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I II I

I
,

Carlos LoPes
José Alcides Pinto, ficcionista e
poeta, tem livros publicados na
área do romance, novela, conto,
teatto, poesia e cútica literária.
E considerado um poeta de van-
guarda e experimental. José Le-
mos Monteiro, escritor e profes-
sor da Universidade Federal do
Ceará, escreveu um longo estudo
sobre sua poesia, intitulado O
Universo Mí(s)tico de
t
4
José tr
Alcides Pinto, publicado r
pela Imprensa Universitária, em
1976, e que se constitui, junta-
I I I I
mente com o ensaio da escritora
Nelly Novaes Coelho, Erotis-
mo/Satanismo/L oucura/na
Poesia de José Alcides Finto,
a principal fonte de pesquisa de
I
sua obra poética. Alcides Pinto,
com o livro de contos, Senhora
Maria Hermínia, Morte e Vi-
da Agoniada, ganhou o 1." lu- LI I I
gar no concurso Prêmio Nacional
da Petrobrás/88.
Josá Alcides Pinto é uma íigura caris-
irr.r dentro da literatura cearense e
rrrlt
porrltro náo dizer da literatura nacional.
Aulor (ls uma vasta obra tanto ficcional,
(:(,rno snsa-stca e poética, o nosso escri-
t()r tioÍnf)f6 êstá a oferecer e$udos cada vez
trrrls sérios e com a dignidade que um
rntoloclr/ol de sua importância merece sobre
lo(l()s üs aspectos.
Jó conhecia Carlos Lopes de lides
Í)rir(.luiátricas e das lutas políticas em

ic
busca
rlo uma sociedade mais iusta. E nós, que lá
rlvitlíarnos em consultório, passamos tam-
lrlrrr o dividir nossa admiraçâo e nosso
lrrricúrio pela obra de José Alcides pinto.
A Trilogia da Maldiçâo, obieto deste
oútudo do Carlos Lopes, A Voz lnterior em
Josó Alcides Pinto, nos fascinou de tal
Ílr()tlo, guÊ, ostimulados pelo poeta e cineas-
tfl Êlosemberg Cariry, até roteirizamos estes
rornances fundamentais de nosso escritor,

AVoz lnterior em
vrrunrio sua transcriçâo para o cinema.
Foi durante estas leituras da obra de
.Irsó Alcides Pinto, com as discussões quase
tlrro tJiárias sobre o universo ficcional do
rorrilrrcista, que o poeta e ensaísta literárío
Onrlos Lopes mergulhou fundo na ficçáo
rlo oscritor cearonse.
,0sE
Duí nasceu este ensaio crítlco de Carlos
I opos que considero essencial para uma
rrrollror compreensão da Trilogia da Maldi.
ç/Ío, quo compreende O Dragáo, Os Verdes
ALCIDES PINTO
Al)utt'os da Colina e Joâo Pinto de Maria
(tJrografia de um Louco). Ensaio que agora é
colocrrrlo nas mãos do público leitor, saído
rlrr riç1orr:sidade e do conhecimento crítico
rltrto intolectual mesmo, chamado Carlos
I ()Íxrs, poetB dos bons, crítico, ficcíonista e
grsirIrratra dos mais categorizados da ciência
lr rót lit;u.

it
Cür lôs Lopes, com este ensaio, estréia
Ultr:iitlrnotr to om livro, digamos assim, com o
1ró rliroito. O meu amigo carioca, esse, é um
rrrlonllo honorário e assumido. Não traz o
rrrn(:0 oolonioli§ta e preconCeituOsO. Com
rliln, llrtrrrlmonte, nossos coleguinhas do eixo
rrrl r:rrllrrrrrl costumam mostrar suas indios-
ntil(:t rt$tits úrn tudo quo se fefere ao Nordes-
Irl

Airton Monte
CARLOS LOPES
c.'1989 Fortaleza - CE

CAPA
Audifax Rios
PARA Airton [Monte
REVISAO e - claro -
para JAP.
[tlaria do Céu Vieira

FOTO
It/arcelo Guimaráes
I

A Trilogia cla Maldição ocupa um lugar decisivo náo só


ilir obra de José nlcides Pinto, como na literatura cearense e
lrr;rsi lei ra. Neste ido, ela Íazparte de uma vertente literária
sent
iil,illl
onde existem o Fogo Morto, de José Lins do Bêgo, e sob outros
|"'r '
,il;Í)octos que não os exclusivamente verbais - Grande Sertão
Vercdas. A crônica de localizaçáo rural, com elementos épicos
lr rl
r, Íirntásticos ressaltados contra um pano de Íundo de decaciência,
lr Illr lr l)irrcce reÍletir o processo de urbanização de urn país, iniciado
tr rrloI
rrrr Estado Novo e cada vez mais acelerado até culminar com
| 'illr lil ir vortigem pós-64. Nessas condiçóes seria natural, talvez inevi-
I lll
r lrvlr I l;'rvcl, um ajuste de contas literário com o Brasil def initivamente
ldtrr
lrtE' ll
rlcixado para trás: aquele onde o campo - e suas oligarquias
(jominavam a cidade, onde o interior era o palco de decisáo
li rrr!
rlo poder e da economia. Não se trata mais da ficçáo rural ao
vtrllro estilo, que vem de Alencar e Bernardo Guimarães, esta
l( ll(
I i,IlrI rrrna legítima expressão de um país rural. Para esses autores
o oampo náo constitui um problema, sendo o locus natural das
grcripécias de seus personagens. G raça Aranha, em Enaã, parece
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Ior sido o primeiro a apresentar a contradiÇão entre cidade e
( rrr lr
ti,
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(;ílmpo como o panorama de seu romance. No entanto, como
:;r:ria dê se esperar, ele o Íaz de Íorma embrionária, a tal ponto
t .,t,"',
[ [rllI (luo a apresentaçáo e expressáo do problema, além de secundária,
r rlr r.
tt
r
rlccorre da tensão entre dois imigrantesr o Brasil - e tudo o
^l'ir
(Iltlrtr r;rre isso signiÍica
- é um problema para a mentalidade européia.
,l{ II Assim, temos uma linha f iccional que expressa náo mais
[rnlrt
r

I ,,1
ilür país rural, mas um país onde se dá uma luta entre a cidade
l'õl'lit
iilrlrltr
r o campo com a vitória da primeirae a decadência do último
oU, para ser mais exato, a decadência de uma certa estl:utura
rrllr
1á r llr
:;rx.-ial rural, antes dominante. Livros como - outro exemplo
Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, reconstroem, indireta-
.lrr, rrrcnte ou diretamente, essa pugna.
àlll r

O que f oi dito acima Íicacomo hipótese, mas é interessante


rrotar que, quanto mais avança o processo de urbanização, mais
,r:; obras da vertente aludida adquirem ou incorporam elementos
:,rrJlra*realistas, Íantásticos, sobrenaturais e absurdos. Como
,r indicar que o campo e seu domínio passado estão cada vez
rrriris remotos em nossa memória, livros como os de José J. Veiga
(rrrr:lusive o primeiro, Os Cavalinhos do Platiplanto) e Autran
l)ourado, poderiam ser citados, assim como outros, se nosso
v
objctivo Íosse demonslrar essa tese. c tornar-se aviador, apenas para cair e esmagar a perna, f icando
o caso específico do ficcionista José Arcides pinto tem sido l)írra semprc agarrado ao chão, impossibilitado de voar.
pouco estudado. Em geral mais conhecido como poeta, sua prosa não Em o Dragão, predomina a extensão e não a prof undidade.
teve a atençáo que merece, ou pelo recesso atual da crítica literária
ou pela vicissitude (do ponto de vista da publicidade) de haver voltado A isso corresponde um tempo romanesco onde predomina a sin-
ilr'lll
Irrt ao ceará ao invés de morar no eixo Bio-são paulo, ou - melhor ainda r;ronia sobre a diacronia e oS perSonagens são caracteristica-
rnente unidimensionais. Somente na sexta e última parte do livro,
r

Paris.

lrrI0lr
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2
O primeiro iivro da trilogia, O Dragão, apareceu em 1g64;
il menos de dez páginas do f inal, o eixo histórico f az sua apari-
c;ãro, com o relato da chegada do refugiado português que iria
Íundar o povoado ao Ceará, mas apenas para que em seguida
I'ql'lri o segundo e o terceiro, Os Verdes Abutres da Colina e João sc pergunte e respondai "A História! O que eta a História?
rlr! I|
rllvlrl Pinto de Maria (BiograÍia de um louco), dez anos mais tarde, Uma f icção. Um conto de Íadas. Uma pilhéria. A História era
ldrr editados em um só volume. uma grande mentira. (...) Uma miragem. O Íogo-Íátuo. A f icçáo.
í,1à( lr
Seu tema único é a história do povoado de Alto dos Angi- A História náo existia. Os Homens náo existiam. Nada existia."
dhlli(l
l, rEt! cos de são Francisco do Estreíto, local onde nasceu o escritor Nesse painel extensivo, sincrÔnico e unidimensional, está
trrlr lr
e posto no mapa, não só literário, devido exclusivamente a seus cristalizado o conf lito básico de toda a trilogia: aquele entre
trr llr
, r livros. Nesse sentido, José Alcides realizou algo náo só compa- barbárie e civilizaçáo, entendida esta no sentido ocidental, cris-
'rttrtl
rável ao que f izeram outros escritores com sua terra natal tão e moderno. As Íormas desse conf lito percorrem o texto:
l,rró
(Faulkner com New Albany/Yornapthawa, Hemingway- na série clinamismo x marasmo; mulheres de "f amília" x prostitutas/De-
dô/Antôn io Pixuim; moral x imoral; cast idade x sexo; sobriedade
Ir r,ltttl

t rrtl' r
de contos de Nick Adams
- com O ark park, Mann com Lubeck,
Proust com llliersiCombray, Joyce com Dublin). Em seu caso, x embriaguez; André x João Pinto; inteligência x burrice;sanida-
José Alcides dotou de uma historiograÍia o que em absoluto de x loucura; Tibúrcio/padre/igreja x chelego/beato/crendice;
não tinha história. Ao criar essa nova província literária, ele, Tibúrcio/cultura x povo do Alto/incultura; seca x chuva; cheia
ao contrário de seus personagens, conseguiu transformar o so- :r estiagem; estéril x prolíf ico; padre/humano x bode/animal.
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{llt"ll nho e a f icção em realidade: o Alto só passa realmente a existir Entretanto, os terrnos desse conf lito sáo intercambiáveis.
I'r rll depois dos livros de José Alcides pinto. Os selvagens trocam de lugar com os civilizados, mesmo porque
o único meioda civilização prevalcer implica necessariamente
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3
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o uso de métodos selvagens: as mulheres "de Íamília" surram
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as prostitutas, o padr:e ofende o povo, a seca é tão ruim quanto
,,11,l{ O Dragão é um amplo painel de um povoado perdido no a cheia, para aprender a voar Davi tortura os urubus, após
1'á rltr
interior do ceará. Percorremos a aldeia como nurn passeio, co- o povoado quase ter sido destruído o padre ainda ameaÇa o
r lr rúr
nhecemos seus habitantes, seus pequenos e cotidianos proble- povo com um dragáo. Do ponto de vista político, o padre, para
mas, e o balizamento de sua ação (de sua liberdade definida
I

Íazer progredir o povoado, náo vê outra alternativa, senáo tor-


lP
pela necessidade), por forças extra-humanas: a seca, a cheia nar-se o chefe do partido situacionista, o mesmo que, presumivel'
e a hereditariedade. O romance é construído como um fundo mente, enquanto governo, mantém o povoado na situaçáo que
onde apenas o padre Tibúrcio se destaca como f igura, protago- tanto odeia.
nista. Depois de seu desapareêimento da açáo, o lugar é ocupado O resultado não é o progresso, mas o marasmo e a perpe-
por André, que recebe a notícia da morte do padre, é pai de tuação do conf lito básico. DaÍ o tempo sincrÔnico e a unidimen-
Davi, um dos dois personagens que saem do povoado por outra sionalidade. o predomínio da extensão sobre a profundidade é
via que não a morte, no seu caso, após estudar o vôo das aves uma exigência formal decorrente de uma realidade imobilizada,
I I
or)(lo ir rr,danÇa está pararisada o[J ocorre em níver
vegetativo. rrr",lc ír proÍundidacJe predomina sobi'e a exterisáo, a diacronia
lr,r r;orrseqüência, a Fristória é "uma f icçáo. um conto dã f adas,,, ',olrtc ;t sincroni;i e seus personagens destacam-se tanto do Íundo
c IC...
rlro ;'r; vezes quase náo o percebemos. Daí sua multidimensio-
rI r.i I
Il'r.lt
I I
t* rr,rltrl;rcle. O tempo romanesco é aí f unção da psicologia dos per-
,r)rr;l(l{}ns. Por exemplo, somos inÍorrnados de que a morte do
r oror)cl se dáem 1910 e a ordenação cie Titiúrcio, suadesigriacão
os verdes Abutres era corina, o segundo rivro da trirogia, l);ríír a paróquia do Alto, em
'1917. No entanto, quando Tibúrcio
lI tr] l!
não é a continuação de o Dragão. No sentião cronorógico, parece r:lrcr;a e começa a procurar o relatório do asceta, temos a impres-
lr"lr'. mesrno o contrário: o livro recua a um tempo remoto, ',;ro cle que se trata de algo remotíssimo ou, com boa vontade,
muito
antes do remomento da ação do primeiro rivro. A medida que rk, lnlo menos algumas décadas atrás, embora este tenha sido
I
'rlr lU
rlrt r t t o lemos, temos a sensação de que os verdes Abutres é o mesmo lrir;rito depois da morte do coronel, ou seja, na melhor das hipó-
,llvlill
ldrrr o Dragão, só que agora reescrito em proÍundidade. Não se trata lu:;os há sete anos antes.
íarr íl apenas de uma mudança de ponto de vista, como no Quarteto
Toda a decadência- inclusive Íísica: os homens transfor-
pàl ilr I de Alc;<andria, de Durrer, onde os três primeiros rivros (Justino,
l, rttt nriun-se em primatas - e a posterioridade de ouro oo povoado
ilrrlr
Ballazar e lr/outorive) contam a mesma históría de pontos de
o(:orrem também nesse período. tt/as Tibúrcio procura notÍcias
lrr llr vista diÍerentes, constituindo três romances distintos e um quar-
rkr:;sa época como de uma comunidade desaparecida muitos
to (cleo) é a continuaçáo tanto rios outros três quanto de quar-
,uros antes Como conciliar as duas coisas?
quer dos três.
l, rqó ,
t\4ais adiante, quando T ibúrcio int roduz a polít ica part idá-
os verdes Abutres constituiomomentomáximo da triro-
r iir no Alto e f unda o Partido l,4arreta, é descrita outra
I i rl I trtl
I rtt lor gia' Não só do ponto de vista técnico e formar, mas é onde-
rrlirde de ouro, quase idêntica à primeira. Chelego - um beato
a trama atinge o seu ápice. poucas obras, tanto no cearáquanto
I
rr;rrorante descrito em O Dragáo - é comparado entáo a Cícero,
I , tlttts no-Brasil, alcançaram tal unidade de trama e linguagem, tal
lrullr, (;orno às da intriga.
Íluência, onde a cada repetição alguma coísa é aórescentada
Seria f ácil (e preguiçoso) desistir aí de buscar a coerência
/\l (r
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e a história progríde, embora voltando sempre às origens, no
rrrterna da obra, rotular JAP como adepto do realismo fantástico
seu ar indisfarçável de crônica, o autor ausente de Íorma quase
,ln tttl
,llqll Ílaubertiana, tudo andando como se por si só.
r bater o ponto final. Seria Íácil se não Íosse injusto. Mesmo
I ltror
A ação de Os Verdes Abutres recua às origens do povoa- t)orque - segundo informação do autor- a trilogia Íoi TODA
I'ilrlill
illíirllr do, à chegada do desertor português, rapta uma índia e povoa or;crita ANTES do ciclo de Macondo e de sua transformação
orn best-seller. Mas não precisamos entrar na pantanosa discus-
,,tlr lq
I

o local. Um homem para o qual não existe nem ao menos o :;ito sobre o pioneirivno de tal ou qualescritor ou sobre a anterio-
1â rllr Oo incesto, que dorme com as f ilhas e netas e J o proprie_
f 9U.u rirJadc de tal ou qual data.
tário da terra, incrusive aquera onde assenta a ardeÍa. sua saga
' ll
r,' ti
é contada pelo pároco local, avô de Tibúrcio, contemporâneo A encarnaçáo de Cícero no beato Chelego só é possível
il[, r.ti desse pai f undador intiturado "o coroner" e ere mesmo
no plano da Íantasia. De uma Íantasia metódica, em que os
aperidado olementos da realidade tivessem que ser idealizados de acordo
"o asceta".
0om uma mente versada na cultura grego- romana, para que f osse
Qual a necessidade desse recuo sob o prisma do conjunto
rnantida a coerência. Chelego é o aritagonista por excelência
da trilogia? A princípio parece ser uma necessidade apenas
tle padre Tibúrcio enquanto sacerdote. Sua idealizaçáo "clássi-
explicativa, como em os Buddenbrook o recuo ao princípio do
sécu lo x I x é uma
r;a" só pode surgir da necessidade deste em conceber (sonhar)
igência expricat iva da h istór ia de Hanno,
ccm ítnos depors. E.excom eÍeito, ao contrário do prir,eiro !ivro, o povoado em moldes clássicos. Para que exista, no plano da
íantasia, uma nova idade de ouro, o discrepante, o que se opõe
10
11
ít isso, o incongruente, o que não se aclequa a este molde, náo Em Verdes Airutres a história do povoado é sonhada,
pode ser deixado do lado de f ora, sob risco de abalar a totaliclade rlclirada ou idealizada por padre Tibúcio. Um sonho é a realiza'
do sonho ou da fantasia. Esta, tem de tudo abarcar, de ser Çí'lo, no plano da Íantasia, de um desejo, uma necessidade ou
total para poder exist ir. lrrcrnência reais. Tibúrcio sonha o passado transÍormando Íigu-
Pelas indicaçÕes, sabemos que a história do Alto se passa ril:; que realmente existiram (ou não, isso é pouco importante)
num período de cem anos" A morte do coronel serve como divisor orn idealizaçÕes que correspondem a um doutor em teologia,
entre duas metades de cinquenta anos: a primeira vai de 1860 Iormado em Roma e, em seguida, designado para o interior do
(chegada do coronel ao Ceará) até 1g10 (morte). A, segunda, (icará, em .19.17.
t',r1, de .1910 até 1960 (morte de Tibúrcio). Assim, o coronel domina Para Tibúrcio, a realicjade de sua paróquia e de seus paro-
a primeira parte e padre Tibúrcio a segunda. No entanto, existe rltrianos é insuportável. O único caminho possÍvel de evitar a
Iorrcura e/ou suicídio é mergulhar na loucura sob controle do
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um interregno de sete anos entre a morte do coronel e a chegada
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de padre Tibúrcio ao Alto. Estes sete anos são presumlvelmente rkrvaneio. Toda a sua educaçáo clássica, que de pouco lhe vale
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dominados pela presença do asceta, avô de padre Tibúrcio. O rro Alto, que até mesmo constitui um peso por sua própria inutili-
mais curioso é que nestes sete anos não acontece rigorosamente rla«1e, serve entáo para operar a transÍormação fantasiosa do
Jrovoado e sua História. A Única espécie de conciliaçáo com
lr rcri
rrr,rlr NADA exceto a redaçáo do relatório pelo asceta. sobre aquelas
l,r I lr duas fases, a da decadência e a idade de ouro, só sabemos ir realidade que encontra é a f uga.
o que nos contam que foi contado pelo asceta, embora, só No entanto,,como todo sonho, o seu padece de um efeito
nos sejam mostrados breves Íragmentos do relatório, os nomes original:o de náo ser real. A temporalidade peculiar de Os Verdes
I' que padre Tibúrcio encontra. E, quando a decadência e anarquia Abutres é Íruto dessa tensáo: prevalece em geral o tempo subje-
I rr I t,, é superada, nem isso temos mais: chegada a idade de ouro o tivo do sonho, exceto nas datas, pois, para também fantasiá- las,
,1,,,
asceta suspende a redação do relatório. l;oria necessário abandonar de vez a realidade, trazendo como
Essa idade de ouro é, entáo, uma reminiscência lendária r;clnseqüência não mais a idealização, mas sua substituiçáo, o
rrrullr
tão rrrergulho no delírio e na loucura. O sonho deixaria de ser um
l\l'rl
-portugueses quanto o povoamento do Brasil pelos degredados
lendária
rnorJo de conciliaçáo com uma realidade intolerável e passaria
(lll,, trazidos por Cabral, dos quais o coronel parece
, lrr
um cornpanheiro de cepa- ou, melhor dizendo, um mito a perse- n ser o seu oposto, acarretando, nessa dialética, o seu prÓprio
r
Íracasso como meio de ajustamento.
I
gu ir, consolar e cont rolar não só a realidade m iserável da segun-
I ,'1t
I'il,l'r
da metade da história (a época de Tibúrcio), como a orientar Naturalmente, o sonho está voltado para o passado: seu
o seu relato. De acordo com este, ela não aconteceu durante rnaterial é o já acontecido. Nesse caso, sonhar o presente sÓ
,,t1, a época de coronel, nem durante a época de Tibúrcio, mas entre ó possÍvel enquanto repetiçáo ou projeção do passado. Daí, as
ll
as duas, sem protagonistas nem testemunhas. Os Íragmentos repetiçÕes do texto nunca são exatamente iguais. O sonho, para
do relatório do asceta, encontrados por Tibürcio, não falam de so manter, tem de incorporar o presente real. Para que esses
idade de ouro alguma, mas da animalizaçáo dos homens e de novos elementos náo destruam a Íantasia, é preciso que sejam
uma escassez espiritual absoluta. [\Ias, mesmo sinais que antes irrtegrados oniricamente. N/as isso f az com que o próprio passado
nos eram apresentados como característicos de decadência são 1á contado tenha que ser recontado. Só então, é
possível recontar
depois reinterpretados como sinais da idade de ouro: ,,mestre, (ou melhor, contar reinterpretando oniricamente) o presente, que
João Firmo cajazeira pensava que na cabeça de seus discípulos no próprio ato de contar já é passado. Por exemplo, a história
não estava entrando nada porque ele punha as folhas (...) nurn rJa introdução da política no Alto é contada duas vezes: na pri-
lugar e eles espiavam para outro, mas aprendiam de cor, pela rrreira, dois cavaleiros negros fazem uma encenaçáo preparada
voz do mestre". pelo padre; na segunda, chega uma vestal (ou seja, uma sacerdo-
1t 13
tisa da antiga Roma) ao povoado. conro as duas versões sáo alrandono do ideal clássico, ou seja, desistir de civilizar abarbá-
incornpatíveis, opera-se uma adaptação: na cena dos dois cava- rie. tMais do que isso, em regredir da civilizaçáo à barbárie.
leiros conta-se a f undaçáo do partido Marreta e na vestal, prepa- Ou em enlouquecer.
ra-se o eleitorado para a eleição. No entanto, já havia sido A sua ação civilizalória, então, só pode encontrar sucesso
descrita uma eleição após a cena dos cavareiros, e, no essencial na Íantasia. A realidade, por conseqüência, é percebida, somente,
(no que concerne à t rama) as duas cenas são idênt icas. o presente rreste segundo livro, como o negativo do sonho idealizado de
real é então uma instância implacável, a voltar sempre, amea- gradre Tillúrcio. E, sem dúvida, ela constitui a sua negaçáo- Suas
çando o sonho e sua perpetuação. o Íim do povoado é causado ;rq;õe$, na verdade, náo visam a modif icaçáo alguma: na política,
por essa incapacidade de sonhar totalmente, essa impossíbili- ó o chc;fe do partido situacionisla e ganha as eleições pelo engo-
dade de f ugir completamente do real e do presente. Tanto assim do e pela ameaça; ideologicamente, considera o povo apenas
que os únicos sobrevivientes são Rosa, a mat riarca, senil e o como uma ralé burra, bruta, degenerada a f atalmente condenada
louco Chico Frota, ambos alérn do sonho e da realidade, já que ;ro apodrecimento; do ponto de vista cultural, só encontra valida-
imersos no delírio, imunes ao conflito entre um e outro, para rjc no que traz a chancela da Grécia ou de Roma, ou seja, do
os quais o sonho já náo é mais uma Íorma de suportar a realida- Jlassado concebido em termos aristocráticos; no plano econô-
de, mas constitui a própria realidade. rnico, ele persegue e destrói o único personagem que empreende
As repetições - produto da temporalidade conf lituosa de trma açáo verdadeiramente progressista, apesar deste ser um bom
Verdes Abutres t;atólico: João Pinto de Íríaria.
- 'f azem a narrativa girar em torno do coronel
e do asceta. l/las essa temporalidade é ela própria resultado - A convicçáo de realidade existente no sonhar, convicção
do conf lito básico já mencionado, aquele entre a barbárie e a osta que possibilita o próprio sonho enquanto realização de um
civilização. sonhoe realidade são as formas operacionais dessa rlesejo e evasão de uma realidade intolerável, é dada peloelemen-
polarização ao nível subjetivo em padre Tibúrcio. seu sonho lo de real que ele contém e a partir do qual foi elaborado. A
é a realizaçáo de seu desejo de que a vida aquela que existe,
- ltistória do Alto começa com um prolíÍico garanháo, o coronel
a vida de seu povoado - corresponda a um idealclássico apren- Antônio José. sua missão também é civilizalória, apesar de seu
dido em Roma. Durante todo o Dragâo, ele não Íaz outra coisa lado incestuoso: povoar o sertão, transÍormar o ermo em aldeia,
senão resmungar e até mesmo humilhar e ofender o povo do r:omunidade humana. Essa supremacia viril é justiÍicada como
Alto chega mesmo a comparar-se aos matutos: "Eu estudeil rrt-.cessária por Tibúrcio e - claro - por Seu alter ego, o asceta.
Parasus foi que estudei? para que foi que me ordenei?Garanto sou domín'n sobre os homens e rnulheres não é imposto pela
que nâc foi" (pág.26). E depoií Íelizmente, tivera uma vocação Í«;rça, mas aceito ppciÍicamente por todos. Ele náo submete
forte, princípios religiosos, educaçáo segura. Viajara muito _ r;cxualmente as mulheres. Elas é que o procuram e a ele se
Dr. da lgreja, dipiomado em Roma (...) Uq padre qualquer, na- r;ubmetem. Aí temos a primeira discrepância: apesar de todo
quela terra açoitada por desgraças sucessivas, dif icilmente se o ÍascÍnio irresistível que exerce sobre as mulheres, a primeira
conservaria íntegro à religião, sem que se rebelasse contra o tkrlas - a Índia - é por ele raptada, aparentemente por náo
criador. oh! às vezes a lucidez extrema é como uma doença :rrrr civilizada, demonstrando pela primeita, vez na trama, a sel-
- pensava ele. [r/as ao mesmo tempo retif icava:,,lVlas e preciso vlqeria do processo civilizatório. No entanto essa explicação
não ignorar. Ver as coisas como elas são, embora não as possamos ó insuficiente: o sexo, no caso do coronel, náo tem nada de
modiÍicar". t:ivilizado, está sempre colocado (vide de incestos) em seu nÍvel
O sonho é o resultado dessa tentativa de,,ver as coisas ;ruramente animal.
como elas sáo". Uma vez que é impossÍvel modif icá- las, também Na primeira Ínetade da história, ao contrário da segundq
é impossÍvel vê-las como elas sáo. Realizá-lo implicaria no (rlominada por Tibúrcio), não se recorre nunca à coerção. Mais
14 í5

ts* -l
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do qr,re isto, o desregramento instintivo do coronel NAO implica ,'or etc... A descriçáo, atribuíoa ao asceta, da transformaçáo
err restrição e repressão aos intintos alheios. Apenas nenhurn rlo lrovo numa horda de primatas, ajuda a compreender o proces-
outro personagem contemporâneo parece querer exercer sua 'io: o embrutecimento e animalidade do pai, que f oram negados
prerrogativa animal, ou melhor dizendo, com exceçáo do coronel, rr;r vcrsáo onírica, sáo projetadas, ou melhor, atribuídas, de f or-
o resto náo parece ser dotado de instintos ou impulsos. O resul- rrr;r def ormada (pela censura), aos f ilhos. Depois disso, depois
tado é um mundo onde o instinto parace conviver com a razáa, rkr;sa purgaçáo da culpa (pela morte do pai - embora este náo
a superstiçáo com a religiáo, a barbárie com a civilização, a Iurrlra sido assassinado, os rituais de luto, dos quais o caos
natureza com o homem (não há seca nem cheias) e o coronel, nir ;rlcjeia é uma imagem, equivalem à purgação da culpa por
o padre, o curandeiro, assim como o Diabo e Deus, são amigos rruil rlorte), o povoado pode, ao menos na f antasia de Tibúrcio,
e colaboradores. Até mesmo o escravo é respeitado como igual, orrlrar em sua idade de ouro.
tanto por seu dono, o asceta, quanto pelo coronel, a quem ele Quando padre Tibúrcio chega ao Alto, sete anos depois
ensina a manejar a primeira Íechadura que chega ao Alto. Todos rlir rnorte do coronel, náo encontra aquela ordem clássica, mas
são prolíÍicos, inclusive o asceta (aÍinal, Tibúrcio é seu neto...) orrlra vez o caos, a penúria e a indolência. Portanto, quando
O escravo é um eunuco, mas supera a sua deÍiciência pela inven- r:ria a sua Íantasia, esta, a princípio, assume a forma de uma
tividade. Irrrsca. Procura'os manuscritos do asceta, e embora só encontre
O coronel é o pai da horta primordial de Freud, com a Ir;rqmentos que descrevem uma comunidade primitiva que é a
diferença de que náo mantém a sua posiçáo pela força bruta, rnesma em que vive, a partir deles sonha a sua idade de ouro,
seu monopólio sobre as mulheres é consentido de bom grado e, lrois só a admissáo de sua existência passada consegue tornar
por conseqüência, não é assassinado pelos Íilhos. Com essas riirportávei o presente. Este, então, é visto como decadência e
característ icas, é uma surpresa que, após a sua morte, o povoado o passado do povoado como a história de uma ultra-remota
mergulhe no caos. No caso do pai da horta primordial, descrito r:omunidade desaparecida. É mais fácil suportar a decadência do que
em Totem e Tabu, seria lógico esperar que, se os filhos não o rnarasmo. Sua açáq real, ao contrário do coronel e do asceta,
chegassem a estabelecer uma nova ordem, como tabu do incesto ,irrrá f undamentalmente coercitiva: a moralizaçáo repressiva e
e os clãs totêmicos e exogâmicos, o caos dominaria a horda n inclusão na política dominante e nos padróes sociais domi-
e esta se'lugar
dissolveria ou os irmáos se rnatai'iam na luta por nirntes, do povo do Alto.
ocupar o do pai. No caso de um domínio consentido, pelo Concebe então uma trajetória para o povoado que passa,
contrário, seria de esperar a substituição pacíf ica do pai ou íoÍno a Grécia em Origem da Tragédia, de Nietzche, por um
a tran;;ção também pacíf ica para uma nova ordem. No entanto, gxrrÍodo de predomÍnio do instinto (dionisíaco), sucedido pelo
não é isso que ocorre na História do Alto. orltrilÍbrío entre razâo e instinto (apolíneo) e depois, por sua
A desorganizaçáo do povoado após a morte do coronel 1rrópria época, onde a razáo suÍoca o instinto (socrático). Este
é exatamente o elemento que f az ressaltar - assim como o rapto rlor;onvolvimento só foi possível pelo sonho: náo só por náo
da índia por um homern ao qual as mulheres não resistem - l.írr real, mas pela própriamistura de lendae h'ístória queenvolve
o caráter depurado, idealizado, da versão que Tibúrcio nos ofe- rr origem das antigas civilizações, que estáo pra nós, como notou
rece da primeira parte da H istória do povoado. O sonho de T ibúr- Mirrx (Contribuição à Grítica da Economia Política), como a
cio retif ica, corrige'a história verdadeira. Em f unçáo do seu lrríância está para o'aduito, cuja lembrança dessa tase da vida
desejo c.b Íugir à realidade da segunda metade (a sua própria rritá igualmente imersa no sonho, como uma idade de ouro pes-
época). E como se Edipo, no Íinal da vida, contasse a sua história nuirl em que os lnstintos ainda não foram submetidos à razáo.
procurando Íugir daquilo que é insuportavelmente chocante Os Verdes Abutres da Colina é um monólogo interior,
nela: terÍamos então uma versão corrigida, com um pai carinho- nmcrito na terceira pessoa, pois a disciplina, o ideal clássico,
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16

bÉ ,I
a religiáo, o celibato e a castidade, em suma, a repressáo ultra-
reforçada de Tibúrcip, não permitern, nem ao menos no plano rrronte outro coronel poderia realizar a SUA (de Tibúrcio)missáo
subjetivo (aquele em que ocorrem os "pecados por pensamentos,, r:ivilizatória. Esse outro, que no plano da fantasia só pode ser
do ato de contriçáocatólico), aanarquiae a Íerocidade instintiva r, Íncsrno, não existe e, no passado, também nunca existiu, excelo
dos monólogos interiores na primeira pessoa. .,Ín sua ideal!zaçáo. Quanto aele, permanece obcecadoem repetir
O motivo do monólogo é a vontade de Tibúrcio de conti- n papel do asceta, o que o condena ao fracasso, não apenas
nuar a obra do avô, ou o que ele acha que Íoi a ob,a do avô. lrrrlo fato de que este, tal como o idealiza, é apenas uma ideali-
Ít/as náo se considera um asceta. corno é possível urn não-asceta rrrção sua, mas também porque, toda repetiçáo, como o rio de
continuar a obra de um asceta? Tibúrcio considera a essência lkrráclito, nunca é a mesma repetiçáo.
desta obra civilizar o povo do Alto. por outro lado está convicto Repetir está condenado ao Íracasso porque náo existe
de que é impossível modiÍicar qualquer coisa, pois as Íorças no0cssidade de asceta algum, nem de coronel algum. Ao náo
naturais, a hereditariedade à Írente, são obras de Deus e só r:ompreender isso, ele acaba se chocando com o único homem
ele pode desfazê-las ( O Dragão, pá9. 59). Como em Eurípedes, tlrtr: realmente muda ou tenta mudar alguma coisa no povoado:
,kri1o Pinto de [/laria.
o hon'iem é crripado porque é inccente e esta é a sua tragédia
ou a maldiçáo de que fala o título da trilogia. Entáo, o que
constitui a obra do asceta e qual a sua diferença para a obra
do não-asceta Tibúrcio? Em sua idealizaçáct, o asceta triunÍa
5
ao levar o povoado à idade de ouro. Ou seja, ao levar o povoado João Pinto de lVaria náo é um usuário. Esta fama deve-se
de volta ao passado. lnloiramente a padre Tibúrcio. Ele é cioso de suas propriedades,
Em seu caso é impossível. Ele sonha mas não conÍunde rrrns todo o proprietário o é, inclusive o Íazendeiro Tibúrcio,
a roalidade e o sonho. Ele jamais enlouquece. A repressáo ,,clvi- rr r:oronel a quem este idealizae o avô, cujo propalado ascetismo
lizada" não o deixa. Portanto sua obra terá que ser a de inserir n[1o o Íez desÍazer-se de sua Íazenda, aliás a mesma que Tibúr-
o povoado na vida política e econômica que existe, por menos r lo herdou. [Vlas, ao contrário destes, ele investe capital para
que isso lhe agrade e inclusive o obrigue a ref ugiar-se no sonho rrrrrpliar a produção. Ao in'vés de entesourar compulsivamente,
Ce vestais que se encarnam em cabos eleitorais. E ao Íazer rllrrlreiro como fazem os usurários, talvez a persona econômica
isso, acaba com qualquer possibilidade de transcendência. Tudo rrrrri:; universalmente detestacla (o desprezo e a condenaçáo da
passa a ser uma contingência. rrr,rrrA é o único ponto em que concordam [/arx, Freud, a lgreja,
Ele é um padre, Íiel a seus votos, prefere até mesmo nr, ustóicos, os epicuristas, etc.), Joáo Pinto náo vive de renda,
que os padres sejam castrados para melhor cumprirem suas r,il :ioja, de juros. Ele trabalha duramente na Amazônia, compra
obrigações sacerdotais. [t/as seu próprio avô, a quem idealizou In11;,r' investe o que ganha na indústria, amplia sempre sua
e chamou de "o asceta", era um padre, ou seja, a sua própria prorlução e continua trabalhando. É um empresário capitalista
existência, a consciência que tem de si mesmo é o desmentido nurra terra onde o capitalismo ainda não havia chegado. Uma
de sua idealização do avô e de seu pretenso ascetismo. Então nr,gúcie de Delmiro Gouveia do Alto.
embora sem conseguir confessar isso nem a si próprio João Pinto é um bom católico mas náo dá esmolas. lsso
náo sentir nostalgia de uma época onOe se' permitia o que
- como nxlrlicaria a perseguição do padre? Diante da miséria e escassez
[roje tlrr ;rovoado, parece evidente que seus empreendimentos Íazem
é impossível permitir? Ele justiÍica as ações - melhor seria
dizer, os airetites do coronel. A força deste derivava de sua rruris pelo povo do que qualquer esmola. E, Tibúrcio, Dr. em
virilidade. só isso permitiu ao garanhão luso exercer sua ação lnoloqia Íormado em Roma, deve saber que nem a lgreja teorizou
al1;urna vez sobre o papel transÍormador ou social da esmola.
civilízalória, Mas ele é padre, estéri!, castrado. para ele, so-
Ao ç6n1rário, ela sempre foi consideraçla como uma espécie de
1E
19

h- )
passaporte para o céu, a ser pesada no julgamento após a rnorte.
João Pinto é a exceção que desmascara, desmente, a regra
Portanto ela Íaz parte da mesma ideologia que vê o mundo corrio
óbvia. Ele é diferente, não só na origem da fortuna, como no
um vale de lágrimas em que cabe ao homem a suprema aspiração
gnnsamento, no sentir e, por consequência, na açáo. Ír/ais do
desalvar sua alma, embora náo nôs seja dito porque é mpossível
que isto: para o povo é escancaradamente claro que ele é diÍe-
salvar a alma aqui mesmo, junto com o resto...
ronte. E, ele mesmo não quer ser igual a ninguém, nem Íingir
Joáo Pinto de Ír/aria também náo Íaz doações à igreja.
rlue é rico por um processo tão natural quanto o amanhecer
Até mesmo as terras que destina a São Francisco foram antes
o o anoitecer.
doadas pelo coronel. Considerando o quanto essas doações au-
João Pinto de Ítllaria é, rnais do que qualquer um, herdeiro
mentaraln o poder econômico da igreja e & alguns padres e
rlas terras do coronel: ele é seu neto. João Pinto é o único perso-
os hábitos tratlicionais do interior cearense, seria natural espe-
nagem em toda a trilogia cuja ascendência não nos é apresentada
rar que a recusa em doar por parte do homem mais rico da
oomo uma difusa decorrência da promiscuidade do coronel. Ele
paróquia fosse encarada pelo padre como uma peÍda vultosa:
tom "os olhos azuis e diligentes do avô - AntÔnio José Nunes
como no caso do cachimbo e da boca, hábitos deÍormantes redun-
o o jeito tristonho e calado da avó - a Índia cativa". Apesar
danr em coisas.(e concepções) deÍormadas.
rlisso, ele não obtém sua Íortuna por heranÇa. Como Davi em
Mas a carga emocional investida pelo padre é tanta, que
O Dragáo, ele sai do povoado e depois de anos na AmazÔnia,
é lícito afirmar que estamos diante da ponta de um iceberg. ole enriquece, no trabalho duríssimo de seringueiro. Porém, ao
[tlesmo porque o autor dedicou todo um livro de sua trilogia
r:ontrário de Davi, que esmaga a perna longe de casa e não
- e o último- a um personagem que aparece como absolutamente volta, ele retorna e adquire TODAS as imensas terras que f oram
Secundário nos livros anteriores e que aqui tem como antagonista
rle seu avô, inclusive as que, de direito, já eram suas, por
o personagem centrâl desses outros livros. herança.
A relaçáo de Joáo Pinto de Maria com sua riqueza, em Ele não se contenta com isso. Trabalha duro e quer mais.
especial o seu conceito de propriedade, é diferente da dos demais Estéril, consciente disso, e não vendo utilidade para o sexo
personagens. Ele sente a riqueza Gomo f ruto de seu próprio íora da procriação, arrepende-se de ter casado, pois "não iria
trab,alho, de seu próprio esf orço e mede o seu valor pela diÍicul- lirar uma moÇa do seu lar se soubesse que náo poderia constituir
dade, pelo suor e dureza com que a conseguiu. Nesse sentido, lamília". Viúvo, "perdera o gosto pelo matrimÔnio". Quanto
como o operário descrito pô MARX no primeiro livro de O Capi- mais enriquece, maÍs se desinteressa pelas mulheres. Todos se
tal, ele se sente criador de'valor e vê na riqueza trabalho objeti- perguntam como o neto de um avô táo viril pode ter como "única
vado, investimento de nervos, sangue, músculos. Ao contrário, ;raixão" o enriquecimento. E, no entanto, nada se parece tanto
porém, desse trabalhador, ele náo está inconsciente disto, ele à paixão do avô pelas mulheres como a sua pelo enriquecimento.
não padece de alienação ou melhor dizendo, ele não padece da loda a sua libido é nisso investida.
alienação tÍpica do operário: âf inal, ele é um capitalista. Padre Tibúrcio ergue sempre o espantalho do diabo; se
Para o povo, a propriedade de vastas extensões de terra .João Pinto náo tem Íilhos para herdar a sua Íortuna, por que
pelo coronel ou pelo padre aparecem como coisa natural, um tanto trabalho, para que tanto dinheiro? Só para entregar ao
bem de origem, um fenômeno que náo é preciso explicar porque riiabo... Para o padre, a única razáo para trabalhar e enriquecer
náo é inexplicável, não existe o gue explicar. Somente se explica ô para dotar filhos de herança, já que ele próprio conseguit-t
aquilo que, antes, era inexplicável. Os proprietários são todos o que tem por herança, sem esÍorço, de onde decorre que só
herdeiros e, antes, essás terras deviam ser do coronel e, antes ó válido o esforço e o enriquecimento em termos de herança.
ainda, selva, terras devolutas ou indÍgenas. Tudo táo óbvio que O resto é coisa do demônio. Nesse trecho, aliás, o padre justif ica
os próprios proprietários também pensam - e sentem - assim. a indolência do povo do Alto, que tanto diz detestar.
n 21

br.
Ele mesmo náo sente Íalta de Íilhos e observa que totla
a arenga rio padre em torno dessa questáo é apenas demagogia, rrrrr Íorça de trabalho, tazê-la produzir valor. I'laquela conjun-
quando se compara às viúvas de seus irmãos, para quem a Íilhara- Itrr;r especíÍica: substituir relaçÕes de produçáo que náo permi-
Iorrr sequer a reproduçáo das condições necessárias à produçáo
da é antes um Íardo que o consolo alardeado pelo padre. E
(os seres humanos morrem de Íome ou de doenças correlatas,
de se notar que padre Tibúrcio tamhÉm não tem herdeii'os, rnas
aparentemente sua regra não é aplicada a si próprio... lvesnio n rnaioria antes do primeiro ano) por relaçóes de produção capi-
porque o argumento do padre é um mero pretexto. lnlistas. Do ponto de vista do trabalhador, substituir a expor-
Sem Íilhos, ele resolve instituir seu herdeiro a São Fran- lirção do trabalho (mais trabalho) pela expropriaçáo da força
cisco, de quern é devoto. Mas não diz a ninguém, nem ao padre, rkr trabalho (mais valia).
com medo que digam que ele tentou comprar a salvação de E le reproduz, portanto, a saga do coronel em outra época,
sua alma. Ao cont rário, suporta os insultos do padre, inclusive vrrle clizer,em outras conciiçóes sociais eeconÔmicas. Por conse-
no sermão da missa de domingo, à qual nunca Íalta. E, quando r1uôncia, ele náo herda, e compr,a exatamente as terras que Íoram
alguém pergunta para quem vai deixar a sua Íortuna, ele, mesmo rlo avô: o palco da ação dos dois é o mesmo.
presente. permite que o padre responda em seu lugar: ,,para Sua tragédia consiste precisamente na parte de alienaçáo
o diabo, certamente, o diabo vai tomar conta de tudo". rluo lhe cabe: sua inconsciência a respeito de sua própria açáo,
rlo caráter (naquelas condições) revolucionário que ela assume,
Joáo Pinto de Maria é o único personagem a ignorar as
rrbalando violenta e mOrtalmente O complexo econÔmico-scr;ial-
pressões e ameaças do padre. Simplesmente, porque não acredita
lrlcológíco que a antecede. Sua vitória, naquela situaçáor;ó é
no diabo. Depois de haver convivido com os Íantasmas da selva
1l«rssível pelo conf ronto do novo que ele representa com o vt-'lho,
amazônica, a superstição local lhe parece medíocree, um embus-
6 arcaico, o anacrÔnico. Apesar de se achar diÍerente e assumir
te. Poderia dominar o povoado mas não está interessado nisso. rrssa diferença, ele não consegue jamais perceber que, além de
Ao contrário do padre,não adere ao situacionisrno, mas também rllÍerente, ele é antagônico ao status quo para ser preciso,
náo é oposicionista. Simplesmente a política não lhe interessa. rrua diferença é um antagonismo. Essa consciência ele jamais
Sua tolerância é invulgarmente grande. apesar do dono das terras onde rrlcança. Ao contrário não só se sente parte daquele status quo,
se assenta o povoado e homem mais rico do lugar, aceita ser r;omo faz todo esforço possível para ser absorvido por ele. Não
chamado de usurário, de possuído pelo.demônio e vê sua sua esterili- ontende a implicância do padre, mas não se afasta da missa
dade tornar-se assunto público de conversas nada ediÍicantes. rlgminical apesar de todos os insultos que é obrigado a ouvir
Entretanto, incapaz de Íazer mal ou mesmo importunar rr cada sermáo. Só uma única vez perde a paciência e mesmo
a quem quer que seja, João Pinto de Maria é um elemento desesta- rrí, atribui a atitude do padre à bebida, como último recurso
bil izador. Seus empreendimentos empresários desestabi lizam a
lrara explicar o inexplicável.
própria base do marasmo e da indolência. Seu exemplo destrói Ao contrário, seus adversários compreendem bem o signif i-
a ideologia na qual estes últimos se perpetuam. Ele investe capi- cado daquela vontade de ler. Padre Tibúrcio o ataca sempre
tal. As dif iculdades de sua Íábrica são as diÍiculdades do em- rlo ponto de vista do sistema dominante: seus alvos são a ausên-
brião do Íuturo implantado no climatórico útero do passado. r:ia de herdeiros (já que a conservaçáo do status quo se Íaz
Ele é tãoprolÍf icoquantoseu avô: damesma Íormaquea hipervi- por herança), a recusa em dar esmola (já que esta é a principal
rilidade deste correspondia à necessidade imperiosa de povoar lorma de relaçâo tanto econÔmica quanto ideológica com o povo
o deserto, suas atividades ecodtômicas correspondem à necessi- que vive ao sabor das secas e cheias) e o trabalho compulsivo
dade premente de desenvolver a aldeia. No caso do coronel, (lá que o sistema antigo implica na manutençáo da indolência,
tratava-se de produzir a primeira força produtiva, surgida ainda
náo só como um resultado, mas também como condiçáo de sua
numa economia natural: os homens. Em seu caso, t ransÍormá- la
perpetuação).
2, 7J

_)
Como náo consegue perceber que o sucesso de sua empresa
depende de uma ruptura radicar (ainda que em termos capitaristas) Exatamente como um sonho, por isso dizia para si mesmo, (...)
como a estagnação e seus pressupostos, ele náo conrpreende que toda aquela imensa fortuna (...) não tinha senão um dono
clue isso o remete para Íora dos estreitos limites do povoado. c esse dono se chamava João Pinto de lVlaria". tt/ais adiante,
Quando recusa sociedade com os capitalistas de sobral e Fortale- o padre chega à mesma conclusão, embora disso tirando uma
decorrência prática oposta: "chegaria o dia
u a, ele sela oseu destino. capitalismo representa
semprecresci- - lembrava padre
Tibúrcio, em que João Pinto de lVaria se interrogaria para si
mento: o lucro é menos importante que a taxa de lucro A expan-
são é sempre uma exigência imperiosa. Em sua inconsciência mesmo: "Para que tanlo esforço despendido, tanta luta, tanta
ele recusa a aliança por julgar-se um matuto, incapaz de crescer ambição, tanto cuidado? Para que tudo isso? Para resultar em
além dos limites do povoado. como não consegue ver o antaEo- nada, pois tudo aquilo não passava de um sonho. Um sonho
'lt' nismo entre sua açáo e a realidade preexistente, ele, ao julgar_se maldito..."
td, mais próximo do Alto (inclusive de seu maior detrator, tibúrcio, A única importância que pode ter para nós esse tipo de
I
a quem não julga e náo trata como inimigo, embora a recíproca convicção ou sentimento é saber em que isso interÍeriu na reali-
não seja verdadeira) do que dos capitalistas de sobral e Fortaleza, zaçáo de uma biograf ia. É aí que a "revisáo secundária" torna-
I
comete um erro decisivo: é evidente que sua proximidade maíor é com se decisiva. No caso de Verdes Ab,utres, tal questão não consti-
eles, que aliás o tratam com respeito, do que com p. ex., Tibúrcio. tuÍa a chave do livro. Esta estava mais na revelação do conetúdo
Ao não enxergar isso, ele torna-se dependente das estruturas arcaicas do sonho ou do devaneio, do que no modo pelo qual f oi elaborado.
que sua açâo abalou e quese sentem abaladas. como nas tragédias Em JOÃO PINTO DE tvtARlA ocorre exatamente o contrârio.
t, gregas, a perdição é causada pela inconsciência em relação a p1ópria
Af inal, trata-se de uma biograÍia, portanto, o modo como a
transgressáo da lei consuetudinária. Nesse sentido, Joáo plnto dé Maria
é realmente um sacrílego. subjetividade do biógraÍo interferiu na obra é de importância
capital. Como na advertência de Freud: "(Alguns psicanalistas)

I
t
6 procuram encontrar a essência do sonho em seu conteúdo latente
e, ao agirem dessa Íorma, desprezam a distinçáo entre os pensa-
mentos oníricos latentes e o trabalho onírico. No Íundo, os so-
lll [/las, de que ponto de vista é contada a história de Joáo
Pinto tuaria? nhos nada mais sáo que uma forma particular de pensamento,
lr
tornada possível pelo estado de sono. É a elaboração do sonho
O livro nos é apresentado, logo no subtítulo, como uma que cria essa Íorma, sendo ela sozinha a essência de sonhar
"l
,.1 biograf ia, a Biograf ia rje uma Louco. Entáo, quem é o biógraÍo
a explanação de sua natureza peculiar". (lnterpretação de So-
desse louco, esse arguém inominado que o conhece tão bem,
.ll I
que se interessa tanto por Íigura tornada táo obscura pela lou- nhos, pá9. 541, Ed. St. Bras., vol. V, n.r.).

Em que consiste a revisáo secundária, traduzida (a nosso
cura?
ver, mal), por "elaboração secundária" naedição standard brasi-
Toda a primeira parte tem um tom caracteristicamente
memorialístico, como
leira cias obras de Freud?
de arguém que tenta reviver o passado pera "Quando, num sonho, o pensamento 'isto é apenas
memória, com todas as impricações desse ato, sempre umacons-
um sonho'ocorre, (...) visa ele reduzir a importância do que
trução a posteriori, inf luenciada e alterada pelo aÍeto e pero acabou de ser experimentado e tornar possÍvel tolerar o que
esquecimento. Tal como nos sonhos, opera aí uma "revisão se-
vem a seguir. Serve para acalentar um agente especíÍico e tazê-
cundár ia". lo dormir, o quat teria todôs os motivos para agitar-se e proibir
É o próprio biógrafo que nos coloca no caminho do sonho. a continuação do sonho (...) aparece um sonho, quando a censura
Aliás, é o único ponto, antes do desÍecho, em que Joáo pinto (...) sente que foi apanhada desprevinida por um sonho que se
de lvlaria e o padre estáo de acordo. "A vida era como um sonho. permitiu fosse até o Íim. É tarde dernais para suprimi-lo, e
u ?5
\

ern conseqÜência a censura utiliza essas palavras para atender do protagonista. Somos informados de sua descendência direta
a sensação de ansiedade ou de af lição suscitada por ele" (id., do coronel, rnas também nada nos é revelado sobre a razâo
pá9. 5221523). "O elemento que distingue e ao mesmo tempo pela qual João, sempre táo sagaz nos negócios, é obrigado a
revela (a revisáo secundária) é a sua f inalidade (...): preenche comprar as terras que já sáo suas por direito de herança. Nlem
as lacrrnas da estrutura do sonho com tiras e remendos. como como, sendo neto do coronel, não apenas de f orma difusa, mas
resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de ab- sua Íamílra é táo pobre, a ponto de dezesseis de seus irmáos
l;Lrrdidade e desconexão e se aproxima do modelo de umá expe- terem morrido na inÍância e só restarem oito. Na relaçáo destes,
riência inteligível. (...) são sonhos que, se poderia dizer,já Íoram é significativa a ausência de André, o inventor, pai de Davi
interpretados uma vez, antes de serem submetidos à interpre- (o outro personagem que sai do povoado) e amigo de padre Tibúr-
tação desperta". (id., pág 524). cio, que sempre o apresentou como um exemplo contrao próprio
A primeira parte de JOÃO ptNTO DE IVAR tA é sui gene- Joáo Pinto. Quanto aos outros, af irma-se "Ílcaram marcando
ris para uma biograÍia: somos, a todo o momento, informados passo como acontecia com todo mundo no Alto", o que logo
de que se trata de um usurário, avarento, que trabalha compulsi- em seguida é desmentido pela própria descrição de cada um,
vamente somente pelo prazer de enriquecer e possuir; ao mesmo operários do curtume os homens, modista excepcional uma, ren-
tempo é aÍirmada a sua honestidade e justiça ("o f iel da balança deira e bordadeira Íantástica outra, artista popular e chapeleira
era o f iel de sua consciência"). seu comportamento é adjetivaào de sucesso, até mesmo internacional a seguinte e, a última, mu-
como "estranho" e em seguida justif icado pela indolência dos lher belíssima que prefere a loucura à escravidáo doméstica
dennais habitantes. Seu sucesso, para o padre, não é uma graÇa e é envenenada pelo marido. Trata-se, portanto, de um precon-
de Deus, mas uma prova de seu demonismo, apesar de bom cató- ceito do nosso biógraÍo.
lico. E, o que desmente seu pacto com o diabo náo éo seu Mais adiante, lemos, "dos rebentos (do coronel) AntÔnio José
catoliscismo mas o seu ceticismo em relação ao diabo, como Nunes ninguém conhecia a preguiça". Apesar de em quase trezentas
se Íosse possível ser um bom católico sem acredítar no diabo, páginas dõ trlogia aÍirmar-se ao mesmo tempo a indolência do povo
do"Alto e a suá descendência do coronel, temos agora a afirmaçáo
ou seja, no mal... E a reviravolta de sua consciêncra ocorre do contrário, o que indica uma nova idealizaçáo semelhante às que
após um acidente de trabalho perÍeitamente banal, ainda que vimos em verdes Abutres. A necessidade desta é para que se compare
,,gosto pela aventura" de João Pinto com aquele de
resultando em morte, para um capitalista. Essa mudança interna em seguida o
náo nos é apresentada como efeito de sua farência quando os seu an-tepassado-, comparaçáo, diga-se de passagem, injusta, pois o
trabalhadores, ultra-supersticiosos, recusam-se a continuar na gosto de aventura do coronel era na realidade uma deserçáo, uma
Íáhricq, mas como consequência de um sonho premonitório tiCo iuga do exército, com tudo o que implica, descontados fatores ideológi-
co"s improváveis no câSo; êrn covardia. Mas era necessário ao biógraÍo
na véspera do acidente. Depois, inexplicavelmente, ele ergue-se
explicar a excepcional audácia de Joáo Pinto, e a via hereditária (mesmo
outra vez e os operários voltam para a Íábrica.. que falsa) é semPre mais fácil.

I'r
,11
Como último dado importante, o testamento que ele pre_
tende Íazer para s. Francisco. Além de nada dizer'a ninguém, 7
nem ao representlnte do santo, a quem poderia revelar o segredo Na verdade, João Pinto de ÍVlaria e o coronel são persona-
protegido pelo segredo de conf issão, ele não pensa em utilizar gens homólogos:um comeÇa a história/o outro termina; um che-
aquele trunfo para amainar a campanha do padre contra ele, ga à selva/o outro vai pataa selva; um dirige sua libido exclusi-
coisa que qualquer homem de negócios pensaria, principarmente vamente para as mulheres/o outro para a fortuna; um tem o
considerando que a atuação polÍtica do padre estava muito lonç apoio do padre/o outro tem a oposiçáo do padre. Diga-se de
da santidade que pregava para seus colegas de batina... passagem, assim como João é neto do coronel, Tibúrcio é neto
A sequnda parte do rivro pretende reverar a ascendência do asceta.
26 27

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I

JOÃO pINTO DE t\lARlA é o,,relatório,,de padre Tibúr- que a realidade, uma vez que náo é possível romper esse^círculo vicioso
cio. Finalmente, ele consegue repetir o papel do asceta, mesmo ã partir da e sim, apena.s, da realidade' O sonho' este'
imaginaçáo,
ãsiâ conoenaoo ãa ãeternum, a repetir-se, sem sair do lugar'
porque esté também foi criado por ele como um ,,ideal doego',. Pinto
A última parte do livro bem o demonstra. Nela vemos Joáo
A biograÍia do "louco" (e só para ele o homem João pinto de de Maria arrepender-se de sua vida, vemo-lo morrer e ressucitar no
lvaria tem obrigatoriamente que ser classif icado como louco ierceiio dia. Explicitamente, diz o biógrafo: "A vida de Joáo Pinto de
sob, pena de abalar a sua própria racionalidade e coerência da Maria, com o passar dos dias, ganhava, em todos os detalhes, aspectos
semel'hantes à vida de Jesus';. Em seguida os Íatos de sua
vida sáo
visáo de mundo) é homóloga ao relatóro do asceta. Velho, senil, Cristo, da mesma
iãrnáOor análogos (náo homólogos) aos da vida de
ele reÍaz a trajetória do avô, ou seja, realiza seu próprio ideal da aldeia Íoram tornados análogos
forma que, antàs, os acontecimãntos
do ego. Só que este, para realizar-se, implica na existência de aos da Grécia.
um sucedâneo do coronel, de quem seu avô foi coadjuvante. No
entanto, ele mesmo não foi coadjuvante de ninguém. O seu único Joáo Pinto adere ao ponto de vista do padre, doando sua
'li "igual" é um adversário, náo um amigo, como no caso do asceta, fortuna a "quem se encontrar mais necessitado." No entanto,
cuja relaçáo com o coronel, aliás, não é de igualdade. essa rendiçáo não Íaz o vitorioso Íicar Íeliz. Padre Tibúrcio
No mundo de Tibúrcio não existem "iguais". Na verdade arrepende-ie Oe tê-lo tratado táo duramente. Coisa estranha,
ele está mais próximo do coronel do que do asceta. para repetir Íaz pensar em uma duvidosa convicçáo do padre a respeito de
o asceta, ele opera, portanto, uma revisão secundária, Íazendô sua pregação. [\Ias, para que esse resultado seja possível' ele
com que a vida seja "apenas um sonho", permit indo que o vivido antes enlouquece e sua loucura é interpretada pelo padre como
seja tolerado ao ser evocado, e este possa ser contado sem ser redençáo e santif icação ao ponto de João TransÍormar-se no
interrompido pelo teste da realidade. Assim, chega-se a uma próprio Cristo. Naturalmente era impossível ao padre admitir
inversão: o sonho é contado como realidade, esta é consideracla que o louco Joáo Pinto de tMaria era uma vítima sua, um homem
"um sonho" e a imaginaçáo pode "preencher as lacunas com destruído por sua ação. Mesmo porque, para que ele tivesse
tiras e remendos. Como resultado, o sonho perde sua aparência o seu coronel, eram necessárias duas coisas: que ele estivesse
(mas não seu conteúdo) de absurdidade e desconexão e se aproxi- num plano superior ao seu, como no caso do coronel original
ma de uma experiência inteligível". A biograf ia de Joáo pinto em relaçáo ao asceta, coisa conseguida com a santif icaçáo. E,
de [Maria, pode-se dizer, "já Íoi interpretada uma vez', antes segundo, que a relaçáo real existente entre os dois, pelo menos
de lida. no que concerne ao padre, hostil, Íosse corrigida pela idealiza-
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çáo, o que constitui a própria Íunçáo da escrita
da biograÍia.
De certa forma, ele cai em sua própria armadilha: ao fugir de
uma realidade intolerável, ele constrói um passado místico, idealizado Em relaçáo à primeira premissa, só em sonho e mesmo assim
e depurado do desagradável. Mas ao se voltar para sua própria vivência no plano da religião, Tibúrcio admite a superioridade de alguém.
e ao mesmo tempo manter aquela construção onírica ele próprio torna-se Do ponto de vista puramente psicolÓgico, ele é incapaz, no plano
prisioneiro dessa passado místico. E preciso então repetir o asceta,
do ieal, de suportar até mesmo que alguém seja igual. Quanto
o que implica em alguém repetir o coronel. Mas o único modelo disponível
l,
é o de um homem que ele destruiu por ser não apenas um igual, mas àsegunda,a relaçáo parece ter sido tão hostil que em toda a
por ser um diferente, social, econômica e ideologicamente antagônico. primãira parte do livro sobressai muito mais o seu lado desagra-
A biografia desse homem e sua tentativa de conseguir pela evocaçáo, dável e isso só se dilui ao longo das páginas e mesmo assim,
idealizaçáo e reiterpretação aquilo que náo Íoi conseguido na vida: náo conseguindo Superar essa hosti lidade, é necessário transfor-
uma conciliaçáo, ainda que precária, mas que pennita a ele, Tibúrcio, má-lo no próprio homem-deus, Tibúrcio sendo um sacerdote
continuar reÍugiando-se da desoladora realidade e, por conseqüência,
repetir o passado sonhado, para manter o sonho. Na verdade, a estratégia católico. Uma manobra desse tipo só seria necessária em termos
fracassou, pois o marasmo da realidade e do presente acabou dominando proporcionais ao tamanho da hostilidade..'
o devaneio e a própria Íuga do mito torna-se mais conservadora do Cumprindo as premissas, operadas as transÍormaçÕes, o
za a
)
padre pode enÍim representar o papel do asceta. o presente Quanto a Tibúrcio, todas as suas Íantasias náo dissimu-
gcrrrrrou uma coerência do passado. Na verdade, toda a mágica lam o seu fracasso: consome-se no remorso de ter destruído
do presente, com sua natural incoerência, advinda de sua imedia- a única pessoa que poderia mudar aquela realidade que não con-
ticidade, Íoi abandonada: o presente só é suportavelmente vivido segue tolerar. No entanto, entre a dor do remorsoe a desestabi-
como passado. Quem não compreende isso, enlouquece, como lizaçáo de seu mundo, ele, que já tinha preÍerido o sonho à
é o caso de João Pinto de IVaria. realidade, ou seja, tinha preÍerido que a realidade f icasse do
mesmo jeito, teria que agir daquela Íorma.

I
A maldiçáo de que fala o tÍtulo geral da obra é a maldição
I
de uma realídade imobi lizada na penúria, onde o homem é v ít ima A Trilogia da Maldição é uma traqédia no sentido clássico.
passiva tanto dos elementos (seca, cheia), quanto das estruturas Na verdade existem dois personagens: padre Tibúrcio e Joáo
políticas, sociais e econômicas totalmente anacrônicas e oligár- Pinto de lrlaria, protagonista e antagonista. Todos os outros
quicas. Dessa realidade só se escapa pela emigração ou pelo parecem componentes dramáticos ou um coro para a acáo dos
sonho. c que constitui sua tragédia é que é necessário esca- dois. Já mencionamos a inconsciência dos personagens em rela-
agora lembrar
par. A outra opçáo é a morte em vida ou, para muitos, a morte çáo ao signif icado verdadeiro de seus atos. Resta
propriamente dita. o conf lito entre civilização e barbárie colo- qr" u perdiçáo de Joáo Pinto de tt/aria é também a de Tibúrcio,
ca-se nesse contexto. lncorporar à civilizaçáo signiÍica, aí, in- agora condenado a viver até a morte fugindo do real e Íracas-
corporar ao marasmo. o sonho, como estratégia de escape, está sãndo, ató a derrocada do sonho ou até sua morte, ou talvez
condenado ao Íracasso por não poder transcender a realidade: uma e outra sejam a mesma coisa.
ele apenas a depura, mas náo a muda, o que acaba Íazendo É comum, como já dissemos, a classif icaçáo de José Alci-
corn que aquele se submeta a esta. o sonho é táo cansativo des Pinto dentro do realismo f antástico, o que, em nossa opiniáo,
e repetitivo quando a realidade e talvez mais, uma vez que existe diminui a estatura do nosso escritor, iornando-o um sub-Garcia
ainda a possibilidade, pelo menos teórica, de ruptura real, mas Marquez. E, realmente, se o olharmos dessa Íalsa ótica, os lati-
jamais de ruptura onírica, exceto como secundária à primeira. no-americanos nos parecem escritores superiores, aÍinal aquele
A mudança no sonho remete ao passado e o eterniza, e não f oi o meio que eles encontraram para exprimir
a sua realidade.
ao presente e ao f uturo. lsso nOs levaria a Uma pantanosa e estéril discussão sobre as
Como é impossível a autonom ia completa do sonho, como datas de publicações ou escrita.
até mesmo toda repetição é diferente, ou seja, como até mesmo, Basta estar atento aos seus livros e veremos um escritor
pela tensão com a realidade, a repetição onírica é imperfeita, muito rnais próximo de Joyce, WoolÍ, Svevo e até mesmo Proust'
o Alto sonhado por Tibúrcio está f adado a desaparecer, ao con- do que de Borges ou Cortázar. o predomínio do "Íluxo de cons-
trário do povoado real que, como sabemos, existe. sobram ape- ciêncla" do monólogo interior, do absurdo e não do f antástico
nas uma velha senil e um louco, ou seja, aqueles habitantes (a distinção entre um e out ro é a distinçáo entre KaÍka ou Bec-
para os quais a distinçáo (e portanto, a tensão) entre fantasia kert de um lado e Borges ou Garcia Marquez do outro), demonstra
e realidade deixou de existir. que sua f iliação é ou1ra. Nisso, ele não diÍere da principal ver-
O único personagem que quer viver o presente, e quer tente da moderna literatura brasileira. Ao contrário, é nela que
vivê-lo porque tem um projeto real de mudança para o Alto, sua obra f iccional se insere. Desde G raciliano (Argústlae também
João Pinto de Maria, é destruído e ao ser destruído é o que são Bernardo), até clarice Lispector, passando pelo já citado
Guimaráes Rosa de Grande Sertão Veredas, a t radiÇáo literária

t
leva mais longe a fuga da realidade, pela loucura, pelo delÍrio.
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)
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no Brasil, talvez pela existência anterior de um escritor luminoso


de nós preferiria ou mesmo que não existissem trilhas mais
como tr/achado de Assis, tem-se mantido, com as exceções de
adequadas ao sentimento ou à soberania nacionais. N/as, como
frraxe, dentro do can'lpo do romance psicológico ou realista (o ro verso do poeta, aliás anglo-americano, "o que poderia ter
parentesco entre os dois se dá no mesmo sentido em que Ulisses
sido é uma abstraÇão".
é um romance f laubertiano). Há quem não goste dessa situação.
José Alcides Pinto é mais universal na medida em que
ÍVlas o f ato é que éassirn e não por acasot seria precisoexplicá- lo
é mais cearense. Nisto náo existe nenhuma novidade: lsso acon-
por nossa história literária, porém mais ainda pela nossa f orma-
tece com qualquer escritor sério. lVlas, aquela aldeia perdida
çáo histórica e social, o que não é nosso objetivo no momento. no ermo, aquele atraso, aquela indolência e aquela sensação
de que nada muda sáo co!sas muito, mas muito mesmo, cearen-
ro
Uma última palavra há que ser dita sobre a especialidade
ses. Hoje, de cada cinco cearenses, um está Íora do estado. Esta
a estatística of iciaí; alguns cearenses garantem que a proporçáo
é maior ainda. Encontram-se cearenses em qualquer lugar do
cearense da Trilogia da Maldição de José Alcides pinto. Não Brasil e em boa parte do mundo. No Congresso Nacional, existem
se trata da velha polêmica sobre o regionalismo. Este, pelo me- deputados cearenses eleitos por virtualmente todos os estados
nos no Brasil, teve um papel oposto ao geralmente atribuído .1a federaçáo, boa parte deles exercendo Íunçces de destaque.
por nosso "senso comum literário": ele representou a formapela Nas artes, na ciência, praticarnente em qualquer campo de ativi-
qual regiões marginalizadas se integraram numa unidade nacio- dade humana, é possÍvel encontrar cearenses que emigraram.
nal cultural. É evidente que isso fez com que essas regiões, No sul, a fama do cearense como o "judeu brasileiro" é devida
mas isto somente na medida em que essa identidade fazia (e principaimente a essa diáspora.
faz) parte de uma maior, o que explica o sucesso, no sul, de Que sociedade é esta que permite a boa parte de seus
tantos escritores nordestinos. No entanto, muitas vezes, como melhores f ilhos sair e ir eontribuir com o progresso de outras
conceito literário, a classificação do regionalista criou mais terras enquanto a sua fica parada ou regride? Na verdade, é
conÍusões do que esclareceu alguma coisa. E aí, sim, serviu
uma sociedade que obriga à saída, sob pena da aniquilação cultu-
como instrumento para a marginalizaçâo de tantos escritores,
ral, intelectuat, social e, inclusive, Íísica. Uma sociedade que,
vale dizer, das regióes de onde eram originários. A julgar pela
até há pouco, era dominada despottcamente por um punhado
Academia Sueca, que ao conceder o Nobel a Faulkner classif i-
inf initamente pequeno de oligarcas, cujas possibilidades de as-
cou-o como regionalista e praticamente justif icou o prêmio em
censáo social - e de sobrevivência - limitavam-se a uma coloca-
Íunçáo disso, Graciliano e Guimaráes Rosa seriam também re-
gionalistas. O discurso de Faulkner, ao receber o Nobel, talvez, çáo no f uncionalismo público, também este acesso feito por um
mecanismo de Íavor ou, delxando os eufemismos de lado, pela
até pelo exagero, seja uma boa resposta ao que, em sua maior
vassalagem e pelo compadrio. As próprias calamidades naturais,
parte, reÍlete apenas um preconceito cosmopolita. Af inal, a açáo
perfeitamente domáveis no atual estágio oa hwnanidade, torna-
tern de acontecer em algum lugar, mesmo no caso de obras enn
vam-se mais um meio de reforçamento dr.r poder e da riqueza
que o ponto de vista subjetivo ocupa um lugar central (por exem-
oligárquicas. Em tudo isso o Çeará difere, náo apenas dos êStados
plo, Ulisses se passa em Dublin e isso náo é um mero detalhe
do sul, mas por exemplo, de um estado nordestino como Pernam-
arbitrário: seria impossível conceber aquela trama, aqueles per- buco, onde a experiência da derrubada do etelvlnismo no Íinal
sonagens e aqueles monólogos interiores em outro lugar). De
da década de 50 e depois o primeiro governo Arraes impediram,
qualquer Íorma, depois da Rádio Nacional e da televisão, somos
até pelo nÍvei de participaçáo popular, que durante os anos de
um paÍs unido do ponto de vista cultural, o que não quer dizer ditadura se regredisse completamente ao nÍvel anterior a esses
que o caminho para esta unidade tenha sido o que cada um
acontecimentos.
n. *l
1

Tudo isso conÍormou no cearense um perf ir psicorógíco


particular. sua relação com a terra natal, como disse Airton uma certa vergonha, um injustificável sentimento de inÍeriori-
[i/onte sobre Fortaleza, "é uma relação de amor e ódio,,. os dade. Tal atitude é extensiva aos cearenses que saíram daqui
cearenses amam prof undamente a sua terra. Em qualquer lugar e voltaram com tais ou quais cursos ou títulos, obtidos no Rio,
do Brasil e, acredito, do mundo, falam sempre do Ceará com Sáo Faulo ou na Europa e, muitas vezes, de valor Cuvidoso. O
que não quer dizer que náo seja importante conhecer o que se
saudade e conservam seus hábitos e tradições. Na Baixada Flumi-
nense, a Íeira de caxias é uma feira do interior cearense, inclu-
laz em lugares mais adiantados. No entanto, esses lugares náo
sive pelos Íreqüentadores. l\rlesmo a parcela intelectualizadada são por si só uma garantia de saber, competência ou suÍ iciência
técnica. Principalmente quando se chega ou se volta com aquele
diáspora tem essa espécie de sentimento: quando náo maniÍes-
arzinho de superioridade típico dos lanceiros de Bengala diante
tam saudade, ao se referirem ao atraso ou à miséria, o'fazem
de Gunga Din.
ressaltando o heroísmo daqueles que vivem sob tais condiçÕes
e ao mesmo tempo manifestam sua indignaçáo contra o grupelho
A aspereza e a ambivalência tão cearenses parecem-se
com o clima e a vegetação do Ceará. Ít/lesmo a luz que inunda
de parasitas que monopoliza (ou monoporizou) o poder político
o espaço é uma luz sem meio termo, sem nada a amenizat a
no Ceará.
claridade. Assim é a caatinga e assim é a alternância entre
O reverso da medalh a é o cearense que vive no Ceará. a seca e a cheia. Não é possível uma média. Ou é isso ou aquilo.
Este, pelo menos até recentemente, parece detestar o ceará. Ou se esculhamba ou se bota nas alturas.
A qualquer carência ou desconÍorto, a qualquer comparação, Em O Orgulho Nacional dos Grã-Russos, Lenin cita um
Íeita entre conterrâneos, ele sempre coloca o cearáem posição t recho de Tchernychevsky, revolucionário russo do século X I X,
desÍavorável em relação aoutros lugares ouestados. Expressões precisamente da época em que a Rússia era o "bast ião da reaçáo
tipo "Íim de rama", "onde o vento f az acurva,,, além de outras européia", o país mais atrasado e imobilista de toda Europa.
de contundência maior, são f reqüentemente empregadas quando
Tchernychevsky chama a sua pátria de maÍdita e o seu povo
se trata de descrever a dif ícilsituação de sua terra. Noentanto,
de "pot/o de escravo". Comentando, Lenin af irma a legitimidade
muitas dessas pessoas já viveram a experiência da emigração, do orgulho nacional, mas também a obrigatoriedade, em Íunção
já viveram e até estabilizaram sua vida no sul do país e volta-
até mesmo desse orgulho, da est igmat izaçâo de uma determ inada
ram. Mas ao chegar aqui e sentir a diÍerença, uniram-se ao
situação de servidáo e opressáo. Ou seja, o orgulho pela terra
coro autóctone. Aparentemente, é quase inexplicável o motivo natial obriga a denúncia e a luta contra os que a suÍocam. Orgu-
de sua volta. Mais ainda, 'se observamos que a esse regalo os
lhar-se, amar a terra, não é esconder seus problemas e aÍlições,
cearenses só permitem que os cearenses participem. se aparece
mas denunciá-las e varrê-las.
algum sulista querendo juntar-se ao coro, imediatamente ocanto
Portanto a origem dessas características radica na pró-
é mudado e passa-se não a elogiar o ceará, mas a esculhambar
p r i a s it uação cearense, estando s ubmet i da tanto às conseqüênc i as
com o sul.
de tazer parte de um país do terceiro mundo, quanto de uma
O cearense não conhece eufemismos. As coisas são ou região discriminada, e ainda por cima, a uma oligarquia parasi-
não são. Mesmo quando se mente (caso por exemplo dos políticos
ligados ao coronelismo), a ment ira é brutal, com todas as arestas
tária. lsso - incluindo os fatores climáticos e geográf icos em
seu devido peso - fez com que o cearense desenvolvesse essa
que a denunciarn. Por isso somos sempre a impressáo de Íalta
ps icolooia part icular.
de delicadeza.Ê., realmente, â delicadezaé oeuÍemismo aplicado
Por últ imo, a importância que a Íam íla tem para o cearense
às manetras e ao comportamento social.
Por outro lado, sua atitude diante de quarquer mediocri- está longe de ser igual a outras regiões. No Rio, por exemplo,
o soorenome é alguma coisa de que só se lembra em momentos
dade vinda do sul revela uma certa submissáo ou, pelo menos,
muito particulares. No Ceará ele é um indicativo da regiáo de
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onde se veio e Íaz normalmente parte do sentimento de identi-


dade das pessoas. Característica tipicamente rural, onde as
cidades se Íormaram a partir dc campo e a indústria ainda não losÉ ntctoES Pl NTo
massif icou (e ao Íazer isso, contraditoriamente tornou o senti- Espírito inquieto, rebuscando as
mento de identidade cada vez mais individual) o conjunto das múltiplas verdades e contestando-as, pro-
relaçóes h umanas. curando encontrar resposta às dtividas
através da poesia, que acabaria por ser
O grande mérito da Trilogia da Maldição f oi (é)o de expres- a sua única opÇão verdadêira na vida' Ora
sar esses ethos. C<lmo se sabe, José Alcides saiu uo Ceará e, crédu lo e temente a Deus; ora rebelado;
anos depois, voltou. Portanto, ninguém melhor para realizar tímido ou atirado, um ser humano com-
plexo, onde a mente em permanente efer-
aquela obra capaz de dar coerência ao que Íaz parte apenas vescência se derrama em caudalosas idéias
do desgastado cotidiano de cada um e que ao Íazer isso, náo em prosa e verso.
só dá vez a um povo, como consolida uma identidade coleti,ya. Desde muito temPo, naqueles dias
em que a atividade literária aproximava
Nesse sentindo, a Trilogia é uma obra mais importante que O os jovens mais do que as boates e motéis,
REFERENCIA BIBL
Quinze. o conheço como expressão do talento ê
Aquele mundo do qual se é obrigado a Íugir ou perecer, da cultura de nossa terra. Figura interes-
aquela irritação com o próprio lugar em que se nasceu e que -
1. CAO - Poemas - Colégio Pedro I sante de ser analisada, nem os mais pró-
2. JACQUES ÍVONOD E O DETE ximos conseguem desvendar-lhe por in-
cont raditoriamente - se ama, aquela rudeza das pessoas, sempre teiro a esÍinge que nele existe,
enf rentando a morte como uma realidade diária, aquela realidade
n:1-Bio, 1972.
De longe, contudo, ou Perto de

que náo rnuda exceto no sonho e, mesmo assim, este é tão precá- 3. A ORGANIZAÇÃO OnS ENTID, seus escritos - versos, contos e crônicas
BALHO DE OPOSIÇÃO NO que tenho lido - me parece, antes de tudo,
rio quanto a realidade, apesar de seu imobilismo, que devora um homem proÍundamente liberto, §em
os f ilhos da terra que realmente querem mudar e recusam-se TIL - in ll Ativo Estudan as peias das conveniências, dessa hipo-
R io, 1 978. crisia que tutela o chamado "bicho so-
a sair, a ambivalência que leva - limite - à loucura ou ao cial" que somos ou que fomos o.brigados
conformismo. Esse é oCearâ reconstruído por José Alcides Pin- 4. O POVO VARRERA O FASCISI
a ser,
to. Ao que parece, dentro em breve, esse Ceará, como a ltabira tros autores - Editora Quilc lntrigam-nos algumas de suas ati'
do poeta, será apenas um retrato na parede e não doerá a muita 5. PRINCiPIOS GERAIS EM PSI( tudes, que contrariam essa preocupação
gente... Esperamos que sim. [r/as a Trilogia da IJlaldição Íicará Assoc iação Pernambucana bem burguesa da estabilidade econômica
da existência. Ei-lo largando empregos e
como o monumento imperecível desse soÍrido momento. to Jung - ReciÍe, 1980. tentando uma atividade agrícola lá pros
6. tiClGAl.lDRES E UIVA l{OZ GR lados distantes do Acaraú, convivendo
ral do Diário do Nordeste - com os vegetais q com a confiável compa-
nhia dos animais. Cheguei a vê-lo vestido
de franciscano, pelas ruas, dando publi-
camente graças à mão divina por lhe ha-
ver devolvido a saúde. Um suleito esqui-
sito? Não. Um homem muito inteligente
e insatisfeito com a rotina. Um grande
valor da minha geração: José Alcides Pinto,
opoetaeoamigo.

Blanchard Girâo - JD - 10/1 1/86'

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