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Em busca da Estrada Velha da Invernada

agosto 22, 2008 por blogdodubois

Edson Struminski (Du Bois)

Encontro um mapa de 1929 (1) da região em que estou trabalhando ultimamente nos
Mananciais da Serra, a uns 35 km de Curitiba. Faltam maiores referências geográficas, curvas
de nível, dados topográficos mais sólidos, coordenadas UTM, estas coisas. É o que hoje
chamaríamos de um croqui, quase uma concepção artística do terreno. Mas se ele não tem
maior valor como dado geográfico, sobram dados históricos. Lá está marcada uma Casa de
Bombas, que abrigava duas locomotivas sem rodas que moviam uma grande bomba que
mandava água para Curitiba, nos primórdios do século XX (2). Hoje esta usina não existe mais,
está embaixo da represa do Caiguava, que inundou boa parte de um lindo vale na Serra do Mar
e armazena água para a capital paranaense.

Outras curiosidades também aparecem no mapa, como uma seqüência de grandes piscinas, ou
“caixas” de armazenamento de água do antigo sistema de abastecimento (e que mandavam
água para a Casa de Bombas). Estas caixas ainda existem no lugar, chegamos inclusive a
descobrir uma que não estava neste mapa original. O sistema todo completou 100 anos em
agosto de 2008.

A citação mais curiosa e intrigante deste mapa é a da “Estrada Velha da Invernada”. Esta
estrada, se é que existiu, estaria também submersa, e o restante estaria situado em um local
altamente improvável para uma estrada. Um grande platô situado entre montanhas, porém
minado por muitos rios com uma enorme quantidade de meandros, que dificultam o trânsito
com veículos e animais, um labirinto. A vegetação em nada lembra uma invernada, ou seja, um
local com campos verdes onde o gado pode ser levado para passar o inverno. Na verdade, a
vegetação nesta região é exatamente o contrário disto, a densa e úmida Floresta Atlântica,
imagem que se vê quando se desce pela ferrovia que vem de Curitiba para o litoral.

A Estrada Velha da Invernada seria, de acordo com as informações passadas pelo meu velho
amigo, o arqueólogo Julio Cesar Thomaz Telles, uma provável conexão entre dois antigos
caminhos coloniais existentes no Paraná. A Estrada do Itupava e a do Arraial, dois trajetos
oficiais que subiam do litoral para o primeiro planalto paranaense, a partir do século XVIII. A
Invernada seria, como se pode ler nos documentos do historiador Estrela Moreira (3) nada
mais nada menos que um desvio feito pelos tropeiros para fugir do pedágio existente naqueles
caminhos oficiais, então pouco controlados, ou seja, não é de hoje que as pessoas fogem dos
achaques arrecadadores estatais. Sonegação de impostos e fuga de pedágios não é novidade
para os brasileiros.

Acabei fazendo uma primeira tentativa de encontrar a tal estrada a partir de uma referência
conhecida. Uma das antigas estradas abandonadas na porção alta do platô. Após o fim do
trecho de estrada, passo algumas horas andando em meio a árvores tortuosas, um taquaral
infernal e terrenos bruscos, junto com uma jovem parceira de caminhada. Acabamos subindo
o rio do Mico (o nome é este mesmo), a tempo de escapar de uma chuva em um terreno ruim
(pegamos a chuva em um terreno bom).

Pagamos o mico, mas para todos os efeitos, esta caminhada, sem maiores métodos lógicos
serviu para que eu entendesse o terreno, a geomorfologia e a vegetação do lugar. Me deu,
além disso, a estranha percepção de que tudo o que ali estava já tinha, de alguma forma, sido
modificado pelo ser humano, algo que me parecia intrigante, considerando o relativo
isolamento daquela floresta em relação a aquilo que hoje chamamos de civilização.

Alguns dias depois estava de volta a esta busca. Desta vez em companhia do parceiro Julio
Thomaz, que tinha uma noção muito mais aprimorada do que a minha a respeito do que
procurar.

Nossa caminhada partiu da ferrovia atrás de um hipotético ponto marcado no GPS, um local
onde imaginávamos que encontraríamos alguma coisa, a partir do que vimos no Google Earth.
O terreno não se apresentou melhor: árvores tortuosas e um denso taquaral e que às vezes
mudava para um denso taquaral, com árvores tortuosas e com bambus finos e particularmente
desconfortáveis quando raspavam no pescoço. Além disso havia uma surpreendente
quantidade de rios meandrosos, o que para mim era uma completa novidade naquele trecho
da serra onde os rios geralmente são encaixados na geologia e era só.

Todos sabem como é notória a falta de capacidade do GPS de receber sinais dentro de uma
floresta. Tínhamos um certo medo também, não totalmente infundado, de que alguém
cometesse um atentado terrorista contra os americanos em algum lugar do mundo (era o dia 4
de julho, o independence day deles ) e eles desligassem os sinais do GPS. O nosso aparelho não
nos desapontou no quesito confusão dentro da floresta, embora uma combinação de GPS mais
ou menos, navegação pelo sol, farejamento do terreno tenha permitido que avançássemos
algum tempo mantendo a ilusão de que estávamos indo para algum lugar.

Após 3 horas andando neste terreno tortuoso, taquarístico e meandroso, começamos a subir
uma encosta repleta de bambus e taquaras, de onde tivemos uma visão indescritível. Uma
vasta floresta tortuosa repleta de bambus e taquaras, com muitos rios meandrosos pela
frente.

Naquela altura começava a ficar mais ou menos implícito que a tal Estrada da Invernada
parecia não passar mesmo de uma lenda, pelo menos para nós naquela situação
desconfortável. Uma referência sem maiores sentidos em um mapa velho. Era o que o cansaço
de andar em um terreno completamente sem o menor jeito de comportar um caminho nos
dizia.

1 da tarde aproximou-se, era nosso limite. Já andávamos há 4 horas e era o horário definido
para a volta, mais uma margem de segurança. O GPS nos mostrava números incoerentes, algo
como 500, 300, ou 600 metros para atingir o ponto desejado, o qual seria o centro de um
hipotético campo, ou invernada, onde seguramente passaria a tal estrada. A decisão de voltar
tornou-se, então, inevitável. Dei uma última olhada para aquela floresta desanimadora, cheia
de árvores tortuosas, bambus, taquaras e rios meandrosos, totalmente desinteressante para
um montanhista e reparei que pelo menos uma destas árvores, para variar, parecia reta,
anormalmente reta. Leitura de terreno de engenheiro florestal acostumado a andar no meio
da floresta. Andamos mais uns metros e a tal árvore revelou-se como sendo um pinheiro, uma
espécie já totalmente fora do seu ambiente natural naquele lugar. O ambiente começou a ficar
mais luminoso, apareceram tufos de um capim grosso, saímos em uma clareira, com capim e
arvoretas. Havíamos encontrado a invernada!

Gastamos nossa meia horinha de margem de segurança curtindo aquele achado espantoso e
improvável. Era como marcar um gol nos últimos segundos do segundo tempo, como chegar
ao cume de uma montanha depois de uma dificílima escalada. Um trunfo de navegação
intuitiva/tecnológica. Um trecho de 1000 metros por 500 de antigos pastos no coração da
Serra do Mar, em meio a centenas de quilômetros quadrados de Floresta Atlântica.
Obviamente seria pretensão nossa imaginar que nunca nenhum montanhista das antigas
tenha estado neste local, embora ele não revele nenhum atrativo especial para este tipo de
visitante. Já para um arqueólogo a coisa pode ser diferente. Uma investigação arqueológica
deste meu amigo deverá revelar mais detalhes desta invernada, que eu, ou outro montanhista
meramente curioso, não conseguiria ver, como a própria estrada que certamente passava por
esta invernada. Coisa que tem de ser feita por alguém com o olhar treinado para os detalhes
como ele.

Em campo aberto o GPS nos mostrou um rumo confiável para a volta. Alinhamos este rumo
pelo sol e prosseguimos: meandros, bambus, cansaço, etc. A imaginação correndo solta.
Imaginamos dezenas de pessoas e animais passando em um trecho improvável da Serra do
Mar, antes da existência da estrada de ferro (a qual já é do século XIX), as alegrias de um
pouso seguro no meio das montanhas para peões cansados, o calor de fogueiras noturnas em
meio a escuras montanhas desconhecidas, o drama de algum caçador desgarrado do grupo e
perdido no meio do nada. Uma conexão entre dois caminhos históricos. Uma conexão entre
dois tempos, o nosso e o deles. A história do Paraná passando por um campo esquecido no
tempo.

Veja mais em:

DEPARTAMENTO GEOGRAPHICO E GEOLÓGICO. Planta da Região dos Mananciaes de Água que


abastecem Curityba, Município de Piraquara. Curitiba. 1929. 1 mapa: p&b,; 60×80 cm. Escala
1:10.000

SCHUSTER, L.L.Z. SANEPAR ano 30, resgate da memória do saneamento básico no Paraná.
Curitiba: SANEPAR. 1994.

MOREIRA, J.E. Caminhos das Comarcas de Curitiba e Paranaguá. Curitiba: Imprensa Oficial, 3
vol, 1975.

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