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Brazilian Journal of Development 80531

ISSN: 2525-8761

Urgência subjetiva: uma atualização do trauma

Subjective urgency: an actualization of trauma


DOI:10.34117/bjdv8n12-247

Recebimento dos originais: 23/11/2022


Aceitação para publicação: 26/12/2022

Ivone Maia de Mello


Doutorado em Educação
Instituição: Universidade Estadual de Santa Cruz
Endereço: Rod. Jorge Amado, Km 16, Salobrinho, Ilhéus - BA, CEP: 45662-900
E-mail: immello@uesc.br

Mariana Machado Santa Bárbara


Graduanda em Psicologia, Voluntária PEVIC em Programa de Iniciação Científica
Instituição: Universidade Estadual de Feira de Santana
Endereço: Av. Transnordestina, S/N, Feira de Santana, Novo Horizonte - BA,
CEP: 44036-900
E-mail: marianamsb94@gmail.com

RESUMO
A pesquisa sobre o conceito de trauma inicia em Freud, com o conceito de trauma ligado
a uma experiência cuja intensidade deixa uma marca associada a um mal estar.
Posteriormente, o conceito é revisto e tomado mais em função da intensidade que deixa
uma marca no inconsciente, associada a uma representação, que incide sobre o sujeito, e
não necessariamente associada a um acontecido. Com metodologia teórico dedutiva, de
caráter monográfico, examinamos o caso clínico publicado por Araceli Fuentes,
apresentado e discutido durante uma conversação clínica, que integra o volume
organizado por Miller sobre os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise. Neste caso, a
urgência aparece como ruptura no cotidiano e coloca em questão o laço com o outro e
com seu próprio corpo. Frente à angústia, o sujeito se apressa em passar do instante de
ver ao tempo de concluir, sem o tempo de compreender. O trabalho com a urgência visa
estabelecer uma pausa, através do encontro com um analista, de modo que esse intervalo
permita a subjetivação, através da fala, uma reelaboração e esvaziamento dessa
intensidade traumática. Esse encontro com a psicanálise é viabilizado de diferentes
maneiras; no caso examinado, através da Rede Assistencial da ELP, em Madri.
Comentamos também a experiência de outros dispositivos, tais como o P.A.U.S.A e o
Projeto “Clínica da urgência” , nos quais são ofertadas algumas sessões para que o sujeito
possa elaborar algo desse encontro com um real, o que não anula a marca da experiência,
mas pode reduzir seus impactos e forjar um novo modo de lidar com seus restos.

Palavras-chave: trauma, angústia, urgência subjetiva, psicanálise, tratamento.

ABSTRACT
Research on the concept of trauma begins in Freud, with the concept of trauma linked to
an experience whose intensity leaves a mark associated with a discomfort. Later, the
concept is revised and taken more as a function of the intensity that leaves a mark in the
unconscious, associated with a representation that affects the subject, and not necessarily

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associated with an event. With a deductive theoretical methodology, of monographic


character, we examine the clinical case published by Araceli Fuentes, presented and
discussed during a clinical conversation, which is part of the volume organized by Miller
about the rapid therapeutic effects in psychoanalysis. In this case, urgency appears as a
rupture in everyday life and calls into question the bond with the other and with her own
body. Faced with anguish, the subject rushes from the instant of seeing to the time to
conclude, without the time to understand. The work with urgency aims to establish a
pause, through the encounter with an analyst, so that this interval allows subjectivation,
through speech, a reworking and emptying of this traumatic intensity. This encounter with
psychoanalysis is made possible in different ways; in the case examined, through the
ELP's Assistential Network in Madrid. We also comment on the experience of other
devices, such as the P.A.U.S.S. and the Project "Clinic of Urgency", in which some
sessions are offered so that the subject can elaborate something of this encounter with a
real, which does not annul the mark of the experience, but can reduce its impacts and
forge a new way of dealing with its remains.

Keywords: trauma, anguish, subjective urgency, psychoanalysis, treatment.

1 INTRODUÇÃO
Vivemos em um tempo de urgência, em que fatores políticos, econômicos e
sociais, a aceleração decorrente da digitalização dos processos de trabalho, agravados
pela ainda presente pandemia de covid-19 constituem o cenário da época em que os seres
falantes precisam se haver com suas próprias questões. O mal estar parece encontrar cada
vez menos um destino que funcione como uma solução sintomática. Essa apresentação
contemporânea do sofrimento nos levou à investigação sobre as urgências subjetivas.
(SOTELO, 2010).
Orientando a discussão teórica, partimos da conversação clínica sobre o caso
Minna, apresentado por Araceli Fuentes no livro Efeitos Terapêuticos Rápidos
(MILLER, 2008). Minna foi uma das pessoas afetadas pelo atentado de 11 de março de
2004 em Madrid. Nesse dia aconteceram atentados terroristas coordenados contra o
sistema de trens suburbanos dos arredores da capital espanhola. As explosões mataram
193 pessoas e feriram 2050. Minna, uma imigrante romena de 38 anos, que estava na
Espanha há um ano e meio, só não estava em um dos trens quando as bombas explodiram
porque havia combinado com suas amigas de tomar um café na estação de Atocha, antes
de ir para o trabalho. Ao ouvir as primeiras explosões, Minna imaginou serem bombas
e, aterrorizada, saiu correndo, enquanto caminhava para longe daquele lugar cruzou com
o olhar de um homem no chão com o rosto ensanguentado, referido por ela "como um
Cristo estirado que a mirava". A imagem desse olhar continuou a aparecer, a cada noite,

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nos pesadelos que se repetiam sem cessar.


Tomada pela angústia, Minna procura os serviços de urgência, recusa-se a tomar
tranquilizantes, faz entrevistas com uma psicóloga da Prefeitura e tenta reunir-se com
outros romenos para colocar-se sob a proteção de sua Embaixada, entretanto nenhuma
dessas ações permitem a ela encontrar um lugar onde deter o mal estar. A partir daí passa
então a se sentir culpada por não ter ajudado os feridos, com a sensação de não estar à
altura do ideal transmitido por seu pai, um pai religioso que “havia-lhe ensinado que,
frente à agressão do outro, devia-se responder como Cristo, oferecendo a outra
face.”(MILLER, 2008, p.18-19) O fato de ela ter fugido é lembrado através do Cristo
estirado a cada noite em um pesadelo que se repete. É nesse contexto que procura a Rede
Assistencial da ELP, na qual encontra a analista:

Na primeira entrevista, ela está tomada pela angústia, há dias que um estado
de agitação não a deixa descansar.(...)Minna não fala bem o espanhol, entre
lágrimas, tenta fazer-se entender. Sente-se culpada por ter saído correndo da
estação, por não ter ficado e ajudado os feridos, por não estar à altura do ideal
transmitido por seu pai, um pai todo amor, muito religioso, pertencente
à Igreja dos Adventistas do Sétimo Dia.(...)Frente ao real do trauma, o recurso
ao pai que seria todo amor não obtém resposta. Continua angustiada, sua
tentativa de suplência pela via do sentido religioso fracassa. Eu a acolho
sem desculpabilizá-la, fico em silêncio. A culpa logo desliza e recai sobre o
outro: a culpa é do outro- "os marroquinos, os terroristas". A culpa deixa seu
lugar ao ódio, um ódio desconhecido por ela até então.O acontecimento
traumático levou-a a confrontar-se subitamente com seu ódio. (MILLER,
2008, p.18-19)

Durante as Conversações que se seguem à apresentação do caso, Miller (2008)


informa que nos atentados de Madri existiram traumatizados e não traumatizados. Não
necessariamente o fogo, as mortes e os incêndios configuram um trauma, “pessoas vão
vê-lo no cinema por prazer. E o perigo em si mesmo não é traumatizante.As pessoas se
põem em perigo por prazer, por exemplo, quando fazem saltos de cima das
pontes.”(MILLER, 2008, 41) Dessa forma, podemos pensar: o que é traumático para
Minna?
Freud inicialmente conceituou o trauma como uma experiência sexual prematura
(1886/1996), uma situação real, pela qual uma criança teria passado, de sedução por parte
de um adulto ou criança mais velha, sem que pudesse apreender o sentido, precisando de
uma segunda cena para que o trauma se constituísse como tal. Quando, na puberdade,
uma vivência despertaria a recordação do fato vivido no passado despertando uma
liberação da libido, não liberada na primeira cena, que num segundo tempo seria

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convertida em angústia. Sendo esse segundo tempo em retroação ao primeiro o que


configura o trauma. Noção que é reconsiderada ao introduzir o conceito de realidade
psíquica, dessa forma não necessariamente a cena de sedução seria real, a primeira cena
poderia ter acontecido na realidade psíquica do sujeito. Em ambos os casos a angústia
seria o afeto que incidiria posteriormente em relação ao recalque.
A noção de trauma acaba sendo revisada com o caso do “Homem dos Lobos”, isso
porque nele Freud (1917/2010) descreve que os sintomas de angústia só teriam aparecido
no “Homem dos Lobos” imediatamente após um evento, o sonho. Assim, o evento que
permitiu a divisão subjetiva não foi um trauma exterior, e sim um sonho. No avançar de
seus estudos, em 1920, após a Primeira Guerra Mundial, Freud localiza o trauma com a
introdução do conceito de pulsão de morte, atribuindo ao conceito o caráter de uma força
que prevalece sobre o princípio do prazer, como a tendência a repetir que funda a
orientação do sujeito na busca do objeto. (1920/2014)
Em Inibição, Sintoma e Angústia (1926/2014), a concepção freudiana acerca do
trauma ganha novos contornos, como sendo o perigo do trauma referido à ameaça de
castração, “a angústia que gera a repressão, e não, como julguei anteriormente, a repressão
que gera a angústia” (FREUD, 1926/2014, p.43) Dessa maneira, a angústia não seria a
conversão da libido reprimida, mas reproduzida como um afeto a partir de “uma imagem
mnêmica já existente” (FREUD, 1926/2014, p.23) O que, para o autor, fez o trauma
ocupar o lugar de inassimilável como aquele que põe todo o aparato para funcionar.
O Seminário, livro 10: a angústia (1962-63/2005) de Lacan, que tem como ponto
de partida o texto Inibição, sintoma e angústia, configura a angústia de castração como o
sinal da angústia. Miller (2005), comenta que no Seminário 10 Lacan concebe a angústia
como “via de acesso ao que não é significante.” (p.11) Sendo assim uma forma de acessar
o resto que não é significante, o que escapa:

Os significantes fazem do mundo uma rede de traços em que a passagem de


um ciclo a outro torna-se então possível. Isso quer dizer que o significante
gera um mundo, o mundo do sujeito falante, cuja característica essencial é
que nele é possível enganar. A angústia é esse corte - esse corte nítido sem o
qual a presença do significante, seu funcionamento, seu sulco no real, é
impensável; é esse corte a se abrir, e deixando aparecer o que vocês
entenderão melhor agora: o inesperado, a visita, a notícia, aquilo que é tão
bem exprimido pelo termo "pressentimento", que não deve ser simplesmente
entendido como o pressentimento de algo, mas também como o pré
sentimento, o que existe antes do nascimento de um sentimento.Todos os
desvios são possíveis a partir da angústia. O que esperávamos, afinal de
contas, e que é a verdadeira substância da angústia, é o aquilo que não
engana, o que está fora de dúvida.(LACAN, 1962-63/ 2005,p.87-88)

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A angústia como um afeto que não engana por ser uma irrupção do real no
simbólico, uma presença que escapa a qualquer possibilidade de sentido, o real
traumático atualizado. O que pode ser percebido no caso Minna, quando esta percebe a
imagem do que ela nomeou como sendo o “Cristo estirado” no chão. Palomera, ao
comentar o caso Minna destaca que o que faz com que “exista uma participação subjetiva
nesse acontecimento traumático, é justamente ·que, durante a fuga, ela se encontra com
alguém ferido que lhe recorda a imagem de um Cristo” (MILLER, 2008, p.34), ao que
Fuentes confirma: há implicação subjetiva no trauma através dessa imagem. Essa a
concepção de Lacan de que a angústia emerge a partir do furo que o real produz no campo
simbólico, fazendo com que algo fique fora do campo do sentido, a partir daquele
momento. Não em razão do evento em si, a exemplo do atentado de
Madri para Minna, mas pela participação subjetiva dela que fez despertar o sem
sentido. Miller destaca que “ se produz um traumatismo quando um fato entra em
oposição com um dito, com um dito essencial da vida do paciente” (MILLER, 2008,
p.41), de forma que a angústia pode aparecer como o resultado de uma incompatibilidade
entre uma cadeia de significações ordenadas, e a emergência do real sem lei.
No caso de Minna, o acontecimento do atentado despertou o real traumático que
fez Minna ficar frente a um ódio desconhecido, que pode ser visto como o encontro com
um ponto de sem sentido, um gozo ignorado por ela mesma. Diante disso, a ferramenta
de ir buscar a memória do pai que seria todo amor não teve resposta. Seguindo
angustiada, inicialmente culpando a si mesma, depois deslizando essa culpa sobre o
outro, para então dar lugar a um ódio, ignorado pela paciente até então.
Essa concepção de trauma proposta pela psicanálise vai de encontro a ideia de
generalização do trauma, como sendo comum aos indivíduos que partilham da mesma
experiência. Para a psicanálise, o conceito de trauma está localizado não no evento em si
mas na ruptura, no que torna ”a vida difícil de suportar a cada vez que certos
acontecimentos, muitas vezes insignificantes em si, evocam esse ponto, essa ferida
incurável.” (BARROS, 2015, p.2)
É o choque do significante com o corpo que é o traumático. Ficando como uma
iteração de gozo, que não tem significação, separado da estrutura da linguagem, um
impacto das palavras escutadas, um gozo impossível de simbolizar. O trauma estando
nesse ponto composto por palavras “imantadas de gozo” que marcam a repetição a partir
do qual algo pode ser elaborado, não porque podem ser acolhidas com algum sentido
mas justamente por serem destituídas de sentido:

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Assim, um episódio qualquer, vivido pela criança, pode ser traumático se seus
efeitos vierem a demonstrá-lo. Ao contrário, uma tragédia não
necessariamente produz um trauma. Isso não quer dizer que não se possa estar
imerso em um ambiente cultural – por exemplo, as guerras e as tragédias
naturais – que facilite a mobilização de excessos de gozo. No entanto, esses
fatos ou episódios cairão para cada um de formas diferenciadas. (CALDAS,
2015, p.7)

O fato de estarmos vivendo em um tempo em que a urgência se faz presente de


forma generalizada pode facilitar essa mobilização de excessos de gozo, isso porque na
urgência se trata de um sofrimento relacionado ao laço social, não havendo como
dissociar do tempo
em que vivemos.
Nessa época, do Outro que não existe como um ideal compartilhado, que se
apresenta como vazio subjetivo, o discurso científico que pretende certa ordenação falha
em relação a proteger o sujeito da angústia:

À medida que a ciência avança na descrição de cada uma de nossas


determinações objetivas, desde a programação genética até a programação do
ambiente global, passando pelo cálculo dos possíveis riscos, ela faz existir
uma causalidade determinística universal. O mundo, mais do que um relógio,
parece hoje um programa de computador.(...) Na medida em que apenas essa
causalidade é admitida, surge o escândalo do contingente, do impossível
programar do trauma. (...)Tudo o que não é programável torna-se trauma
(LAURENT, 2005, p. 40)

Frente a angústia, o sujeito se apressa em uma certeza precipitada sem um tempo


de compreender, a operação psicanalítica entrando nesse espaço para trabalhar de modo
que esse tempo necessário para compreender não seja atropelado na pressa por concluir
(SOTELO, 2020). Esse parêntese foi chamado por Seldes (2019) de introduzir um tempo
de pausa, abrindo espaço para a subjetivação, o que poderia dar lugar à passagem da
urgência generalizada para a urgência subjetiva. A pausa como sendo uma resposta da
psicanálise à urgência, de modo que o sujeito possa elaborar uma nova relação com o
real, a partir do encontro com uma analista. É a introdução de um tempo de pausa, através
da operação analítica, que deu a Minna a chance de ela ter uma experiência diferente com
a palavra. Através dos sonhos, a urgência sendo subjetivada como um novo laço que
incluía em sua resolução sua causa. Em uma das entrevistas com a analista, Minna chegou
muito angustiada porque soube o que havia acontecido: os terroristas tinham tentado
lançar pelos ares a linha do trem, El Ave. A partir daí Minna se pergunta “Que faço
aqui?” (no país que não o seu de origem). Foi nesse ponto que a analista percebeu uma
abertura do inconsciente. Nessa entrevista, ela pediu à paciente um dicionário e na

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entrevista seguinte, trouxe o dicionário e contou um sonho:

A partir desse momento, abre-se a via do inconsciente, e uma série de sonhos


irão surgindo em sucessivas entrevistas. Esses sonhos têm a particularidade de
ser resolutivos. A restituição da trama do sentido e a inscrição do trauma na
particularidade inconsciente do sujeito são curativas. (MILLER, 2008, p. 20)

É essa abertura do inconsciente e a orientação para um saber que pode produzir a


transferência, a ruptura que provocou a crise, no caso de Minna, a separação mal resolvida
quanto à imigração. Para Laurent, no momento em que o real irrompe e Minna foge, ela
mostra que não consegue viver de acordo com o discurso religioso transmitido por seu
pai, sua posição sendo o oposto de uma posição idealizadora. A partir do encontro com
a analista Minna consegue se responsabilizar pelo que foi despertado nela a partir do que
passou e fazer algo com isso.

A responsabilidade do sujeito passou em um primeiro momento por


reconhecer o ódio que se havia despertado nele em decorrência do trauma, “um
ódio até então desconhecido”. Diante da realidade do trauma, o apelo ao pai
que seria todo amor não tem resposta. O sujeito ainda está angustiado; e essa
angústia é uma tentativa de substituição pelo sentido religioso que falha ....
Ouvir esse ódio dizer e manter o caminho aberto para que um dia o caráter de
vergonha possa emergir na subjetivação de seu ser, foi a orientação seguida
pelo analista. (LAURENT, 2005, p.31-32, tradução nossa)

O encontro com uma analista permite uma invenção diante desse sem sentido,
como uma convocação que põe o sujeito a trabalho. No caso Minna, nas últimas sessões,
Fuentes se surpreende ao saber que Minna tinha um tumor vaginal descoberto antes do
atentado do qual não se havia ocupado durante meses. De maneira que esse tumor estava
se desenvolvendo havia muito tempo.

Efetivamente, o maior efeito terapêutico para essa mulher não foi somente o
desaparecimento da sintomatologia do stress pós-traumático, da angústia e da
hiperatividade que não a deixava manter-se quieta em nenhuma parte, mas
também poder se ocupar de seu próprio corpo, para não terminar efetivamente
como o Cristo estendido em sua tumba. (MILLER, 2008, p.31)

Dessa forma, o encontro com a analista possibilitou uma reinvenção do discurso


de Minna, de modo que outros impasses nos quais ela se detinha puderam em certa
medida encontrar um caminho. Fuentes destacou que durante todo o tempo cuidou para
que houvesse um lugar vazio de modo que o sentido não viesse tamponar a produção.
Esse encontro com a psicanálise foi possível através da Rede Assistencial da ELP, em
Madri, dispositivo criado em decorrência dos fatos de 11 de março, com a finalidade de

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atender aos afetados pelos atentados. O tratamento ofertado foi gratuito e com uma
limitação de tempo de seis meses. Outros dispositivos que ofertam assistência à urgência
são o P.A.U.S.A e o Projeto “Clínica da urgência” vinculado ao atendimento do Hospital
das Clínicas da UFMG.
P.A.U.S.A (Psicanálise Aplicada às Urgências Subjetivas da Atualidade)
(SELDES, 2008) é um centro de assistência, ensino, pesquisa que oferece cuidados
psicanalíticos para
tratamento de urgências subjetivas, localizado em Buenos Aires, Argentina.
Funciona como um dispositivo auxiliar criado pela Fundación Casa del Campo
Freudiano, la Escuela de Orientación Lacaniana EOL e el Instituto Clínico de Buenos
Aires IcdeBA, e tem por objetivo proporcionar um espaço para a subjetividade, com
tratamentos breves orientados à resolução das urgências. Outro projeto “Clínica da
urgência” (SOTELO, 2007) vinculado ao atendimento do Hospital das Clínicas da
UFMG, construído e implementado por Lucíola Macêdo (2010), que teve início, em
2007, com a parceria de trabalho entre o Serviço de Psicologia do Hospital das Clínicas
da UFMG e o Núcleo de Psicanálise e Medicina do Instituto de Psicanálise e Saúde
Mental de Minas Gerais (IPSM-MG). Nesse espaço é ofertado ao paciente uma escuta,
um intervalo para acolher o sujeito em crise. Em ambos os casos o que é ofertado é um
tempo de pausa possibilitando uma outra saída frente ao real do trauma.

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Aires:Colección Diva, 2019.

SOTELO, M.I.; BELAGA, G.; FREITAS DE MACÊDO, L. & PIMENTA FILHO, J.


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