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1. Democracia e violência: uma descabida interseção.

Segundo Paulo Sérgio Pinheiro (1991) o controle da violência é um dos


requisitos mais básicos da democracia. Na perspectiva do autor, existem algumas
questões/elementos que definem o legado do autoritarismo havido no Brasil durante
o regime de exceção que prejudicam a qualidade da democracia no território
nacional. Assim define:

A violência ilegal do Estado e a impunidade da violência por


parte dos cidadãos continua depois das transições políticas,
mascarada pela retórica democrática, dissimulando relações
fundamentais de força intocadas. As “instituições da violência”
(Franco Basaglia), como a tortura, o racismo, e as instituições
totais – prisões e manicômios -, os aparelhos repressivos, não
são transformados pelas transições, mesmo depois de
constituições democráticas. Essas instituições, como antes das
transições e depois delas, continuam a ter o mesmo papel
relevante para a reprodução da dominação hierárquica em
sociedades extremamente desiguais, como a brasileira
(PINHEIRO, 1991, p. 45).

A partir das palavras acima evidencia-se que no âmbito das relações diárias,
ou seja, fora da esfera estatal propriamente dita, as relações de poder
tradicionalmente orientadas para práticas autoritárias sobrevivem a despeito do novo
regime e da Constituição Federal de 1988, nesse sentido “a persistência de um nível
extremamente alto de violência ilegal e de conflito violento, [permanecem] sem
intervenção do sistema judiciário na sociedade”. (Grifo nosso). Dessa maneira, o que
o autor defende é o conceito de “autoritarismo socialmente implantado”, que não
termina com o colapso das ditaduras, mas sobrevive às transições e sob novos
governos civis, ao avaliar que esta variável não sofre interferências da periodização
política e das constituições, o que gera uma ideia falsa sobre pacificação da violência
no cenário democrático. Em outro trabalho, Sérgio Pinheiro (1997) afirma:

A violência endêmica – ambientada em um contexto de


profundas desigualdades sociais e em um sistema de relações
sociais bastante assimétricas – não é um fenômeno novo na
região. Piorou nas duas últimas décadas, em parte porque as
políticas econômicas neoliberais aprofundaram as desigualdades
e condenaram milhões de pessoas da América Latina a viverem
na pobreza e na exclusão social. A violência é, no entanto,
também resultado direto da continuidade de uma longa tradição
de práticas autoritárias das elites contra as não-elites, que por
sua vez são reproduzidas entre os mais pobres. A volta ao
constitucionalismo democrático pouco efeito teve na erradicação
dessas práticas autoritárias na sociedade.

Sérgio Adorno (2002) corrobora com as indicações afirmando como ao longo


de séculos a sociedade brasileira, herdeira de relações de dominação fundamentada
em bases patrimoniais e legitimadas pelas relações de grandes proprietários rurais,
suscitou padrões de concentração de riqueza e de desigualdade social como
elementos fundantes do acesso desequilibrado à justiça e suas prerrogativas, de
prejuízos à cidadania plena e à formação de conflitos sociais acentuados. Nesse
contexto, como afirma o autor:

[...] a sociedade brasileira vem conhecendo crescimento das


taxas de violência nas suas mais distintas modalidades: crime
comum, violência fatal conectada com o crime organizado,
graves violações de direitos humanos, explosão de conflitos nas
relações pessoais e intersubjetivas. Em especial, a emergência
do narcotráfico, promovendo a desorganização das formas
tradicionais de socialidade entre as classes populares urbanas,
estimulando o medo das classes médias e altas e enfraquecendo
a capacidade do poder público em aplicar lei e ordem, tem
grande parte de sua responsabilidade na construção do cenário
de insegurança coletiva. (ADORNO, 2002).

As interpretações referidas pelos autores carregam a significância de períodos


anteriores como “raízes” históricas e sociais que explicam a violência atual por meio
do cenário cultural, político e econômico brasileiro, e tendem a apontar como
variáveis as relações de poder tradicionalmente atreladas ao autoritarismo como
elemento da cultura política do país, vinculadas e pautadas na exclusão
socioeconômica e na desigualdade social como tendências da violência urbana.

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