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Da alienação à angústia
Emergir
“O horror da minha violência palpitava, vivo, nas mãos ainda trementes. Mas sentia que
esse horror não era tanto pela violência quanto pela cega manifestação em mim de um
sentimento e de uma vontade que, por fim, me tinham dado corpo: um corpo bestial que
inspirara medo e tornara as minhas mãos violentas.
Tornava-me «um».
Eu.
Finalmente!” Livro 6, I
“Mas quer ver-se sempre. Em todos os actos da sua vida. É como se tivesse sempre diante
de si a sua imagem, em cada acto, em cada gesto. E a sua intolerância talvez provenha
disso. Você não quer que o seu sentimento seja cego. Obriga-o a abrir os olhos e a ver-se
num espelho que lhe está sempre a pôr diante. E o sentimento, assim que se vê, gela-se-
lhe. Não se pode viver em frente a um espelho.
Tente não se ver nunca. Porque, de qualquer modo, você nunca conseguirá conhecer-se
como os outros a vêem. E de que vale conhecer-se apenas por si? Pode-lhe acontecer não
compreender porque há-de ter aquela imagem que o espelho lhe devolve.! Conversa com
Anna Rosa (Livro 7)
Vitangelo Moscarda não estava mais alienado do que qualquer outro humano,
distraído, vivia sem se preocupar com o seu nariz e este não recebeu nenhuma atenção
até ao momento em que a sua aparência passa a estar em causa. Rapidamente, o que
está em causa nem é o nariz, mas toda a A partir daí, dá-se a cisão no cerne do eu.
Este acontecimento “rompe” com a normalidade do quotidiano de Vitangelo que,
depois disto, não consegue retomar a vida quotidiana. O que passa a estar em causa é
a própria compreensão de si mesmo, a cisão é profunda e ocorre no âmago, na relação
entre o si mesmo e o “outro” que é si mesmo, culminando na solidão existencial. O
“outro”, que é desconhecido, mas que é conhecido aos olhos dos outros, que é mais
real do que o próprio que, esse sim, é um total mistério para Vitangelo. Nestas
experiências de solidão, experimentadas por Vitangelo Mascarda
“tal como eu até agora não me tinha destacado de mim para me ver, e vivia como um cego nas
condições em que fora posto, sem considerar quais eram, pois nelas nascera e crescera e por isso me
eram naturais, também para os outros era natural que eu fosse assim;”cap. 3 vi
nos dispusemos a criar um papel imposto por nós mesmos e pela sociedade, nos tornando
fantoches voluntários da nossa própria vida
Importa notar que o papel assumido pela mulher, é de extrema relevância, uma vez que, é a
partir do seu olhar que se desencadeiam os processos de interiorização do “sentimento do
contrário”, responsáveis pela dolorosa revelação de que o modo como os outros nos veem não
corresponde ao modo como nos vemos. No romance italiano, a mulher aponta os defeitos
físicos do marido. E Vitangelo sofre como se a cumplicidade que imaginava ter com Dida
tivesse sido posta à prova, já que durante todo o tempo do casamento, ela jamais lhe havia
revelado o que, logo às primeiras páginas, surge como a cruel descoberta, à qual ele dará um
peso excessivo. Além do mais: “E dizer que precisei ter uma mulher para me dar conta de que
eram defeituosos!” (o nariz, as sobrancelhas, as orelhas, as mãos e as pernas) (PIRANDELLO,
2001, p.21).
Vitangelo Moscarda vivia alienado, distraído, ocupado da mundanidade da vida quotidiana, até
sind das, was sie betreiben]. P.163 “No que é tratado no mundo em nosso redor, os outros
ocorrem como aquilo que eles são; eles são aquilo que fazem.” Não encontramos
que desempenham, são nossos colegas ou aqueles que não têm nada que ver connosco,
básicas de lida, por um lado, e, por outro lado, são vistas como completamente reiteráveis
na forma como aparecem. Nada dizem do acontecimento de ser-o-aí que está “por trás”
delas.
Podemos perceber melhor do que se trata se analisarmos o que está implicado no seguinte
Vitangelo é o marido de Dida e nessa desincumbência perde o rasto ao ser-o-aí que é e que
está para lá disso. Torna-se um mero executor desse projecto e nesse medida, nada mais é do
assim o si a haver, que, embora, para si, não esgote ali as suas possibilidades, esgota-as ali,
segundo ele, aos olhos da suas mulher Dida2. Para Dida, ser Gengé esgota as possibilidades de
ser Vitangelo. Esta ideia compreende-se à luz Heidegger chama Aufgehen in der besorgten
for Being its Self, and has fallen into the 'world'.l p.220
1
GA 20, 336. “(...) im Zunächst und Zumeist des alltäglichen Besorgens ist das jeweilige Dasein immer
das, was es betreibt.”
2
O mesmo acontece com Dida, cujas possibilidades se esgotam para Vitangelo, na concretização da
possibilidade de ser Didá, sua mulher.
Aufgehen remete à ideia de algo estar absorvido, ou esgotar-se em algo, passando a não ser
mais do que isso. Como os professores, que para os alunos, todos os dias renascem e morrem
no espaço da escola, espaço onde existem para os servir. Autómato (um projeto que não
em geral. Nesse sentido, eu sou o que faço, na medida em que sou meramente algo que se
Temos contacto de nós para nós próprios que não é representação. Esta
permite hipocrisia: o sujeito pode pensar que é honesto – “eu sou de facto
assim!” O sujeito pode produzir uma representação de si que categoriza a
partir de si mesmo e que não tem nada a ver com ele. É como o espelho
deformar a imagem e eu não me aperceber. Posso estabelecer como minha
determinação uma que não me corresponde. Esta coisa do “conhece-te a ti
próprio” tem o seu quê de dificuldade. Que critérios permite o sujeito
reconhecer-se a si mesmo? O que é que me corresponde, qual a determinação
própria de mim?
Para a analítica existencial do dasein, a solidão não é uma falta, mas uma possibilidade de ser
do ser-aí (dasein), que se caracteriza por ser-no-mundo, isto é, por estar sempre em relação
com os entes que o cercam e consigo mesmo. O ser-aí é um ser aberto, que se projeta em
diferentes modos de existir, como o cuidado, a angústia, a autenticidade e a inautenticidade.
A citação sugere que a verdadeira solidão é um modo de ser em que o ser-aí se encontra
desligado de toda relação significativa com o mundo e consigo mesmo, de modo que sua
existência fica suspensa e perdida numa incerteza angustiante. Nesse estado, o ser-aí não se
reconhece como tal, mas se torna um estranho para si e para o mundo. A citação também
indica que esse modo de solidão só é possível com um estranho por perto, seja ele lugar ou
pessoa, que ignore completamente o ser-aí e que seja ignorado por ele. Isso significa que a
solidão não é uma mera separação espacial ou temporal, mas uma ruptura ontológica, em que
o ser-aí se fecha para a sua própria essência, que é a ex-sistência, isto é, o estar fora de si e
para além de si.
A analítica existencial do dasein pode entender esse modo de solidão como uma forma
extrema de inautenticidade, em que o ser-aí se aliena da sua própria possibilidade mais
própria, que é a morte. A morte é o limite do ser-aí, que revela a sua finitude e a sua liberdade
de escolher o seu modo de ser. Ao se confrontar com a morte na angústia, o ser-aí pode se
tornar autêntico, isto é, assumir a responsabilidade pela sua existência e pelo seu destino. Ao
contrário, ao fugir da morte na fuga cotidiana, o ser-aí pode se tornar inautêntico, isto é, se
deixar levar pelo impessoal, pelo falatório, pela curiosidade e pela ambiguidade do "se", que
dissolvem a sua individualidade e o seu sentido.
Portanto, a citação pode ser interpretada como uma descrição de um modo de solidão
inautêntica, em que o ser-aí se afasta da sua própria possibilidade mais própria e se torna um
estranho para si e para o mundo.
Somos convidados a entrar num mundo onde a presença dos outros se tornou insuportável.
Vitangelo Moscarda
apresentação.
Com efeito, não precisamos de esforço demasiado para verificar que há outros
— que estes são uma presença constante e variada no horizonte de cada um de nós.
Os “outros” são aqueles com que me deparo quando algum ruído — vindo do andar
aqueles com que me deparo enquanto coabitantes da casa em que vivo, enquanto a
massa “infinita” e anónima que observo e por que passo ao caminhar nas ruas de
Lisboa, etc. Na verdade, a presença dos outros na minha vida quotidiana é de tal
maneira uma presença confirmada a cada instante que se transforma numa evidência
já dada, em algo com um carácter tão óbvio que faz aparecer qualquer tentativa de o
trivial que é.
Mais do que isso, a presença dos outros é de tal modo uma evidência (eu conto
sempre já de tal modo com ela) que me vejo a mim próprio como um ente entre outros
entes “como eu”. Isto significa, antes do mais, que a própria forma como eu me vejo e
me observo, no meu quotidiano, está como que “invadida” pela presença maciça e a
perder de vista — uma presença que quase não encontra quebras ou interrupções —
de outros “como eu”. A presença deles é a tal ponto “invasora” que produz uma
“como eu” a partir de um ponto de vista que não está centrado em mim, mas antes me
faz ver a mim mesmo de uma perspectiva exterior para a qual eu sou um — mais um
— entre a massa de outros “como eu” que aí há e para os quais também eu sou um
- "Eu era um outro para cada um dos meus conhecidos; mas também era outro para mim
mesmo" (p. 19).
- "Eu não era mais aquele único indivíduo; era muitos indivíduos diferentes; era muitas pessoas
diferentes; era muitas pessoas diferentes em muitas pessoas diferentes" (p. 23).
- "Eu não tinha mais uma personalidade fixa e definida; tinha tantas personalidades quantas as
pessoas com quem convivia" (p. 25)."
Desenvolvendo mais a partir deste texto, podemos perguntar-nos como é que a presença dos
outros afeta o nosso modo de ser e de nos relacionarmos com o mundo. Será que os outros
são apenas uma realidade exterior e indiferente a nós, ou será que eles têm alguma influência
na nossa forma de pensar, sentir e agir? Será que os outros nos ajudam a compreender melhor
quem somos e o que queremos, ou será que eles nos confundem e nos alienam de nós
mesmos? Será que os outros nos abrem possibilidades de crescimento e de realização, ou será
que eles nos limitam e nos oprimem? Estas são algumas questões que podemos colocar
quando refletimos sobre o fenômeno da alteridade, isto é, da existência e do reconhecimento
do outro como um ser diferente de mim, mas também semelhante a mim.
A alteridade é um tema central na filosofia existencial, pois ela implica uma concepção do ser
humano como um ser relacional, que se define não apenas pela sua individualidade, mas
também pela sua interação com os outros. Os filósofos existenciais exploraram as diversas
dimensões da alteridade, tais como a comunicação, a empatia, a responsabilidade, a liberdade,
o conflito, a solidariedade, etc. Eles mostraram como os outros podem ser fontes de
enriquecimento ou de empobrecimento para a nossa existência, dependendo da forma como
nos relacionamos com eles. Eles também mostraram como os outros podem ser um desafio e
uma provocação para a nossa autenticidade, isto é, para a nossa capacidade de sermos fiéis a
nós mesmos e aos nossos projetos de vida.
Para ilustrar estas ideias, podemos recorrer a alguns exemplos concretos de situações em que
os outros desempenham um papel importante na nossa existência. Por exemplo, quando nos
apaixonamos por alguém, descobrimos uma nova forma de ver o mundo e de nos sentirmos
vivos. O outro torna-se uma fonte de alegria e de motivação para nós. Mas também podemos
sofrer por amor, quando o outro nos rejeita ou nos trai. O outro torna-se então uma fonte de
dor e de frustração para nós. Outro exemplo é quando trabalhamos em equipe com outras
pessoas. Podemos aprender com elas e beneficiar da sua colaboração e do seu apoio. O outro
torna-se uma fonte de aprendizagem e de cooperação para nós. Mas também podemos entrar
em conflito com elas e sentir-nos incompreendidos ou injustiçados. O outro torna-se então
uma fonte de tensão e de competição para nós.
Vitangelo Moscarda é um homem que se sente deslocado no mundo dos outros. Ele não se
identifica com a sua família, com o seu trabalho, com a sua sociedade. Ele se pergunta quem
ele é, qual é o seu verdadeiro eu, o que ele quer da vida. Ele decide então fazer uma
experiência radical: mudar de personalidade a cada dia, assumindo diferentes papéis e
comportamentos. Ele quer testar os limites da sua liberdade, da sua autenticidade, da sua
existência.
Mas essa experiência não é fácil nem divertida. Vitangelo depara-se com a resistência e a
incompreensão dos outros, que não aceitam as suas mudanças e o julgam como louco,
mentiroso, perigoso. Ele também se depara com os seus próprios conflitos internos, com as
suas dúvidas e angústias, com as suas contradições e incoerências. Ele descobre que não há um
eu fixo e estável, mas sim um eu múltiplo e dinâmico, que se constrói e se transforma nas
relações com os outros e consigo mesmo.