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Os carnavalescos da

Acadêmicos do Grande Rio,


Leonardo Bora (esquerda)
e Gabriel Haddad (direita).

POLIFONIA
na avenida
À frente da Grande Rio,
A
os 11 anos, Gabriel Haddad
desfilou pela primeira vez no
campeã na Sapucaí em 2022, Sambódromo da Marquês
de Sapucaí, no Rio de Janeiro, e
os carnavalescos Leonardo Bora se apaixonou pelo Carnaval. O
e Gabriel Haddad declaram sua deslumbramento com as fantasias
da infância foi tanto que virou
paixão pelo samba, refletindo profissão. Desde 2020, ele e o
parceiro de uma década, Leonardo
sobre alegorias, territorialidade Bora, são os carnavalescos da
e novas linguagens artísticas Acadêmicos do Grande Rio. Com
um enredo sobre Exu – orixá de
POR LUNA D’ALAMA religiões de matrizes africanas
considerado mensageiro entre as
divindades e os seres humanos – a
dupla venceu o Carnaval carioca
de 2022 no grupo especial.
encontros
Diego Mendes

Doutorando em história da arte carnavalescos do Rio de Janeiro ou escola [Grande Rio, que venceu o
pela Universidade Federal do Rio de de São Paulo fossem entrevistados, desfile do grupo especial no ano
Janeiro (UFRJ), Haddad repetiu a cada um narraria uma trajetória passado]. O enredo foi muito bem
parceria com Bora para desenvolver profissional totalmente diferente, aceito, apesar das críticas de que
as fantasias da terceira temporada e uma visão diferente sobre poderíamos fazer algo pesado. Exu
do programa The Masked Singer quais são as atribuições dessa é movimento, é energia e potência.
Brasil, na Rede Globo. Além disso, carreira. A rigor, é um trabalho A gente explicou tanto isso no
uma obra de arte assinada por eles artístico que concentra muitas enredo, que veio um samba que
– composta por um desenho do linguagens, tanto visuais quanto conquistou todo mundo. E essa
faraó Ramsés e um conjunto com narrativas. E o carnavalesco pode energia tomou conta da Sapucaí.
sete esculturas gigantes chamadas ser autor do enredo, que é a
Exunautas – integrou a exposição história que vai ser contada pela
Desvairar 22, no Sesc Pinheiros. No escola, que vai se transformar ETERNO RETORNO
fim do mês passado, ambos viram, em samba por meio do trabalho
novamente, a Grande Rio entrar na dos compositores e que, depois, LB – [O carnaval] é um ciclo
avenida, desta vez com um enredo vai se desdobrar em fantasias, ininterrupto, um eterno retorno.
em homenagem a Zeca Pagodinho, figurinos e carros alegóricos. Tão logo um desfile termina,
num desfile que conquistou o outro começa. Um novo enredo
6º lugar do grupo especial no começa a ser desfiado em narrativa
Carnaval do Rio de Janeiro. EXU PROTAGONISTA escrita, um novo conjunto visual
passa a ser pensado. As escolas
Neste Encontros, Haddad e Gabriel Haddad – A gente levou de samba vivem essa pulsão
Bora falam sobre a profissão e primeiro Exu para a comissão de anualmente. O desfile é apenas
a arte que os unem, refletindo frente, em 2018, na Acadêmicos o ponto culminante, o momento
sobre identidades, territórios e do Cubango [escola de samba de mais esperado de um ciclo e ritual
visões de Brasil que as escolas de Niterói-RJ]. Ele encerrou o desfile que tem desdobramentos ao
samba interpretam em forma em 2019, também na Cubango, longo de um ano de vida social que
de enredo a cada Carnaval. que estava no grupo de acesso. E ocorre nas quadras, nas ruas, nas
depois [ já em 2021, mas com o avenidas, nos ateliês, nos barracões.
desfile adiado para 2022 por conta
SER CARNAVALESCO da pandemia], a gente definiu GH – A escola de samba é um
que Exu tinha que ser o enredo da organismo vivo, múltiplo e diverso,
Leonardo Bora – O que é ser
carnavalesco é uma pergunta
que nos acompanha e atormenta

AS ESCOLAS INTERPRETAM O PAÍS


diariamente. Há uma série
de pesquisas acadêmicas,
principalmente da antropologia,
que tentam compreender isso.
O professor Nilton Silva dos
Santos, da Universidade Federal
ANUALMENTE, E COMPREENDER
Fluminense (UFF), categoriza o
carnavalesco como um exemplo AS DIMENSÕES DISSO NOS LEVA
A UM SEM-FIM DE REFLEXÕES
das novas profissões híbridas e
fluidas da contemporaneidade,
uma espécie de artista que

SOBRE A ARTE BRASILEIRA


transita por diversas linguagens.
Há pessoas que o comparam a um
diretor de cinema ou de ópera.
Mas o fato é que não existe uma
homogeneidade: se todos os Leonardo Bora, carnavalesco

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encontros

que tem funções, festejos e permanecem na invisibilidade. São contar] uma história para cada
pessoas frequentando o ano manifestações majoritariamente fantasia, e a gente pensa também
inteiro, de fevereiro a fevereiro. pretas, periféricas, outrora na personalidade dos personagens.
É uma relação que a gente tem criminalizadas, como a gente No Carnaval, são as fantasias
por um ano, renovada a cada ainda vê com o funk e o rap. Por para serem vistas dentro de um
enredo. E essa relação acaba se mais que haja registros fílmicos, conjunto, de uma ideia maior de
desdobrando também nas ações transmissão televisiva e fotos, espetáculo, [enquanto que] no The
da escola na quadra, na escolha o que fica é o rito que acontece Masked Singer é uma fantasia única
do samba-enredo, nos ensaios. na avenida, na madrugada. [O que tem protagonismo no palco.
desfile de abril de 2022] foi uma
espécie de transe coletivo, a escola
VISÕES DE BRASIL [Grande Rio] desfilou de maneira IDENTIDADES E TERRITÓRIOS
impecável, foi uma emoção e
LB – Escola de samba é essa uma pulsação muito grandes, o LB – Cada escola de samba possui
vivência comunitária riquíssima, que mostra a potência que é uma noções identitárias diferentes das
onde tantos saberes se escola de samba e o conjunto demais, e essas identidades são
correlacionam, disputam, e que de saberes que ela encerra. móveis, construídas ao longo do
narra histórias muito poderosas, tempo, [envolvendo] uma ideia
visões de Brasil. As escolas de tradição e memória. São essas
interpretam o país anualmente, PLATAFORMAS DISTINTAS identidades que nos ajudam a
e compreender as dimensões compreender os territórios e a vida
disso nos leva a um sem-fim de GH – [Antes de trabalhar para social de cada escola. A Grande Rio,
reflexões sobre a arte brasileira. o The Masked Singer Brasil, da por exemplo, tem características
Um desfile de escola de samba Rede Globo] a gente já tinha feito diferentes da [Acadêmicos do]
é uma manifestação artística algumas criações tanto para Cubango, da [Acadêmicos do]
potente, política – por excelência teatro quanto para shows. Mas Sossego, da Mocidade Unida do
–, plural, polifônica. É algo vivo, que essa é nossa primeira vez criando Santa Marta. Cada uma dessas
expressa múltiplos falares de tantos algo específico para a televisão. escolas pelas quais a gente já
territórios que, cotidianamente, No programa, a gente tem [que transitou como carnavalescos é
expressa em territórios diferentes.
[Ao mesmo tempo que nosso]
trabalho é de criação artística

A ESCOLA DE SAMBA É UM
e também de campo, [há] uma
espécie de etnografia que cada
enredo permite que a gente

ORGANISMO VIVO, MÚLTIPLO E


desenvolva. Uma territorialidade
não apenas física [e geográfica],
mas também simbólica.

DIVERSO, QUE TEM FUNÇÕES, PAGODE É SAMBA


FESTEJOS E PESSOAS LB – [O enredo Ô, Zeca, o pagode

FREQUENTANDO O ANO INTEIRO,


onde é que é? Andei descalço,
carroça e trem, procurando por
Xerém, pra te ver, pra te abraçar,

DE FEVEREIRO A FEVEREIRO
pra beber e batucar] é uma
brincadeira, uma provocação, até
porque a gente sabe que o enredo
ficaria conhecido como Zeca
Gabriel Haddad, carnavalesco Pagodinho. É um enredo com várias

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Sete esculturas gigantes chamadas Exunautas foram criadas pela dupla de carnavalescos, e fizeram
parte da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros até janeiro deste ano.

camadas, um agradecimento ao e você já não o encontra mais, não nos estimula muito como artistas.
título inédito da escola [em 2022] sabe onde ele está, não consegue Pensando na conexão do barracão
e uma saudação a São Jorge, já falar com ele. É uma brincadeira com a sala de aula, do barracão
que a escola se concentrou no que a gente fez nesse sentido, com outras fábricas onde são
dia dele [23 de abril]. O enredo para que a gente pudesse narrar produzidos espetáculos, com
[deste ano] continua expressando esses diversos subúrbios dentro do ateliês de outros artistas que
a nossa inquietação em pensar as desfile, essas diversas visões de Rio colaboram com o nosso trabalho
religiosidades populares no Brasil. de Janeiro que o Zeca tem em suas e acabam participando do nosso
E é metalinguístico, porque fala músicas e composições. A gente desfile. É sempre esse movimento
da história do samba. A gente fala passa um dia [inteiro] procurando que nos torna inquietos.
na avenida, especialmente, do por ele, até que o encontra em
movimento do pagode. O próprio Xerém [distrito de Duque de
Zeca diz: “Pagode é samba, samba Caxias], numa roda de samba.
é pagode. É tudo a mesma coisa!”. Ouça, em
Mas, a partir desses olhares formato de
hierárquicos que envolvem a ENTRE PONTES E TEIAS podcast, a
própria noção do subúrbio, [o conversa com
pagode] foi considerado algo LB – A gente gosta muito dessas os convidados
menor. É um enredo que vai pontes [com outros profissionais, Gabriel Haddad
muito por esses descaminhos, do samba ou não]. A gente gosta e Leonardo Bora, que estiveram
onde se perder é fundamental. muito de pensar na ideia de rede, presentes na reunião virtual
de teia, estabelecendo conexões. do Conselho Editorial da
GH – Nosso enredo é uma crônica Tanto que a gente começou num Revista E, no dia 19 de janeiro
Carol Quintanilha

que procura Zeca Pagodinho por coletivo. Então, essa ideia de um de 2023. A mediação é de José
esses subúrbios do Rio de Janeiro. E trabalho colaborativo, que permite Mauricio Lima, mestre em
ele é muito inquieto, está aqui agora a conexão de diferentes linguagens, história da arte e assessor de
e, dali a 10 minutos, em outro lugar, territórios, espaços de produção, imprensa do Sesc Pinheiros.

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