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Repensando a relação entre Estado, Direito e Desenvolvimento: os limites do

paradigma rule of law e a relevância das alternativas institucionais

Resumo: o artigo discute os limites da abordagem institucionalista na agenda do


desenvolvimento, sobretudo em relação ao sistema financeira. Sugere-se que os
programas de difusão do rule of law [Estado de Direito], segundo o qual cabe ao
ambiente jurídico cumprir, tão somente, a função de garantidor dos interesses de
investidores privados, entendidos enquanto atores centrais de um modelo de
financiamento baseado em transações de mercado. A artigo sugere que o rule of law,
tem dificuldades em lidar com alternativas institucionais de organização econômica e
financeira, para além de u mercado baseado em atores atomizados e carentes de
segurança jurídica. Como exemplo, cita-se o Brasil, onde a maior parte do
financiamento de longo prazo está concentrado em um banco de desenvolvimento
(BNDES). O artigo sugere que há uma variedade de possibilidades e funções a serem
exercidas pelos arranjos institucionais e ferramentas jurídica para além dos programas
de rule of law.

Introdução: O ambiente jurídico-institucional ganha relevância na formulação de


políticas públicas, no âmbito de agências multilaterais de fomento e de governos
nacionais. Sob o princípio do rule of law, tem se difundido programas de qualificação
institucional, voltado para programas variados, desde a Reforma do Judiciário, até
novas codificações, que visam a promoção de boas regras do jogo que criem um
ambiente econômico estável e seguro para transações privadas.

Trata-se de uma recuperação do law and development, campo muito


frequentado nas décadas de 60 e 70 por sociólogos e policy makers, segundo os quais
os problemas de países subdesenvolvidos se deviam, em parte, às suas limitações
institucionais e ausência de ambiente de negócios satisfatório causada pela
inadequação de estatutos regulatórios.

Contudo, há dificuldades em compreender as especificidades institucionais


de países em desenvolvimento. O viés de análise costuma identificar as peculiaridades
institucionais como se fossem desvios ou equívocos, para o qual se tem recomendado
um “pacote de instituições corretas”, transplantáveis de ambientes dotados de um
bem sucedido processo de desenvolvimento. Nem sempre é possível alcançar os
resultados esperados, seja por resistência política, carência de efetividade ou
inconsistência com a trajetória histórica dos arranjos nacionais.

O artigo não desdenha do Estado de Direito, entendido como um arranjo


moderno de limitação do arbítrio, racionalização do poder e preservação dos espaços
de autonomia individual. Todavia, o rule of law tem sido utilizado como um slogan de
programas de desenvolvimento, conotando uma característica de desenho
institucional associado a uma estratégia de promoção das economias
subdesenvolvidos. O artigo se debruça sobre isto.

O artigo considera importante considerar a relação existente entre os


arranjos jurídico-institucionais e os respectivos contextos locais. No modelo brasileiro,
ainda há um banco de desenvolvimento (BNDES), que concentra grande parte do
financiamento de longo prazo do país.

O paradigma rule of law no desenvolvimento econômico: transações privadas,


garantia jurídica e retração do Estado

Em 1990, pesquisadores deram mais relevância do entorno institucional


para a promoção de transações privadas em mercados, para o conjunto das economias
e expectativas de crescimento econômico. Agências internacionais também passaram
a focar no aprimoramento institucional de nações mais pobres.

Consolida-se assim o paradigma do rule of law, um conjunto definido de


concepções econômicas, intepretações jurídicas e estratégias políticas para o
crescimento e modernização econômica das nações. Esse conjunto de concepções está
atrelado ao modelo de transações privadas mediadas pelas garantias jurídicas de
proteção à propriedade privada e aos termos contratuais, bem como uma relação
Estado-economia comprometida com a preservação do mercado.

Nas ideias econômicas, esse paradigma vem dos estudos da Nova


Economia Institucional (NEI), que coloca as instituições como variável da análise
econômica. Para o mainstream neoclássico, as trocas entre agentes não são
necessariamente instantâneas, perfeitas ou dotadas de racionalidade ilimitada. Com a
introdução das instituições nesse campo, as relações econômicas podem ser reguladas
por aparados de coordenação, como propriedade e contrato, o que daria segurança
jurídica e um ambiente de negócios saudável.

Para um economista neoclássico, a coordenação dos agentes dependeria


do sistema de preços, mas a NEI coloca as instituições na equação como esse
garantidor.

Nessa perspectiva, alguns estudiosos neoinstitucionalistas investigam a


relação entre o desempenho econômico e qualidade dos ambientes institucionais.
Nesse sentido, o maior ou menor desenvolvimento relativo de alguns países deve-se à
adoção histórica de uma estrutura de coordenação mais ou menos favorável à
constituição de um ambiente impessoal, seguro e previsível para as trocas em
mercado.

A NEI, embora introduza as instituições em um debate antes


exclusivamente individualista, ainda mantém célebres pressupostos, como o
individualismo metodológico, e a primazia do mercado. Nesse aspecto, as instituições
são concebidas em função da necessidade do funcionamento do mercado, de modo
que elas são compreendidas como aparatos reguladores externos, e não como
elementos constitutivos dos mercados.

A regulação jurídica teria o duplo papel de criar espaços seguros para


transações entre os agentes, e regras de proteção para os particulares da atuação
discricionária do Estado.

Diferente do contexto desenvolvimentista, em que os mecanismos do


direito público de desenho do aparato e regulação dos ambientes econômicos tinham
a primazia no panorama jurídico-institucional, as novas políticas de desenvolvimento
parecem contar com uma intervenção mais branda, fundadas em dispositivos de
contenção da discricionariedade estatal: favorecem, assim, instrumentos do direito
privado.
Sob o paradigma rule of law, a intervenção tem cedido espaço para
iniciativas de autorregulação ou regulação indireta, restringindo-se a promover um
ambiente institucional favorável à atuação de agentes privados.

O rule of law no campo financeiro: proteção de investidores e promoção dos


mercados

Os teóricos do Law and Finance assumem que o mercado de capitais e o


setor bancário privado são ambientes preferenciais para transações financeiras, agindo
como garantidores dos interesses de agentes econômicos, notadamente acionistas e
credores. Um ambiente inseguro ou de regras imprecisas tende a restringir a
disposição de investidores em prover recursos monetários e, enfim, comprometer o
capital disponível para atividades de financiamento.

Nesse postilado, os estudiosos de Law and Finance tomam o direito como


um elemento regulador externo, cuja função é desestimular ações autointeressadas e
predatórias, tornando-as menos interessantes que atuações favoráveis à realização de
trocas positivas entre os agentes, o que afinal tem como resultado agregado o
fortalecimento do sistema financeiro nacional.

Diante da sensação de vulnerabilidade institucional, ao contrário, os


investidores, assumidamente racionais, desempenhariam comportamentos de
autopreservação, como indisponibilidade de participar de operações financeiras,
precificação exagerada, exigência de dividendos ou juros expressivos para compensar
o risco financeiro, o que resultaria em um funcionamento deficiente do mercado de
crédito e de capitais.

Comparando países de common law e civil law, autores sugerem que


países de common law apresentam uma maior incidência de ferramentas de proteção,
ao passo que os de civil law de origem francesa apresentam índices piores. Ainda, nos
países de common law, os governos atuariam menos no setor bancário, ao passo que
nos de civil law de origem francesa têm presença mais direta do governo neste setor,
junto com bancos de desenvolvimento mais frequentes.

Essas diferenças remontam ao argumento central dos estudos de Law and


Finance: nas economias com menor índice de Rule of Law (menor proteção aos direitos
de propriedade) prevalece a propriedade pública no setor bancário, entendida como
uma alternativa dos governos incapazes de estabelecer um ambiente institucional
adequado.

Contudo, essa seria uma solução insatisfatória, pois os bancos públicos


seriam mais ineficientes do que os bancos privados.

Por outro lado, o Banco Mundial, ao classificarem os países conforme o


nível da proteção jurídica oferecida aos agentes econômicos, valendo-se para isso dos
critérios apresentados pelos estudos law and finance, têm influenciado a decisão de
investidores, balizando assim o funcionamento real das economias nacionais.

No Brasil, diversas alterações jurídico-institucionais no funcionamento do


sistema financeiro nacional foram conduzidas, com a finalidade de permitir uma
transição desde um modelo de financiamento baseado nos bancos públicos para um
regime de mercado, assentado em agentes privados. Contudo, o setor de bancos
públicos continua relevante, em particular o BNDES, o que aponta limites para o
paradigma rule of law diante das peculiaridades do ambiente local, sobretudo do
modelo de organização da propriedade estatal no segmento bancário.

Escapando do modelo: prevalência do BNDES no ambiente financeiro nacional

A presença do estado como agente financeiro tem sido uma caracter ística
bastante presente na organização econômica do Brasil. Diante das falhas na alocação
de recursos em empreendimentos com externalidades positivas, os agentes
financeiros públicos têm se responsabilizado pelo estabelecimento de mecanismos
compulsórios de poupança e pelo direcionamento do crédito para os projetos
corporativos identificados como estratégicos.

No Brasil, os bancos privados especializaram-se na intermediação


financeira de curto prazo e baixo risco. Nesse sentido, foi o Estado que disponibilizou
recursos necessários para os investimentos de maior risco e com prazo longo de
retorno. Nessa medida, o papel desempenhado pelo direito extrapolou a função de
meramente garantir os interesses de acionistas e credores privados. a sua efetiva
função foi a de constituir um sistema de financiamento de longo prazo, para o que foi
necessário o estabelecimento de um regime de propriedade estatal no segmento
bancário, suprindo, assim, a carência do investidor privado.

As reformas financeiras da década de 1960

Na década de 1960, o diagnóstico era de que o país carecia de um sistema


financeiro que garantisse, de forma sustentável, as necessidades de investimento
demandadas pelo desenvolvimento industrial. Assim, foram promulgados diplomas
legislativos relevantes, como a Lei do Mercado de Capitais, Lei do Sistema Financeiro
Nacional, que criou o BACEN com mandato de agente regulador do segmento
bancário. Também foram criados os bancos de investimento e de desenvolvimento, ue
deveriam cumprir o papel de agentes financeiros de longo prazo, o que viabilizaria a
constituição de um novo mercado no segmento bancário.

Os bancos públicos foram encarregados de funções específicas, para com isso


reforçar a disposição de segmentar o mercado financeiro nacional: (i) ao Banco do Brasil coube
o financiamento agrícola; (ii) ao Banco nacional de Habitação (BnH), criado pela lei 4.320/64,
coube a missão de alocar os fundos compulsórios do FGTS no financiamento habitacional; (iii)
ao BNDES e aos bancos de desenvolvimento estaduais, coube a tarefa de garantir recursos
para as atividades industriais e de infraestrutura.

Contudo, reformas institucionais do período não conseguiram superar os


tradicionais constrangimentos apresentados pelo mercado privado. O segmento bancário,
inclusive os bancos de investimento, continuou a concentrar a sua atuação em operações de
curto prazo e no financiamento do capital de giro das empresas – atividades de menor risco.
Com isso, a parte substancial do financiamento de longo prazo permaneceu sendo exercida
por meio da regulação institucional

As reformas financeiras da década de 1990

Foram implementados três eixos principais de reformas: (i) a reorganização


do segmento financeiro público; (ii) a abertura do segmento bancário para
competidores estrangeiros; e (iii) alterações legislativas e iniciativas de autorregulação
no mercado de capitais.
Com as reformas, e principalmente a privatização de bancos estaduais e
federais, eles passaram a adotar padrões de atuação e regras de governança
corporativa semelhantes às das demais instituições financeiras.

Com essas reformas, foram fortalecidos instrumentos de proteção dos


investidores e de melhoria do ambiente de governança societária, garantindo novos
direitos aos acionistas minoritários.

Entretanto, as alterações introduzidas na década de 1990, embora tenham


produzido dados expressivos, não foram suficientes para alterar a característica central
do modelo brasileiro de financiamento. as operações de longo prazo e alto risco ainda
dependem dos agentes estatais.

A persistência do modelo brasileiros de financiamento

Apesar das reformas institucionais ocorridas na década de 1990, a maior


parte do financiamento de longo prazo da economia brasileira continua sendo
realizada pelos bancos estatais, em especial pelo BNDES. Os agentes públicos ainda
desempenham um papel chave no financiamento nacional.

A expansão de crédito por bancos privados continua a ser de curto prazo,


realizado ao consumo de família, como o empréstimo consignado. Uma justificativa
para isso seria o elevado valor dos spreads cobrados pelos bancos privados, o que
torna viável apenas empréstimos de curto prazo com entidades financeiras privadas.

Os resultados contrariam o paradigma rule of law, vez que as reformas


deveriam ter estimulado a expansão do crédito privado no Brasil, por meio de regras
jurídicas e de um ambiente institucional seguro, boa governança e proteção dos
investidores. Essa quebra de expectativa deriva da divergência entre o papel a ser
exercido pelo direito e a realidade do panorama financeiro, em relação às funções dos
arranjos jurídico-institucionais.

Repensando a relação entre Estado, direito e desenvolvimento

A experiência das reformas financeiras brasileiras aponta para um limite do


paradigma rule of law, enquanto capaz de orientar programas bem-sucedidos de
desenvolvimento econômico. Isso revela dois problemas críticos da agenda
contemporânea do Direito e Desenvolvimento: (i) concepção estreita do papel do
direito, tomando-o meramente como ferramenta de proteção de agentes privados; e
(ii) confiança exagerada no potencial de reformadas jurídico-institucionais, das quais
se esperava alteração substancial dos atributos materiais, historicamente forjados, de
arranjos nacionais.

Com relação ao papel do direito no ambiente financeiro, o paradigma rule


of law sugere que as regras jurídicas são apenas instrumentos de proteção de agentes
pulverizados em mercado e, com isso, ignora a existência de outras alternativas
institucionais, as quais demandam do direito um elenco diversificado de atribuições.
para além da função de proteção individual dos interesses, as ferramentas jurídicas
podem também ter outros papéis, como, por exemplo, o de garantir uma coordenação
coletiva dos agentes econômicos ou até mesmo permitir a organização de um sistema
financeiro público

A função de coordenação coletiva, em detrimento da valorização da


proteção individual, pode ser constatada em regras de governança corporativa que,
em vez de privilegiarem a defesa de acionistas atomizados, estimulam as negociações
entre grupos de interesse internos às companhias. Outro exemplo são regras jurídicas
segundo as quais trabalhadores e acionistas são igualmente representados no
conselho de administração e estimulados a empreender processos de negociação
coletiva, dos quais resultam as estratégias corporativas.

O papel principal do direito societário não é oferecer mecanismos de


proteção individualizada da propriedade, de acionistas ou credores, mas sim regras de
governança, espaços e instrumentos que estimulem barganhas entre grupos
corporativos, pelo que se permitiria a representação de interesses de diversos
stakeholders.

A participação mais expressiva de empresas estatais e bancos público em


países em desenvolvimento, revela um outro papel do direito: constituir um sistema
financeiro público, no qual os agentes estatais estabelecem as mediações entre
poupadores e investidores, valendo-se de dispositivos como poupança compulsória e
direcionamento estatal de recursos.
Há que se ter em conta que o direito desempenha um elenco variado de
papéis, que extrapola a garantia da ordem e a proteção dos indivíduos, isto é, funções
meramente regulatórias. O direito não é a única instância de organização social e
tampouco exerce uma única função no ambiente social, de modo que a pluralidade de
papeis por ele desempenhados em um ambiente com outras ordens normativas,
permite uma grande variedade de desenhos jurídico-institucionais.

Além disso, há expectativas exageradas com programas de reforma


institucional baseadas no paradigma rule of law. As expectativas são: s alterações no
panorama jurídico seriam plenamente realizáveis e de que (ii) essas alterações
bastariam para conduzir os países a novos patamares de desenvolvimento. Uma
possível explicação dos limites encontrados pelas diversas iniciativas de reformas é a
resistência oferecida pela inércia institucional, isto é, a dificuldade encontrada em
alterar um arranjo previamente estruturado, em função dos custos e interesses
envolvidos (path dependence) Alterações legais formais não são capazes, per se, de
alterar hábitos e procedimentos culturalmente instituídos: alterações abruptas são
menos prováveis de obter sucesso.

A mera existência das regras formais “corretas” NÃO ensejaria por si só


bons resultados de desenvolvimento.

A despeito desse diagnóstico, respostas institucionais diversificadas são


compreendidas, pelos autores e policy makers, como desvios de um padrão “correto”
de organização institucional. Outros autores assumem que o ambiente das regras
jurídicas não é descolado do restante do entorno institucional, buscando uma
abordagem heterodoxa das relações existentes entre os arranjos institucionais e os
resultados econômicos (paradigma das alternativas institucionais).

A noção de alternativas institucionais tem em conta que as economias de


mercado, muito embora detenham traços comuns como a garantia da propriedade
privada e a persecução do lucro nas transações comerciais, não apresentam uma
conformação idêntica – um padrão único.

Partindo-se de um redesenho da propriedade estatal, em vez de apostar


apenas na incorporação de um novo arranjo jurídico-institucional, podem-se obter
resultados satisfatórios para as estratégias de desenvolvimento. no caso do BNDES em
particular, a sua atuação no mercado de capitais tem contribuído para o
desenvolvimento das operações com renda variável, garantindo assim um incremento
das fontes de financiamento disponíveis na economia brasileira. em suma, a
compreensão de que o modelo brasileiro conta com agentes estatais com uma
dimensão expressiva, se encarada como uma idiossincrasia local e não como um
defeito, pode, enfim, permitir intervenções eficazes e portadoras de menores
resistências.

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