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PARA “ENTERRAR” DE

VEZ O “QUADRADO”
DA BATALHA DE
ALJUBARROTA
de 11 de setembro de 2022

por Ricardo Cabral

ArtigosDestaques homeHistória Militar Antiga, Medieval e Moderna

Hoje é dia 14 de Agosto… Dificilmente haverá, provavelmente, data


mais reconhecida na História do Portugal medievo e tão (re)construída
na memória coletiva do povo português desde o fim de tarde deste
mesmo dia, há 637 anos atrás, quando a hoste do Mestre de Avis –
recentemente aclamado rei de Portugal – venceu o exército luso-
franco-castelhano do seu rival pelo trono português, Juan I de Castela.
De tantos mitos e narrativas imaginadas pela cultura popular,
continuamente partilhadas pela antiga historiografia e inclusive por
programas escolares ainda hoje, um dos mais conhecidos trata-se da
chamada “táctica do quadrado” de Aljubarrota: um dispositivo
supostamente adoptado pela hoste anglo-portuguesa na batalha desse
dia de 14 de Agosto de 1385, não obstante o facto de esta tese ter sido
sobejamente desmentida há várias décadas pelo trabalho arqueológico
de Afonso do Paço e mais tarde a nível historiográfico pelo Professor
João Gouveia Monteiro.
Fixando-nos neste aspecto específico (e tantos outros há ainda para
contar sobre a batalha e tudo o que a rodeou), a disposição dos
portugueses no planalto de São Jorge, onde se desenrolou a batalha
num terreno elevado escolhido pelo Condestável Nuno Álvares Pereira
e sua hoste – pejado de obstáculos naturais (barrancos e cursos de
água que impediam ataques de cavalaria pelos flancos) e artificiais
(escavação de fossos, valas, covas-de-lobo e colocação de abatizes e
paliçadas) que afunilaram o avanço inimigo ao longo do único percurso
possível até chegar à vanguarda lusa – foi pensado dentro de um plano
excepcionalmente bem executado para atrair os franco-castelhanos a
uma armadilha, enganando-os em relação à verdadeira vantagem dessa
mesma posição. Dentro deste plano, seguindo o que eram as práticas
correntes da táctica militar nesse século XIV, e tendo em conta os
constrangimentos de desproporção numérica e o tipo de combatentes –
fortemente relacionado com as origens sociais da hoste portuguesa –
em comparação com o exército do lado contrário, nenhum “quadrado”
faria sequer sentido que fosse aplicado em Aljubarrota, nem nenhuma
da documentação ou cronística da época refere essa disposição. Tendo
em conta as evidências documentais e arqueológicas que veremos em
seguida, esta ideia não passa de uma má interpretação das palavras de
Fernão Lopes quando escreve que “com esta az cujas pontas cerravam
com a vanguarda” para descrever a rectaguarda (sic).
SE NÃO HOUVE “QUADRADO”, COMO SE APRESENTARAM
EM BATALHA?
Visto que os acontecimentos históricos não acontecem no vazio,
também a batalha de Aljubarrota foi um produto do seu tempo,
reproduzindo tácticas semelhantes a outros confrontos europeus de
décadas anteriores que melhor se adaptavam às condicionantes
explicadas acima, equilibrando as forças e até eliminando as vantagens
de um inimigo numericamente superior que fazia uso do choque de
cargas de cavalaria para provocar o pânico e abrir brechas nas linhas
dos oponentes. Tais antecedentes onde o novo paradigma de exércitos
compostos quase exclusivamente por combatentes apeados conseguem
sair vitoriosos contra cargas de cavaleiros pesadamente armados surge
em eventos quase simultâneos, ocorridos em regiões diferentes, e com
nuances entre si nas batalhas de Courtrai (1302), Bannockburn (1314),
Morgarten (1315), Halidon Hill (1333) e especialmente com o
aperfeiçoamento do chamado modelo inglês de combate na Guerra dos
Cem Anos, especificamente em Crécy (1346), Poitiers (1356), e mais
tarde visto pela primeira vez na Península Ibérica em Najera (1367).
Finalmente, Aljubarrota acabou por se tornar em mais um exemplo de
aplicação extremamente bem sucedida desta nova forma de combater.
Tendo em conta a dificuldade de cálculo do número de efectivos em
ambos os exércitos, escolhemos quantificar entre duas ordens de
grandeza a composição de cada linha de batalha para facilitar a
compreensão, não devendo ser tomados como valores absolutos. Assim
sendo, apresentando-se apeada, a hoste portuguesa terá provavelmente
formado uma vanguarda de duas ou três filas compostas por cerca de
600 a 1000 homens de armas e duas alas (uma de cada lado),
ligeiramente avançadas em relação às linhas de vanguarda e
organizadas com besteiros lusos e arqueiros ingleses (maioritariamente
galeses, na verdade) em número a rondar entre os 200 e os 500
homens para cada ala.
O cronista castelhano Lopéz de Ayala refere inclusive como: “los
enemigos tienen sua vanguarda e dos alas juntas en uno, en que han
grand gente de peones e ballesteros.” (Crónica de Don Juan, rey de
Castilla, Año VII.º, cap. 14). Uns 150 a 200 metros atrás encontrava-se
a rectaguarda, um segundo conjunto de linhas liderada pessoalmente
pelo rei D. João I acompanhado da sua guarda pessoal e de umas 700
“lanças”: 2100 a 3500 homens no total, se estimarmos que por cada
“lança” – um homem de armas – estariam presentes em média 3 a 5
efectivos (cavaleiros, homens de armas e escudeiros) no campo de
batalha. Como referido por Ayala, um número elevado de peões
garantia também o contacto entre a vanguarda e as alas, engrossando
cada uma destas unidades. Fernão Lopes confirma esta disposição em
duas linhas paralelas, uma mais avançada com a vanguarda e as alas, e
outra mais recuada para socorrer a primeira linha, caso necessário,
referindo que o rei ordenou a sua “pouca” gente em “duas pequenas
aazes, ca nom auya hij pera mais” (Lopes, CDJ, 2ª Parte, Cap. 38).
Mais para norte destas duas linhas paralelas encontrava-se a
“carriagem”, ou seja, a logística que acompanhava a hoste e lhe
fornecia os mantimentos e a manutenção dos equipamentos. Composta
por pagens, cavalos de reserva, animais de carga e carroças de
transporte dispostos como num “curral”, no dizer do cronista Fernão
Lopes, estas unidades logísticas estavam também bem protegidas por
peões e besteiros, como se comprovou pela resposta vitoriosa dada a
uma tentativa de flanqueamento, já na parte final da batalha. É
também possível que, como executado pelos Ingleses em Crécy e pelos
Hussitas nas batalhas de Sudomer (1420) e Vitkov (1421), as carroças
portuguesas tenham ajudado a fortificar esta posição.
OBJECTIVO: AFUNILAR O INIMIGO E CRIAR O CAOS

Este plano que não só atraia os franco-castelhanos para a peleja antes


que a maior parte do seu exército em marcha chegasse ao local de
batalha (reduzindo assim o efectivo inimigo que poderia estar
preparado para combater) mas que também “afunilava” o ataque,
encurtando num espaço mais facilmente defensável as maiores linhas
de vanguarda inimiga, permitia que a vanguarda portuguesa, menos
numerosa, ganhasse vantagem sobre o inimigo numericamente
superior. E foi nessa mesma ratoeira que os franco-castelhanos caíram,
resultado de uma deficiente análise prévia da posição portuguesa.
Assim, optando a cavalaria francesa – contra o conselho de vários
guerreiros mais experientes – por atacar primeiro e em força,
acabaram recebidos não só por uma chuva de tiros de funda, besta e
arco, mas também pelas covas e fossos que faziam cair os cavalos e
entorpeceram o ataque.

Nesta batalha a “dois tempos”, e após o fracasso desta primeira


tentativa de choque, o corpo principal da hoste castelhana avançou de
seguida, primeiro a cavalo até a uma certa distância da vanguarda
portuguesa e cruzando o resto a pé, depois de se terem apercebido que
o estrangulamento natural do planalto e as armadilhas artificiais não
lhes permitiria continuar nas montadas. A partir daí só piorou para os
castelhanos: obrigados a um combate corpo-a-corpo extremamente
violento, a primeira “onda” de ataque até chegou a romper a vanguarda
lusa, mas esta foi prontamente fechada com o auxílio da rectaguarda,
chegando o rei D. João I a combater no meio da refrega “cõ tal vontade
como se fosse hum simpres cavaleiro desejoso de ganhar fama” (Lopes,
CDJ, 2ª Parte, Cap. 107).
Esta massa humana castelhana acabou então fechada e esmagada entre
a vanguarda portuguesa – que os dizimava com armas de mão como as
fachas, maças ou martelos e os empurrava para as covas e para os
ribeiros – e os seus camaradas atrás que continuavam a avançar. Daí
até se instalar o pânico foi um ápice: vendo que a batalha se
transformava num massacre, os castelhanos começaram a fugir,
procurando salvar as suas vidas no meio de todo aquele caos.
Perseguidos, muitos mais castelhanos seriam literalmente atropelados
e espezinhados na fuga pelos portugueses a cavalo, conforme mostram
os indícios de esmagamento presentes em ossos humanos encontrados
numa vala comum perto do local da batalha, aquando das escavações
arqueológicas lideradas por Afonso do Paço entre 1958 e 1960, ou
mortos pelos populares das aldeias e vilas próximas do local da
batalha, que “caçavam” os combatentes que tinham conseguido
escapar.

Concluindo, o que se depreende dos factos referentes a Aljubarrota é a


de que a execução do plano pensado pelo Condestável Nuno Álvares
Pereira, sem dúvida com influências do modelo antes executado pelos
ingleses na Guerra dos Cem Anos, permitiu uma retumbante vitória
portuguesa nesse fim de tarde quente de Agosto, transformando as
parcas hipóteses de sucesso num verdadeiro “jogo, set e partida” que
permitiu a consolidação de uma nova dinastia no trono português.

PEDRO ALVES
P.S: As investigações mais recentes de Paulo Dias, João Nisa e do nosso
colega administrador António Oliveira, concluíram que uma “lança” na
realidade portuguesa era constituída, quase sempre, apenas por um
único homem de armas, pelo que o valor total de 700 “lanças” que
acompanhavam o rei D. João I poderá mesmo ser a quantidade real de
efectivos em presença.

Publicado originalmente no grupo do Facebook


“Repensando a Idade Média”, em 14 de agosto de 2022, no link:
https://www.facebook.com/profile.php?id=100072822075986

FONTES PRIMÁRIAS

AYALA, Pero Lopéz de. “Cronicas de los reyes de Castilla”, Tomo 2,


Madrid: en la imprenta de Don Antonio de Sancha, 1780. Livraria da
Universidade da Califórnia, Davis. Google Book:
https://books.google.pt/books?id=N_5AAQAAMAAJ…

FROISSART, Jean. “Chronicles of England, France, Spain and the


adjoining countries”, London: Henry G. Bohn, York Street, Covent
Garden, 1857. Link:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6268142h.texteImage

LOPES, Fernão. “Crónica d’el Rei D. João I”, Bibliotheca de clássicos


portugueses, Lisboa : Escriptorio, 1897-1898. Link:
https://purl.pt/416/4/

FONTES BIBLIOGRÁFICAS

– ENCARNAÇÃO, Marcelo A. Flores Reis (2006). “A Guerra Vista do


Chão – (Os conflitos militares em Portugal nos reinados fernandino e
joanino observados numa perspectiva local)”, Dissertação de Mestrado
em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto.

– MONTEIRO, João Gouveia (2010). “A táctica militar na Europa do


século XIV. Princípios, antecedentes e inovações”. Trabalho
apresentado em Colóquio: Nuno Álvares Pereira, Lisboa.

– MONTEIRO, João Gouveia (2009). “Estratégia e risco em


Aljubarrota: a decisão de dar batalha à luz do “paradigma Gillingham”.
Trabalho apresentado em VI Jornadas Luso-Espanholas de História
Medieval, A Guerra e a Sociedade na Idade Média, Coimbra.
– MONTEIRO, João Gouveia (2006). “A Batalha de Aljubarrota. Novas
Interpretações” in Revista de História da Sociedade e da Cultura 6 –
Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de
Coimbra, pp. 105 – 122. PDF: https://digitalis-dsp.uc.pt/…/A
%20Batalha%20de…

– MONTEIRO, João Gouveia (2003). “Aljubarrota 1385 – A Batalha


Real”, TRIBUNA DA HISTÓRIA – Edição de Livros e Revistas, Lisboa.

– MONTEIRO, João Gouveia (2003). “NOVA HISTÓRIA MILITAR DE


PORTUGAL”. Volume I, Direcção de M. Themudo Barata e Nuno
Severiano Teixeira; Coordenação de José Mattoso. Lisboa: Círculo de
Leitores, pp. 237-244.

– MONTEIRO, João Gouveia et al. (2001). “Aljubarrota Revisitada”,


Coimbra, Imprensa da Universidade. PDF:
https://www.academia.edu/37024257/Aljubarrota_Revisitada

– PIRES, Nuno F. Poínhas (2018). “Batalha de Aljubarrota: Novos


elementos interpretativos”, Tese de Doutoramento em História,
Especialidade em Arqueologia na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. PDF:
https://run.unl.pt/handle/10362/63267…

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