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ISSN: 2525-8761
RESUMO
A pesquisa sobre o conceito de trauma inicia em Freud, com o conceito de trauma ligado
a uma experiência cuja intensidade deixa uma marca associada a um mal estar.
Posteriormente, o conceito é revisto e tomado mais em função da intensidade que deixa
uma marca no inconsciente, associada a uma representação, que incide sobre o sujeito, e
não necessariamente associada a um acontecido. Com metodologia teórico dedutiva, de
caráter monográfico, examinamos o caso clínico publicado por Araceli Fuentes,
apresentado e discutido durante uma conversação clínica, que integra o volume
organizado por Miller sobre os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise. Neste caso, a
urgência aparece como ruptura no cotidiano e coloca em questão o laço com o outro e
com seu próprio corpo. Frente à angústia, o sujeito se apressa em passar do instante de
ver ao tempo de concluir, sem o tempo de compreender. O trabalho com a urgência visa
estabelecer uma pausa, através do encontro com um analista, de modo que esse intervalo
permita a subjetivação, através da fala, uma reelaboração e esvaziamento dessa
intensidade traumática. Esse encontro com a psicanálise é viabilizado de diferentes
maneiras; no caso examinado, através da Rede Assistencial da ELP, em Madri.
Comentamos também a experiência de outros dispositivos, tais como o P.A.U.S.A e o
Projeto “Clínica da urgência” , nos quais são ofertadas algumas sessões para que o sujeito
possa elaborar algo desse encontro com um real, o que não anula a marca da experiência,
mas pode reduzir seus impactos e forjar um novo modo de lidar com seus restos.
ABSTRACT
Research on the concept of trauma begins in Freud, with the concept of trauma linked to
an experience whose intensity leaves a mark associated with a discomfort. Later, the
concept is revised and taken more as a function of the intensity that leaves a mark in the
unconscious, associated with a representation that affects the subject, and not necessarily
1 INTRODUÇÃO
Vivemos em um tempo de urgência, em que fatores políticos, econômicos e
sociais, a aceleração decorrente da digitalização dos processos de trabalho, agravados
pela ainda presente pandemia de covid-19 constituem o cenário da época em que os seres
falantes precisam se haver com suas próprias questões. O mal estar parece encontrar cada
vez menos um destino que funcione como uma solução sintomática. Essa apresentação
contemporânea do sofrimento nos levou à investigação sobre as urgências subjetivas.
(SOTELO, 2010).
Orientando a discussão teórica, partimos da conversação clínica sobre o caso
Minna, apresentado por Araceli Fuentes no livro Efeitos Terapêuticos Rápidos
(MILLER, 2008). Minna foi uma das pessoas afetadas pelo atentado de 11 de março de
2004 em Madrid. Nesse dia aconteceram atentados terroristas coordenados contra o
sistema de trens suburbanos dos arredores da capital espanhola. As explosões mataram
193 pessoas e feriram 2050. Minna, uma imigrante romena de 38 anos, que estava na
Espanha há um ano e meio, só não estava em um dos trens quando as bombas explodiram
porque havia combinado com suas amigas de tomar um café na estação de Atocha, antes
de ir para o trabalho. Ao ouvir as primeiras explosões, Minna imaginou serem bombas
e, aterrorizada, saiu correndo, enquanto caminhava para longe daquele lugar cruzou com
o olhar de um homem no chão com o rosto ensanguentado, referido por ela "como um
Cristo estirado que a mirava". A imagem desse olhar continuou a aparecer, a cada noite,
Na primeira entrevista, ela está tomada pela angústia, há dias que um estado
de agitação não a deixa descansar.(...)Minna não fala bem o espanhol, entre
lágrimas, tenta fazer-se entender. Sente-se culpada por ter saído correndo da
estação, por não ter ficado e ajudado os feridos, por não estar à altura do ideal
transmitido por seu pai, um pai todo amor, muito religioso, pertencente
à Igreja dos Adventistas do Sétimo Dia.(...)Frente ao real do trauma, o recurso
ao pai que seria todo amor não obtém resposta. Continua angustiada, sua
tentativa de suplência pela via do sentido religioso fracassa. Eu a acolho
sem desculpabilizá-la, fico em silêncio. A culpa logo desliza e recai sobre o
outro: a culpa é do outro- "os marroquinos, os terroristas". A culpa deixa seu
lugar ao ódio, um ódio desconhecido por ela até então.O acontecimento
traumático levou-a a confrontar-se subitamente com seu ódio. (MILLER,
2008, p.18-19)
A angústia como um afeto que não engana por ser uma irrupção do real no
simbólico, uma presença que escapa a qualquer possibilidade de sentido, o real
traumático atualizado. O que pode ser percebido no caso Minna, quando esta percebe a
imagem do que ela nomeou como sendo o “Cristo estirado” no chão. Palomera, ao
comentar o caso Minna destaca que o que faz com que “exista uma participação subjetiva
nesse acontecimento traumático, é justamente ·que, durante a fuga, ela se encontra com
alguém ferido que lhe recorda a imagem de um Cristo” (MILLER, 2008, p.34), ao que
Fuentes confirma: há implicação subjetiva no trauma através dessa imagem. Essa a
concepção de Lacan de que a angústia emerge a partir do furo que o real produz no campo
simbólico, fazendo com que algo fique fora do campo do sentido, a partir daquele
momento. Não em razão do evento em si, a exemplo do atentado de
Madri para Minna, mas pela participação subjetiva dela que fez despertar o sem
sentido. Miller destaca que “ se produz um traumatismo quando um fato entra em
oposição com um dito, com um dito essencial da vida do paciente” (MILLER, 2008,
p.41), de forma que a angústia pode aparecer como o resultado de uma incompatibilidade
entre uma cadeia de significações ordenadas, e a emergência do real sem lei.
No caso de Minna, o acontecimento do atentado despertou o real traumático que
fez Minna ficar frente a um ódio desconhecido, que pode ser visto como o encontro com
um ponto de sem sentido, um gozo ignorado por ela mesma. Diante disso, a ferramenta
de ir buscar a memória do pai que seria todo amor não teve resposta. Seguindo
angustiada, inicialmente culpando a si mesma, depois deslizando essa culpa sobre o
outro, para então dar lugar a um ódio, ignorado pela paciente até então.
Essa concepção de trauma proposta pela psicanálise vai de encontro a ideia de
generalização do trauma, como sendo comum aos indivíduos que partilham da mesma
experiência. Para a psicanálise, o conceito de trauma está localizado não no evento em si
mas na ruptura, no que torna ”a vida difícil de suportar a cada vez que certos
acontecimentos, muitas vezes insignificantes em si, evocam esse ponto, essa ferida
incurável.” (BARROS, 2015, p.2)
É o choque do significante com o corpo que é o traumático. Ficando como uma
iteração de gozo, que não tem significação, separado da estrutura da linguagem, um
impacto das palavras escutadas, um gozo impossível de simbolizar. O trauma estando
nesse ponto composto por palavras “imantadas de gozo” que marcam a repetição a partir
do qual algo pode ser elaborado, não porque podem ser acolhidas com algum sentido
mas justamente por serem destituídas de sentido:
Assim, um episódio qualquer, vivido pela criança, pode ser traumático se seus
efeitos vierem a demonstrá-lo. Ao contrário, uma tragédia não
necessariamente produz um trauma. Isso não quer dizer que não se possa estar
imerso em um ambiente cultural – por exemplo, as guerras e as tragédias
naturais – que facilite a mobilização de excessos de gozo. No entanto, esses
fatos ou episódios cairão para cada um de formas diferenciadas. (CALDAS,
2015, p.7)
O encontro com uma analista permite uma invenção diante desse sem sentido,
como uma convocação que põe o sujeito a trabalho. No caso Minna, nas últimas sessões,
Fuentes se surpreende ao saber que Minna tinha um tumor vaginal descoberto antes do
atentado do qual não se havia ocupado durante meses. De maneira que esse tumor estava
se desenvolvendo havia muito tempo.
Efetivamente, o maior efeito terapêutico para essa mulher não foi somente o
desaparecimento da sintomatologia do stress pós-traumático, da angústia e da
hiperatividade que não a deixava manter-se quieta em nenhuma parte, mas
também poder se ocupar de seu próprio corpo, para não terminar efetivamente
como o Cristo estendido em sua tumba. (MILLER, 2008, p.31)
atender aos afetados pelos atentados. O tratamento ofertado foi gratuito e com uma
limitação de tempo de seis meses. Outros dispositivos que ofertam assistência à urgência
são o P.A.U.S.A e o Projeto “Clínica da urgência” vinculado ao atendimento do Hospital
das Clínicas da UFMG.
P.A.U.S.A (Psicanálise Aplicada às Urgências Subjetivas da Atualidade)
(SELDES, 2008) é um centro de assistência, ensino, pesquisa que oferece cuidados
psicanalíticos para
tratamento de urgências subjetivas, localizado em Buenos Aires, Argentina.
Funciona como um dispositivo auxiliar criado pela Fundación Casa del Campo
Freudiano, la Escuela de Orientación Lacaniana EOL e el Instituto Clínico de Buenos
Aires IcdeBA, e tem por objetivo proporcionar um espaço para a subjetividade, com
tratamentos breves orientados à resolução das urgências. Outro projeto “Clínica da
urgência” (SOTELO, 2007) vinculado ao atendimento do Hospital das Clínicas da
UFMG, construído e implementado por Lucíola Macêdo (2010), que teve início, em
2007, com a parceria de trabalho entre o Serviço de Psicologia do Hospital das Clínicas
da UFMG e o Núcleo de Psicanálise e Medicina do Instituto de Psicanálise e Saúde
Mental de Minas Gerais (IPSM-MG). Nesse espaço é ofertado ao paciente uma escuta,
um intervalo para acolher o sujeito em crise. Em ambos os casos o que é ofertado é um
tempo de pausa possibilitando uma outra saída frente ao real do trauma.
REFERÊNCIAS
CALDAS, H. Trauma e linguagem: acorda. Opção Lacaniana online nova série. São
Paulo, ano 6, n. 16, 2015.
FREUD, Sigmund. O “homem dos lobos”. (1917). In: Obras Completas vol. 14[tradução
Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia (1926). In. Obras Completas [tradução
Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, vol. 17, p. 13- 123.
LACAN, J.(1962-63) O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.