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XIV Congresso Brasileiro de Sociologia

28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)


Grupo de Trabalho: GT 16 – Questão urbana

Da favela ao conjunto habitacional: invenção e usos da cidade

JULIEN CLAUDIO FRANCESCO ZEPPETELLA


IHEAL/UNIVERSITÉ DE PARIS 3 – SORBONNE NOUVELLE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
Esse trabalho propõe refletir sobre o modo sob qual a cidade é vivenciada
pelos indivíduos de forma geral. Mais especificamente, trata-se de como os
moradores das camadas populares da cidade de Fortaleza estabelecem laços
com a cidade. A base da pesquisa tem como enfoque os moradores de um
conjunto habitacional oriundo de uma politica pública em favor da melhoria da
moradia. Após apresentar alguns efeitos sobre a mudança de moradia mais ou
menos recente (dependendo dos casos), queremos demonstrar como a cidade é
“inventada” por esses indivíduos através das redes sociais. Aqui nos deparamos
com o conceito de “ville familère” (que pode ser traduzido por “cidade familiar”)
elaborado pelo antropólogo Michel Agier (1999, p.46-50). Privilegiamos aqui as
redes de amizade pela análise, porém outras redes sociais permitem a
elaboração pessoal dessa “cidade familiar” como as redes de trabalho, de
família, etc.

I. Contextualização da pesquisa.

Os dados e as análises apresentadas no texto tem como base a pesquisa


realizada para a obtenção do diploma de doutorado em Antropologia. A pesquisa
se iniciou em agosto do ano de 2005 e questiona os laços que os moradores das
camadas populares de Fortaleza establecem com a cidade, os percursos da
individualização e os problemas de reconhecimento encontrados. Foram
realizadas até agora três pesquisas de campo com duração de um a três meses,
utilizando diversas metodologias de pesquisa da antropologia e da sociologia1.
Esse texto aborda somente a primeira parte da pesquisa mais ampla e trata
espicificamente dos laços que os moradores estabelecem com a cidade.
Assim, num primeiro passo, o bairro será apresentado e uma breve reflexão
sobre as possíveis mudanças individuais no deslocamento e na reapropriação
de um outro espaço de moradia será elaborada.

1
A metodologia “clássica” da etnografia teorizada por Bronislaw Malinowski conhecida como
observação participante e que requer a moradia do pesquisador dentro mesmo do grupo que ele
estuda (nesse caso, dentro do bairro mesmo) não pôde ser realizada. O pesquisador escolheu
então residir num bairro de classe média a 300 metros do bairro pesquisado, realizando visitas
cotidianas com a finalidade de participar da vida social dos moradores do bairro. Depois de
conseguir inserir-se nos laços sociais de modo mais efetivo e de conquistar a confiança de
alguns moradores, foram realizadas algumas entrevistas qualitativas com perguntas abertas
apontando os objetos da pesquisa como são feitas em geral no campo da Sociologia.

1
A. A Sociedade Habitacional 2001.

O Conjunto Habitacional da Sociedade Habitacional 2001 é um bairro


originário de uma politíca pública, a qual tem como objetivo dar condições de
melhores moradias aos mais pobres e mais especificamente aos moradores das
zonas ditas de risco da cidade de Fortaleza. As primeiras unidades habitacionais
foram entregas no ano de 2001. Foram 200 casas oferecidas aos moradores de
uma favela situada a menos de um quilômetro de distância, a favela do
Gengibre. No ano de 2005 foram entregues mais 60 casas aos moradores da
favela da Jacarecanga (uma outra favela mais distante). E desde 2008 são
entregues novas casas, trecho por trecho, que irão totalizar mais de 600 casas
novas para pessoas oriundas em sua grande parte da favela do Gengibre.
Assim, o pequeno bairro assistiu a várias mudanças ao longo dos anos. Além
da mudança do número de moradores, as ruas foram asfaltadas entre os anos
de 2005 e 2006 (antes as ruas eram compostas por areia), permitindo que uma
linha de ônibus urbano, ligada a um dos maiores terminais de transporte coletivo
da cidade (o Terminal do Papicu) circulasse dentro dele. Uma escola foi erguida
no bairro e uma creche esta sendo construída. Vários comércios se
estabeleceram ao longo dos anos, sejam eles mercadinhos, pastelarias, bares,
restaurante, e outros.
Os limites geográficos do bairro são constituídos pelo Rio Cocó, o Parque
Ecológico do Cocó, as dunas (que vão até a Praia do Futuro) e por último pelo
bairro da Cidade 20002. Podemos ressaltar aqui que o referido bairro, o qual faz
limite com o Conjunto Habitacional, constitui-se como a ligação fisica da
Sociedade 2001 ao resto da cidade, pois, é o único acesso asfaltado da
Sociedade Habitacional 2001.
Na nomenclatura do municipio de Fortaleza, a Sociedade Habitacional 2001
não ganhou a apelação de bairro e faz parte oficialmente do bairro “nobre” das

2
O bairro da Cidade 2000 é um bairro de classe média vizinho à Sociedade Habitacional 2001.
Esse bairro ganhou a classificação de bairro na nomenclatura da Prefeitura de Fortaleza no ano
de 2007. Também foi um conjunto habitacional oriundo de politicas a favor da moradia nos anos
de 1970 e que presenciou ao longo das décadas a morfologia da sua população se modificar,
sendo agora um bairro de classe média. É o bairro onde o pesquisador residi durante a sua
pesquisa de campo.

2
Dunas, ligada a Secretaria Regional II3. Mas, a população se sente ligada ao
bairro da Cidade 2000 através do posto de saúde, da Caixa Econômica Federal,
do supermercado e de diversos espaços de lazer (restaurantes e bares, por
exemplo).
No caso da Sociedade Habitacional 2001 (como no dos conjuntos
habitacionais populares em geral), todas as casas fornecidas obedecem ao
mesmo modelo arquitetônico. Elas possuem a mesma planta inicial4 e as
mesmas estruturas físicas iniciais5. A partir de observações básicas podemos
afirmar que esse lugar é propício à demonstração de singularidade por parte dos
seus moradores. Vale lembrar que o fator econômico limita essas expressões de
singularidade e que a vontade de melhoramento de condições de vida orienta
algumas delas. Em suma, quase todas as casas foram objetos de várias
modificações. A diversidade das modificações e suas “hierarquizações”
simbólicas representam um campo bastante interessante e significativo de
análise para o etnólogo. Principalmente quando são interpretadas como
apresentação de si não-verbal, repleta de signos inscritos nos espaços à vista
dos outros. Mas, infelizmente, esto não é o objeto específico desse ensaio.
Sobre a caracterização da população, podemos considerar nas trilhas do
sociólogo Dominique Vidal (1999, p.97) com seu estudo sobre uma favela da
Cidade de Recife, chamada Brasília Teimosa, que não estamos em presença de
uma comunidade com forte identidade coletiva que dispõe de um dispositivo
normativo com forte capacidade de integração6. Caso contrário, seria possível
aplicar a categoria de comunidade na sua concepção antropológica. Mesmo se
um olhar pouco atento poderia ter uma impressão de homogeneidade do bairro,
acreditamos que a diversidade das práticas religiosas, a heterogeneidade

3
Departamento da Prefeitura Municipal de Fortaleza responsável pelas políticas públicas
referentes aos bairros.
4
A planta básica consiste numa sala de aproximadamente 12 metros quadrados com uma
entrada em direção da rua. Segue um corredor estreito com uma porta a direita dando num
quarto de aproximadamente 7 metros quadrados. Esse corredor desemboca na cozinha de uns 4
metros quadrados que também dá acesso ao banheiro e a um quintal de mais ou menos 20
metros quadrados.
5
Isso quer dizer que todas foram entregues e construídas com os mesmos materiais. O chão é
de concreto, as paredes são feitas de tijolos vermelhos sem revestimento nem pintura e o teto
não possui forro.
6
Num estudo sobre as representações ciêntificas sobre as favelas do Rio de Janeiro, Valladares
(2006:156-162) aponta também nesse sentido e demostra que desde os anos 1960 se sabia da
heterogeneidade das populações vivendo em favela, mas que isso quase nunca era levado em
considerações pelos sociologos ou antropologos na hora da teorisação.

3
profissional e as diferenças sensíveis de renda fazem com que a população alvo
possa ser considerada como socialmente diversificada.

B. Mudança de âmbito.

Em agosto do ano de 2005, tanto os moradores como as pessoas exteriores


ao bairro popular (sejam elas os motoristas de ônibus, os moradores do bairro
da Cidade 2000, etc.) o chamavam de comunidade do Marrocos7. Ao voltar
depois de mais de um ano e meio, o etnólogo ficou surpreendido ao ver que
usando essa mesma nomeação os moradores se ofuscavam afirmando que
“aqui é um conjunto habitacional”, ou até mesmo “o conjunto habitacional do
bairro da Cidade 2000”. Pesquisando um pouco mais o assunto, pois o nome do
lugar estudado não deixa de ter uma certa importância, recolhi algumas
informações que indicavam que a autonomeação tinha mudada para assegurar
um certo respeito suplementar ao bairro que tinha ganho ruas asfaltadas em vez
de ruas de arreia e até mesmo uma linha de ônibus percorrendo as suas ruas. A
autonomeação de “conjunto habitacional” era usada por outras pessoas de fora
do bairro8 demostrando que tinha ganho uma relativa legitimidade.
O nome oficial de Sociedade habitacional 2001 é raramente usado pelos
moradores (uma grande parte deles sequer conhece o nome oficial). Mas, essas
modificações de nomeação demonstram uma vontade de construção de uma
representação mais positiva de si mesmo apoiando-se no bairro de moradia.
Ao passar de uma moradia de favela a uma moradia em conjunto
habitacional, vários indivíduos passaram por um processo de empowerment, no
sentido de um aumento da estima própria e da confiança em si-mesmo. Isso tem
a ver com um processo social de reconhecimento e de promoção social relativo,

7
Esse nome se refere a uma telenovela e é usado para qualificar outros bairros populares (ou
por vezes a pior zona de um bairro popular) de Fortaleza. Ele tem em si uma conotação
negativa.
8
Como por exemplo, os motoristas de ônibus ou os moradores do bairro da Cidade 2000. É
interessante ressaltar que o etnólogo foi informado que membros da polícia militar que atuam
ocasionalmente no bairro o nomeavam de “novo Gengibre” apontando assim para a origem da
maior parte da população oriundo da favela do Gengibre, bairro altamente estigmatizado,
considerado como violento e repleto de infratores. Outra nomeação importante é usada durante
mobilizações políticas e sob a impulsão da líder comunitária, momento em que o bairro é
chamado de Comunidade das Barreiras. Em seus estudos sobre as favelas do Rio de Janeiro,
Valladares (2000 e 2006) considera que o uso do termo “comunidade” é um eufemismo para se
referir às favelas de modo positivo. Em Fortaleza, pode se observar o mesmo fenômeno, já que
o termo “favela” é usado somente de modo muito pejorativo.

4
de certo modo limitado, porém efetivo e implicando tanto mudanças como
continuação.
De primeiro abordo, o fato de se tornar um proprietário legalmente
reconhecido reforça o empowerment do indivíduo, no sentido em que ele adquire
uma estabilidade de moradia permitindo um planejamento maior de projetos
futuros com a base da certeza do lugar de moradia. O sociólogo Danilo
Martuccelli indica que segundo Robert Castel a propriedade privada representa
o apoio privilegiado que permite ao indivíduo de não “flutuar”, oferecendo uma
segurança a mais do que aos não-proprietários (CASTEL apud MARTUCCELLI,
2002, p.95).
O sociólogo Danilo Martuccelli (2002) teoriza os suportes da
individualidade. Para ele, os indivíduos precisam e usam de suportes para se
manter frente ao mundo social, é o trabalho de estruturação de si frente ao
mundo. Já que ser um indivíduo se define sob a soberania sobre si mesmo e a
separação (no sentido de diferenciação) frente aos outros (MARTUCCELLI,
2002, p.43). Ele indica vários suportes que se diferenciam dependente da época
histórica, avisando sobre a ambíguidade de certos deles e sobre alguns sendo
tipos de suportes estigmatizantes (MARTUCCELLI, op.cit, p.82-116).
Num estudo sobre as empregadas domésticas do Rio de Janeiro, o
sociólogo Dominique Vidal utiliza essa teoria dos suportes e estabelece que o
lugar de moradia faz parte desses suportes do indivíduo como suportes
territoriais da identidade pessoal. Esse suporte podendo ser um suporte forte ou
às vezes uma armadilha (VIDAL, 2007, pp.121-135).
No caso dos indivíduos do bairro pesquisado, essa mudança de moradia
é usada como um suporte. Portanto, até se a mudança de moradia permitiu um
empowerment do indivíduo graças a agregação de um suporte suplementar, o
pertencimento ao bairro não deixa de ser ambíguo, depende das situações de
interações.
Os moradores do conjunto habitacional quase sempre procuram se
distinguir dos moradores das favelas e especificamente dos moradores da favela
do Gengibre que se encontra em suas redondezas. Em nível sócio-econômico e
em nível cultural vemos uma grande semelhança entre os moradores dos dois
bairros. Além de que, como já foi mencionado, aproximadamente 70% dos
moradores da Sociedade Habitacional 2001 são oriundos da favela do Gengibre.

5
A denominação do bairro de “conjunto habitacional” não é um acaso se vemos
isso sob o prisma da vontade de distinção. O bairro do Gengibre é chamado por
eles de maneira menosprezível de “morro” para enfatizar um tipo de distinção
social em relação aos moradores do Gengibre. Praticam o que o Loïc Wacquant
(2006) chama de “dénigrement latéral” (“difamação lateral”) junto à uma
“distanciation mutuelle” (“distanciação mutual”). Noutras palavras, eles
transferem os estigmas dos quais são potencialmente vítimas sobre outras
pessoas que, em relação às representações sociais da sociedade, lhes são
semelhantes. Eles incorporam os preconceitos em vigor nas classes médias e
superiores sobre as populações menos favorecidas e recuperam os discursos de
estigmatização para aplicá-los aos próprios pares. Se Loïc Wacquant (2006)
analisa de maneira diferente, porém magistral, os efeitos negativos desse tipo de
processos, queremos aqui usar esses mesmos processos sob outra perspectiva.
Sem negar os efeitos negativos de tal transferência de estigmatização que
acaba servindo de apoio aos políticos, às mídias e ao senso comum em geral
para reforçar os discursos de estigmatização social (o “bom pobre” e o “pobre
ruim”), nos permitindo usá-los sob outras modalidades. Através desses
processos, os moradores do conjunto habitacional procuram reforçar uma visão
positiva deles mesmo em relação a um espaço urbano de moradia valorizante
(ou em processo de valorização).
A maneira ambígua segundo a qual os moradores da Sociedade
Habitacional se situam e se distinguem em certas práticas discursivas frente aos
moradores da favela do Gengibre pode ser relativizada graças à uma
observação mais aguda das redes familiares, de amizade e de solidariedade.
Observamos, pois, que se é possível identificar tais redes do próprio bairro, não
deixam de quase sempre incluir vários membros da favela do Gengibre. Através
dessas redes, nos defrontamos com uma grande circulação de indivíduos entre
os dois bairros. Os moradores do conjunto habitacional ficam ligados à
“comunidade” (na sua acepção restrita) de origem do Gengibre. Encontra-se
também moradores do conjunto habitacional que expressam uma certa nostalgia
da vida cotidina no Gengibre. Certos moradores do conjunto terminam até
mesmo por voltar a viver lá9.

9
As vendas de casas do conjunto habitacional não são apenas motivadas por lucros financeiros
(além do constrangimento da obrigação de pagamento das contas de água e luz). Por outro lado,

6
Sob um outro modo mais ambíguo, os moradores da Sociedade Habitacional
2001 usam recursos para uma identificação positiva com os espaços de moradia
da cidade. Vemos assim que em situação de interação com membros da classe
média, a localização que eles propõem da sua moradia se refere em muitos
casos ao bairro de classe média “baixa” adjacente, a saber, a Cidade 200010.
Isso ocorre às vezes para simplificar a localização da moradia e para indicar um
lugar mais “nobre” de moradia do que uma favela. Outras vezes, também pode
representar uma estratégia tendo por fim escapar da estigmatização social
referente à zona de moradia11.

II. A “cidade familiar” e as redes sociais.

Durante o trabalho de pesquisa nesse bairro, que procurava incialmente


entender num modo monográfico o cotidiano da vida de seus moradores, a
maneira segundo a qual os indivíduos estabeleciam relações com a cidade veio
a ser uma de suas problemáticas centrais.
No caso do estudo do bairro popular Sociedade Habitacional 2001, ao
considerar as redes sociais como possibilidade de pesquisa de campo em meio
urbano nos afasta, como já o indagava Ulf Hannerz (1983, p.22), da ilusão
conceitual da “aldeia urbana” (“Village urbain”) do Herbert Gans (1962). Para
nós, essa postura que consiste em enfatizar as redes dos indivíduos nos permite
situá-los nos seus laços com o resto da cidade. Além de que, com as redes
sociais de relações alguns suportes que os indivíduos usam para construir o seu
próprio sentido do mundo se tornam mais claros. É uma maneira de abordar a
complexidade dos modos de vida urbanos.

a questão do lucro financeiro não deixa de ter sua importância frente às situações econômicas
difíceis dos moradores.
10
Podemos ressaltar que em se tratando de preconceitos, o bairro da Cidade 2000 sofre de
certa estigmatização social por parte de membros das classes médias e altas fortalezenses. Isso
se deve ao fato de ser um antigo conjunto habitacional de população desfavorecida que ao longo
das duas últimas décadas passou por uma sorte de gentrification limitada, a grande maioria de
sua população sendo agora de classe média “baixa”.
11
Por exemplo, no esquema de interação com moradores do próprio bairro da Cidade 2000, ao
surgir uma pergunta sobre a localização da casa de um morador da Sociedade Habitacional
2001, ele poderá responder que morra no fundo da Cidade 2000 ou nas quadras do fundo do
bairro (o bairro sendo organizado em quadras).

7
A. Familiarizar a cidade.

Com isso, nos debruçamos sobre as maneiras segundo as quais os


indivíduos familiarizam os seus espaços de vida e de atuação criando, segundo
o antropólogo Michel Agier (1999, p.101), uma “ville familière” que poderia ser
traduzido pela expressão “cidade familiar”. Essa “cidade familiar” se focaliza na
continuidade entre a casa, o bairro e os outros espaços da cidade. Essa
continuidade constitui a maior parte do cotidiano dos moradores da cidade. A
pensar a Cidade sobre esse ponto de vista, a melhor maneira de estudá-la
consiste em se focalizar sobre as redes sociais dos indivíduos na cidade.
Considerar a cidade e os processos que a percorrem do ponto de vista
relacional, ou seja a partir das relações sociais dos indivíduos urbanos, nos
obriga a levar em conta tanto as análises micros quanto as macros. Vale
ressaltar mais uma vez que essas duas análises perdem em acuidade desde
que são estritamente separadas, haja vista que ambas têm incidências uma na
outra. Essa dimensão relacional da cidade atenua as ideologias da atomização e
da exclusão. Essa perspectiva do urbano nos remete também àquilo que Michel
Agier (1999, p.155) chama de “cidade bis” (“ville bis”), sendo essa mais uma
opção metodológica proveniente de uma observação antropológica da vida dos
urbanos que uma definição substancial. A “cidade bis” é constituída pela
descrição das práticas, das situações e das interações dos urbanos. As
situações de trabalho, as soluções de sobrevivência, as práticas religiosas, as
festas, os lazeres, a vida familial ou ainda os imprevistos hão de ser
interpretados e determinados.
O fenômeno da individualização12 nas cidades interessa particularmente o
nosso trabalho. Essa individualização não nos interessa como finalidade ou
como imposição para o ser urbano de se tornar um indivíduo, mas como uma
gramática do indivíduo que permite situar os apoios ou os suportes dos
indivíduos nas suas relações com a cidade e com a diversidade “hibridada” dos
12
O termo individualização é marcado historicamente. O sociólogo Danilo Martuccelli (2002,
p.575-576) preconiza o termo “individuação” (“individuation”) para nomear esse processo social.
O problema para o etnólogo é que existe uma definição não excludente, porém diferente, para o
processo de “individuação” na teoria antropológica. Assim, para Agier (1999: 31) a sociedade
“fala” através do indivíduo. Isto é, o princípio de “individuação” que relaciona o individual com o
social indicando as mediações entre a vida de cada um e um coletivo em ato. O processo de
individualização insiste mais na singularização e no distanciamento objetivo e subjetivo das
inscrições e das determinações sociais do indivíduo.

8
regimes de interação. Como veremos, para poder dar conta da diversidade das
práticas e das interações dos indivíduos urbanos é preciso cruzar as várias
dimensões da realidade vivenciada. E as redes sociais representam também um
suporte do indivíduo (MARTUCCELLI, 2002, p. 67-71).
É por meio desses processos, considerando a cidade como uma rede de
relações interindividuais, que os indivíduos inventam e vivem suas cidades. O
Antropólogo Ulf Hannerz (1983, p.185) considera de modo idealizado a cidade
como a rede das redes. Desse modo, se a postura básica do pensamento em
etnologia consiste sempre em contextualizar o objeto pesquisado, há de se
salientar, contudo, que a abordagem de um “simples” bairro de uma capital de
estado brasileiro nos força a levar em conta os fenômenos de grande escala que
influem sobre essa contextualização. Nessa perspectiva, a contextualização do
“objeto” observado é ampliada do bairro à cidade por inteiro e até a
intertextualidade induzida pela mundialização.
A partir da própria casa de moradia, os indivíduos já se relacionam com
as redes familiares que ultrapassam o simples nível da casa. Essas redes
familiares transbordam os espaços próximos (casa e bairro), introduzindo-se
assim em outros espaços mais distantes.
Essa parte não tem a pretenção de apresentar uma tipologia completa
das redes possíveis dos indivíduos urbanos, mas propõe-se refletir de modo
restrito sobre algumas das que foram estudadas ou identificadas nitidamente
durante a pesquisa de campo, deixando as redes de amizades para a última
parte desse trabalho.
Os indivíduos do conjunto habitacional participam e são ligados a várias
redes sociais, sejam elas redes religiosas, de trabalho, de amizade, familiares,
políticas ou culturais (no sentido amplo). Entretanto, todas elas participam à uma
possibilidade para os indivíduos de familiarizar os espaços urbanos através das
relações que se formam e que se apóiam neles. Na participação a cultos ou a
outras ocupações em torno das religiões, nas festas, nas mesas de bar, nos
passeios em shopping center, no trabalho, nas partidas de futebol, nos
movimentos políticos, etc., todas essas atividades põem em comum e ligam os
indivíduos dentro de redes sociais. Elas também se desenvolvem em espaços
específicos ou permutáveis na cidade. Isso não quer dizer que todas as

9
situações que o indivíduo urbano enfrenta estão ligadas a redes ou tem um
sentido no nível do espaço.
Nesse caso especifico, pode notar-se que a baixa densidade deve afetar de
modo maior a multiplicação das redes sociais, dos percursos e da afetividade
com outros lugares da cidade do que no próprio bairro de moradia.

B. Possíveis particularidades das redes de amizade.

Todavia, voltando àquilo que no presente contexto nos concerne, algumas


das atividades que evocamos e que estão ligadas as redes permitem até mesmo
uma atenuação das “barreiras” sociais entre classes da sociedade. Podemos
encontrar essas situações específicas em festas em geral, nas torcidas de
futebol e em alguns tipos de encontro de redes de amizade13. De qualquer
modo, essas situações sempre acontecem dentro ou por meio das redes de
amizade.
Esses eventos não anulam as “barreiras” econômico-sociais, mas pelos
menos as relativizam. Podemos ver que essas “barreiras” sociais ficam mais
porosas em certas situações de interação que na tipologia das situações
elementares da vida cotidiana proposta pelo antropólogo Michel Agier (1999,
p.97) conresponderiam aproximadamente às situações rituais. Essas situações
são marcadas por um distanciamento do cotidiano regulado por diversas formas
liminares. Elas realizam de maneira efêmera a unidade entre o indivíduo, o
espaço e a sociedade. Segundo esse autor, uma ordem específica de relações e
de identidades se cria e se torna possível pela definição consensual da situação
como momento de liminaridade. Do nosso ponto de vista e em relação à nossa
pesquisa, a mediação da liminaridade no enfraquecimento (mesmo se
momentâneo) do estigma social e das “barreiras” econômico-sociais nas
interações interindividuais não é anodino. Liminaridade essa que permite de sair
por um “tempo” dos constrangimentos e das dificuldades objetivas da
“estrutura”14.

13
Redes de amizade formadas a partir de contatos interpessoais “tradicionais”, mas também a
partir de redes de amizade virtuais (através de sites de relacionamento ou de chat baseado em
emissora de televisão) que podem propiciar encontros físicos de membros dessas redes.
14
Sobre essa questão ver o conceito de communitas do antropólogo Victor Turner (1990,
pp.160-176).

10
Essas situações efêmeras se encontra de maneira disparata ao longo do ano
e tem incidências mais ou menos fortes dependendo da força das relações entre
individuo levando em conta a longevidade da relação, a intensidade das
emoções, a intimidade entre os individuos e os serviços recíprocos entres os
componente de uma rede (GRANOVETTER, 1973, p.1361).
Mas, encontramos um grupo de jovens (de 15 a 26 anos) que constitui uma
rede de amizade (uma “galera”) que se chama “Los Kanalhas”. Essa rede de
amizade se iniciou e se fortaleceu através de um site social de encontro (o
famoso ORKUT) e através de um sistema de mensagens telefônicas abrigado
por um programa de televisão (Bate-Papo) de um canal de televisão local (TV
União). Esse grupo é constituido de individuos de diversas classes sociais de
Fortaleza (das classes populares e das classes médias) e não tem uma
localidade geográfica específica. Ou com isso, quero dizer que os seus
membros não pertencem todos ao mesmo bairro. Mas, uns 20 membros desse
grupo (que segundo o ORKUT contabiliza uns 400 membros) vêm da Sociedade
Habitacional 2001.
Além dos contatos virtuais, são organizadas diversos encontros “reais” de
lazeres podendo ir do simples encontro numa praça da cidade até uma saída
num local de tipo “boite”. Existe também uma camisa “oficial” do grupo.
Até se esses encontros são esporádicos, eles têm uma continuidade
temporal. Esses encontros permitem a mistura social de camadas diferentes da
população de Fortaleza e o caráter festivo das atividades oferece uma relativa
igualdade entre os membros do grupo. Com isso, membros das camadas
populares conseguem atingir um reconhecimento social e individual diferenciado
e propício a auto-estima de si. Além disso, os encontros são territorialmente
marcados em diferentes lugares propícios ao lazer dentro da cidade. Isto
também faz parte da “cidade familiar” feitas dos encontros entres moradores da
cidade e dos laços que eles constroem. Através disso tudo se elabora uma
afetividade com os lugares ocupados de modo momentâneo.

Conclusão

Assim sendo, vemos que o indivíduo urbano transborda os limites da casa e


do bairro apesar da forte segregação social e espacial da cidade de Fortaleza.

11
Podemos inclusive considerar, tal como Michel Agier (1999, p.64), que essas
« fronteiras » urbanas, materiais, sociais ou simbólicas oriundas do fenômeno de
fragmentação das cidades convocam uma resposta dos moradores das cidades
que procuram adaptar-se, resistir ou ultrapassá-las, quebrando assim um tipo de
isolamento. De certa forma esses dados matizam as visões absolutistas da
segregação sócio-espacial como também demonstram as ligações existentes
entre os níveis micro e macro de observação e de análise. Passamos assim das
redes restritas às redes extensas. Os dois tipos de redes não sendo
obrigatoriamente excludentes. Esse movimento questiona e problematiza num
modo amplo a contextualização do campo.
Os modos de se relacionar com a cidade são numerosos, mas a opção
metodológica das redes permite cercar de modo mais especifico a construção
social desses laços.

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BIBLIOGRAFIA

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2006.

RESUMO:

Esse trabalho pretende tratar da incorporação simbólica e dos efeitos sociais da


mudança de moradia de indivíduos, antigos moradores de favela, para um
conjunto habitacional oriundo de uma política pública em favor da moradia na
cidade de Fortaleza. A partir desse primeiro passo, que vai demostrar um
empowerment do indivíduo, propõe-se uma análise da “invenção” imaginária da
cidade através das redes sociais dos indivíduos. O enfoque principal do uso e

13
das representações sobre a cidade portará sobre a análise de certas redes de
amizade que se constrõem e se fortificam através do uso de chats de telefonia
movél e de comunidades virtuais via internet (tipo “Orkut”), as quais permitem
interações entre individuos de diferentes camadas sociais de Fortaleza se
encontrando em diversos espaços de lazeres da cidade (analizando esses
fenômenos através das teorias de Hannerz, Agier e Turner).

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