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Valentin Volóchinov ( 1 8 9 5 - 1 9 3 6 ) foi um dos principais

integrantes do Círculo de Bakhtin e autor dos livros O freudis­

mo ( 1 9 2 7 ) e Marxismo e filosofia da linguagem ( 1 9 2 9 ) , obras a entin


por vezes atribuídas ao próprio Bakhtin. A presente coletânea

reúne, pela primeira vez no Brasil em tradução direta do russo,


., 1

todos os outros ensaios conhecidos do autor, incluindo textos

fundamentais como "A palavra na vida e a palavra na poesia"

e "A construção do enunciado", além de resenhas e estudos so­

bre música inéditos em português.

A partir de pesquisas realizadas em arquivos russos, o v o ­


(1)

Ol

-o
o o c l íl O V

e?..
lume traz um alentado ensaio introdutório das tradutoras Shei­ Ol
<
(Círculo d e Bakhtin)
-,
la Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, que busca reconstituir
Ol

a ainda pouco conhecida trajetória intelectual de Volóchinov �


Ol

- criador, com Bakhtin e Medviédev, de uma teoria da lingua­ -o


o
gem inovadora, focada nas relações sociais, em contraposição (1)

�.
às abordagens formalistas ou psicologizantes então em voga. Ol
F

EDITORA34

Editora 34 Ltda.

Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000

São Paulo - SP Brasil Tel/Fax ( 1 1 ) 3 8 1 1 - 6 7 7 7 www.editora34.com.br

Copyright © Editora 34 Ltda., 2 0 1 9

Tradução@ Sheila Grillo e Ekarerina Vólkova Américo, 2 0 1 9


A palavra na vida
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA

e a palavra na poesia
APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Ensaios, artigos, resenhas e poemas

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:

Bracher & Malta Produção Gráfica Registros de Valentin Volóchinov

nos arquivos do ILIAZV,


Revisão:
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo . 7
Danilo Hora

ENSAIOS

I." Edição - 2019

Do outro lado do social:

sobre o freudismo ( 1 9 2 5 ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

A palavra na vida e a palavra na poesia:

CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte para uma poética sociológica ( 1 9 2 6 ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) As mais novas correntes

Volóchinov, Valentin, 1895-1936 do pensamento linguístico no Ocidente ( 1 9 2 8 ) . . . 147


V142p A palavra na vida e a palavra na poesia:
Sobre as fronteiras
ensaios, artigos, resenhas e poemas I Valentin

Volóchinov; organização, tradução, ensaio entre a poética e a linguística ( 1 9 3 0 ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183


introdutório e notas de. Sheila Grillo e Ekaterina
Estilística do discurso literário 1:
Vólkova Américo - São Paulo: Editora 34, 2019

(1' Edição). O que é a linguagem/língua? ( 1 9 3 0 ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234


400 p.
Estilística do discurso literário II:
ISBN 978-85-7326-751-8
A construção do enunciado ( 1 9 3 0 ) 266
1. Linguística. 2. Teoria literária.
Estilística do discurso literário III:
3. Círculo de Bakhtin, 4. Filosofia da linguagem.

4. Música. I. Grillo, Sheila. II. Vólkova Américo, A palavra e sua função social ( 1 9 3 0 ) 306
Ekaterina. III. Título.

DD - 4 1 0
F

ARTIGOS

M. P. Mússorgski ( 1 8 3 5 - 1 8 8 1 ) : por ocasião

dos quarenta anos de sua morte ( 1 9 2 1 ) 339 Registros de Valentin Volóchinov


1
O problema da obra de Beethoven I ( 1 9 2 2 ) . . . . . . . . . . . . . . . . 348 nos arquivos do ILIAZV
O problema da obra de Beethoven II ( 1 9 2 3 ) 352

O estilo do concerto ( 1 9 2 3 ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359 Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo

RESENHAS

Konstantin Eigues,

Ensaios sobre filosotia da música ( 1 9 2 1 ) . 369

E . M. Braudo, Nietzsche, filósofo-músico ( 1 9 2 2 ) . 373


Este livro reúne ensaios, artigos, resenhas e poemas de
Igor Gliébov, Piotr Ilitch Tchaikóvski,
Valentin Nikoláievitch Volóchinov ( l gi 5 - 1 9 3 6 ) , coletados
sua vida e sua obra ( 1 9 2 2 ) . 375
na Biblioteca da Academia de Ciências de São Petersburgo
E . M. Braudo, Aleksandr Porfírievitch Borodín,
entre março e junho de 2 0 1 6 . Essa coleta foi acompanhada
sua vida e sua obra ( 1 9 2 2 ) . 379
e orientada pelo trabalho na Filial de São Petersburgo do Ar­
Romain Rolland, Músicos dos nossos dias ( 1 9 2 3 ) . 381
quivo da Academia Russa de Ciências (Sankt-Peterbúrgski
K. A. Kuznetsóv,
Filial Arkhiva RAN), pesquisa que deu origem ao ensaio in­
Introdução à história da música ( 1 9 2 3 ) . 383
trodutório deste volume. Além dos artigos que já haviam si­
V. V. Vinográdov, Sobre a prosa literária ( 1 9 3 0 ) . 385
do vertidos indiretamente para o português, e que agora tra­

zemos em tradução direta dos originais russos, foram acres­


POEMAS
centados textos inéditos, que Volóchinov publicou entre 1922
Soneto l (1922) . 391
e 1_223.,nos periódicos Iskússtvo (Arte) e Zapíski Pereduíiná­
Soneto Il (1922) . 393
go Teátra (Notas do Teatro Itinerante), antes de sua entrada
O eterno ( 1 9 2 3 ) . 395
no Instituto de História Comparada das Literaturas e Lín­

guas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV). A autoria desses

Sobre o autor 397


Sobre as t r a d u ; � · ; � ; · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
................................................... 399

1
Institut Sravnítelnoi Istórii Literatúri i Iazikov Zâpada i Vostóka,

que a partir de 1930 passa a se chamar Instituto Estatal de Cultura Lin­

guística (GIRK, Gossudárstvennyi Institút Retchevói Kultúry). A pesqui­

sa nos arquivos do ILIAZV em São Petersburgo, Rússia, foi realizada en­

tre março e junho de 2016 por Sheila Grillo com apoio da bolsa PQ do

CNPq (Processo 309502/2014-4 ). A leitura e interpretação dos manuscri­

tos bem corno a redação do artigo foram feitas conjuntamente por Sheila

Grillo e Ekaterina Vólkova Américo.

Registros de Valentin Volóchinov nos arquivos do ILIAZV 7


1. A ORIGEM DA LINGUAGEM/LÍNGUA

Estilística do discurso literário I:


Um autor iniciante está sentado à mesa e olha com de­
1
O que é a linguagem/língua?
salento para a folha de papel em branco diante dele. Antes

de pegar a pena nas mãos e se preparar para escrever, havia

tantas ideias na sua cabeça . . . Ontem mesmo ele contou em


"A linguagem e a razão resultaram da
detalhes a um amigo o conteúdo de sua futura primeira no­
atividade conjunta, direcionada para um ob­

jetivo comum, do trabalho primitivo de nos­


vela . . . Mas agora - cada frase com a qual pretende come­

sos antepassados." çar sua obra parece obtusa, desajeitada, estranha e artificial.

Ludwig Noiré Além disso, foi só ele querer anotar a novela que parecia já

estar pronta na sua cabeça, que logo surgiu uma série de

questões. Em nome de quem conduzir a narrativa? Em seu

1 . A origem da linguagem/língua. 2. O papel da lingua­ nome, no do autor, ou em nome de algum personagem da no­

gem/língua na vida social. 3 . Língua e classe. 4. Linguagem/ vela? E qual deve ser a sua linguagem, se a narrativa for con­

língua e consciência. 5. "Vivência" e "expressão". 6. Ideolo­ duzida por um dos personagens da novela? O próprio discur­

2 3
gia do cotidiano. 7. Criação literária e discurso interior. 8 . so do autor pode ser a assim chamada norma-padrão ou, ao

Conclusões. contrário, o autor pode colocar a máscara de um narrador

pertencente a um meio pouco escolarizado e cultivado, e en­

tão deve falar uma língua completamente diferente . . .

Desse modo, surge uma enorme quantidade de questões


1
Ensaio publicado em Literatúrnaia Utchióba: Jurnál dliá Samoo­
para o jovem escritor, as quais ele deve resolver antes de co­
brazovániia [Estudos da Literatura: Revista para Autoformação], nº 2, pp.
meçar a escrita da sua obra.
48-66, Moscou-Leningrado, 1 9 3 0 . A revista Literatúrnaia Utchióba foi

criada em 1 9 3 0 p o r Maksim Górki, que foi seu editor-chefe, com o pro­ É possível notar que essas questões parecem se dividir

pósito de ensinar o ofício literário a escritores iniciantes das camadas so­ em dois grupos. O primeiro inclui tudo o que está relaciona­

ciais populares. Em russo, os termos "língua" e "linguagem" são designa­


do com a própria língua, com a escolha das palavras. O se­
dos pela mesma palavra, iazík, que foi traduzida ora por "língua", ora por
gundo grupo diz respeito à disposição dessas palavras, à or­
"linguagem", a depender do sentido depreendido do contexto. Nos casos
ganização do todo da obra, ou, em outras palavras, à com­
em que não foi possível determinar se se tratava exclusivamente de língua

ou linguagem, adotamos a solução de Patrick Sériot e Inna Tylkowski­ posição da obra. Contudo, tanto em um quanto em outro ca-

-Ageeva (V. N. Volosinov, Marxisme et philosophie du langage, trad. P.

Sériot e 1. Tylkowski-Ageeva, Limoges, Lambert-Lucas, 2 0 1 0 ) . (N. da T.)

2
Traduzimos a expressão russa jíznennaia ideológuia por "ideolo­
3
gia do cotidiano", opção também assumida em Marxismo e filosofia da "Norma-padrão" é a tradução de literatúrnaia riétch, ao pé da le­

linguagem (trad. S. Grillo e E. V. Américo, São Paulo, Editora 34, 2 0 1 7 ) e tra "discurso literário", que é um conceito na tradição linguística e literá­

no artigo desta coletânea "As mais novas correntes do pensamento linguís­ ria russa para designar a norma culta, fixada pela gramática normativa e

tico no Ocidente". (N. da.T.) considerada a correta. (N. da T.)

234 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 235


,-
so, o autor sente que aquela língua habitual, a qual ele utili­ cos. Consequentemente, existem determinadas leis linguísti­

zou na conversa com outras pessoas, aquela língua com a cas cuja violação resulta em incompreensão.

qual ele raciocinou ou sonhou nos momentos de solidão, pa­

rece agora um fenôrneno extremamente difícil e complexo. No entanto, tudo o que foi dito diz respeito apenas às

Enquanto ele não pensava na língua, tudo corria bem e sem assim chamadas regras gramaticais, em especial da sintaxe,

dificuldades. No entanto, foi só ele tentar escrever uma obra isto é, à teoria sobre as regras de combinação de palavras iso­

literária, que essa língua tornou-se para ele uma massa pesa­ ladas em expressões dotadas de sentido. Contudo, existe uma

da e árdua de manejar, a partir da qual é tão difícil construir diferença ainda mais nítida entre o caráter do material ver­

uma frase leve, bonita e, o mais importante, que transmita bal e qualquer outro material puramente físico.

com precisão as intenções do autor. A língua transformou-se Ao comparar a palavra com um pedaço de, por exem­

em uma espécie de bloco de mármore gigante, no qual é ne­ plo, argila, veremos que aquela, ao contrário desta, possui

cessário esculpir a figura desejada. A língua tornou-se o ma­ uma significação, isto é, ela significa um objeto, urna ação,

terial da criação literária. um acontecimento ou uma vivência psíquica. No entanto, um

No entanto, o mármore, a argila e as cores que os escul­ pedaço de argila tornado isoladamente nada significa. Ele re­

tores e pintores utilizam como material se distinguem do ma­ cebe uma ou outra significação somente no todo da obra, ao

terial verbal por sua essência. se tornar a mão de urna estátua ou o martelo que essa mão

O escultor pode dar ao mármore ou à argila qualquer segura etc. Consequentemente, o escritor é sempre obrigado

forma, pode mudar a seu gosto suas menores partes, obede­ a lidar não com um material físico bruto, mas com partes

cendo a sua fantasia criativa ou um plano pensado nos míni­ já trabalhadas antes dele, isto é, com elementos linguísticos

mos detalhes. Entretanto, a palavra não possui essa flexibili­ prontos, com os quais ele pode construir o todo somente ao

dade e maleabilidade exterior. Ela não pode ser nem alonga­ considerar todas as regras e leis que não podem ser ignora­

da, nem encurtada, tampouco é possível atribuir-lhe, por von­ das na organização desse material verbal.

tade própria, urna significação inadequada, totalmente ou­ Contudo, é possível que o escritor tenha condição de

tra. Ao participar de uma conversa animada, não reparamos mudar ou criar novas regras e leis linguísticas? Na Rússia dos

em absoluto no caráter obrigatório e rigoroso das regras da tsares e não muito antes da Revolução de Outubro, existiram

língua. Sem qualquer reflexão, perguntamos: "Corno está o "poetas" que tentaram inventar uma nova língua e escreve­

tempo h o j e ? " . Nem passa pela nossa cabeça falar: "Para co­ ram os seguintes versos:
4
rno está com tempos h o j e ? " . Neste caso, não nos irão com­

preender e pensarão que estamos brincando ou ficamos Iou- "Aos rnudecidos e mudados

Conclarna o exigente exestino

E com o ribombo novo das espadas


4
Volóchinov refaz a primeira pergunta ("Kakáia segódnia pogó­
Responderá a ele o futurino."
da?") empregando os casos da língua russa de um modo totalmente incor­

reto ("Kakómu segódniachnikh pogódami?"), isto é, de um modo que ne­


E ainda melhor:
nhum falante nativo empregaria, com o propósito de evidenciar a gramá­

tica internalizada dos falantes. (N. da T.)

236 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 237


4

Go osneg kaid referências pouco produtivas à intervenção da "força divi­

Mr batulba n a " . Entretanto, as exigências da verdadeira ciência triunfa­

inu auk el ram e, nos dias de hoje, já podemos levantar a cortina dos

Ver tum dakh milênios e espiar, ao menos com o canto do olho, aqueles
5
Guiz" tempos em que foi criada a linguagem humana.

O que então se verifica? Não foi de modo sobrenatural,

Para que o escritor não tenha o mesmo destino desses nem por meio da "invenção" consciente e intencional (como

poetas, para que ele não entre na história como uma piada, pensavam no século XVIII) que a linguagem/língua surgiu na

mas ocupe nela uma posição bastante séria e digna, é preciso sociedade humana.

compreender o que é a língua e a linguagem, as quais servem Ainda há pouco tempo, as teorias mais difundidas sobre

de material tão especial e peculiar para a criação literária. a origem da linguagem/língua foram as seguintes: 1 ) a teoria

Se não compreendermos a essência da língua e da lin­ da onomatopeia e 2) a teoria das interjeições.

guagem, se não compreendermos seu lugar e seu papel na vi­ O primeiro grupo de teorias concentra-se fundamental­

da social, jamais saberemos abordar corretamente aquilo que mente na afirmação de que o homem tentou reproduzir os

chamamos de estilística do discurso literário, isto é, a técni­ sons emitidos pelos animais, ou os que acompanhavam al­

ca de construção do objeto literário, que deve ser dominada, guns fenômenos da natureza ( os uivos do vento, o murmú­

sem exceção, por todos os escritores desejosos de se tornar rio de uma nascente, o estrondo do trovão etc. ) . S egundo es­

mestres em sua arte, e não amadores e diletantes superficiais. sa teoria, semelhantes onomatopeias tornaram - se significa­

Mas o que é a linguagem/língua? ções naturais dos objetos que imitavam tais sons, isto é, tor­

Todo fenômeno pode ser melhor compreendido se ob­ n aram - se palavras. Entretanto, uma vez que dess e modo se­

servado no processo do seu surgimento e desenvolvimento. ria possível explicar uma quantidade muito pequena de p a­

Infelizmente, em relação à língua, isso se torna mais comple­ lavras , eles apontavam que o elemento de imitação podia

xo, pelo fato de os seus primórdios e primeiras etapas de de­ consistir não no próprio som, mas no movimento dos órgãos

senvolvimento estarem a uma distância do nosso tempo de da fala ( sobretudo da língua ), ou se j a, uma espécie de gesto

pelo menos cem mil anos. Apesar disso, o desejo de imaginar sonoro .

o surgimento da língua é bastante antigo. No entanto, as pes­ O segundo grupo de teorias tentava provar que os pri­

soas tentaram compensar a sua falta de conhecimento com meiros sons da fala humana foram exclamações ( inter j eiç õ es )

lendas "religiosas" e substituíram o estudo científico pelas involuntárias ( ou , como costumam chamá-los, " re fl etores")

que o homem emitia sob o efeito de im press õ es fortes causa­

d as por diferentes ob j etos. Ao se repetirem, essas exclama­

5
O primeiro poema, "Nemótitchei i niémitchei . . . ", é de 1 9 1 3 e foi ções tornaram - se sinais constantes desses objetos , ou se j a ,

escrito por Velimir Khliébnikov ( 1 8 8 5 - 1 9 2 2 ) . O segundo, também de


transformaram-se em palavras.
1 9 1 3 , foi escrito por Aleksei Krutchônikh ( 1 8 8 6 - 1 9 6 8 ) . Os dois poetas são
A m b os os grupos de teorias se mostraram igualmente
considerados fundadores do futurismo russo e criadores da chamada "lín­
inconsistentes. E m b ora às vezes dessem uma b oa explicação
gua transmental" (zaum), uma invenção com o p r o p ó s i r o de transgredir

as regras lexicais, gramaticais e semânticas da língua russa. (N. da T.) para a origem de palavras i s oladas ( aliás , muito poucas ) de

238 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 239


4

uma ou outra língua, essas teorias não foram capazes d e r e s ­ Independentemente de Engels, seu contemporâneo, o

ponder nem a questão sobre a essência real da linguagem/lín­ cientista alemão Ludwig Noiré, também concluiu que

gua como fenômeno social, tampouco outras questões extre­

mamente essenciais. "A linguagem e a razão resultaram de uma ativida­

No entanto, já em 1 8 7 6 , Engels deu uma indicação ge­ de conjunta, direcionada para um objetivo comum,

nial sobre a direção na qual se deve procurar a resposta so­ do trabalho primitivo de nossos antepassados."

bre a origem da linguagem/língua:

Esses pensamentos receberam uma confirmação espe­

"Nossos antepassados macacos eram animais cial, linguística," nos trabalhos de nosso cientista, o acadê­
8
sociais; é evidente que é impossível tirar conclusões mico Nikolai Marr.

sobre a origem do homem, o mais social dos ani­ Os seus estudos, comumente chamados de "teoria jafé­

mais, a partir dos mais próximos antepassados não tica", estabelecem com completa certeza que

sociais. O domínio sobre a natureza, que começou

junto com o desenvolvimento das mãos e do traba­ " [ . . . ] a linguagem/língua formou-se no decorrer de

lho, ampliava a cada novo passo o horizonte do ho­ muitos milênios por meio do instinto social em

mem. Nos objetos da natureza, o homem constan­ massa, que se constituiu nas premissas das necessi­

temente descobria propriedades novas, até então dades econômicas e da organização da economia."?

desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento

do trabalho necessariamente contribuía para uma Certamente, a língua em seus estágios antigos não era

união mais estreita entre os membros da sociedade, em nada parecida com as línguas contemporâneas, nem mes-

uma vez que graças a ela tornaram-se mais frequen­

tes os casos de apoio mútuo, de atividade conjun­

ta, e passou a ser mais clara a utilidade dessa ativi­


pel do trabalho no processo de transformação do macaco em homem"],
dade conjunta para cada membro individual. Em
Arkhív Márksa i Éngelsa [Arquivo Marx e Engels], vol. II, p. 9 3 .
suma, as pessoas em formação chegaram à necessi­
7
A linguística é a ciência da linguagem ( da palavra la tina "língua",
dade de falar algo uns para os outros. A necessida­
que em rqsso se lê "lingva" que significa iazík [língua]).

de criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do


8
Nikolai Iákovlevitch Marr ( 1 8 6 5 - 1 9 3 4 ) , linguista, orientalista, ar­
macaco transformava-se lenta, mas firmemente, por
queólogo e especialista em línguas caucasianas. Nos anos 1920, propôs

meio das modulações cada vez mais fortes, e os ór­ uma teoria da origem das línguas, das línguas pré-históricas e da relação

gãos da boca aprendiam aos poucos a pronunciar entre pensamento e linguagem, conhecida como teoria jafética, jafetolo­

6 gia ou marrismo. Marr propôs ainda que a língua é uma superestrutura


um som articulado após o outro. "
situada acima da base econômica, tornando-se com isso um dos mais in­

fluentes linguistas da União Soviética entre os anos 1920 e 1 9 5 0 . Hoje sua

teoria é criticada por ser pouco científica. (N. da T.)

9
Nikolai Marr, Po etâpam razuitiia iafetítcheskoi teórii [As etapas
6
Engels, "Rol trudá v protsésse otcheloviétchenia obeziáni" [ " O pa- de desenvolvimento da teoria jafética], 1926, p. 2 8 .

240 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 241


mo com as línguas muito mais antigas. Gerada no processo nora quanto essa arte triádica têm um fundamento comum:

de luta obstinada do homem com a natureza, luta na qual o as ações mágicas que, do ponto de vista da consciência obs­

homem estava armado apenas de suas mãos fortes e de ins­ cura e não desenvolvida do homem daquele tempo, foram

trumentos de pedra grosseiramente talhados, a língua percor­ uma condição necessária para o êxito da sua atividade pro­

re o mesmo longo caminho de desenvolvimento pelo qual dutiva e por isso sempre acompanharam todos os processos

passou a cultura material e técnico-econômica. do trabalho coletivo. Foi nessa ação mágica complexa, com­

Segundo a suposição do acadêmico N. Marr, ainda an­ posta tanto por movimentos mágicos da mão e de todo o cor­

tes de passar para a fala sonora e articulada, a sociedade hu­ po, quanto por gritos mágicos, os quais desenvolveram aos

mana - a sociedade dos grupos de caça - tinha que criar poucos os órgãos da fala, que teve início a linguagem sono­

um meio mais acessível e fácil de comunicação: a linguagem ra articulada.

dos gestos e das expressões faciais ( a chamada linguagem li­ Não esqueçamos que o rito mágico para o homem da

near ou manual). Idade da Pedra foi um ato econôrnico, uma forma de ação

Muitos milênios se passaram antes que essa linguagem sobre a natureza, por meio do qual ela deveria dar ao homem

linear, que servia de fala cotidiana, se tornasse complexa, o bem mais importante e então praticamente o único: o ali­

dando origem à linguagem sonora, na linguagem da magia, mento.l" Desse modo, os elementos primários da fala hu­

na linguagem do culto mágico. mana sonora, assim como da arte, foram os elementos do

As pessoas da Idade da Pedra, que conheciam os modos processo do trabalho, que estavam ligados às necessidades

mais simples de obtenção de alimento - a colheita de ervas econômicas e eram resultado da organização produtiva da

comestíveis e a caça de animais selvagens - satisfizeram-se sociedade.

por muito tempo com essa linguagem, que convencionalmen­ Foi justamente essa organização, ainda extremamente

te pode ser chamada de linguagem manual, pois os movimen­ primitiva, mas que aos poucos se tornava complexa, que ge­

tos das mãos desempenhavam nela um papel central. É cla­ rou (e sofreu sua influência inversa) os estágios consequentes

ro que os sons podiam acompanhar esses "enunciados" ges­ tanto do desenvolvimento da compreensão do mundo circun­

tuais e de expressão facial, mas eles ainda não eram articula­ dante quanto das relações com ele, isto é, da ideologia hu­

dos e se redu ziam mais provavelmente a gritos de emoção, is­ mana em formação.11

to é, de um homem que está em um estado de forte agitação. É chamado de mágico o estágio da cultura humana em

Desse modo, o surgimento de uma fala articulada não

foi causado pela necessidade de comunicação, pois havia uma

10
linguagem gestual e de expressões faciais ( a linguagem ma­ O leitor encontrará no capítulo correspondente do livro de Vla­

nual), mais simples e cotidiana. O surgimento de uma lingua­ dímir Nikólski, Ótcherki pervobítnoi kultúri [Ensaio sobre a cultura pri­

mitiva], mais detalhes sobre a magia primitiva e seus fundamentos econô­


gem sonora deve ser buscado naquelas condições especiais
micos.
da vida laboral do homem primitivo, às quais também re­
11
Entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações
montam à arte, que por muito tempo foi uma combinação
no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo
inseparável de três elementos: dança, canto e música (toca­
homem na palavra, no desenho artístico e técnico ou em alguma outra for­
da com instrumentos muito simples). Tanto a linguagem so- ma sígnica.

242 Valentin Volóchinov O que é a linguagemllíngua? 243


..

A primeira palavra da humanidade significava aquilo


que surgiu a linguagem sonora. Aqui foram elaborados os

elementos fundamentais da língua, que estão na base de qual­ que abriu para nós o caminho à civilização, aquilo a que de­

quer fala sonora em geral. Ainda não eram palavras no nos­ vemos tanto o nosso primeiro instrumento de pedra, quanto

so sentido, não eram sinais sonoros, nem signos de qualquer a primeira língua e os primeiros vislumbres da razão.

fenômeno ou grupo de fenômenos; não, eram grupos de sons Essa palavra foi:

determinados, que acompanhavam rituais mágicos, uma for­ "Mão" - a mão do homem trabalhador.

ma de processo de trabalho social. Em seguida, a palavra "mão" se fundiu com uma série

No início, como já sabemos, eram gritos de caráter má­ de significações ligadas ao culto, principalmente com os gru­

gico, cuja repetição desenvolvia as cordas vocálicas e outros pos " c é u + á g u a + fogo".

órgãos da pronúncia. E então foi preciso apenas mais um pas­ Esses grupos de significações se cindiram em novos gru­

so para que esses complexos sonoros se tornassem palavras. pos, por exemplo: " á g u a + céu" receberá a significação "nu­

Bastava ao homem ser obrigado pelas necessidades econômi­ v e m + fumaça+ trevas"; "fogo+ céu" passou a significar "luz

cas a entender ou compreender a possibilidade de dar signi­ + brilho + r a i o " , e assim por diante. As palavras sonoras

ficado, por meio desse complexo sonoro, a ao menos um gru­ eram muito poucas, enquanto o conjunto de objetos a entrar

po de fenômenos ou objetos, para que tivesse início o desen­ no horizonte intelectual do homem aumentava cada vez mais,

volvimento livre da fala sonora, ou seja, a ampliação do con­ graças ao desenvolvimento da atividade econômica. Houve

junto de objetos e fenômenos significados por cada um dos uma transferência da significação de um fenômeno comple­

complexos ou junções sonoras existentes. xo, por exemplo, o "céu", para o que seriam os seus compo­

Aqui, junto com a passagem gradual para a criação de nentes, a saber: o sol, as estrelas e até os pássaros, que seriam
12
gado e a agricultura, já entramos em novos estágios do de­ chamados de "filhos do céu", se traduzíssemos essa pala­

senvolvimento linguístico: o totêmico (um dos seus traços vra para a nossa língua.

ideológicos é a deificação dos animais, das plantas, e assim No entanto, esses complexos sonoros jamais poderiam

por diante, como progenitores da tribo) e o cósmico (a deifi­ ter se transformado em uma língua desenvolvida se, junto

cação do céu e dos fenômenos celestes). Agora cada um dos com as novas épocas de evolução da atividade econômica, não

complexos sonoros é empregado de modo separado, signifi­ tivesse surgido aquele novo fenômeno que determinou odes­

cando, entretanto, não um único fenômeno, mas um grupo tino da fala humana: o processo de cruzamento linguístico.

inteiro deles que, a nosso ver, quase não tinham nenhuma re­ É completamente compreensível que um homem, viven­

lação entre si. O complexo sonoro inicial tornou-se uma pa­ do isolado, não só não criaria a linguagem, mas sequer uma

lavra dotada de muitos significados, uma palavra que no iní­ cultura.

cio era empregada em todas as significações conhecidas pela Já na própria base do desenvolvimento da cultura hu­

humanidade. É evidente que os primeiros objetos que rece­ mana - na atividade laboral- encontra-se a necessidade de

beram significação verbal foram os que estavam mais próxi­

mos da atividade econômica do homem e, por conseguinte,


12 No original, Volóchinov emprega um neologismo, nebessiáta,

eram objetos de culto e de magia, pois a magia e o trabalho composto pelas palavras russas nebessá (céus) e rebiáta (garotada, crian­

ainda estavam fundidos em sua consciência vaga. çada). (N. da T.)

245
244 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua?
união em um grupo, em uma coletividade, criada por meio jugados. Contudo, as duas tribos tinham suas próprias desig­

do cruzamento inicial. Junto com o cruzamento de grupos nações sagradas, os nomes dos totens (animais ou plantas

humanos inteiros (os exteriores: tribais, estatais; os interio­ deificados etc.) ou das divindades da tribo. É claro que pos­

res: profissionais, de classe, de estratos), ocorreu o cruzamen­ teriormente a designação da tribo vencedora receberá a sig­

to também de elementos linguísticos, que eram diferentes em nificação de "bondosa", " b o a " , enquanto que a da vencida

cada grupo. Como resultado, o vocabulário se enriqueceu e significará "malvada", "ruim". A mesma distinção também

surgiram palavras resultantes de cruzamentos, isto é, pala­ passará para a designação das classes. Assim, a designação

vras compostas de alguns elementos fundamentais. Entretan­ da tribo dos pelasgos, que outrora foi poderosa, mas depois

to, graças ao caráter limitado dos sons, alguns elementos des­ foi subjugada pelos romanos, passou a designar, na Roma

sas palavras foram reduzidos ou diminuídos. Essas combina­ antiga, os plebeus, pessoas de classe inferior; do mesmo mo­

ções resultantes de uma espécie de supressão eram percebi­ do, a designação da tribo caucasiana dos "cólquios", glori­

das como uma palavra inteiramente nova, que pode servir de ficada nas lendas da Grécia antiga, recebeu, depois de escra­

base para outras formações de palavras. vizada, a significação de "camponeses" ou "escravos", na

A etapa seguinte do desenvolvimento da fala já é a com­ Geórgia. Assim os "termos (designações) tribais, inclusive os

binação de palavras em frases, inicialmente por um meio sim­ totêmicos, receberam uma reavaliação, isto é, foram avalia­

ples, sem que a sua forma fosse alterada; depois, mediante a dos segundo a posição social das tribos que se cruzaram no

junção de partículas lexicais específicas para determinar as processo de formação de novos tipos étnicos (tribais) dos po­

inter-relações de palavras na frase; e, finalmente, por inter­ vos, e que se transformaram em classes. Em decorrência dis­

médio da alteração da própria forma da palavra (como, por s o [ . . . ], termos sociais e não apenas os de classe representam
13
exemplo, a declinação e a conjugação na nossa língua). as antigas designações tribais" .

Tudo o que foi dito anteriormente esclarece o papel de­ Como exemplo do reflexo das relações sociais na gra­

sempenhado pela organização social do trabalho para o sur­ mática, é possível citar a formação das classes de palavras.

gimento e o desenvolvimento da linguagem/língua. Podemos Nesse sentido, é especialmente ilustrativa a formação dos

observar essa relação não apenas no campo das significações pronomes, que surgiram junto com a noção de propriedade.

das palavras (na assim chamada semântica), mas também no Como no início a propriedade não era pessoal, mas da tribo

campo da gramática. ou da linhagem, os pronomes referiam uma pessoa coletiva,

Em primeiro lugar, daremos um exemplo de reflexo se­ uma tribo e o seu totem (ou, um pouco mais tarde, a divin­

mântico (no campo da significação da palavra) da ordem so­ dade, o guardião dos direitos de propriedade do grupo social

cioeconômica. em questão).

Suponhamos que conflitos resultaram na submissão com­ Apenas depois, já com o surgimento da propriedade pes­

pleta de uma tribo por outra, que também ocupou o territó­ soal, apareceu a primeira pessoa do singular ( " e u " ) e, em

rio (a terra) da tribo vencida. Então, nesse grupo de pessoas oposição a ela, a segunda e a terceira pessoas ("tu" e " e l e " ) .

que se formou mediante o cruzamento, a tribo vencedora se­

ria a classe dominante, aquela que se beneficiou com o tra­ 13 N. Marr, Po etápam razvítiia iafetítcheskoi teórii [As etapas de de­

balho gratuito (escravo ou semilivre) dos seus inimigos sub- senvolvimento da teoria jafética], 1926, p. 2 1 0 .

247
246 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua?

1
O que foi exposto é suficiente para convencermo-nos de dois mundos com o levantar do primeiro instrumento criado

que a linguagem não é uma dádiva divina ou da natureza. pelas mãos do homem: o levantar de um machado de pedra.

Ela é produto da atividade coletiva humana, e todos os seus Foi preciso fortalecer essa nova posição de "animal bípede

elementos refletem a organização tanto econômica quanto que produz instrumentos", o que só foi possível por meio

sociopolitica da sociedade que a gerou. da mais estreita coesão e inter-relação dos grupos humanos.

Nessa luta terrível pela existência, sobre a qual hoje nem te­

mos uma ideia suficientemente clara, as questões de obten­

2. Ü PAPEL DA LINGUAGEM/LÍNGUA ção coletiva de alimentos, da defesa coletiva contra os ani­

NA VIDA SOCIAL mais selvagens etc. foram questões relacionadas à própria

existência da humanidade. No entanto, a atividade coletiva

No entanto, existe uma lacuna essencial na nossa con­ só foi possível mediante uma concordância mínima de ações

clusão. Não abordamos em absoluto a relação evidente en­ e uma ideia mínima sobre um objetivo comum. Para isso, foi

tre a língua e o pensamento social. Contudo, falaremos so­ necessário que as pessoas pudessem compreender umas às

bre isso um pouco mais adiante. Agora devemos colocar ou­ outras. Essa tarefa já fora cumprida pela linguagem dos ges­

tra questão. tos e da expressão facial, o meio mais antigo da comunica­

Se a linguagem/língua, como vimos, é um produto da vi­ ção humana. Contudo, essa comunicação não somente con­

da social, sua criação e reflexo, qual seria o papel que ela, tribuiu para a organização do trabalho, mas também possi­

por sua vez, desempenha no processo de desenvolvimento bilitou a organização do pensamento social, da consciência

dessa vida social? Em outras palavras, será que a linguagem/ social. A psiquê humana teve que realizar um trabalho men­

língua, uma espécie de superestrutura, acima das relações so­ tal que, embora fosse elementar, era dificílimo para a época.

cioeconômicas, exerce uma influência inversa sobre essas re­ Para a realização do fato da comunicação discursiva foi ne­

lações que a geraram? cessário que aquele sentido atribuído ao movimento das

Essa questão é muito mais simples do que aquela sobre mãos de uma pessoa fosse compreensível para outra pessoa,

a origem da linguagem/língua e por isso seremos muito bre­ que esse outro pudesse estabelecer (graças à experiência an­

ves. Para qualquer consciência imparcial, está claro o enor­ terior) uma relação necessária entre esse movimento e aque­

me papel que a linguagem/língua deve desempenhar na orga­ le objeto ou acontecimento no lugar do qual ele foi usado.

nização da vida social. Em outras palavras, o homem deve compreender esse mo­

Já a primeira linguagem da humanidade, a mais primi­ vimento como dotado de certa significação, ou seja, com­

tiva - linear ou manual - que chegou até os nossos dias na preendê-lo como um signo que expressa algo. Entretanto, is­

qualidade de meio auxiliar para a fala sonora (a gesticulação so ainda é pouco. O signo expresso pela mão não deve ser

habitual das mãos e a expressão facial durante a conversa), um signo ocasional e passageiro. Apenas ao se tornar um sig­

essa primeira linguagem marca uma ruptura abrupta com o no estável ele pode entrar no horizonte de um grupo social,

mundo da natureza e marca os primórdios da criação de um ser necessário a ele e se transformar em um valor social. Com

novo mundo, do mundo do homem social, do mundo da his­ o aumento e a alteração da organização econômica, esse sig­

tória social. Não bastava colocar uma fronteira entre esses no, é claro, mudará constantemente, porém essas mudanças

248 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 249


serão quase imperceptíveis para aquela geração de pessoas Na história posterior da humanidade, com o surgimen­

que o empregam. to da propriedade particular e com a formação do Estado,

No entanto, tudo o que foi dito por nós é apenas um la­ foi necessária a fixação jurídica das relações de propriedade,

do do processo de comunicação discursiva entre as pessoas, expressa pela linguagem oficial. Surgiram as fórmulas jurídi­

processo esse que não poderia ser realizado se o signo ges­ cas, ainda estreitamente ligadas às fórmulas religiosas. É co­

tual (e posteriormente também verbal) permanecesse apenas mo se a palavra consagrasse com sua autoridade mágica do

um signo exterior. Ele deve se tornar um signo de utilização passado as leis que favoreciam a minoria governante e que

interior, tornar-se um discurso interior, e somente então será propiciavam a servidão da maioria subjugada. Certamente,

criada a segunda (além do movimento de sinalizar) condição sem a língua seria impensável aquele sistema legislativo de­

necessária para a comunicação discursiva: a compreensão do senvolvido que já encontramos em povos mais antigos: os su­

signo e a resposta a ele. mérios, os egípcios e assim por diante.

No entanto, não só as leis jurídicas escritas, mas tam­

bém as leis morais não escritas foram criadas, assimiladas e

3. LfNGUA E CLASSE tornaram-se uma força coercitiva somente com o surgimen­

to da fala humana.

E assim a língua torna-se uma condição necessária para Por fim, é óbvio que sem a ajuda da palavra não teriam

a organização laboral das pessoas. Contudo, com o desen­ surgido a ciência, a literatura etc., em suma, nenhuma cultu­

volvimento da atividade. econômica, ocorre, nessa organiza­ ra poderia ter existido se a humanidade tivesse sido privada

ção laboral, a separação de personalidades isoladas que pos­ da possibilidade da comunicação social, cuja forma materia­

suem outras obrigações e outros direitos. Isso está ligado ao lizada é a nossa língua.

surgimento da fala sonora, que por muito tempo permane­

ceu sagrada, mágica e, portanto, secreta. Gradativamente, se­

pararam-se os guardiões dessa fala secreta, que eram um gru­ 4. LINGUAGEM/LÍNGUA E CONSCIÊNCIA

po de sacerdotes ou xamãs. Eles eram cercados por respeito

e veneração especiais, pois eram "oniscientes" e "onipoten­ Entretanto, tudo isso é uma espécie de aspecto exterior

t e s " . Dominavam as palavras mágicas e misteriosas, das do papel desempenhado pela língua na vida social, aspecto que

quais, do ponto de vista do homem primitivo, dependiam é o primeiro a ser percebido e o mais fácil de ser estudado.

tanto a colheita bem-sucedida de plantas comestíveis e a ca­ Incomparavelmente mais complexa é a questão da in­

ça feliz, quanto a eliminação dos inimigos e o bem-estar ge­ fluência da linguagem/língua sobre aqueles fenômenos da vi­

ral da tribo! Assim, no próprio alvorecer da história huma­ da social que levam o nome de "consciência de classe", "psi­

na, a língua involuntariamente também contribuiu para os cologia social", "ideologia social", e assim por diante. Jun­
14
princípios da divisão da sociedade em classes e estratos. to a isso deve surgir de modo inevitável uma nova questão

estreitamente relacionada com a anterior: qual significação

14
tem a linguagem para a consciência ( o psiquismo) individual
Abordaremos a questão da formação da linguagem "literária",

que é a linguagem da classe dominante, em um ensaio posterior. e pessoal do homem, para a formação da sua vida "interior",

250 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 251


das suas "vivências", e para a expressão dessa vida e dessas crescimento da língua: a quantidade de palavras, expressões

vivências? etc. Será que aquele homem, com sua consciência opaca, que

Todo esse conjunto de questões tem uma importância acabara de despertar, podia ser dono de uma língua rica e de­

primordial para todos que lidam com a língua, tanto como senvolvida, com um enorme e diversificado vocabulário, fra­

material, quanto como instrumento de criação. Começamos ses construídas de modo preciso e expressões certeiras? É cla­

este ensaio justamente com a representação de um estado do ro que não. Contudo, é justamente aqui, graças à obviedade

escritor que costuma ser chamado de tormento da palavra. aparente, que caímos habitualmente no erro, totalmente se­

No entanto, normalmente atribuímos esses "tormentos melhante àquele que a humanidade viveu antes da famosa
15
da palavra" à falta delas para "expressar" nossas vivências, descoberta de Copérnico. Não seria "evidente" que todos

ou à impotência das palavras para transmitir tudo o que quer os dias o Sol "se levanta" e "se põe" e que, por conseguinte,

"falar a alma". ele gira em torno da Terra? No entanto, verifica-se que essa

Nosso objetivo é justamente esclarecer se essas afirma­ "evidência" é só um erro de nossos sentidos, pois a Terra gi­

ções correspondem à realidade, e descobrir se de fato os "tor­ ra em torno do Sol e não o contrário. O mesmo acontece com

mentos da palavra" surgem apenas em consequência de uma a questão da inter-relação entre a linguagem e a consciência.

"falta" de palavras, ou da "impotência" destas. Antes de tudo, tentemos definir o seguinte: o que é nos­

Vimos que as condições da luta coletiva com a nature­ sa consciência?

za, ocorrida na forma do processo mágico-econômico cole­ Fechemos os olhos e comecemos a refletir sobre a ques­

tivo, ocasionaram o surgimento, primeiramente, da fala da tão. A primeira coisa que percebemos é um fluxo de palavras,

expressão facial e cotidiana, e depois da sonora ( de culto). às vezes unidas em determinadas frases, porém quase sempre

Com o passar do tempo, a fala sonora do culto torna-se pa­ correndo em uma alternância ininterrupta de fragmentos de

trimônio também da vida cotidiana, ou seja, da comunica­ pensamentos, de expressões habituais, de impressões conjun­

ção cotidiana diária. Ela se desenvolveu graças a todo tipo tas gerais de objetos ou fenômenos da vida. E essa ciranda

de cruzamentos, causados pelo aumento posterior da ativi­ verbal multicor se movimenta o tempo todo, ora se afastan­

dade econômica do homem. Contudo, desde os primeiros es­ do, ora se aproximando do seu tema principal: daquela ques­

tágios de sua formação, a comunicação verbal entre as pes­ tão sobre a qual tentamos refletir. Contudo, agora tentemos

soas esteve inseparavelmente ligada a outras formas da co­ abstrair de quaisquer palavras.

municação social. Ela surgiu no terreno comum da comuni­ O que podemos observar em nós mesmos?

cação durante a produção. A comunicação verbal sempre es­

tá ligada, como veremos adiante, às condições da vida real,

às ações (atos) reais do homem: de trabalho, de culto (ri­

tuais), lúdicos e de outros tipos. Contudo, o que estava acon­


15
tecendo com a consciência do homem? Será que ela se desen­ Nicolau Copérnico ( 14 73-1543) foi o primeiro dos astrônomos

que provou que o Sol enquanto estrela central é imóvel e que em torno de­
volvia independentemente da comunicação verbal, ou havia
le orbitam todos os planetas, inclusive a Terra. Essa discordância com a
uma relação entre elas, e qual era essa relação? Pode parecer
doutrina bíblica provocou uma resistência tenaz da parte do clero, mas a
que justamente o crescimento da consciência determina o verdade científica foi mais forte do que a ignorância religiosa.

252 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 253


l
É possível que surjam algumas representações visuais ou 5. "VIVÊNCIA" E "EXPRESSÃO"

sonoras, fragmentos de imagens da natureza, outrora vistos,

ou pedaços de melodias já ouvidas. Abstraiamo-nos também Tomemos uma expressão verbal muito simples de algu­

disso. É bem provável que sintamos os batimentos do cora­ ma necessidade, por exemplo, a fome. Seria possível uma pu­

ção, ou o fluxo do sangue nos ouvidos, ou que surjam repre­ ra "expressão" dessa necessidade, não expressa por nenhum

sentações ligadas ao funcionamento dos nossos músculos, discurso interior ou exterior ou, melhor dizendo, não refra­
16
as assim chamadas representações "motoras" (de movimen­ tada ideologicamente? É claro que nunca encontraremos

t o ) . Entretanto, se conseguíssemos, por meio de um esforço uma expressão de fome tão pura e livre de todo o social, ou

excepcional da vontade, nos apartar também dessas repre­ seja, uma espécie de voz da própria natureza.

sentações motoras (de movimento), o que restaria da nossa Para se tornar um desejo humano vivido e expresso, to­

consciência? da necessidade natural deve obrigatoriamente passar pelo es­

Nada. tágio da refração ideológica e, por conseguinte, social, seme­

Uma completa não existência, semelhante a um estado lhante a um raio de sol ou de alguma estrela, que pode atin­

de inconsciência ou de sono sem sonhos. gir os nossos olhos apenas ao se refratar inevitavelmente na

E para que retornemos novamente ao estado "conscien­ atmosfera terrestre. O homem não pode falar nenhuma pa­

te", precisaríamos quebrar essas paredes de não existência, lavra se permanecer simplesmente um homem, um indivíduo

deixar entrar toda essa confusão de palavras e representa­ da natureza (biológico), uma espécie de bípede do reino ani­

ções que reveste os nossos pensamentos, desejos e sentimen­ mal. A mais simples expressão de fome - "Quero comer"

tos, e pronunciar, dentro de nós, ao menos uma pequena pa­ - pode ser falada (expressa) somente em uma determinada

lavra: " E u " . língua (mesmo que ela seja linear, ou manual), e será falada
17
Chamemos esse fluxo de palavras que observamos em com determinada entonação e gesticulação. Entretanto,

nós de discurso interior. Ao observarmos atentamente a nós por meio disso nossa expressão elementar da necessidade :fi­

mesmos, veremos que, no final das contas, nenhum ato de siológica e natural inevitavelmente obterá um colorido socio­

consciência pode ocorrer sem ele. Mesmo que surja em nós lógico e histórico: da época, do meio social, da posição de

uma sensação puramente fisiológica, por exemplo, a sensa­ classe do falante e daquele ambiente real e concreto no qual

ção de fome ou de sede, para "sentir" essa sensação e torná­ ocorre o enunciado.

-la consciente é necessário expressá-la de algum modo den­ Tentemos agora começar a remover essas camadas da

tro de si, encarná-la no material do discurso interior. Desde formalização histórica e social da nossa expressão de fome.

o seu princípio, essa expressão de uma necessidade puramen­ Em primeiro lugar, façamos a abstração de uma deter­

te fisiológica é, assim como a própria "vivência", condicio­ minada língua, depois de determinada entonação da voz, do

nada pela existência social, ou seja, por aquele meio no qual

vivemos. 16
Isto é, em algum signo, palavra, gesto, desenho, símbolo etc.

17
A entonação é o aumento ou diminuição do volume da voz, que

expressa nossa relação com o objeto do enunciado (de alegria, de tristeza,

de surpresa, de questionamento etc.)

254 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 255


gesto etc, e então . . . estaremos na situação tola de uma crian­ minto. O aspecto decisivo da questão sempre é: quem tem fo­

ça que tenta encontrar o núcleo da cebola ao retirar dela uma me, com quem e em qual meio, em outras palavras, toda ex­

camada após a outra. Nada sobrará da expressão, assim co­ pressão possui uma orientação social. Consequentemente, a

mo da cebola. expressão é determinada pelos participantes do acontecimen­

Como veremos adiante, não sobrará nada também da to do enunciado, tanto mais os próximos quanto os mais dis­

vivência. tantes. São justamente as inter-relações desses participantes

Atentaremos para como o ambiente social mais próxi­ do acontecimento que formam o enunciado e o obrigam a

mo, no qual o enunciado sobre a fome é pronunciado, deter­ soar de um modo e não de outro: como uma ordem ou uma

mina a forma desse enunciado. solicitação, como a defesa de um direito ou o pedido de um

Por meio da solução dessa questão, lançaremos uma favor, em estilo pomposo ou simples, seguro ou tímido, e as­

ponte temática para o nosso próximo ensaio e, ao mesmo sim por diante.

tempo, prepararemos o material para as conclusões a serem É justamente essa dependência entre o enunciado e as

feitas nele. condições concretas nas quais ele ocorre que tem uma enor­

Em primeiro lugar, para quem o falante declara sua von­ me importância para a nossa pesquisa. Sem a consideração

tade de comer? Se ele falar a uma pessoa que tem a obriga­ dessas condições e relações de classe entre os falantes, nunca

ção de alimentá-lo (a um escravo, um criado etc.), ele expres­ poderemos abordar as questões que consideramos as mais

sará sua vontade ou na forma de uma ordem ríspida e com fundamentais: as de estilística literária. Apenas quando estu­

certa entonação imperativa, ou de forma educada, mas segu­ darmos a relação entre o tipo de comunicação social e a for­

ra da concordância imediata em atender o seu pedido. ma do enunciado, quando percebermos que toda "expres­

Vale a pena pensar o quão multiformes e diversas são são" de uma "vivência" é o documento de um acontecimen­

as formas verbais empregadas pelas pessoas para expressam to social, essas questões de estilística ficarão completamente

sua vontade de comer, a depender de onde se encontram: na claras.

casa dos outros, em casa, em um restaurante, em um refeitó­ Agora teremos pela frente a seguinte tarefa. Vimos que

rio público etc. É grande a distância entre as entonações de a expressão de uma vivência necessita, acima de tudo, da aju­

voz que soam, como uma herança ainda não superada dos da da linguagem/língua, compreendida no sentido mais am­

antigos cultos de magia, na fórmula da prece " O pão nosso plo: como discurso interior e exterior. Sem a linguagem/lín­

de cada dia nos dai hoje" e no grito atrevido de Khlestakóv: gua, sem um enunciado verbal ou mesmo gestual, não há ex­
18
"Tenho muita fome. Não estou brincando!" . pressão, assim como não há expressão sem as suas condições

Desse modo, vemos que a pura sensação fisiológica da sociais reais e sem os seus participantes reais.

fome não pode, por si só, ser expressa, pois esta necessita de Mas, e a vivência? Será que ela também necessita da lin­

uma determinada posição social e histórica do organismo fa- guagem/língua? Será que nossos sentimentos - amor, ódio,

amargura, alegria - necessitam da linguagem/língua e não

podem sem ela atingir a plenitude de sua existência na cons­


18
Citação da peça O inspetor geral, de Gógol (ver Nikolai Gógol,
ciência do homem? Não é difícil responder a essas questões.
Teatro completo, trad. Arlete Cavaliere, São Paulo, Editora 34, 2009, p.

72). (N. da T.) Mesmo a tomada de consciência simples e confusa de uma

256 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 257


sensação (por exemplo, da fome, sem sua expressão exterior) Entretanto, essa reação orgânica ou essas mudanças que

necessita de uma forma ideológica. Toda tomada de consciên­ acontecem no interior do corpo sob ação das condições ex­

cia necessita de um discurso interior, de uma entonação in­ teriores, isto é, da situação de leitura da resenha, são acom­

terior e de um estilo interior embrionário: a tomada de cons­ panhadas necessariamente do fluxo do discurso interior, gra­

ciência da própria fome pode ocorrer como súplica, lamen­ ças ao qual compreendemos tudo o que está acontecendo.

to, raiva, indignação, e assim por diante. Na maioria dos ca­ No exato momento da leitura da resenha, esse fluxo

sos, a expressão exterior só continua e esclarece a direção do pode romper para fora, ou seja, para o discurso exterior, na

discurso interior e as entonações nele contidas. forma de exclamações desconexas de alegria, que depois se

Tentemos fazer uma experiência de auto-observação. transformarão em um discurso mais formalizado e sistemá­

Todos já vivemos uma alegria súbita. Imaginemos que tico. Contudo, não há nenhuma ruptura qualitativa entre a

nos alegramos muito ao lermos uma resenha brilhante e ines­ primeira sensação, do coração acelerado ao ler a resenha há

perada sobre uma obra nossa que nos parecia bem medíocre. muito tempo aguardada, e aquele conjunto de raciocínios

Qual é a força organizadora mais importante dessa nossa vi­ bastante nítidos e claros que talvez comecemos a trocar com

vência? Sem sombra de dúvida, tudo o que se relaciona com alguém dentro de alguns minutos.

o aspecto exterior desse acontecimento: o fato do apareci­ É possível falar que todo o campo da vida interior ou

mento da resenha brilhante em um periódico, após uma lon­ todo o mundo de nossas vivências movimenta-se em algum

ga espera. Chamaremos de situação do acontecimento todas lugar entre o estado fisiológico do organismo e a expressão

as suas condições ou circunstâncias. Adiante iremos utilizar exterior a c a b a d a . Quanto mais esse mundo de vivências

de modo recorrente essa palavra e, por isso, memorizá-la é aproximar-se do seu limite inferior, tanto mais vaga e obs­
19
extremamente importante. cura será a vivência, bem como a sua tomada de consciência

Desse modo, a situação é uma condição necessária da e percepção. No entanto, quanto mais próximo o mundo das

nossa vivência. Do que é formada essa vivência? Em primei­ vivências for do seu limite superior, a expressão acabada, tan­

ro lugar, ocorre dentro de nós toda uma série de fenômenos to mais complexa e ao mesmo tempo clara, rica e completa

relacionados com nosso organismo: a respiração acelerada, será a situação social expressa por esse mundo. O discurso

o batimento mais rápido do coração, os movimentos dos interior é aquela esfera, aquele campo, no qual o organismo

músculos (a vontade de bater palmas), e assim por diante. passa do meio físico para o meio social. Aqui ocorre uma so­

Chamaremos de reação orgânica todo o conjunto desses fe­ ciologização de todas as manifestações e reações orgânicas.

nômenos que são uma espécie de resposta inconsciente do or­ Certamente, nos estágios inferiores do desenvolvimento

ganismo ao acontecimento exterior. a expressão verbal pode ser substituída por outros meios: a

linguagem linear (manual), os gritos inarticulados, mas en­

toados de modo expressivo etc. No entanto, mesmo nesse ca­

so, a relação entre a vivência e a expressão permanece idên­


19
Situação (em francês la situation) significa o conjunto de circuns­
tica. Não existe e não pode existir uma consciência que não
tâncias e condições de algo que acontece. Na maioria das vezes, ela é em­
esteja encarnada no material ideológico da palavra interior,
pregada para significar as inter-relações entre pessoas que agem em cada

momento de uma peça teatral. do gesto, do signo ou do símbolo.

258 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 259


pejam na nossa consciência. Para nós, é mais importante co­

nhecer aquelas camadas superiores da ideologia do cotidia­

6. IDEOLOGIA D O COTIDIANOZO no que são dotadas de um caráter criativo.

Nessas camadas superiores, ocorre a comunicação entre

Convenhamos chamar todo o conjunto das vivências co­ o autor e seus leitores, que é essencial para nós. Aqui forma­

tidianas - que refratam e refletem a existência social - e -se a linguagem/língua comum a eles e sua relação mútua ( ou

das expressões exteriores ligadas diretamente a elas de ideo­ mais precisamente, a orientação mútua). Tanto o autor quan­

logia do cotidiano. A ideologia do cotidiano atribui sentido to o leitor encontram-se em um terreno extraliterário comum:

a cada um dos nossos atos, ações e estados "conscientes". Do podem trabalhar na mesma instituição, participar das mes­

oceano inconstante e mutável da ideologia do cotidiano sur­ mas seções plenárias e reuniões, conversar à mesa de chá, ou­

gem gradativamente numerosas ilhas e continentes de siste­ vir as mesmas conversas, ler os mesmos jornais e livros, as­

mas ideológicos: de ciência, arte, filosofia, opiniões políticas. sistir aos mesmos filmes. Desse modo, aqui compõem-se, for­

No final das contas, esses sistemas são o produto do de­ malizam-se e padronizam-se os seus "mundos interiores". Em

senvolvimento econômico, ou seja, o produto do enriqueci­ outras palavras, ocorre uma espécie de "cruzamento" de seus

mento técnico-econôrnico da sociedade. Por sua vez, esses pontos de vista e opiniões, ou seja, uma espécie de cruzamen­

sistemas exercem uma fortíssima influência inversa sobre a to do discurso interior de um conjunto inteiro de pessoas, se­

ideologia do cotidiano, e frequentemente dão a ela o seu tom. melhante ao cruzamento das línguas tribais sobre o qual tra­

Ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos em formação tamos acima.

conservam o tempo todo a mais viva ligação com a ideolo­

gia do cotidiano, nutrem-se da sua seiva, e fora dela estão

mortos. 7. CRIAÇÃO LITERÁRIA E D I S C U R S O INTERIOR

Não se deve pensar que a ideologia do cotidiano é algo

íntegro, monolítico, homogêneo e semelhante em todas as De tudo o que falamos, está claro que o fenômeno que

suas partes. Devemos distinguir nela todo um conjunto de normalmente chamamos de "individualidade criativa" ex­

camadas que vão das mais inferiores, voláteis e mutáveis, até pressa, na verdade, uma linha firme e constante da orienta­

as mais superiores, que estão em contato direto com os sis­ ção social, isto é, das opiniões, simpatias e antipatias de clas­

temas ideológicos. se de uma pessoa, as quais se constituíram e ganharam for­

Aqui estamos pouco interessados nas camadas inferio­ ma no material do seu discurso interior.

res, isto é, nas vivências, pensamentos e palavras ocasionais A estrutura sociológica do discurso interior nas suas ca­

e vazias, que são confusas, pouco desenvolvidas e que Iam- madas superiores e as orientações sociais nela contidas pre­

determinam, em grande medida, a criação ideológica de um

indivíduo, e em particular a artística, e adquirem nessa cria­


20
A expressão russa jíznennaia ideológuia significa literalmente
ção o seu desenvolvimento e acabamento finais. É extrema­
"ideologia da vida", porém o adjetivo iiznennaia é empregado corrente­
mente importante que levemos isso em conta. É necessário
mente em russo para designar algo corriqueiro, do dia a dia, daí nossa pre­

ferência por "cotidiano". (N. da T.) lembrar que qualquer obra dotada de certa importância e ori-

260 Valentin Volóchinov O que é a linguagem/língua? 261


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ginalidade é criada, em sua essência, ao longo de toda a vida da palavra", a qual ainda abordaremos no futuro, quando

do escritor, pintor ou compositor. Acima de tudo, as orienta­ pesquisarmos mais de perto a estrutura da criação literária e

ções mais fundamentais das suas simpatias e antipatias de o papel da palavra nessa estrutura. Por enquanto, tentaremos

classe, suas opiniões e gostos, que determinam e perpassam representar de modo mais sistemático o caminho da criação

tanto o conteúdo quanto a forma da obra, já foram prepara­ literária.

das e sedimentadas no discurso interior. Elas não podem ser A passagem da vivência, como expressão interior, para

transformadas de uma hora para outra, a fim de atender " o o enunciado realizado no exterior, é o primeiro degrau da

dia de hoje" e suas exigências literárias. É como se elas fos­ criação ideológica, no nosso caso, literária. Nesse estágio, ga­

sem dadas ao escritor; a construção da ideia artística, a esco­ nha força a orientação social que já estava contida ou esbo­

lha do tema, do gênero, e assim por diante, já ocorrem den­ çada como uma possibilidade na vivência. É como se aqui

tro dos seus limites nítidos, ainda que amplos. surgisse e fosse levado em consideração o ouvinte p resumi­

O discurso artístico exterior não pode opor-se às orien­ do, o participante presumido daquele acontecimento que pro­

tações sociais fundamentais do discurso interior. Caso ele ten­ voca a p assage m da expressão interior para a exterior. Ocor­

te se opor, inevitavelmente perderá sua eficiência e força, soa­ re o primeiro teste e a primeira verificação das formas ideo­

rá falso como uma lição bem decorada, pronunciada com lógicas da vivência.

uma entonação opaca, casual e pouco convincente. O estilo No segundo estágio da sua reali z ação, a forma primiti­

do discurso interior deve determinar o estilo do discurso ex­ va do cotidiano já se transforma em um produto ideológico:

terior, apesar de este exercer uma influência inversa sobre em uma obra no sentido pr ó prio da p alavra. Aqui ocorre

aquele. Entre o estilo interior e o exterior, entre o estilo da uma reconstrução essencial de toda a estrutura social da ex­

"alma" e o estilo da obra, existe uma interação, assim como press ã o : o ouvinte (" interior" ) p resumido, es b oçado de mo­

ocorre entre a ideologia do cotidiano e um sistema ideológi­ do impreciso, começa a ser considerado como um ouvinte

co formalizado e fixado: o discurso interior vivifica e nutre real e presente, começa a ser considerado como uma massa

com sua seiva o discurso exterior percebido e criado, mas ao leitora que é organizada de um modo determinado.

mesmo tempo é determinado por ele. O aspecto mais importante desse segundo estágio é o do­

De modo geral, aqui não deveria haver uma ruptura mínio do material, a sua transformação em um objeto de arte

nem um salto. O mesmo grupo social que deu ao indivíduo (estátua, quadro, sinfonia, poema, romance etc .) . No primei­

sua língua, orientou suas opiniões, gostos, avaliações, em ro est ág io , a passa g em do discurso interior para o exterior

uma palavra, determinou o tom e o caráter da sua vida inte­ ainda se realizava diretamente nas profunde z as da ideologia

rior, agora opõe-se a ele como um meio exterior, como uma do cotidiano . É por isso que, nesse caso, não se podia falar

massa leitora, como um conjunto de consumidores e críticos nem da maestria, nem dos procedimentos artísticos etc. No

da sua criação literária. Por isso, quando surgem contradi­ entanto, na literatura, o segundo estágio examinado por nós

ções e conflitos entre os discursos interior e exterior do escri­ entra em contato estreito com o estágio anterior, pois aqui a

tor, eles são causados por motivos sociais específicos. língua é tanto o material quanto o instrumento da criação.

É claro que com essas palavras apenas esboçamos o c a ­ Finalmente, no terceiro e último estágio da sua realiza­

minho para uma solução correta da questão dos "tormentos ção , o produto ideológico deve dominar as condições técni-

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cas exteriores. Ocorre uma reformulação técnica do material. Toda a vida interior do homem é constituída na depen­

A obra deve orientar-se para a redação, a editoração, a tipo­ dência dos meios de sua expressão. Sem o discurso interior

grafia, o mercado editorial etc. não há consciência, assim como não há discurso exterior sem

Em todos esses três estágios, o processo de realização da o interior.

obra literária ocorre no mesmo meio social. Esse processo é A ideologia social, ou seja, os sistemas ideológicos for­

ininterrupto: entre a vivência vaga e a impressão do livro mados, é a ideologia do cotidiano ( " a psicologia social") sis­

ocorre só o detalhamento e a ampliação da estrutura social, tematizada e fixada nos signos exteriores.

que já estava presente nas primeiras manifestações da cons­ A criação literária percorre o seguinte caminho: da vi­

ciência humana. Aqui não há nem pode haver limites preci­ vência ou expressão embrionária ao enunciado expresso no

sos entre os momentos isolados desse processo (entre a cria­ exterior. Tanto na base da vivência quanto na da expressão

ção solitária e o encontro com o público): a vivência interior encontra-se a mesma estrutura social.

desde o início era uma expressão exterior (ainda que de mo­ Qualquer fenômeno da realidade, qualquer situação,

do oculto); e o ouvinte (ainda que presumido) desde o início ao despertar no homem uma reação orgânica, normalmente

era um elemento necessário da sua estrutura. também gera um discurso interior, que facilmente se trans­

forma em um discurso exterior.

O discurso interior e o exterior são igualmente orienta­

8. CONCLUSÕES dos para o "outro", para o "ouvinte". Tanto aquele que pro­

nuncia a palavra quanto o ouvinte são participantes cons­

Agora podemos tirar algumas conclusões. cientes do acontecimento do enunciado e ocupam nele posi­

Mostramos que a linguagem/língua foi gerada em razão ções autônomas.

da necessidade de comunicação dos grupos humanos da Ida­ O enunciado literário, isto é, uma obra literária, é tão

de da Pedra. Primeiramente, a linguagem/língua formou-se sociológico quanto um enunciado cotidiano real.

do material dos gestos e expressões faciais e, em seguida, do Somente por meio de uma pesquisa sociológica estare­

material sonoro. Atendendo às necessidades de comunicação mos mais próximos de esclarecer a essência daqueles fenô­

das pessoas, a linguagem/língua ao mesmo tempo serve co­ menos que estão ligados aos conflitos dos discursos interior

mo uma espécie de instrumento do processo econômico: a e exterior, e que possuem um nome característico: os "tor­

fórmula mágica. Por ser um produto da vida social, e refleti­ mentos da palavra".

-la não somente no campo das significações, mas também no Falaremos sobre isso mais à frente.

das formas gramaticais, a linguagem/língua simultaneamen­

te exerce uma enorme influência inversa sobre o desenvolvi­

mento da vida econômica e sociopolítica.

Com a ajuda da linguagem/língua, criam-se e formam­

-se os sistemas ideológicos (a ciência, a arte, a moral, o direi­

to), e ao mesmo tempo a língua cria e forma a consciência do

homem.

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