os moradores do centro, nas edificações e nas ruas paulistanas.
Comunidades de vizinhança, por sua vez, são aquelas criadas a partir do convívio entre
vizinhos nos territórios compartilhados na cidade como um todo e onde houver coletivos convivendo.
É o tecido social, invisível materialmente e que rege importantemente a qualidade de vida de seus
integrantes.
A despeito do modelo individualista propagado na atualidade, a segurança social desejada,
preocupação prioritária dos habitantes das cidades, está mais baseada nos relacionamentos do que na
vigília e na punição, no diálogo do que na dor e, finalmente, na inclusão do que na exclusão. Os
ambientes pretensamente protegidos das comunidades de vizinhança em condomínios e loteamentos
com controle de acesso, por exemplo, reproduzem os comportamentos fragmentários de não inclusão e
de discriminação que observamos na sociedade.
O modelo de vida em sociedade urbanizada, especialmente quando verticalizado em edifícios
com andares sobrepostos, obriga a convivência social próxima com pessoas de diferentes
características, desejos e anseios. Os condomínios, considerados comunidades de vizinhança
intramuros, e quando abrigam grandes contingentes populacionais, representam pequenas cidades
inseridas na urbanização e são também caracterizados como enclaves2. Há, especialmente na zona
metropolitana de São Paulo, condomínios onde vivem mais de 5mil habitantes, enquanto no país
grande parte das cidades tem uma população menor que este número. Neste viés, o Estatuto da Cidade
traz as diretrizes e os princípios para a implantação desta dinâmica na cidade.
No que tange aos territórios circunvizinhos, eles vão sendo consumidos com o uso na forma
de prestação de serviços, comércio e lazer para usuários do modelo. É nesta medida que se agrava o
processo de gentrificação destas áreas pois, enquanto a propriedade condominial valoriza
economicamente e tributariamente o território, as famílias e os pequenos comércios e prestadores de
serviços se veem obrigados a mudar de região, em geral para as periferias cada vez mais longe de seus
costumes originários e dos tecidos sociais construídos nas relações por gerações, o que resulta em um
violento desfazimento de tecidos sociais consolidados. Trata-se de um capital humano coletivo, e este
é um custo social pago pela sociedade. É neste contexto que emerge um movimento de milhares de
pessoas que hoje em dia se juntam a outros movimentos, como a fome propriamente, que se veem
obrigadas a morarem nas ruas e praças, ou seja, em situação de rua. Porém, com um olhar punitivista
e atendendo aos interesses exclusivamente econômicos, o movimento de reação a esta realidade vem
sendo o da tentativa reiterada de expulsar este conjunto de pessoas das regiões onde se pretendem
construir arranha-céus, o qual relega calçadas, praças e parques à desertificação e ao uso selecionado
2
Territórios com distinções políticas, sociais e/ou culturais cujas fronteiras geográficas ficam inteiramente dentro dos
limites de outro território. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Enclave.
256
e controlado.
Há muito sofrimento e muita beleza nesta realidade e nesta paisagem humana social das ruas
da cidade. O número de cidadãos nessa situação aumentou enormemente em São Paulo – falava-se de
35 mil em 2018, de 50 mil em 2020, de 70 mil em 2021. Com o agravamento da crise econômica até
2021 e com a pandemia, esse número deve, certamente, estar crescendo geometricamente. Não temos
estatísticas, e, como país pobre, não interessa mostrar os números dos menos favorecidos versus os
mais favorecidos, sempre uma ínfima minoria num oceano de injustiça social. Esta estimativa é
provavelmente subdimensionada, mais ainda se considerarmos o número de pessoas vivendo em
abrigos, pensões e mesmo em habitações precárias no território. Nunca se viram famílias inteiras,
muitas vezes com três gerações juntas, nessa situação. É importante lembrar, apontar, manifestar-se e
protestar sobre este fato. Ao bem olhar, percebemos facilmente como uma sociedade, um grupo
enorme de brasileiros, paulistanos, estão vivendo em condições muito mais abaixo do mínimo
essencial à dignidade humana de que tratamos quando falamos de extrema pobreza e abandono,
mesmo que no território mais rico e privilegiado do país.
Em uma ocasião, ouvi o relato de vários integrantes do movimento autônomo A Craco
Resiste, que atua na região da Luz, no centro de São Paulo, fortemente estigmatizada e chamada de
Cracolândia, e serve como uma espécie de vigília pelos direitos humanos3. Eles estão presentes
constantemente no território para denunciar as agressões das forças de segurança e outras formas de
violência a que estão submetidas, cotidianamente, as pessoas que vivem e frequentam esta área
específica. Porém, raramente, a versão dos atingidos, das vítimas das arbitrariedades do Estado, é
apresentada de forma ampla4. A região assemelha-se aos campos de concentração de refugiados,
contudo, em piores condições – neste caso, refugiados da sociedade paulistana, no centro de sua
capital. Eu sou testemunha ocular de algumas destas ocasiões. Sempre de longe, pois me dá mais medo
estar nas ruas nos momentos em que estão os policiais fortes, vestidos de cinza, armados e com coletes
antibalas do que quando não estão.
O mais impressionante foi o depoimento de alguns voluntários que trabalhavam na região do
fluxo da Rua Helvétia e nas imediações de que ações policiais muito truculentas estavam, na prática,
destruindo o tecido social e os laços de confiança estabelecidos ao longo de três anos de sua atuação
naquele território. Relatam, com muita tristeza e dor, os maus-tratos à comunidade que lá existe. Sem
pestanejar, agora o trabalho seria de restauração.
Pude observar que esses atos de violência não eram episódios isolados no combate ao tráfico,
como alardeavam os discursos e a mídia propagava àquele tempo, e, sim, uma prática arbitrária com
objetivos muito claros de higienização do território, de gentrificação e de liberação de terrenos para a
construção de prédios.
A propaganda falava de revitalizar o local, e eu me perguntava como se poderia afirmar esta
ação em uma das regiões mais populosas e vivas da cidade. Em outra ocasião, durante reunião de
empresários do setor imobiliário, ouvi um deles dizer que famílias que ganham até três salários-
mínimos não eram incluídas no planejamento desta ação de revitalização e, naturalmente, deveriam
mudar de território, pois eram invisíveis ao mercado e à política pública de habitação. Não houve
resistência dos demais a esta fala. Saí indignado daquele contexto, que indicava a cultura do “pobre
tem que morar na periferia, e, se for preto, mais ainda”. Trata-se do desejo de ir mais além da
invisibilidade, é o desejo de que não existam pobres, porém este caminho só faz crescer as
contrariedades a esta vontade.
3
Teatro de Contêiner, Rua dos Gusmões, 43.
4
“Agressões e Violações na Cracolândia”. Relatório produzido pelo movimento A Craco Resiste, 2017, p. 3.
257
Quando se trata da violência contra indivíduos em situação de rua, os mais vulneráveis
acabam sendo os mais atingidos pela truculência institucional com seus braços armados, mesmo
durante ações cotidianas, como a limpeza de ruas, que são transformadas em oportunidade de agressão
e humilhação contra esse povo.
Mais além, deparei-me com o texto de um livro que, através do olhar do escritor e
experienciador desta realidade, me levou a ver um pouco mais como é a tal região e como vivem estas
pessoas: Cracolândia dia a dia, de Marcelo Clemente (2016). Médico formado pela Universidade de
São Paulo (USP), viveu na Cracolândia por um tempo importante, até que desapareceu aparentemente
sem vestígios. Ele conta que há um QG, um local dentro das ruínas dos prédios, no qual só alguns
usuários de crack entravam, e que, lá dentro, ficava outra cracolândia:
O cenário é escabroso. Um grande sobrado, com poucas partes ainda com teto. No chão, telhas,
pedaços de madeiras e excremento humano por toda parte. Ratos. No térreo, tudo escuro. Em
cada quarto, quatro ou cinco pessoas sentadas no chão imundo para dormir ou fumar crack. (...)
Goteiras por todos os lados. O lugar era uma poça d’água, dentro de um breu só maculado
pelas chamas dos isqueiros e pela brasa das pontas de cachimbo. A tosse era o som ambiente,
tosse carregada de alumínio e crack. E provavelmente tuberculose. (...) No andar de cima, o
cenário era ainda pior. (CLEMENTE, 2016, p. 21)
Este jovem doutor entrou várias vezes nestes ambientes para tratar da saúde de muitas
pessoas. Em fevereiro de 2011, dirigiu às autoridades, por carta, algumas manifestações, as quais ele
entendia deverem estar envolvidas com esta política:
Antes eu sentia angústia, comiseração, remorso, frustração. Nesse dia, dois outros sentimentos
se uniram a esses. Ódio e amor. (...)
Pessoas como nós, como eu e você, são agredidas, coagidas, têm seus pés quebrados por coices
de cavalos da Polícia Militar, são forçadas a comer excrementos pela Guarda Civil
Metropolitana e são extorquidas e torturadas pela Polícia Civil, enquanto estamos afagando
nossos filhos e fazendo compras no supermercado. Mulheres são mantidas em regime de
semiescravidão em prostíbulos, cujos cafetões e cafetinas restringem o acesso dos profissionais
de saúde, com o apoio do tráfico de drogas e da Polícia Civil. Idosos moradores de rua são
acordados com baldes de água gelada na cabeça pela Guarda Civil Metropolitana, a mesma
guarda que baleia mulheres no pé e ‘limpa a via carroçária’. (...) O não agir e o ignorar são
formas cruéis de violência. E se a violência que não é praticada pelo Estado é considerada
criminosa, então podemos nos dar as mãos todos, pois formamos a maior comunidade de
criminosos deste país. (...)
Qualquer um que atente contra os princípios da dignidade e da humanidade, do respeito ao ser
humano e ao indivíduo, sabendo da situação que se desenrola, é um criminoso. (...) Porque as
mudanças podem ser feitas movidas por dois sentimentos, amor ou ódio. Podem ser feitas de
duas maneiras: com diálogo ou violência (CLEMENTE, 2016, p. 69-73).
Na opinião sobre a obra em questão, nas palavras de Natacha Capozzi Clemente e Cecília
Figueiredo: “Uma linha comum que une todos esses relatos deste livro é a humanização. (...) Enxergar
o paciente de forma integral, não como nome científico ou vulgar de doença, mas como ser humano”
(CLEMENTE, 2016, p. 13-16).
O relatório do movimento conta ainda que, em fevereiro de 2017, a Polícia Militar chegou a
lançar bombas de gás contra a tenda onde funciona o programa municipal De Braços Abertos,
atingindo não só as pessoas que eram atendidas no momento, mas seus trabalhadores. Pelo fluxo, o
Batalhão de Choque distribuiu balas de borracha, cacetadas e mais bombas, ferindo diversas pessoas.
A pretexto de agir contra um pequeno grupo de infratores, dezenas de cidadãos foram agredidos. A
258
truculência acaba por gerar mais violência. Os usuários, revoltados, fizeram barricadas e jogaram
pedras contra os policiais (CLEMENTE, 2016, p. 15). Há outros relatos do mesmo cenário,
acrescentando o uso de spray pimenta, que sai como um gás, se espalha e atinge todos em volta do
local, que são acometidos por fortes acessos de tosse e ficam desesperados para se livrar desta munição
química. Armas químicas como esta são execradas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e aqui
são usadas como se fizessem parte necessária diante das situações cotidianas. Horrorizante. Com o
devido recato, a política higienista e genocida empreendida desde então com estas ações dos
governantes deveria ser denunciada no Tribunal Penal Internacional.
Algumas publicações da mídia complementam a imagem desta situação urbana.
26 de abril de 20175
Sim, mesmo tantos anos depois, a realidade continua a mesma. Pouca atenção à saúde,
máxima atenção à repressão, e as cracolândias permanecem aí. Pergunto-me se a região fosse invadida
e ocupada por assistentes sociais e de saúde, e médicos, em número semelhante ao de policiais que
recebem orientações para apenas olhar ou reprimir, como ficaria este cenário?
22 de maio de 20176
Título: Após ação de Alckmin, Dória diz que cracolândia acabou, mas tráfico fica. ‘Centro da droga’ é alvo de
megaoperação policial, porém usuários e traficantes de crack se espalham. (...) Dória aproveitou a ação para anunciar o fim
do programa De Braços Abertos, da gestão Haddad, voltado à redução de danos de usuários de crack. (...) ‘Não haverá
mais pensão ou hotel, nenhuma acomodação desse tipo [no centro]. Toda a área sofrerá um amplo projeto de
reurbanização’, disse Dória, que anunciou a demolição desses imóveis.
A matéria dá conta de várias iniciativas, realizadas desde 2005, que não deram certo e
fizeram, nas últimas, apenas espalhar o tráfico e o consumo de drogas para outras regiões da cidade.
Foram usadas bombas de gás, balas de borracha, balas de verdade, além de spray de pimenta, com
truculências que chamaram a atenção de organizações internacionais de direitos humanos e que não
resolveram o problema. Foram, ainda, demolidos muitos imóveis ocupados por envolvidos com o ciclo
do consumo de droga, inclusive com pessoas dentro deles, os quais deram lugar a empreendimentos
imobiliários, porém sem tirar o comércio de varejo e o consumo das ruas.
25 de maio de 20177
5
Jornal Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/04/1878466-feira-da- droga-vira-
impasse-para-programa-de-doria-na-cracolandia.shtml. Acesso em 21 de maio de 2021.
6
Jornal Folha de S.Paulo. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/saopaulo/2017/05/1886190-apos-acao- policial-
doria-afirma-que-cracolandia-acabou.shtml. Acesso em 21 de maio de 2021.
259
Título: Dória descumpre promessas, perde secretária, e nova cracolândia surge. Usuários continuam
desassistidos desde domingo (21). Titular de Direitos Humanos entregou o cargo
O modo como a operação aconteceu também levou a secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, a
entregar ao prefeito seu cargo, na noite de quarta-feira (24). Em vídeo que veio a público na mesma noite, Patrícia diz, em
reunião com membros de movimentos sociais, que a operação foi ‘desastrosa’. Em carta, a secretária deixou claro ao
prefeito que discorda da forma como a ação foi feita e que considera estar havendo violações de direitos. (...)
A reboque da crise, a prefeitura buscou a Justiça por carta branca para internar usuários à força. Posteriormente
este pedido foi negado. O Conselho de Medicina declarou que o profissional que adotasse este tipo de medicina poderia
enfrentar processo por ferir a ética. Em resposta ainda, o promotor do Ministério Público, Arthur Pinto Filho, declarou
tratar-se do pedido mais esdrúxulo que viu em toda a sua carreira, por promover uma caçada humana. O pedido da
Prefeitura incluía que policiais pudessem deter pessoas que entendessem se enquadrar no perfil e encaminhá-las, contra sua
vontade, à força, para exames médicos e para internação e tratamento. O psiquiatra Dartiu Xavier, da Escola Paulista de
Medicina, afirmou que a internação pretendida seria ‘uma loucura do ponto de vista médico, para não falar na afronta aos
direitos humanos’.
7
Jornal Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/05/1887196-doria- descumpre-
promessas-perde-secretaria-e-nova-cracolandia-surge.shtml. Acesso em 21 de maio de 2021
260
mecanismos da Política Nacional do Meio Ambiente e Planejamento Urbano.
O EIV avalia os efeitos da implantação ou ampliação de empreendimentos ou atividades na
qualidade de vida, indicando formas de mitigar, compensar ou potencializar os impactos apontados, o
que pode ser feito por meio de audiência pública com a participação do poder público municipal e da
população interessada (EC art. 2º – XIII).
Em São Paulo, a Lei Orgânica do Município determina genericamente que os projetos de
implantação de obras ou equipamentos que tenham natureza urbanística e significativa repercussão
ambiental ou na infraestrutura urbana devem vir acompanhados de Relatório de Impacto de Vizinhança
(RIV). Este deve ser disponibilizado gratuitamente a moradores da área afetada e suas associações,
assegurando-lhes oportunidade de manifestação sobre os projetos em audiências públicas, antes de sua
aprovação.
Neste período, em que estamos vivendo em isolamento social, deveremos inclusive ponderar
sobre as matrizes urbanísticas, especialmente dos condomínios, se são ou não uma boa proposta de
desenvolvimento das cidades. Lembre-se de que um novo Plano Diretor para São Paulo é pauta da
discussão institucional neste ano de 2021. Vivemos um momento muito conturbado em todos os níveis
e perguntamo-nos o que está acontecendo.
Sob outro olhar, o tema da drogadição, com suas múltiplas e complexas discussões, serve e
deve servir-se das práticas restaurativas de tecidos sociais, especialmente do diálogo circular com sua
metodologia própria como conteúdo para o diálogo facilitado, assim como, e especialmente, para a
utilidade na construção destes tecidos sociais abordados. Dessa forma, a cidade construída para
pessoas deve incluir todas elas, mantendo principalmente esta rica diversidade que nos é essencial,
respeitando os grupos discriminados ao longo de décadas, e consequentemente menos favorecidos, e
que justificam um investimento reparativo aos danos históricos perpetrados pela exclusão. Eles devem
ganhar, no linguajar popular, um lugar ao sol, que bem se retrata nas palavras de Boaventura Santos,
o qual afirma que temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade
que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades (SANTOS, 1997). Trata-se de uma política social que almeja, mais além da
possibilidade de resolução de conflitos existentes, a construção de cultura dialógica nestes ambientes.
A respeito da drogadição e das políticas públicas, em 2006, em nosso país, foi instituído o
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), Lei nº 11.343/06, que trata da política
pública macrossocial generalizada e prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção ao
usuário como indivíduo e sua reinserção social; estabelece normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico; e define crimes.
Notadamente, a lei prioriza o tratamento voltado à prevenção, aos usuários com redução de
danos e, depois, à produção, à comercialização e ao tráfico propriamente. Tipificou as condutas e
dosimetrou assim as penalidades para as práticas discriminadas. No caso do consumo pessoal, o
usuário será submetido a penas de advertência sobre seus efeitos, prestação de serviços à comunidade e
medida de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28). O tratamento aos usuários e
dependentes é dirigido à saúde e à educação, não mais à punição.
Neste contexto é importante recortar e trazer à realidade a aplicação deste dispositivo legal no
dia a dia da cidadania. Embora a lei de drogas em vigor traga, como uma política pública de saúde e
prevenção, formalmente esta distinção de tráfico e uso, considerando a quantidade e o perfil da pessoa
flagrada com o porte de alguma substância ilícita, na prática ela não alcança impedir a seletividade
261
subjetiva do agente policial ou mesmo do juiz quando deve escolher entre quem se enquadra no perfil
do artigo 28 ou do artigo 33. No caso do policial, este tem a liberdade e obrigação que lhe permite
avaliar segundo critérios culturais pessoais e da corporação esta seleção, assim como o juiz que deverá,
na fixação das penas, considerar o previsto no artigo 59 do Código Penal, ao caracterizar a natureza e a
quantidade da substância ou do produto, e a personalidade e a conduta social do agente. O tema precisa
ser urgentemente discutido pela sociedade, assim como se construir um “observatório” destas práticas
sob pena de responsabilidade das autoridades envolvidas com eventuais arbitrariedades.
Prevenir, neste caso, seria desenvolver programas em conjunto com as comunidades em geral,
pesquisar as características próprias a cada uma delas e então elaborar estratégias para evitar tanto o
início do consumo como o caminho rumo aos transtornos decorrentes do abuso e da dependência das
substâncias psicoativas. Esses programas, há muito, já se fazem necessários para a efetiva abordagem
do problema do consumo entre adolescentes e adultos (SENAD, 1999). Conceitualmente, as atividades
de prevenção devem ser direcionadas à redução de vulnerabilidade e risco, à promoção e ao
fortalecimento dos fatores de proteção (art. 18), atividades essas que podem ser culturalmente inseridas
nos contextos aqui abordados.
A prática do tratamento dos usuários e dependentes – que assim o desejem -, sob o olhar da
inclusão e com a adoção da política de redução de danos, é definida como um conjunto de ações que
contribua para que a pessoa consiga conviver e lidar com os conflitos que se apresentem em sua vida,
sem fazer uso de estratégias anestesiantes alienantes e não precise viver dopada por medicamentos. Ela
pressupõe que “o uso de drogas pode ser associado à necessidade de alívio da angústia inerente à
condição humana. Quando se pensa em prevenção, o desafio é encontrar outras maneiras de tornar essa
angústia suportável, visando à transformação e não à alienação” (NIEL; DA SILVEIRA, 2008, p. 8).
A história da humanidade é permeada por tratamentos diferentes aos usos, às permissões e às
proibições de substâncias diversas, migrando no tempo entre a legalidade, a regulamentação e a não
oficialidade, e mais, discussões sobre o proibicionismo, a descriminalização, a liberação e o
abolicionismo, de onde emerge o questionamento: “A quem pertence o corpo em que habito?”.
Por outro lado, no que tange aos direitos individuais e à prerrogativa humana baseada em sua
dignidade, é importante ressaltar que se defende ser o indivíduo livre para fazer e usar- se de seu corpo
como melhor lhe aprouver, e contanto que não cause danos a outras pessoas.
Assim, ao se ampliar o conceito da redução de danos, podemos percebê-la como uma política
humanista e pragmática que se encaminha para a melhora do quadro geral da pessoa que usa drogas,
sem que lhe seja exigido o absenteísmo ou imposta a renúncia ao consumo dessas substâncias. A ótica
da nova abordagem é a de que o cidadão possa utilizar qualquer tipo de tratamento, inclusive com o
uso progressivo de substâncias menos danosas à sua saúde física e mental, à sua vida e suas relações –
família, trabalho, sociedade etc. – e, finalmente, às próprias comunidades com quem convive
(RIBEIRO, 2008, p. 55).
Inspirados neste contexto e em tantas previsões na legislação, arriscamos propor, dentre
princípios, diretrizes e atividades indicados para a prevenção do uso indevido de substâncias, para o
trato com as pessoas em situação de rua ou em imóveis degradados do centro da cidade, assim como
para os empreendedores sociais, para os administradores e construtores do mercado imobiliário, tais
conteúdos, que podem e devem ser trazidos para os círculos dialógicos nos quais se fundam as práticas
restaurativas de diálogo social.
Esse pode ser o tratamento e a atenção dados aos casos de conflitos de vizinhança que
envolvam o tema da drogadição sob o olhar social. A aplicação de círculos de diálogo contextualizados
na justiça restaurativa conecta várias políticas públicas essenciais ao contexto, seja da drogadição, seja
262
da urbanização, seja especialmente da saúde mental.
O conhecimento e a interpretação da legislação a este respeito qualificam a convivência,
produzem melhores ambientes para o compartilhamento da propriedade urbana em amplo senso e
ajudam a resolver os conflitos inerentes.
A drogadição e a construção de cidades para todas as pessoas são temas delicados e requerem
cuidados especiais. Diálogos e campanhas educacionais devem ser fomentados com o adequado
encaminhamento desses conflitos. Esse é um desafio a ser empreendido macrossocialmente, por meio
de políticas públicas específicas e regionais, e microssocialmente, nas comunidades de vizinhança,
com diálogo restaurativo e construtivo de tecidos sociais melhores e que atendam mais às nossas
necessidades sociais.
Desse modo, a implementação das práticas restaurativas, inseridas no que se chama na
atualidade de justiça restaurativa – que, mais além da sua aplicação no Judiciário, implica a
implantação do conceito justamente como prática de justiça pela sociedade civil –, é recomendada
sempre que se almeje o reequilíbrio das relações comunitárias, nas comunidades de vizinhança ou de
qualquer tipo.
A metodologia, prevista na Resolução CNJ nº 225, de 31 de maio de 2016, inovou
paradigmaticamente a prática da mediação e as práticas restaurativas, ao passar a perceber o conflito
de forma positiva, em que se pode e deve haver uma relação ganha-ganha. Nesse modelo, os
adversários são vistos como potenciais colaboradores e cooperadores, sendo assim possível maximizar
os ganhos. Além disso, uma das premissas básicas da resolução consensual de conflitos é a efetiva
participação, bem como o empoderamento dos envolvidos de forma a incluí-los democraticamente. Por
serem eles os exclusivos responsáveis pelo desfecho da questão controvertida, constroem de forma
conjunta os termos e as condições para sua resolução, e então a estrutura vertical da jurisdição é
quebrada, possibilitando que a justiça passe a ser praticada de forma horizontal. (BRASIL; RIBAS,
2019, p. 68)
Quando se trata de conflitos coletivos envolvendo políticas públicas com maior
complexidade, a adoção de ferramentas de prevenção ou tratamento adequado pelo poder público,
envolvendo os poderes Executivo e Legislativo, e a implementação de novos caminhos para sua
resolução, especialmente considerando-se a crescente judicialização desses conflitos e a insuficiência
do processo adversarial tradicional, com um paradigma voltado para o passado, melhor servem-se para
resolvê-los.
Existem muitos tipos de círculos, a depender da temática a ser abordada. Eles ganham matizes
e dinâmicas específicas de acordo com sua motivação e com o propósito ao qual se destinam,
envolvendo maior ou menor complexidade. Podem ser, exemplificadamente: de diálogo; de celebração
ou reconhecimento; de resolução de conflitos, de reintegração; de restabelecimento; de apoio; de
sentenciamento.
Um importante tipo de círculo a ser experimentado nas situações aqui colocadas é o de
construção de senso comunitário, com o propósito de criar vínculos e construir relacionamentos dentro
de um grupo de pessoas, oferecendo apoio às ações coletivas e promovendo responsabilidade mútua.
Outro tipo a ser implementado é aquele que tenha como foco a mediação de diálogos em conflitos de
planejamento urbano.
As comunidades de vizinhança podem desenvolver círculos de criação de cultura de
solidariedade e não violência, e enfrentar conflitos de vizinhança colaborativamente. Ouvir as
experiências de outras pessoas, compartilhar suas experiências pessoais e ser ouvido potencializam
mudanças coletivas de hábitos e, consequentemente, do modo de conviver. Constroem cultura de paz,
263
paz e cura propriamente.
264
Referências
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humana. Porto Alegre: Ed. Nuria Fabris, 2011.
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Zahar, 2003.
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adequando acesso à justiça aos conflitos pós-modernos. Revista Direito e Justiça: Reflexões
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SILVEIRA, Dartiu Xavier (orgs.). Drogas e Redução de Danos – uma cartilha para profissionais
de saúde. São Paulo: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD). Universidade
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ZEHR Howard. Trocando as lentes – justiça restaurativa para o nosso tempo. São Paulo: Ed. Palas
Athena, 2008.
266
APÊNDICES
Desde que povos africanos foram arrancados de suas terras, distanciados de seus costumes e
brutalmente escravizados durante séculos, o trágico passado resultou em um custoso presente, em que
avanços só foram possíveis devido a movimentos de resistência que diariamente vêm desafiando uma
estrutura social baseada em discriminação racial e desigualdades sociais.
Atualmente, as chacinas e demais violências perpetradas por agentes do Estado, o cárcere, a
seletividade no sistema de justiça, falta de acesso a direitos, serviços e bens de consumo, recaem
sobretudo na população negra. No dia seis de maio último, na comunidade do Jacarezinho no estado
do Rio de Janeiro, 28 vidas foram ceifadas na operação policial mais letal da história daquele Estado.
O Monitor da Violência, uma parceria entre o G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, averiguou que em 2020 no Brasil, 78% dos mortos pela
polícia eram negros. Toda violência se intensifica quando a ela se somam outros marcadores sociais de
diferença, como classe, gênero e sexualidade.
“O cárcere é a maior expressão do racismo”. A afirmação de Dina Alves é precisa, e a justiça
restaurativa precisa se voltar a essa chaga. De acordo com Fania Davis (2019, p. 67):
Hoje, o capitalismo racial usa prisões para gerenciar populações marginalizadas, especialmente
pessoas racializadas. As políticas neoliberais nas últimas décadas transferiram enormes
quantidades de riqueza de famílias trabalhadoras e de classe média para o 1% mais rico através
de cortes de impostos, desregulamentação e cortes de programas sociais. Essas políticas
destroem as redes de segurança social e tornam milhões de pessoas desempregadas, pobres,
insalubres e desabrigadas, criando "populações excedentes". O encarceramento é então
implantado para conter e gerenciar essas populações e os problemas criados pelo fracasso do
capitalismo racial em lidar com os males sociais.
Luana Barbosa entrou para a estatística cruel que cresce a cada dia, e sem a indignação da
sociedade. Após cinco anos do assassinato de Luana Barbosa, o caso ainda corre judicialmente sem a
267
efetiva responsabilização dos agressores. Negra, lésbica, mãe e periférica, Luana foi morta aos 34 anos
por lesões cerebrais provocadas por três policiais militares que a espancaram na esquina de sua casa,
em frente ao seu filho, no bairro Jardim Paiva II, zona Norte de Ribeirão Preto (SP). As agressões
ocorreram após Luana recusar ser revistada pelos soldados do 51º Batalhão da PM, exigindo uma
presença policial feminina. Foi espancada quando clamava por direitos humanos. Ela foi encaminhada
à Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas (HC-UE), mas morreu cinco dias depois da
violência.
O nome de Luana Barbosa na carta-compromisso simboliza todas as pessoas que sofrem a
violência do racismo cotidianamente e, entendendo que as violências físicas, psicológicas, simbólicas
contra pessoas racializadas não cessarão enquanto a sociedade não reconhecer o racismo estrutural, é
que nos motiva a propor essa carta-compromisso por uma justiça restaurativa antirracista.
A Comissão Especial de Justiça Restaurativa da OAB/SP e demais grupos e instituições
signatárias convidam a todas e todos a refletirem, inicialmente, sobre a coincidência de datas entre a
Semana Internacional da Justiça Restaurativa (16 a 21 de novembro) e o dia Nacional da Consciência
Negra (20 de novembro) e reconhecer a importância de fortalecer a integração entre ambas as pautas.
A celebração do Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, instituída em 2003, rememora
a morte de Zumbi dos Palmares, um grande líder da resistência negra e da luta pela liberdade,
assassinado em 1695. É, o mencionado dia, um momento de profundas reflexões sobre as relações
sociais e raciais brasileiras. A Justiça Restaurativa, por sua vez, surge como uma alternativa de diálogo
e reflexão que traz, como objetivos, a escuta atenta às pessoas que sofreram ofensa, a conscientização
de quem as praticou e, tanto quanto possível, a reparação de danos advindos dessas condutas.
Coincidência ou não, celebram-se os dois temas na mesma semana. Assim, do somatório das pautas,
surge um convite para construirmos um conceito amplo de cidadania e fortalecermos nossa
consciência sobre quem somos e de onde viemos.
Vale citar, também, outras datas importantes para a luta antirracista, de forma a serem
contextualizadas e discutidas para potencializar a reflexão a respeito do encontro de temas e
preocupações que alicerçam a presente Carta.
Datas como 21 de março, Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial, data
instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em referência ao Massacre de Shaperville, onde
a polícia sul-africana abriu fogo quando cerca de 5.000 pessoas desarmadas protestavam pacificamente
contra a “lei do passe”, deixando 69 pessoas mortas e 186 feridos. Ou seja, contra o apartheid, que, na
época, obrigava negros a portarem um cartão que indicava os locais onde era permitida sua circulação.
Outra data de total importância e significado é o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher
Negra Latino Americana e Caribenha, instituído em 1992, fruto do 1º Encontro de Mulheres Afro-
latino-americanas e Afro-caribenhas realizado na República Dominicana. No Brasil, essa mesma data,
e também no ano de 2014, foi instituída como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher
Negra. Tereza de Benguela foi uma líder quilombola, que viveu durante o Século XVIII. Com a morte
do companheiro José Piolho, Tereza se tornou a rainha do Quilombo e, sob sua liderança, a
comunidade negra e indígena daquelas terras resistiu à escravidão por duas décadas, sobrevivendo até
1770.
Diante desse contexto, é de suma importância que as duas frentes dialoguem e se alinhem em
seus discursos, motivo pelo qual lançamos a presente carta. Por meio dela, convidamos a todas as
comissões e organizações de Justiça Restaurativa ou envolvidas na prática e no estudo de programas
restaurativas do Brasil, a fortalecer o movimento antirracista, destinando o dia 20 de novembro, na
Semana da Justiça Restaurativa, para eventos e atividades que promovam reflexões a respeito da pauta
268
de combate ao racismo e que façam prevalecer, naquela semana, o dia Nacional da Consciência Negra.
A data, embora aclamada como feriado nacional, não é reconhecida por todos os municípios, o que
enfraquece a luta e a resistência da população negra. Um olhar restaurativo compreende a urgência da
pauta e se compromete a não invisibilizá-la.
Importante também nos atentarmos para o que outras datas simbolizam. Episódios onde os
processos históricos foram mascarados por narrativas convenientes de quem promoveu violências, ou
que delas se beneficiaram. O dia 13 de maio, pretensamente reproduzido como o dia da abolição da
escravidão. Além de, em 1888, marcar a liberação de corpos negros para a miséria e violência, sem
nenhuma estrutura, amparo e reparação; a escolha desta data foi ainda mais vil, já que apaga o
momento histórico de resistência conhecido como Revolta das Carrancas. De acordo com Rafael
Haddock-Lobo:
Contudo, a ardileza imperial vai longe e a data para tal encenação não foi nada inocente: em 13
de maio de 1833, há exatos 55 anos antes da assinatura da pretensa abolição da escravidão na
freguesia de Carranca nas Minas Gerais, ocorria o primeiro de uma série de levantes (como a
revolta dos Malês em Salvador–BA) no dia 24 de janeiro de 1835 e a revolta de Manoel Congo
em Vassouras–RJ em 6 de setembro de 1838). A Revolta das Carrancas marca então um
momento histórico na história do país, que tinha como objetivo o assassinato de todos os
brancos da cidade e a tomada de suas propriedades. Pois é, como memória da Revolta das
Carrancas, e como denúncia da farsa encenada pela princesa Isabel, que só queria apagar o dia
de luta de diferentes povos sequestrados de sua terra que persiste o 13 de maio. É para nos
lembrar que a abolição nunca aconteceu, e que a luta é ainda tão necessária quanto nos séculos
passados como atestamos nas favelas, nas periferias, nos elevadores de serviço, nas portas dos
fundos, e nos quartos de empregada onde pretos velhos e pretas velhas entoam seus pontos
(SIMAS; RUFINO; HADDOCK-LOBO, 2020, p. 160)
Assim como não podemos considerar o 19 de abril como um dia de “comemoração do dia do
índio”, quando, além da inapropriada referência aos indígenas, há em curso o estapafúrdio “marco
temporal” para inviabilizar mais ainda a demarcação de terras prevista na Constituição Federal; e ainda
toda sorte de mazela: racismo; queimadas, violências, desrespeito, perseguições, assassinatos. Em
pleno 2021 indígenas ainda precisam resistir para existir.
A extrema relevância e urgência na sociedade de não agudizar as tantas invisibilidades
existentes, encontra respaldo na ordem jurídica do Estado Democrático de Direito. A desequiparação
proposta pelas políticas de ações afirmativas é constitucional e está de acordo com o Princípio da
Isonomia, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2017, na ADC 41/DF. O
reconhecimento desta desequiparação é necessário face ao racismo estrutural e institucional que assola
o país e impede a igualdade material entre a população brasileira, bem como diante da necessidade de
acesso equitativo ao conhecimento e ao mercado de trabalho. Desta forma, determinar que em
processos seletivos, em âmbitos públicos ou privados, haja reserva de vagas para pessoas
autodeclaradas negras, não fere o Princípio da Isonomia, mas o materializa, pois a incorporação do
fator raça como critério de seleção contribui para a garantia da igualdade material. Tudo, por óbvio,
em consonância com o Princípio da Proporcionalidade, em sua tríplice dimensão: adequação (ou
idoneidade/ conformidade), necessidade (ou exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito.
Posto isso, a orientação desta Carta é que as instituições e organizações parceiras, atuantes no
campo da Justiça Restaurativa, atentem-se à reserva de vagas e cumpram com os seguintes parâmetros
quando da seleção, concurso, ou equivalente, em processos de formação ou contratação de
facilitadores de práticas restaurativas:
269
(i) respeitar os percentuais de reserva, na porcentagem de 20% de vaga (em
analogia à Lei 12.990/2014), o que deve valer para todas as fases do processo
seletivo (seja gratuito, oneroso, público ou privado);
(ii) a reserva deve ser aplicada em relação a todas as vagas ofertadas (com ou
sem remuneração).
O futuro da justiça restaurativa, da justiça social e de toda a nação depende de como remediar
as desigualdades raciais. Não podemos permanecer fiéis a nós mesmos como curadores do mal
se praticarmos a justiça restaurativa de maneira a ignorar a raça e fechar os olhos para os
onipresentes danos sistêmicos que continuam hoje. Como guerreiros pela justiça, nunca
seremos eficazes se também não trabalharmos para – e aspirarmos a – abordagens de cura de
modelos pessoais (DAVIS, 2019, p. 93).
Inspiradas no conceito cunhado por Fania Davis e por toda ancestralidade, fazemos um
chamado a todes, sobre uma responsabilidade radical. Este é o nosso compromisso.
Nesta sociedade, não há um discurso poderoso sobre o amor emergindo nem dos radicais
progressistas nem da esquerda. A ausência de um foco continuado sobre o amor em círculos
progressistas surge de uma falha coletiva em reconhecer as necessidades do espírito e de uma
ênfase sobredeterminada nas preocupações materiais. Sem amor, nossos esforços para libertar a
nós mesmas/os e nossa comunidade mundial da opressão e exploração estão condenados.
Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor nas lutas por libertação, não
seremos capazes de criar uma cultura de conversão na qual haja um coletivo afastando-se de
uma ética de dominação. Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e
nossas aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou de outra, para
dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo, racismo, classismo. Sempre me
intrigou que mulheres e homens que passam uma vida trabalhando para resistir e se opor a uma
forma de dominação possam apoiar sistematicamente outras. Fiquei intrigada com poderosos
líderes negros visionários que podem falar e agir apaixonadamente em resistência à dominação
racial e aceitar e abraçar a dominação sexista das mulheres; com feministas brancas que
trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm grandes pontos cegos quando se
trata de reconhecer e resistir ao racismo e à dominação por parte da supremacia branca do
planeta. Examinando criticamente esses pontos cegos, concluo que muitas/os de nós estão
motivadas/os a mover-se contra a dominação unicamente quando sentimos nossos interesses
270
próprios diretamente ameaçados. Muitas vezes, então, o anseio não é para uma transformação
coletiva de sociedade, para um fim da política de dominações; mas simplesmente para o fim do
que sentimos que nos machuca. É por isso que precisamos desesperadamente de uma ética do
amor para intervir em nosso desejo autocentrado por mudança. Fundamentalmente, se estamos
comprometidas/os apenas com a melhoria daquela política de dominação que sentimos
conduzir diretamente para nossa exploração ou opressão individual, não apenas permanecemos
ligados ao status quo, mas agimos em cumplicidade com ele, nutrindo e conservando esses
mesmos sistemas de dominação. Até todas/os nós sermos capazes de aceitar a natureza
interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e reconhecermos as formas
específicas de manutenção de cada sistema, continuaremos a agir de forma a minar nossa busca
individual por liberdade e nossa luta por libertação coletiva .
Aderem à Carta,
Ademir José da Silva
Adriana Bobilho
Adriana Borghi
Adriana Gianvecchio
Agostinha Oliveira
Alê Almeida
Alexandra Costa
Alexandre Nogueira Martins
Alice Gomes Rodrigues dos Santos
Aline Cristina Barbosa
Amanda Castro Machado
Amanda Gacia Teixeira
Ana Evangelista
André Tredinnick
Andreina Bravo
Assembleia Popular da Cinelândia - RJ
Assembleia Popular do Largo do Machado - RJ
Carolina Fetchir Ribeiro da Silva
271
Cdhep - Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo
Celia Passos
Cintia Santos
Clara Welma Florentino e Silva
Clariane Santos
Claudia Patrícia de Luna Silva
Cleone Santos
CNVENB- Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil do Conselho Federal da
OAB assina.
Coletes Rosas
Coletiva Luana Barbosa
Coletiva Nenhuma Luana a Menos
Coletivo Abayomi
Coletivo enquanto viver luto
Coletivo Garoa
coletivo jararaca
Coletivo mulheres da luz
Coletivo Ponto de Difusão
Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP
Comissão da Igualdade Racial da 12ª Subseção da OABSP - Ribeirão Preto
Comissão de Direito Penal da OABSP
Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP
Comissão de Processo Penal da OABSP
Comissão Permanente da Advocacia Pública da OABSP
Conselho de Promoção de Igualdade Racial de Osasco.
Cooperativa Libertas
Cristiane Oliveira
Daniel Seixas Rondi
Dina Alves
Diva Zitto
Elas por Elas Vozes e Ações das Mulheres
Elena Vasconcellos Funcia Lemme
FADDH - Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos
Fania Davis
Fernanda Fonseca Rosenblatt
Fernanda Souza Pereira de Lima Carvalho
Flávio de Leão Bastos Pereira
Gabriela Sequeira Kermessi
GEDHRI Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Relações Internacionais - Universidade Federal
do ABC- UFABC
Geisa Rodrigues Gomes
Géssica Arcanjo
Graça Mello
Graça Mello
Graciela Rodriguez
272
Gustavo de Oliveira Antônio
Helga Maria da Conceição Miranda
Idibal Pivetta/César Vieira
IMDH- Instituto Memória e Direitos Humanos da UFSC
Indômitas Coletiva Feminista
Instituto da Advocacia Negra Brasileira - IANB
Iure Oliveira de Sá
Jaciara de Souza Carvalho
Janaína Soares Gallo
Jaqueline da Conceição Lopes de Jesus
Joana Blaney
José Abel de Góis
José Blanes Sala
José Henrique de Azevedo Camello
Joselene Barbosa Linhares
JRLab - Grupo de Estudos sobre Justiça Restaurativa do Centro Universitário Campo Real
Juliana Tonche
Livia de Souza Vidal
Lorena Ferreira Martins
Luana de Oliveira
Luis Bravo
Marcia Chevrand
Maria Aparecida da Silva
Maria Edijane Alves Lacerda
Maria Sueli Rodrigues de Souza
Maria Sueli Rodrigues de Souza
Mariana Pasqual
Marília Montenegro
Marina Ganzarolli
Marisa Alves Vilarino
MCTP - Movimento contra o Tráfico de Pessoas
Me Too Brasil
Michelle Karen Santos
Midia 1508
Monique de Carvalho Cruz
Movimento da Mulher Negra Brasileira-MMNB
Movimento Independente das Mães de Maio
Movimento Mandala do Bem
Movimento Parem de Nos Matar
NAJURP- Núcleo de Assistência Jurídica Popular da Universidade de São Paulo- Faculdade de Direito
de Ribeirão Preto/USP
Neon Cunha
Núcleo de Álcool, Outras Drogas e Saúde Mental da OABSP
Núcleo de Cultura de Paz e Práticas Restaurativas Nelson Mandela
Nujures
273
O Coletivo de Terapeutas Solidários SP
Ornela Maria Aleixo.
Paloma Machado Graf
Pastoral Carcerária Nacional
Patrícia Massa
Pedro Pontual
Petronella Maria Boonen
Rachel Tomás dos Santos Abrão
RAKI-Conselho Independente de Defesa dos Direitos das Pessoas Negras
Rede de Comunidade e Movimentos Contra a Violência RJ
Rede Feminista de Juristas - deFEMde
Renata Soares Ramos Falcão
Roberta Estrela D’Alva
Rômulo Paulino Maia
Rômulo Ventura
Rosana Rufino
Rosane Megue RJ
Roseli Barbosa
Salloma Sallomão
São Carlos Ativo
Silvia Helena
Silvia Vieira
Simone Henrique
Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Alenquer
Sonia Ribeiro da Silva - Grupo de mulheres ao encontro dos irmãos de rua
Sueli Evangelista de Souza
Tereza Rocha
Vanilda Honoria dos Santos
Vera Lucia da Conceição
Vera Regina Pereira de Andrade
Veronica Bolina
Viviane Cantarelli
Willey Sucasas
William Vinicius Pinto
Zilda Maria de Paula
25 de julho de 2021
Comissão de Justiça Restaurativa da OAB/SP
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