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Desempoderamento

feminino: Brasil cai no


ranking global de igualdade
de gênero. Artigo de José
Eustáquio Diniz Alves
"Depois de 60 anos de ganhos ininterruptos no mercado de trabalho,
houve um diminuição na proporção de mulheres inseridas nas diversas
profissões. Isto significa não somente um empobrecimento nacional, mas
um desempoderamento feminino", alerta José Eustáquio Diniz
Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado
por EcoDebate, 09-04-2021.
 
Eis o artigo.
 
“É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a
separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma
independência concreta” - Simone de Beauvoir (1908 – 1986)

Após o fim da Segunda Guerra Mundial o mundo passou por grandes


transformações e, especialmente depois da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, houve inegáveis
avanços nas relações de gênero. No Brasil os avanços foram
substanciais entre 1945 e 2015. As mulheres brasileiras obtiveram
conquistas históricas, avançaram na educação e na saúde, revertendo o
hiato de gênero. Passaram a ser maioria da população a partir da década
de 1940 e atingiram a maioria do eleitorado em 1998. Aumentaram as
taxas de participação no mercado de trabalho, diminuíram os diferenciais
salariais e passaram a ser maioria da População Economicamente
Ativa (PEA) com mais de 11 anos de estudo. Passaram a ser maioria dos
beneficiários da previdência e dos programas de assistência social,
conquistaram a igualdade legal de direitos na Constituição de 1988 e
obtiveram diversas vitórias específicas na legislação nacional, etc. Parecia
que o Brasil caminhava para uma situação próxima da paridade de
gênero no século XXI.
Reprodução: EcoDebate

Mas, infelizmente, o quadro mudou completamente a partir da crise


econômica, social e política ocorrida no Brasil a partir de 2014.
Naquele momento percebi que as tendências históricas estavam em
perigo. No final do ano de 2015, o Grupo de Trabalho População e
Gênero, da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP),
realizou um seminário na Fundação Carlos Chagas, em São Paulo,
para discutir o tema: “Até onde caminhou a revolução de gênero
no Brasil?” (ITABORAI; RICOLDI, 2016). O resultado das
apresentações resultou na publicação de um livro, em 2016 e que foi
lançado no XX Encontro Nacional de Estudos de População,
realizado em Foz do Iguaçu (a referência está abaixo)
Neste livro, tive a oportunidade de escrever o artigo “Crise no mercado de
trabalho, bônus demográfico e desempoderamento feminino” (Alves,
2016). O artigo reconhece os avanços de gênero ocorridos nos últimos 60
anos no Brasil, mas alerta para a mudança de conjuntura e até para
alguns retrocessos na “revolução de gênero”. Nas conclusões apontei que
o Brasil estava passando por um momento definidor para o futuro da
nação, pois estava em curso um agudo processo de rebaixamento da
estrutura produtiva (desindustrialização) e uma reprimarização da
economia em um momento em que mais de 85% da população vive em
cidades. A taxa de atividade e a taxa de ocupação sempre estiveram abaixo
da expectativa do pleno emprego, mas a partir de 2013 começaram a cair
num momento em que a estrutura etária ainda favorece a inserção
produtiva da população em idade ativa.
Termino o texto com as seguintes palavras: “Para agravar todo o
quadro, a estagnação do mercado de trabalho das mulheres e o fim do
bônus demográfico feminino podem representar, por um lado, o
“desempoderamento” das mulheres, e por outro, o ‘desdesenvolvimento’
do Brasil. A estagnação do mercado de trabalho feminino pode afetar
negativamente as relações de gênero e a possibilidade de melhoria das
condições de vida da maioria da população”.
Agora em 31 de março de 2021, o Fórum Econômico
Mundial divulgou o ranking global de igualdade de gênero,
mostrando que o Brasil ocupa o 93º lugar entre 156 nações, uma perda
de 22 posições em relação ao ano de 2014, quando estava em 71% lugar.
Uma das principais causas deste retrocesso está no mercado de trabalho
(inclusive na política), pois a taxa de atividade feminina voltou aos
níveis de 1990, quando havia menos da metade das mulheres em idade
produtiva inseridas no mercado de trabalho. Isto contrasta com o fato de
que o Brasil está vivendo o seu melhor momento demográfico e poderia
ter aproveitado este instante para dar um salto na renda e na qualidade de
vida de seus habitantes. Porém, na prática, está desperdiçando uma janela
de oportunidade única, como mostra o gráfico acima, que utiliza três
fontes de dados do IBGE, para descrever a evolução da relação entre a
população ocupada total (e por sexo) em relação ao conjunto da
população brasileira de 1950 a 2020 e com projeções até 2040.
Analisando os dados dos censos demográficos, nota-se que
a população ocupada masculina em relação à população total do país
ficou praticamente constante, em torno de 27% entre 1950 e 2010. Já
a população ocupada feminina em relação à população total cresceu
de 4,7% em 1950 para 19,2% em 2010, mostrando que a inserção
da mulher no mercado de trabalho foi o principal componente
do bônus demográfico brasileiro. O conjunto dos ocupados (homens
+ mulheres) em relação à população total passou de 32% em 1950 para
31,7% em 1970 e para 45,3% em 2010, significando que, entre 1970 e
2010, houve um aproveitamento do bônus demográfico, pois a proporção
de trabalhadores efetivos aumentou em relação aos consumidores
efetivos.
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),
também mostram que a relação entre a população ocupada e a
população total estava aumentando entre 2001 e 2014 (2015 já teve uma
pequena queda). Da mesma forma, os dados da PNAD Contínua (para o
segundo trimestre do ano) mostram que a relação entre a população
ocupada e a população total estava avançando até 2014. Portanto, as taxas
de ocupação estavam com viés de alta e, consequentemente, a renda
estava crescendo, a pobreza estava se reduzindo e o Brasil estava
aproveitando, ainda que parcialmente, o bônus demográfico.
A diferença de gênero entre as taxas de ocupação de homens e
mulheres estava se reduzindo e a maior inserção feminina no mercado de
trabalho contribuía não somente para a autonomia das mulheres, mas
para a melhoria das condições de vida de toda a população brasileira.
No Brasil, os ganhos da estrutura etária são decorrentes, essencialmente,
de um bônus demográfico feminino.
Desafortunadamente, o quadro mudou completamente com a recessão
econômica que teve início em 2014. Os dados da PNADC mostram que
a população ocupada (de 14 anos e mais) em 2014 era de 92 milhões de
pessoas e caiu para 83 milhões no segundo trimestre de 2020, a despeito
do crescimento da população total. A taxa de ocupação (PO/PT) feminina
que estava acima de 19% no início da série da PNADC, caiu para 17,5% em
2020.
Ou seja, depois de 60 anos de ganhos ininterruptos no mercado de
trabalho, houve uma diminuição na proporção de mulheres inseridas
nas diversas profissões. Isto significa não somente um empobrecimento
nacional, mas um desempoderamento feminino, conforme discutido
no artigo “Crise no mercado de trabalho, bônus demográfico e
desempoderamento feminino” (Alves, 2016).
Para aproveitar o bônus demográfico, as taxas de ocupação deveriam
seguir a linha pontilhada do gráfico entre 2020 e 2040.
O Brasil ganharia e teríamos uma maior igualdade de gênero com a
continuidade da inserção feminina no mercado de trabalho. A projeção do
aumento da taxa de ocupação para 53% pode até ser considerada
conservadora, diante de experiências como as da China e do Vietnã que
chegaram a ter cerca de 60% da população total ocupada. A experiência
internacional mostra que nenhum país conseguiu enriquecer e manter
elevados Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) após
envelhecer (ALVES e CAVENAGHI, 2019). Países de renda média que não
aproveitam o bônus demográfico costumam ficar presos eternamente na
“Armadilha da renda média”. Desta forma, o destino do Brasil está
intrinsecamente ligado ao destino das mulheres. Só haverá progresso
nacional se houver maior empoderamento feminino e
maior equidade de gênero.
Mas como mostra o Ranking global de igualdade de gênero,
do Fórum Econômico Mundial o Brasil teve uma queda significativa
nos últimos 7 anos. Segundo o ranking, os 10 países líderes na igualdade
de gênero são Islândia, Finlândia, Noruega, Nova
Zelândia, Suécia, Namíbia, Ruanda, Lituânia, Irlanda e Suíça,
conforme mostra a tabela abaixo.
Reprodução: EcoDebate
Infelizmente, como mostrei em 2015, o processo de empoderamento
feminino tinha sido interrompido e o Brasil iniciava uma fase inédita nas
últimas sete décadas, que é a novidade do desempoderamento
feminino. A pandemia da covid-19 apenas agravou uma situação que
já vinha se deteriorando desde 2014. Neste momento, somente uma
grande mobilização nacional pode mudar esta conjuntura adversa.
 
Referências:
ALVES, JED; CAVENAGHI, S. Progressos e retrocessos na conquista da
equidade de gênero no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 122, p. 11-26,
julho/agosto/setembro 2019.
ALVES, JED. Bônus demográfico no Brasil: do nascimento tardio à morte
precoce pela Covid-19, R. bras. Est. Pop., v.37, 1-18, e0120, 2020.
ALVES, J. E. D. Crise no mercado de trabalho, bônus demográfico e
desempoderamento feminino. In: ITABORAI, N. R.; RICOLDI, A. M.
(Org.). Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil? Belo
Horizonte: Abep, 2016. p. 21-44. ISBN 978-85-85543-31-0.
ITABORAI, N. R.; RICOLDI, A. M. (Org.). Até onde caminhou a revolução
de gênero no Brasil? Belo Horizonte: Abep, 2016.
SIMÕES, PHC. ALVES, JED. SILVA, PLN. Transformações e tendências
do mercado de trabalho no Brasil entre 2001 e 2015: paradoxo do baixo
desemprego? R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v.33, n.3, p.541-566,
set./dez. 2016.
WEF. Global Gender Gap Report 2021, World Economic Forum, 03/2021.

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