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A centralidade do Sistema da Dívida Pública no processo de acumulação de

capital no Brasil

Atualmente, o Governo Lula e setores da Grande Mídia iniciaram uma discussão em torno
dos elevados patamares praticados pela taxa básica de juros, a SELIC, bem como dos rumos
adotados pelo Banco Central para a condução da política monetária brasileira. De fato, este é
um tema complexo, que envolve termos pouco difundidos na classe trabalhadora, mas que
cabe o esforço de compreensão crítica, com efeito de garantir estratégias e táticas adequadas
para o enfrentamento radical de um dos principais pilares da acumulação de capital no Brasil.

A Dívida Pública Federal (DPF) brasileira expressa a principal forma de “estoque” do


endividamento da União, ou seja, consiste em um mecanismo estatal de financiamento, ao
lado da arrecadação tributária e de contribuições, para a realização de serviços públicos e
operações financeiras estruturadas pelo Estado, em seus distintos entes federados. Parte da
DPF decorre da emissão direta de títulos públicos, processo realizado pelo Tesouro Nacional,
que são compreendidos como Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Esses
títulos representaram, em 2021, próximo de 95%, ou R$ 5,34 trilhões, dos R$ 5,61 trilhões
totais da DPF, os outros 5% representaram a Dívida Mobiliária Federal externa.

Nesse sentido, a DPMFi evoluiu, nas últimas décadas, a partir de uma tendência de
crescimento exponencial, saltando, em 1995, de 15% do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja,
R$ 108,48 bilhões, para 62% do PIB, em 2021, isto é, R$ 5,34 trilhões. Tal aumento da
DPMFi evidencia a centralidade assumida por um sistema específico de extração da riqueza
socialmente produzida no Brasil, a qual é apropriada ferozmente pelo capital financeiro. Essa
riqueza aparece na forma de juros dos títulos da dívida pública, executados mediante política
monetária do Banco Central e pagos pelo Tesouro Nacional para agentes do mercado
financeiro, especificamente, banqueiros e especuladores, nacionais e estrangeiros.

Nesse sentido, os títulos públicos funcionam como “garantia” para operações de curtíssimo
prazo entre os bancos comerciais e o Banco Central. De forma “compulsória”, isto é,
determinada legalmente, os bancos comerciais devem realizar depósitos, criando reservas
monetárias em suas contas com o Banco Central, a fim de garantir a estabilidade do dinheiro
em circulação no País. Como forma de “recompensa” por esses depósitos compulsórios, o
Banco Central “aceita” trocá-los por títulos públicos, determinando periodicamente ao
Tesouro Nacional o pagamento de uma certa quantia monetária a esses mesmos bancos, a
partir da definição de uma taxa de juros de curto prazo.

Tal dinâmica financeira, compreendida como “operações compromissadas”, consistem em


transações de compra e venda de títulos públicos, com a garantia de recompra pelo Estado
Brasileiro. Nesse sentido, o Banco Central atua para fixar uma taxa básica de juros,
objetivando garantir a realização diária dos depósitos compulsórios dos bancos comerciais
que atuam no País. Sendo assim, a autoridade monetária, com intuito de aproximar a taxa de
juros do mercado aberto àquela que entende “mais adequada” à execução da política
monetária, ingressa ativamente nesse processo, determinado a média das taxas de juros de um
dia, praticadas, especificamente, em operações compromissadas com títulos públicos. Essa
especificidade da política monetária, que fixa uma média das taxas de juros de curto prazo, é
compreendida como Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC).

Nesse sentido, a taxa SELIC é determinada no interior do Banco Central, a partir dos
relatórios emitidos pelo Comitê de Política Monetária (COPOM). As diretrizes do COPOM
são voltadas para o “controle inflacionário”, sob o manto da ideologia neoliberal, pregando
que para conter a inflação deve-se, única e exclusivamente, elevar a taxa de juros. Essa
ideologia é utilizada, em boa medida, para justificar a manutenção dos elevados patamares da
taxa SELIC, sobretudo nas últimas décadas, em nome do combate à inflação. Contudo, nos
últimos anos, a inflação brasileira é, cada vez mais, determinada pela pressão do dólar, a
repercutir nos preços dos combustíveis, da energia elétrica e de outros elementos, os quais
impactam diretamente os custos de produção das mercadorias, dinâmica oposta da pregada
pelos ideólogos burgueses, que falam, de maneira abstrata, de uma “alta demanda”. Uma “alta
demanda” pressuporia uma ampla utilização dos meios de produção, da força de trabalho e
das matérias-primas, mobilizadas na produção, circulação e realização da riqueza no País. O
que se observa, entretanto, é o contrário disso, sobretudo quando se analisa a taxa de
desemprego, fixada em 9,3%, tendo chegado a 11% em anos anteriores, bem como a taxa
média de investimento, não ultrapassando 17% do PIB, taxa muito inferior à de outros países
ditos “emergentes”, registrada na média de 30% do PIB.

Assim, após o Plano Real, o grande beneficiário dessa política monetária de manutenção da
taxa SELIC em patamares elevados é o capital financeiro, nacional e estrangeiro, com
destaque para os grandes bancos comerciais, seja porque ganham diretamente com as
operações compromissadas, ou mesmo de forma indireta, porque realizam a mediação
institucional de outros proprietários dos títulos, isto é, dos fundos de pensão e de
investimento.

Todavia, largos setores da classe trabalhadora, além de pequenos e médios proprietários, são
os que mais são afetados por essa política monetária, executada pelo Banco Central e ditada
pelo capital financeiro, na medida em que se observa a estrutura dos juros cobrados desses
segmentos sociais, ou seja, fora do sistema SELIC, como, por exemplo, no rotativo do cartão
de crédito, empréstimos consignados, financiamentos automotivos e empréstimos para capital
de giro. Ao analisar os dados publicados pelo próprio Banco Central, percebe-se que os
bancos comerciais e outras instituições financeiras, os mesmos agentes que se beneficiam com
as operações compromissadas, cobram, em média, 450% ao ano de juros no rotativo do cartão
de crédito, 40% com crédito consignado, 25% com aquisição de veículos e 20% com
empréstimo para capital de giro.

Tais taxas de juros, além de não terem uma vinculação explícita com a taxa SELIC,
atualmente, mantida no patamar de 13,75%, são completamente incompatíveis com a
manutenção e/ou melhoria da qualidade de vida da classe trabalhadora, bem como da
expansão da capacidade produtiva e tecnológica do País. Em verdade, essas taxas exorbitantes
referem-se à concentração e centralização do sistema bancário no Brasil, no qual cinco bancos
realizam mais de 80% das transações financeiras nacionais e, portanto, se autorizam a cobrar
taxas extremamente abusivas da classe trabalhadora e dos pequenos e médios proprietários,
criando outro importante canal de extração da riqueza socialmente produzida no Brasil.

Do ponto de vista das finanças públicas em geral, a política monetária, executada pelo Banco
Central e ditada pelo capital financeiro, garante a drenagem, cada vez maior, de parcelas do
fundo público para o pagamento de juros e encargos do sistema da dívida pública, afetando
enormemente a sustentabilidade no tempo da execução de uma política fiscal em prol da
classe trabalhadora. Em corroboração a isso, tem-se que, apenas em 2021, em meio à
pandemia de COVID-19, a União, no que tange à remuneração dos proprietários dos títulos da
dívida pública, desembolsou R$ 551,41 bilhões. No mesmo período, as despesas da União
referentes à saúde totalizaram R$ 187,51 bilhões, montante 3,5 vezes menos do que foi gasto
para executar o serviço da dívida. O que se percebe, portanto, é um assalto, legitimado tanto
pela Grande Mídia quanto pelo arcabouço jurídico-contábil, ao fundo público, isto é, a
riqueza socialmente produzida no Brasil.

Nesse sentido, as despesas fiscais e da seguridade social, ou seja, a atuação do Estado na


prestação dos serviços públicos, essenciais para a realização de direitos fundamentais à classe
trabalhadora, como educação, saúde, previdência social, habitação, saneamento etc, são
“congeladas”, através do Teto de Gastos, da Lei de Responsabilidade Fiscal e outras
“amarras” jurídico-contábeis, em detrimento do livre fluxo e ampliação das despesas
financeiras, isto é, do pagamento de juros e da rolagem da DPMFi.

Assim, tais elementos expressam, na dinâmica de acumulação de capital no Brasil, a


centralidade assumida pelo sistema da dívida pública e, especificamente, da remuneração dos
títulos públicos, mediante taxa SELIC, em benefício exclusivo ao capital financeiro, nacional
e estrangeiro. Nesse sentido, tais processos ainda são reproduzidos como um mecanismo
político-ideológico de subordinação irrestrita à agenda neoliberal, que apregoa uma política
de arrocho fiscal e, ao mesmo tempo, uma política monetária que utiliza a taxa de juros como
único mecanismo capaz de “frear” a inflação.

Diante disso, o Governo Lula, apesar de tecer críticas superficiais aos elevados patamares da
taxa SELIC, não dá sinais, em curto e médio prazos, de modificação estrutural dessa dinâmica
de acumulação de capital. Portanto, para garantir uma transformação radical desse processo
parasitário de extração da riqueza socialmente produzida por frações das classes dominantes,
em prol da realização do poder popular, faz-se necessário pautar a imediata reversão da
autonomia do Banco Central, a revogação do Teto de Gastos, bem como recolocar na mesa,
como pauta de luta a curto prazo, a regulação do Sistema Financeiro Nacional, processo
previsto na Constituição de 1988, especificamente, no seu artigo 192, e, a longo prazo, a
estatização do sistema bancário nacional, a fim de garantir a contínuo financiamento da
melhoria da qualidade de vida da classe trabalhadora, bem como a expansão da capacidade
produtiva e tecnológica do Brasil.

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