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lume traz um alentado ensaio introdutório das tradutoras Shei Ol
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(Círculo d e Bakhtin)
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la Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, que busca reconstituir
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às abordagens formalistas ou psicologizantes então em voga. Ol
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EDITORA34
Editora 34 Ltda.
e a palavra na poesia
APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.
ENSAIOS
sobre o freudismo ( 1 9 2 5 ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) As mais novas correntes
4. Música. I. Grillo, Sheila. II. Vólkova Américo, A palavra e sua função social ( 1 9 3 0 ) 306
Ekaterina. III. Título.
DD - 4 1 0
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ARTIGOS
RESENHAS
Konstantin Eigues,
1
Institut Sravnítelnoi Istórii Literatúri i Iazikov Zâpada i Vostóka,
tre março e junho de 2016 por Sheila Grillo com apoio da bolsa PQ do
tos bem corno a redação do artigo foram feitas conjuntamente por Sheila
sos antepassados." çar sua obra parece obtusa, desajeitada, estranha e artificial.
Ludwig Noiré Além disso, foi só ele querer anotar a novela que parecia já
1 . A origem da linguagem/língua. 2. O papel da lingua nome, no do autor, ou em nome de algum personagem da no
gem/língua na vida social. 3 . Língua e classe. 4. Linguagem/ vela? E qual deve ser a sua linguagem, se a narrativa for con
língua e consciência. 5. "Vivência" e "expressão". 6. Ideolo duzida por um dos personagens da novela? O próprio discur
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gia do cotidiano. 7. Criação literária e discurso interior. 8 . so do autor pode ser a assim chamada norma-padrão ou, ao
criada em 1 9 3 0 p o r Maksim Górki, que foi seu editor-chefe, com o pro É possível notar que essas questões parecem se dividir
pósito de ensinar o ofício literário a escritores iniciantes das camadas so em dois grupos. O primeiro inclui tudo o que está relaciona
ou linguagem, adotamos a solução de Patrick Sériot e Inna Tylkowski posição da obra. Contudo, tanto em um quanto em outro ca-
2
Traduzimos a expressão russa jíznennaia ideológuia por "ideolo
3
gia do cotidiano", opção também assumida em Marxismo e filosofia da "Norma-padrão" é a tradução de literatúrnaia riétch, ao pé da le
linguagem (trad. S. Grillo e E. V. Américo, São Paulo, Editora 34, 2 0 1 7 ) e tra "discurso literário", que é um conceito na tradição linguística e literá
no artigo desta coletânea "As mais novas correntes do pensamento linguís ria russa para designar a norma culta, fixada pela gramática normativa e
zou na conversa com outras pessoas, aquela língua com a cas cuja violação resulta em incompreensão.
rece agora um fenôrneno extremamente difícil e complexo. No entanto, tudo o que foi dito diz respeito apenas às
Enquanto ele não pensava na língua, tudo corria bem e sem assim chamadas regras gramaticais, em especial da sintaxe,
dificuldades. No entanto, foi só ele tentar escrever uma obra isto é, à teoria sobre as regras de combinação de palavras iso
literária, que essa língua tornou-se para ele uma massa pesa ladas em expressões dotadas de sentido. Contudo, existe uma
da e árdua de manejar, a partir da qual é tão difícil construir diferença ainda mais nítida entre o caráter do material ver
uma frase leve, bonita e, o mais importante, que transmita bal e qualquer outro material puramente físico.
com precisão as intenções do autor. A língua transformou-se Ao comparar a palavra com um pedaço de, por exem
em uma espécie de bloco de mármore gigante, no qual é ne plo, argila, veremos que aquela, ao contrário desta, possui
cessário esculpir a figura desejada. A língua tornou-se o ma uma significação, isto é, ela significa um objeto, urna ação,
No entanto, o mármore, a argila e as cores que os escul pedaço de argila tornado isoladamente nada significa. Ele re
tores e pintores utilizam como material se distinguem do ma cebe uma ou outra significação somente no todo da obra, ao
terial verbal por sua essência. se tornar a mão de urna estátua ou o martelo que essa mão
O escultor pode dar ao mármore ou à argila qualquer segura etc. Consequentemente, o escritor é sempre obrigado
forma, pode mudar a seu gosto suas menores partes, obede a lidar não com um material físico bruto, mas com partes
cendo a sua fantasia criativa ou um plano pensado nos míni já trabalhadas antes dele, isto é, com elementos linguísticos
mos detalhes. Entretanto, a palavra não possui essa flexibili prontos, com os quais ele pode construir o todo somente ao
dade e maleabilidade exterior. Ela não pode ser nem alonga considerar todas as regras e leis que não podem ser ignora
da, nem encurtada, tampouco é possível atribuir-lhe, por von das na organização desse material verbal.
tade própria, urna significação inadequada, totalmente ou Contudo, é possível que o escritor tenha condição de
tra. Ao participar de uma conversa animada, não reparamos mudar ou criar novas regras e leis linguísticas? Na Rússia dos
em absoluto no caráter obrigatório e rigoroso das regras da tsares e não muito antes da Revolução de Outubro, existiram
língua. Sem qualquer reflexão, perguntamos: "Corno está o "poetas" que tentaram inventar uma nova língua e escreve
tempo h o j e ? " . Nem passa pela nossa cabeça falar: "Para co ram os seguintes versos:
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rno está com tempos h o j e ? " . Neste caso, não nos irão com
preender e pensarão que estamos brincando ou ficamos Iou- "Aos rnudecidos e mudados
inu auk el ram e, nos dias de hoje, já podemos levantar a cortina dos
Ver tum dakh milênios e espiar, ao menos com o canto do olho, aqueles
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Guiz" tempos em que foi criada a linguagem humana.
Para que o escritor não tenha o mesmo destino desses nem por meio da "invenção" consciente e intencional (como
poetas, para que ele não entre na história como uma piada, pensavam no século XVIII) que a linguagem/língua surgiu na
mas ocupe nela uma posição bastante séria e digna, é preciso sociedade humana.
compreender o que é a língua e a linguagem, as quais servem Ainda há pouco tempo, as teorias mais difundidas sobre
de material tão especial e peculiar para a criação literária. a origem da linguagem/língua foram as seguintes: 1 ) a teoria
guagem, se não compreendermos seu lugar e seu papel na vi O primeiro grupo de teorias concentra-se fundamental
da social, jamais saberemos abordar corretamente aquilo que mente na afirmação de que o homem tentou reproduzir os
chamamos de estilística do discurso literário, isto é, a técni sons emitidos pelos animais, ou os que acompanhavam al
ca de construção do objeto literário, que deve ser dominada, guns fenômenos da natureza ( os uivos do vento, o murmú
sem exceção, por todos os escritores desejosos de se tornar rio de uma nascente, o estrondo do trovão etc. ) . S egundo es
mestres em sua arte, e não amadores e diletantes superficiais. sa teoria, semelhantes onomatopeias tornaram - se significa
Mas o que é a linguagem/língua? ções naturais dos objetos que imitavam tais sons, isto é, tor
Todo fenômeno pode ser melhor compreendido se ob n aram - se palavras. Entretanto, uma vez que dess e modo se
servado no processo do seu surgimento e desenvolvimento. ria possível explicar uma quantidade muito pequena de p a
Infelizmente, em relação à língua, isso se torna mais comple lavras , eles apontavam que o elemento de imitação podia
xo, pelo fato de os seus primórdios e primeiras etapas de de consistir não no próprio som, mas no movimento dos órgãos
senvolvimento estarem a uma distância do nosso tempo de da fala ( sobretudo da língua ), ou se j a, uma espécie de gesto
pelo menos cem mil anos. Apesar disso, o desejo de imaginar sonoro .
o surgimento da língua é bastante antigo. No entanto, as pes O segundo grupo de teorias tentava provar que os pri
soas tentaram compensar a sua falta de conhecimento com meiros sons da fala humana foram exclamações ( inter j eiç õ es )
lendas "religiosas" e substituíram o estudo científico pelas involuntárias ( ou , como costumam chamá-los, " re fl etores")
5
O primeiro poema, "Nemótitchei i niémitchei . . . ", é de 1 9 1 3 e foi ções tornaram - se sinais constantes desses objetos , ou se j a ,
as regras lexicais, gramaticais e semânticas da língua russa. (N. da T.) para a origem de palavras i s oladas ( aliás , muito poucas ) de
uma ou outra língua, essas teorias não foram capazes d e r e s Independentemente de Engels, seu contemporâneo, o
ponder nem a questão sobre a essência real da linguagem/lín cientista alemão Ludwig Noiré, também concluiu que
No entanto, já em 1 8 7 6 , Engels deu uma indicação ge de conjunta, direcionada para um objetivo comum,
nial sobre a direção na qual se deve procurar a resposta so do trabalho primitivo de nossos antepassados."
"Nossos antepassados macacos eram animais cial, linguística," nos trabalhos de nosso cientista, o acadê
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sociais; é evidente que é impossível tirar conclusões mico Nikolai Marr.
sobre a origem do homem, o mais social dos ani Os seus estudos, comumente chamados de "teoria jafé
mais, a partir dos mais próximos antepassados não tica", estabelecem com completa certeza que
junto com o desenvolvimento das mãos e do traba " [ . . . ] a linguagem/língua formou-se no decorrer de
lho, ampliava a cada novo passo o horizonte do ho muitos milênios por meio do instinto social em
mem. Nos objetos da natureza, o homem constan massa, que se constituiu nas premissas das necessi
temente descobria propriedades novas, até então dades econômicas e da organização da economia."?
do trabalho necessariamente contribuía para uma Certamente, a língua em seus estágios antigos não era
união mais estreita entre os membros da sociedade, em nada parecida com as línguas contemporâneas, nem mes-
meio das modulações cada vez mais fortes, e os ór uma teoria da origem das línguas, das línguas pré-históricas e da relação
gãos da boca aprendiam aos poucos a pronunciar entre pensamento e linguagem, conhecida como teoria jafética, jafetolo
9
Nikolai Marr, Po etâpam razuitiia iafetítcheskoi teórii [As etapas
6
Engels, "Rol trudá v protsésse otcheloviétchenia obeziáni" [ " O pa- de desenvolvimento da teoria jafética], 1926, p. 2 8 .
de luta obstinada do homem com a natureza, luta na qual o as ações mágicas que, do ponto de vista da consciência obs
homem estava armado apenas de suas mãos fortes e de ins cura e não desenvolvida do homem daquele tempo, foram
trumentos de pedra grosseiramente talhados, a língua percor uma condição necessária para o êxito da sua atividade pro
re o mesmo longo caminho de desenvolvimento pelo qual dutiva e por isso sempre acompanharam todos os processos
passou a cultura material e técnico-econômica. do trabalho coletivo. Foi nessa ação mágica complexa, com
Segundo a suposição do acadêmico N. Marr, ainda an posta tanto por movimentos mágicos da mão e de todo o cor
tes de passar para a fala sonora e articulada, a sociedade hu po, quanto por gritos mágicos, os quais desenvolveram aos
mana - a sociedade dos grupos de caça - tinha que criar poucos os órgãos da fala, que teve início a linguagem sono
dos gestos e das expressões faciais ( a chamada linguagem li Não esqueçamos que o rito mágico para o homem da
near ou manual). Idade da Pedra foi um ato econôrnico, uma forma de ação
Muitos milênios se passaram antes que essa linguagem sobre a natureza, por meio do qual ela deveria dar ao homem
linear, que servia de fala cotidiana, se tornasse complexa, o bem mais importante e então praticamente o único: o ali
dando origem à linguagem sonora, na linguagem da magia, mento.l" Desse modo, os elementos primários da fala hu
na linguagem do culto mágico. mana sonora, assim como da arte, foram os elementos do
As pessoas da Idade da Pedra, que conheciam os modos processo do trabalho, que estavam ligados às necessidades
mais simples de obtenção de alimento - a colheita de ervas econômicas e eram resultado da organização produtiva da
por muito tempo com essa linguagem, que convencionalmen Foi justamente essa organização, ainda extremamente
te pode ser chamada de linguagem manual, pois os movimen primitiva, mas que aos poucos se tornava complexa, que ge
tos das mãos desempenhavam nela um papel central. É cla rou (e sofreu sua influência inversa) os estágios consequentes
ro que os sons podiam acompanhar esses "enunciados" ges tanto do desenvolvimento da compreensão do mundo circun
tuais e de expressão facial, mas eles ainda não eram articula dante quanto das relações com ele, isto é, da ideologia hu
dos e se redu ziam mais provavelmente a gritos de emoção, is mana em formação.11
to é, de um homem que está em um estado de forte agitação. É chamado de mágico o estágio da cultura humana em
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linguagem gestual e de expressões faciais ( a linguagem ma O leitor encontrará no capítulo correspondente do livro de Vla
nual), mais simples e cotidiana. O surgimento de uma lingua dímir Nikólski, Ótcherki pervobítnoi kultúri [Ensaio sobre a cultura pri
elementos fundamentais da língua, que estão na base de qual que abriu para nós o caminho à civilização, aquilo a que de
quer fala sonora em geral. Ainda não eram palavras no nos vemos tanto o nosso primeiro instrumento de pedra, quanto
so sentido, não eram sinais sonoros, nem signos de qualquer a primeira língua e os primeiros vislumbres da razão.
fenômeno ou grupo de fenômenos; não, eram grupos de sons Essa palavra foi:
determinados, que acompanhavam rituais mágicos, uma for "Mão" - a mão do homem trabalhador.
ma de processo de trabalho social. Em seguida, a palavra "mão" se fundiu com uma série
No início, como já sabemos, eram gritos de caráter má de significações ligadas ao culto, principalmente com os gru
gico, cuja repetição desenvolvia as cordas vocálicas e outros pos " c é u + á g u a + fogo".
órgãos da pronúncia. E então foi preciso apenas mais um pas Esses grupos de significações se cindiram em novos gru
so para que esses complexos sonoros se tornassem palavras. pos, por exemplo: " á g u a + céu" receberá a significação "nu
Bastava ao homem ser obrigado pelas necessidades econômi v e m + fumaça+ trevas"; "fogo+ céu" passou a significar "luz
cas a entender ou compreender a possibilidade de dar signi + brilho + r a i o " , e assim por diante. As palavras sonoras
ficado, por meio desse complexo sonoro, a ao menos um gru eram muito poucas, enquanto o conjunto de objetos a entrar
po de fenômenos ou objetos, para que tivesse início o desen no horizonte intelectual do homem aumentava cada vez mais,
volvimento livre da fala sonora, ou seja, a ampliação do con graças ao desenvolvimento da atividade econômica. Houve
junto de objetos e fenômenos significados por cada um dos uma transferência da significação de um fenômeno comple
complexos ou junções sonoras existentes. xo, por exemplo, o "céu", para o que seriam os seus compo
Aqui, junto com a passagem gradual para a criação de nentes, a saber: o sol, as estrelas e até os pássaros, que seriam
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gado e a agricultura, já entramos em novos estágios do de chamados de "filhos do céu", se traduzíssemos essa pala
senvolvimento linguístico: o totêmico (um dos seus traços vra para a nossa língua.
ideológicos é a deificação dos animais, das plantas, e assim No entanto, esses complexos sonoros jamais poderiam
por diante, como progenitores da tribo) e o cósmico (a deifi ter se transformado em uma língua desenvolvida se, junto
cação do céu e dos fenômenos celestes). Agora cada um dos com as novas épocas de evolução da atividade econômica, não
complexos sonoros é empregado de modo separado, signifi tivesse surgido aquele novo fenômeno que determinou odes
cando, entretanto, não um único fenômeno, mas um grupo tino da fala humana: o processo de cruzamento linguístico.
inteiro deles que, a nosso ver, quase não tinham nenhuma re É completamente compreensível que um homem, viven
lação entre si. O complexo sonoro inicial tornou-se uma pa do isolado, não só não criaria a linguagem, mas sequer uma
cio era empregada em todas as significações conhecidas pela Já na própria base do desenvolvimento da cultura hu
humanidade. É evidente que os primeiros objetos que rece mana - na atividade laboral- encontra-se a necessidade de
eram objetos de culto e de magia, pois a magia e o trabalho composto pelas palavras russas nebessá (céus) e rebiáta (garotada, crian
245
244 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua?
união em um grupo, em uma coletividade, criada por meio jugados. Contudo, as duas tribos tinham suas próprias desig
do cruzamento inicial. Junto com o cruzamento de grupos nações sagradas, os nomes dos totens (animais ou plantas
humanos inteiros (os exteriores: tribais, estatais; os interio deificados etc.) ou das divindades da tribo. É claro que pos
res: profissionais, de classe, de estratos), ocorreu o cruzamen teriormente a designação da tribo vencedora receberá a sig
to também de elementos linguísticos, que eram diferentes em nificação de "bondosa", " b o a " , enquanto que a da vencida
cada grupo. Como resultado, o vocabulário se enriqueceu e significará "malvada", "ruim". A mesma distinção também
surgiram palavras resultantes de cruzamentos, isto é, pala passará para a designação das classes. Assim, a designação
vras compostas de alguns elementos fundamentais. Entretan da tribo dos pelasgos, que outrora foi poderosa, mas depois
to, graças ao caráter limitado dos sons, alguns elementos des foi subjugada pelos romanos, passou a designar, na Roma
sas palavras foram reduzidos ou diminuídos. Essas combina antiga, os plebeus, pessoas de classe inferior; do mesmo mo
ções resultantes de uma espécie de supressão eram percebi do, a designação da tribo caucasiana dos "cólquios", glori
das como uma palavra inteiramente nova, que pode servir de ficada nas lendas da Grécia antiga, recebeu, depois de escra
A etapa seguinte do desenvolvimento da fala já é a com Geórgia. Assim os "termos (designações) tribais, inclusive os
binação de palavras em frases, inicialmente por um meio sim totêmicos, receberam uma reavaliação, isto é, foram avalia
ples, sem que a sua forma fosse alterada; depois, mediante a dos segundo a posição social das tribos que se cruzaram no
junção de partículas lexicais específicas para determinar as processo de formação de novos tipos étnicos (tribais) dos po
inter-relações de palavras na frase; e, finalmente, por inter vos, e que se transformaram em classes. Em decorrência dis
médio da alteração da própria forma da palavra (como, por s o [ . . . ], termos sociais e não apenas os de classe representam
13
exemplo, a declinação e a conjugação na nossa língua). as antigas designações tribais" .
Tudo o que foi dito anteriormente esclarece o papel de Como exemplo do reflexo das relações sociais na gra
sempenhado pela organização social do trabalho para o sur mática, é possível citar a formação das classes de palavras.
gimento e o desenvolvimento da linguagem/língua. Podemos Nesse sentido, é especialmente ilustrativa a formação dos
observar essa relação não apenas no campo das significações pronomes, que surgiram junto com a noção de propriedade.
das palavras (na assim chamada semântica), mas também no Como no início a propriedade não era pessoal, mas da tribo
Em primeiro lugar, daremos um exemplo de reflexo se uma tribo e o seu totem (ou, um pouco mais tarde, a divin
mântico (no campo da significação da palavra) da ordem so dade, o guardião dos direitos de propriedade do grupo social
cioeconômica. em questão).
Suponhamos que conflitos resultaram na submissão com Apenas depois, já com o surgimento da propriedade pes
pleta de uma tribo por outra, que também ocupou o territó soal, apareceu a primeira pessoa do singular ( " e u " ) e, em
rio (a terra) da tribo vencida. Então, nesse grupo de pessoas oposição a ela, a segunda e a terceira pessoas ("tu" e " e l e " ) .
ria a classe dominante, aquela que se beneficiou com o tra 13 N. Marr, Po etápam razvítiia iafetítcheskoi teórii [As etapas de de
balho gratuito (escravo ou semilivre) dos seus inimigos sub- senvolvimento da teoria jafética], 1926, p. 2 1 0 .
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246 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua?
1
O que foi exposto é suficiente para convencermo-nos de dois mundos com o levantar do primeiro instrumento criado
que a linguagem não é uma dádiva divina ou da natureza. pelas mãos do homem: o levantar de um machado de pedra.
Ela é produto da atividade coletiva humana, e todos os seus Foi preciso fortalecer essa nova posição de "animal bípede
elementos refletem a organização tanto econômica quanto que produz instrumentos", o que só foi possível por meio
sociopolitica da sociedade que a gerou. da mais estreita coesão e inter-relação dos grupos humanos.
Nessa luta terrível pela existência, sobre a qual hoje nem te
No entanto, existe uma lacuna essencial na nossa con só foi possível mediante uma concordância mínima de ações
clusão. Não abordamos em absoluto a relação evidente en e uma ideia mínima sobre um objetivo comum. Para isso, foi
tre a língua e o pensamento social. Contudo, falaremos so necessário que as pessoas pudessem compreender umas às
bre isso um pouco mais adiante. Agora devemos colocar ou outras. Essa tarefa já fora cumprida pela linguagem dos ges
Se a linguagem/língua, como vimos, é um produto da vi ção humana. Contudo, essa comunicação não somente con
da social, sua criação e reflexo, qual seria o papel que ela, tribuiu para a organização do trabalho, mas também possi
por sua vez, desempenha no processo de desenvolvimento bilitou a organização do pensamento social, da consciência
dessa vida social? Em outras palavras, será que a linguagem/ social. A psiquê humana teve que realizar um trabalho men
língua, uma espécie de superestrutura, acima das relações so tal que, embora fosse elementar, era dificílimo para a época.
cioeconômicas, exerce uma influência inversa sobre essas re Para a realização do fato da comunicação discursiva foi ne
lações que a geraram? cessário que aquele sentido atribuído ao movimento das
Essa questão é muito mais simples do que aquela sobre mãos de uma pessoa fosse compreensível para outra pessoa,
a origem da linguagem/língua e por isso seremos muito bre que esse outro pudesse estabelecer (graças à experiência an
ves. Para qualquer consciência imparcial, está claro o enor terior) uma relação necessária entre esse movimento e aque
me papel que a linguagem/língua deve desempenhar na orga le objeto ou acontecimento no lugar do qual ele foi usado.
nização da vida social. Em outras palavras, o homem deve compreender esse mo
Já a primeira linguagem da humanidade, a mais primi vimento como dotado de certa significação, ou seja, com
tiva - linear ou manual - que chegou até os nossos dias na preendê-lo como um signo que expressa algo. Entretanto, is
qualidade de meio auxiliar para a fala sonora (a gesticulação so ainda é pouco. O signo expresso pela mão não deve ser
habitual das mãos e a expressão facial durante a conversa), um signo ocasional e passageiro. Apenas ao se tornar um sig
essa primeira linguagem marca uma ruptura abrupta com o no estável ele pode entrar no horizonte de um grupo social,
mundo da natureza e marca os primórdios da criação de um ser necessário a ele e se transformar em um valor social. Com
novo mundo, do mundo do homem social, do mundo da his o aumento e a alteração da organização econômica, esse sig
tória social. Não bastava colocar uma fronteira entre esses no, é claro, mudará constantemente, porém essas mudanças
No entanto, tudo o que foi dito por nós é apenas um la foi necessária a fixação jurídica das relações de propriedade,
do do processo de comunicação discursiva entre as pessoas, expressa pela linguagem oficial. Surgiram as fórmulas jurídi
processo esse que não poderia ser realizado se o signo ges cas, ainda estreitamente ligadas às fórmulas religiosas. É co
tual (e posteriormente também verbal) permanecesse apenas mo se a palavra consagrasse com sua autoridade mágica do
um signo exterior. Ele deve se tornar um signo de utilização passado as leis que favoreciam a minoria governante e que
interior, tornar-se um discurso interior, e somente então será propiciavam a servidão da maioria subjugada. Certamente,
criada a segunda (além do movimento de sinalizar) condição sem a língua seria impensável aquele sistema legislativo de
necessária para a comunicação discursiva: a compreensão do senvolvido que já encontramos em povos mais antigos: os su
to da fala humana.
E assim a língua torna-se uma condição necessária para Por fim, é óbvio que sem a ajuda da palavra não teriam
a organização laboral das pessoas. Contudo, com o desen surgido a ciência, a literatura etc., em suma, nenhuma cultu
volvimento da atividade. econômica, ocorre, nessa organiza ra poderia ter existido se a humanidade tivesse sido privada
ção laboral, a separação de personalidades isoladas que pos da possibilidade da comunicação social, cuja forma materia
suem outras obrigações e outros direitos. Isso está ligado ao lizada é a nossa língua.
pararam-se os guardiões dessa fala secreta, que eram um gru 4. LINGUAGEM/LÍNGUA E CONSCIÊNCIA
e veneração especiais, pois eram "oniscientes" e "onipoten Entretanto, tudo isso é uma espécie de aspecto exterior
t e s " . Dominavam as palavras mágicas e misteriosas, das do papel desempenhado pela língua na vida social, aspecto que
quais, do ponto de vista do homem primitivo, dependiam é o primeiro a ser percebido e o mais fácil de ser estudado.
tanto a colheita bem-sucedida de plantas comestíveis e a ca Incomparavelmente mais complexa é a questão da in
ça feliz, quanto a eliminação dos inimigos e o bem-estar ge fluência da linguagem/língua sobre aqueles fenômenos da vi
ral da tribo! Assim, no próprio alvorecer da história huma da social que levam o nome de "consciência de classe", "psi
na, a língua involuntariamente também contribuiu para os cologia social", "ideologia social", e assim por diante. Jun
14
princípios da divisão da sociedade em classes e estratos. to a isso deve surgir de modo inevitável uma nova questão
14
tem a linguagem para a consciência ( o psiquismo) individual
Abordaremos a questão da formação da linguagem "literária",
que é a linguagem da classe dominante, em um ensaio posterior. e pessoal do homem, para a formação da sua vida "interior",
vivências? etc. Será que aquele homem, com sua consciência opaca, que
Todo esse conjunto de questões tem uma importância acabara de despertar, podia ser dono de uma língua rica e de
primordial para todos que lidam com a língua, tanto como senvolvida, com um enorme e diversificado vocabulário, fra
material, quanto como instrumento de criação. Começamos ses construídas de modo preciso e expressões certeiras? É cla
este ensaio justamente com a representação de um estado do ro que não. Contudo, é justamente aqui, graças à obviedade
escritor que costuma ser chamado de tormento da palavra. aparente, que caímos habitualmente no erro, totalmente se
No entanto, normalmente atribuímos esses "tormentos melhante àquele que a humanidade viveu antes da famosa
15
da palavra" à falta delas para "expressar" nossas vivências, descoberta de Copérnico. Não seria "evidente" que todos
ou à impotência das palavras para transmitir tudo o que quer os dias o Sol "se levanta" e "se põe" e que, por conseguinte,
"falar a alma". ele gira em torno da Terra? No entanto, verifica-se que essa
Nosso objetivo é justamente esclarecer se essas afirma "evidência" é só um erro de nossos sentidos, pois a Terra gi
ções correspondem à realidade, e descobrir se de fato os "tor ra em torno do Sol e não o contrário. O mesmo acontece com
mentos da palavra" surgem apenas em consequência de uma a questão da inter-relação entre a linguagem e a consciência.
"falta" de palavras, ou da "impotência" destas. Antes de tudo, tentemos definir o seguinte: o que é nos
za, ocorrida na forma do processo mágico-econômico cole Fechemos os olhos e comecemos a refletir sobre a ques
tivo, ocasionaram o surgimento, primeiramente, da fala da tão. A primeira coisa que percebemos é um fluxo de palavras,
expressão facial e cotidiana, e depois da sonora ( de culto). às vezes unidas em determinadas frases, porém quase sempre
Com o passar do tempo, a fala sonora do culto torna-se pa correndo em uma alternância ininterrupta de fragmentos de
trimônio também da vida cotidiana, ou seja, da comunica pensamentos, de expressões habituais, de impressões conjun
ção cotidiana diária. Ela se desenvolveu graças a todo tipo tas gerais de objetos ou fenômenos da vida. E essa ciranda
de cruzamentos, causados pelo aumento posterior da ativi verbal multicor se movimenta o tempo todo, ora se afastan
dade econômica do homem. Contudo, desde os primeiros es do, ora se aproximando do seu tema principal: daquela ques
tágios de sua formação, a comunicação verbal entre as pes tão sobre a qual tentamos refletir. Contudo, agora tentemos
soas esteve inseparavelmente ligada a outras formas da co abstrair de quaisquer palavras.
municação social. Ela surgiu no terreno comum da comuni O que podemos observar em nós mesmos?
que provou que o Sol enquanto estrela central é imóvel e que em torno de
volvia independentemente da comunicação verbal, ou havia
le orbitam todos os planetas, inclusive a Terra. Essa discordância com a
uma relação entre elas, e qual era essa relação? Pode parecer
doutrina bíblica provocou uma resistência tenaz da parte do clero, mas a
que justamente o crescimento da consciência determina o verdade científica foi mais forte do que a ignorância religiosa.
ou pedaços de melodias já ouvidas. Abstraiamo-nos também Tomemos uma expressão verbal muito simples de algu
disso. É bem provável que sintamos os batimentos do cora ma necessidade, por exemplo, a fome. Seria possível uma pu
ção, ou o fluxo do sangue nos ouvidos, ou que surjam repre ra "expressão" dessa necessidade, não expressa por nenhum
sentações ligadas ao funcionamento dos nossos músculos, discurso interior ou exterior ou, melhor dizendo, não refra
16
as assim chamadas representações "motoras" (de movimen tada ideologicamente? É claro que nunca encontraremos
t o ) . Entretanto, se conseguíssemos, por meio de um esforço uma expressão de fome tão pura e livre de todo o social, ou
excepcional da vontade, nos apartar também dessas repre seja, uma espécie de voz da própria natureza.
sentações motoras (de movimento), o que restaria da nossa Para se tornar um desejo humano vivido e expresso, to
Uma completa não existência, semelhante a um estado lhante a um raio de sol ou de alguma estrela, que pode atin
de inconsciência ou de sono sem sonhos. gir os nossos olhos apenas ao se refratar inevitavelmente na
E para que retornemos novamente ao estado "conscien atmosfera terrestre. O homem não pode falar nenhuma pa
te", precisaríamos quebrar essas paredes de não existência, lavra se permanecer simplesmente um homem, um indivíduo
deixar entrar toda essa confusão de palavras e representa da natureza (biológico), uma espécie de bípede do reino ani
ções que reveste os nossos pensamentos, desejos e sentimen mal. A mais simples expressão de fome - "Quero comer"
tos, e pronunciar, dentro de nós, ao menos uma pequena pa - pode ser falada (expressa) somente em uma determinada
lavra: " E u " . língua (mesmo que ela seja linear, ou manual), e será falada
17
Chamemos esse fluxo de palavras que observamos em com determinada entonação e gesticulação. Entretanto,
nós de discurso interior. Ao observarmos atentamente a nós por meio disso nossa expressão elementar da necessidade :fi
mesmos, veremos que, no final das contas, nenhum ato de siológica e natural inevitavelmente obterá um colorido socio
consciência pode ocorrer sem ele. Mesmo que surja em nós lógico e histórico: da época, do meio social, da posição de
uma sensação puramente fisiológica, por exemplo, a sensa classe do falante e daquele ambiente real e concreto no qual
ção de fome ou de sede, para "sentir" essa sensação e torná ocorre o enunciado.
-la consciente é necessário expressá-la de algum modo den Tentemos agora começar a remover essas camadas da
tro de si, encarná-la no material do discurso interior. Desde formalização histórica e social da nossa expressão de fome.
o seu princípio, essa expressão de uma necessidade puramen Em primeiro lugar, façamos a abstração de uma deter
te fisiológica é, assim como a própria "vivência", condicio minada língua, depois de determinada entonação da voz, do
vivemos. 16
Isto é, em algum signo, palavra, gesto, desenho, símbolo etc.
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A entonação é o aumento ou diminuição do volume da voz, que
ça que tenta encontrar o núcleo da cebola ao retirar dela uma me, com quem e em qual meio, em outras palavras, toda ex
camada após a outra. Nada sobrará da expressão, assim co pressão possui uma orientação social. Consequentemente, a
Como veremos adiante, não sobrará nada também da to do enunciado, tanto mais os próximos quanto os mais dis
Atentaremos para como o ambiente social mais próxi do acontecimento que formam o enunciado e o obrigam a
mo, no qual o enunciado sobre a fome é pronunciado, deter soar de um modo e não de outro: como uma ordem ou uma
Por meio da solução dessa questão, lançaremos uma favor, em estilo pomposo ou simples, seguro ou tímido, e as
ponte temática para o nosso próximo ensaio e, ao mesmo sim por diante.
tempo, prepararemos o material para as conclusões a serem É justamente essa dependência entre o enunciado e as
feitas nele. condições concretas nas quais ele ocorre que tem uma enor
Em primeiro lugar, para quem o falante declara sua von me importância para a nossa pesquisa. Sem a consideração
tade de comer? Se ele falar a uma pessoa que tem a obriga dessas condições e relações de classe entre os falantes, nunca
ção de alimentá-lo (a um escravo, um criado etc.), ele expres poderemos abordar as questões que consideramos as mais
sará sua vontade ou na forma de uma ordem ríspida e com fundamentais: as de estilística literária. Apenas quando estu
certa entonação imperativa, ou de forma educada, mas segu darmos a relação entre o tipo de comunicação social e a for
ra da concordância imediata em atender o seu pedido. ma do enunciado, quando percebermos que toda "expres
Vale a pena pensar o quão multiformes e diversas são são" de uma "vivência" é o documento de um acontecimen
as formas verbais empregadas pelas pessoas para expressam to social, essas questões de estilística ficarão completamente
casa dos outros, em casa, em um restaurante, em um refeitó Agora teremos pela frente a seguinte tarefa. Vimos que
rio público etc. É grande a distância entre as entonações de a expressão de uma vivência necessita, acima de tudo, da aju
voz que soam, como uma herança ainda não superada dos da da linguagem/língua, compreendida no sentido mais am
antigos cultos de magia, na fórmula da prece " O pão nosso plo: como discurso interior e exterior. Sem a linguagem/lín
de cada dia nos dai hoje" e no grito atrevido de Khlestakóv: gua, sem um enunciado verbal ou mesmo gestual, não há ex
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"Tenho muita fome. Não estou brincando!" . pressão, assim como não há expressão sem as suas condições
Desse modo, vemos que a pura sensação fisiológica da sociais reais e sem os seus participantes reais.
fome não pode, por si só, ser expressa, pois esta necessita de Mas, e a vivência? Será que ela também necessita da lin
uma determinada posição social e histórica do organismo fa- guagem/língua? Será que nossos sentimentos - amor, ódio,
necessita de uma forma ideológica. Toda tomada de consciên acontecem no interior do corpo sob ação das condições ex
cia necessita de um discurso interior, de uma entonação in teriores, isto é, da situação de leitura da resenha, são acom
terior e de um estilo interior embrionário: a tomada de cons panhadas necessariamente do fluxo do discurso interior, gra
ciência da própria fome pode ocorrer como súplica, lamen ças ao qual compreendemos tudo o que está acontecendo.
to, raiva, indignação, e assim por diante. Na maioria dos ca No exato momento da leitura da resenha, esse fluxo
sos, a expressão exterior só continua e esclarece a direção do pode romper para fora, ou seja, para o discurso exterior, na
discurso interior e as entonações nele contidas. forma de exclamações desconexas de alegria, que depois se
Tentemos fazer uma experiência de auto-observação. transformarão em um discurso mais formalizado e sistemá
Todos já vivemos uma alegria súbita. Imaginemos que tico. Contudo, não há nenhuma ruptura qualitativa entre a
nos alegramos muito ao lermos uma resenha brilhante e ines primeira sensação, do coração acelerado ao ler a resenha há
perada sobre uma obra nossa que nos parecia bem medíocre. muito tempo aguardada, e aquele conjunto de raciocínios
Qual é a força organizadora mais importante dessa nossa vi bastante nítidos e claros que talvez comecemos a trocar com
vência? Sem sombra de dúvida, tudo o que se relaciona com alguém dentro de alguns minutos.
o aspecto exterior desse acontecimento: o fato do apareci É possível falar que todo o campo da vida interior ou
mento da resenha brilhante em um periódico, após uma lon todo o mundo de nossas vivências movimenta-se em algum
ga espera. Chamaremos de situação do acontecimento todas lugar entre o estado fisiológico do organismo e a expressão
as suas condições ou circunstâncias. Adiante iremos utilizar exterior a c a b a d a . Quanto mais esse mundo de vivências
de modo recorrente essa palavra e, por isso, memorizá-la é aproximar-se do seu limite inferior, tanto mais vaga e obs
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extremamente importante. cura será a vivência, bem como a sua tomada de consciência
Desse modo, a situação é uma condição necessária da e percepção. No entanto, quanto mais próximo o mundo das
nossa vivência. Do que é formada essa vivência? Em primei vivências for do seu limite superior, a expressão acabada, tan
ro lugar, ocorre dentro de nós toda uma série de fenômenos to mais complexa e ao mesmo tempo clara, rica e completa
relacionados com nosso organismo: a respiração acelerada, será a situação social expressa por esse mundo. O discurso
o batimento mais rápido do coração, os movimentos dos interior é aquela esfera, aquele campo, no qual o organismo
músculos (a vontade de bater palmas), e assim por diante. passa do meio físico para o meio social. Aqui ocorre uma so
Chamaremos de reação orgânica todo o conjunto desses fe ciologização de todas as manifestações e reações orgânicas.
nômenos que são uma espécie de resposta inconsciente do or Certamente, nos estágios inferiores do desenvolvimento
ganismo ao acontecimento exterior. a expressão verbal pode ser substituída por outros meios: a
Convenhamos chamar todo o conjunto das vivências co o autor e seus leitores, que é essencial para nós. Aqui forma
tidianas - que refratam e refletem a existência social - e -se a linguagem/língua comum a eles e sua relação mútua ( ou
das expressões exteriores ligadas diretamente a elas de ideo mais precisamente, a orientação mútua). Tanto o autor quan
logia do cotidiano. A ideologia do cotidiano atribui sentido to o leitor encontram-se em um terreno extraliterário comum:
a cada um dos nossos atos, ações e estados "conscientes". Do podem trabalhar na mesma instituição, participar das mes
oceano inconstante e mutável da ideologia do cotidiano sur mas seções plenárias e reuniões, conversar à mesa de chá, ou
gem gradativamente numerosas ilhas e continentes de siste vir as mesmas conversas, ler os mesmos jornais e livros, as
mas ideológicos: de ciência, arte, filosofia, opiniões políticas. sistir aos mesmos filmes. Desse modo, aqui compõem-se, for
No final das contas, esses sistemas são o produto do de malizam-se e padronizam-se os seus "mundos interiores". Em
senvolvimento econômico, ou seja, o produto do enriqueci outras palavras, ocorre uma espécie de "cruzamento" de seus
mento técnico-econôrnico da sociedade. Por sua vez, esses pontos de vista e opiniões, ou seja, uma espécie de cruzamen
sistemas exercem uma fortíssima influência inversa sobre a to do discurso interior de um conjunto inteiro de pessoas, se
ideologia do cotidiano, e frequentemente dão a ela o seu tom. melhante ao cruzamento das línguas tribais sobre o qual tra
íntegro, monolítico, homogêneo e semelhante em todas as De tudo o que falamos, está claro que o fenômeno que
suas partes. Devemos distinguir nela todo um conjunto de normalmente chamamos de "individualidade criativa" ex
camadas que vão das mais inferiores, voláteis e mutáveis, até pressa, na verdade, uma linha firme e constante da orienta
as mais superiores, que estão em contato direto com os sis ção social, isto é, das opiniões, simpatias e antipatias de clas
Aqui estamos pouco interessados nas camadas inferio ma no material do seu discurso interior.
res, isto é, nas vivências, pensamentos e palavras ocasionais A estrutura sociológica do discurso interior nas suas ca
e vazias, que são confusas, pouco desenvolvidas e que Iam- madas superiores e as orientações sociais nela contidas pre
ferência por "cotidiano". (N. da T.) lembrar que qualquer obra dotada de certa importância e ori-
ginalidade é criada, em sua essência, ao longo de toda a vida da palavra", a qual ainda abordaremos no futuro, quando
do escritor, pintor ou compositor. Acima de tudo, as orienta pesquisarmos mais de perto a estrutura da criação literária e
ções mais fundamentais das suas simpatias e antipatias de o papel da palavra nessa estrutura. Por enquanto, tentaremos
classe, suas opiniões e gostos, que determinam e perpassam representar de modo mais sistemático o caminho da criação
das e sedimentadas no discurso interior. Elas não podem ser A passagem da vivência, como expressão interior, para
transformadas de uma hora para outra, a fim de atender " o o enunciado realizado no exterior, é o primeiro degrau da
dia de hoje" e suas exigências literárias. É como se elas fos criação ideológica, no nosso caso, literária. Nesse estágio, ga
sem dadas ao escritor; a construção da ideia artística, a esco nha força a orientação social que já estava contida ou esbo
lha do tema, do gênero, e assim por diante, já ocorrem den çada como uma possibilidade na vivência. É como se aqui
tro dos seus limites nítidos, ainda que amplos. surgisse e fosse levado em consideração o ouvinte p resumi
O discurso artístico exterior não pode opor-se às orien do, o participante presumido daquele acontecimento que pro
tações sociais fundamentais do discurso interior. Caso ele ten voca a p assage m da expressão interior para a exterior. Ocor
te se opor, inevitavelmente perderá sua eficiência e força, soa re o primeiro teste e a primeira verificação das formas ideo
rá falso como uma lição bem decorada, pronunciada com lógicas da vivência.
uma entonação opaca, casual e pouco convincente. O estilo No segundo estágio da sua reali z ação, a forma primiti
do discurso interior deve determinar o estilo do discurso ex va do cotidiano já se transforma em um produto ideológico:
terior, apesar de este exercer uma influência inversa sobre em uma obra no sentido pr ó prio da p alavra. Aqui ocorre
aquele. Entre o estilo interior e o exterior, entre o estilo da uma reconstrução essencial de toda a estrutura social da ex
"alma" e o estilo da obra, existe uma interação, assim como press ã o : o ouvinte (" interior" ) p resumido, es b oçado de mo
ocorre entre a ideologia do cotidiano e um sistema ideológi do impreciso, começa a ser considerado como um ouvinte
co formalizado e fixado: o discurso interior vivifica e nutre real e presente, começa a ser considerado como uma massa
com sua seiva o discurso exterior percebido e criado, mas ao leitora que é organizada de um modo determinado.
mesmo tempo é determinado por ele. O aspecto mais importante desse segundo estágio é o do
De modo geral, aqui não deveria haver uma ruptura mínio do material, a sua transformação em um objeto de arte
nem um salto. O mesmo grupo social que deu ao indivíduo (estátua, quadro, sinfonia, poema, romance etc .) . No primei
sua língua, orientou suas opiniões, gostos, avaliações, em ro est ág io , a passa g em do discurso interior para o exterior
uma palavra, determinou o tom e o caráter da sua vida inte ainda se realizava diretamente nas profunde z as da ideologia
rior, agora opõe-se a ele como um meio exterior, como uma do cotidiano . É por isso que, nesse caso, não se podia falar
massa leitora, como um conjunto de consumidores e críticos nem da maestria, nem dos procedimentos artísticos etc. No
da sua criação literária. Por isso, quando surgem contradi entanto, na literatura, o segundo estágio examinado por nós
ções e conflitos entre os discursos interior e exterior do escri entra em contato estreito com o estágio anterior, pois aqui a
tor, eles são causados por motivos sociais específicos. língua é tanto o material quanto o instrumento da criação.
É claro que com essas palavras apenas esboçamos o c a Finalmente, no terceiro e último estágio da sua realiza
minho para uma solução correta da questão dos "tormentos ção , o produto ideológico deve dominar as condições técni-
cas exteriores. Ocorre uma reformulação técnica do material. Toda a vida interior do homem é constituída na depen
A obra deve orientar-se para a redação, a editoração, a tipo dência dos meios de sua expressão. Sem o discurso interior
grafia, o mercado editorial etc. não há consciência, assim como não há discurso exterior sem
obra literária ocorre no mesmo meio social. Esse processo é A ideologia social, ou seja, os sistemas ideológicos for
ininterrupto: entre a vivência vaga e a impressão do livro mados, é a ideologia do cotidiano ( " a psicologia social") sis
ocorre só o detalhamento e a ampliação da estrutura social, tematizada e fixada nos signos exteriores.
que já estava presente nas primeiras manifestações da cons A criação literária percorre o seguinte caminho: da vi
ciência humana. Aqui não há nem pode haver limites preci vência ou expressão embrionária ao enunciado expresso no
sos entre os momentos isolados desse processo (entre a cria exterior. Tanto na base da vivência quanto na da expressão
ção solitária e o encontro com o público): a vivência interior encontra-se a mesma estrutura social.
desde o início era uma expressão exterior (ainda que de mo Qualquer fenômeno da realidade, qualquer situação,
do oculto); e o ouvinte (ainda que presumido) desde o início ao despertar no homem uma reação orgânica, normalmente
era um elemento necessário da sua estrutura. também gera um discurso interior, que facilmente se trans
8. CONCLUSÕES dos para o "outro", para o "ouvinte". Tanto aquele que pro
Agora podemos tirar algumas conclusões. cientes do acontecimento do enunciado e ocupam nele posi
da necessidade de comunicação dos grupos humanos da Ida O enunciado literário, isto é, uma obra literária, é tão
do material dos gestos e expressões faciais e, em seguida, do Somente por meio de uma pesquisa sociológica estare
material sonoro. Atendendo às necessidades de comunicação mos mais próximos de esclarecer a essência daqueles fenô
das pessoas, a linguagem/língua ao mesmo tempo serve co menos que estão ligados aos conflitos dos discursos interior
mo uma espécie de instrumento do processo econômico: a e exterior, e que possuem um nome característico: os "tor
fórmula mágica. Por ser um produto da vida social, e refleti mentos da palavra".
-la não somente no campo das significações, mas também no Falaremos sobre isso mais à frente.
homem.