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Três formas de escravidão devem ser distinguidas. Mas, antes dessas formas poderem ser
analisadas, é importante definir em primeiro lugar o que é escravidão. A definição comum é que
escravidão é “a propriedade do homem sobre o homem”. Essa definição, contudo, como John Murray
assinalou, é defeituosa; além do mais, casamento e paternidade, bem como os poderes de um Estado
sobre os seus cidadãos, envolve uma propriedade do homem sobre o homem. Mas a definição é
muito ampla, e evita o aspecto básico da escravidão, o trabalho. De acordo com Murray, “escravidão é
a propriedade do homem sobre o trabalho de outro”. Sob certas condições, tal propriedade no trabalho
de outro é apropriada e legítima. “Acaso vamos dizer que é impróprio o credor ter propriedade no
trabalho do devedor até que a dívida seja paga?” Além disso,
Em termos dessa definição, examinemos as três formas de escravidão, em primeiro lugar, na forma
de propriedade privada de escravos.
Na forma bíblica, a escravidão era uma forma de serviço obrigatório. O termo “servo” ou “escravo” era
usado para descrever qualquer pessoa que devesse serviço a outra pessoa, permanente ou
temporariamente. Dessa forma, Davi e Daniel se descreveram como servos de Deus (Sl 27.9; Dn
9.17), e a virgem Maria descreveu-se como “a serva do Senhor” (Lucas 1.38). A escravidão bíblica era
uma forma de associação e proteção feudal. O roubo de homens para propósitos de venda era
estritamente proibido pela lei, de forma que aquilo que é popularmente conhecido como escravidão
era crime hediondo (Dt 24.7), e Paulo reafirmou essa condenação e associou os “roubadores de
homens” com os “devassos”, homossexuais, mentirosos, perjuros e hereges (1Tm 1.10). A menos que
o fugitivo fosse um ladrão, um escravo poderia deixar a casa do seu senhor e poderia permanecer
legalmente com qualquer pessoa em cuja casa ele tomasse refúgio (Dt 23.15, 16). O escravo tinha
que ser tratado com respeito e cuidado (Lv 25.39). O princípio bíblico, “Digno é o obreiro do seu
salário” (1Tm 5.18; Dt 25.4; 1Co 9.9; Lv 19.13; Dt 24.14s; Mt 10.10; Lucas 10.7), não é limitado
somente ao trabalho livre; ele aplica-se a todos, escravos ou livres.
A apropriação privada de trabalho escravo na América do Sul tem sido assunto de extensa distorção.
Os negros eram escravos de seus chefes tribais na África, ou escravos-prisioneiros de outras tribos. A
unidade monetária na África negra era o homem, o escravo. O negro passou de uma escravidão
especialmente severa, que incluía o canibalismo, para uma forma mais branda. Muito é dito sobre os
horrores dos navios escravos, muitos dos quais eram extremamente ruins, mas é importante lembrar
que os escravos eram uma carga valorosa e assim, uma propriedade normalmente manuseada com
consideração. Um membro da comissão canadense legislativa registrou em 1847 que os imigrantes
irlandeses estavam sendo transportados em navios carregados com o dobro de passageiros que o
navio deveria levar, encolhidos em baixo das plataformas, com pouquíssima água e comida, e em
condições “tão ruins quanto aquela do comércio escravo”.[3] A condição dos imigrantes irlandeses na
chegada foi muito pior do que a dos escravos: eles não tinham nenhum senhor para alimentá-los ou
vesti-los ou protegê-los. Os irlandeses mudaram de uma semi-escravidão na Irlanda para liberdade na
América apenas uns poucos anos antes dos negros conseguirem emancipação. Após um século e um
quarto, ou menos, os irlandeses eram um poder de liderança nos Estados Unidos, e os negros
permaneceram nas posições mais baixas. A diferença básica entre os irlandeses e os negros não foi a
cor: foi o caráter. Os negros exigiam maior cuidado, i.e., mais escravidão e assistência a escravos, e
se abrigavam em seus sofrimentos.[4] Os irlandeses por sua vez olhavam para o presente e o futuro e
ajudaram a modelar a América. Essa é uma diferença significante que não pode ser explicada
completamente por cor ou ambiente. Os chineses também chegaram aos Estados Unidos sob
circunstâncias muito difíceis e as sobrepujaram similarmente.
É importante observar também que os defensores sulistas da escravidão que precederam a Guerra
Civil tiveram parte também na esperança de uma nova colonização. Em outras palavras, eles
defendiam a legitimidade da escravidão americana enquanto esperavam terminá-la com emancipação
e nova colonização. Muitas dessas sociedades existiam no Sul. O título de um livro do período é
revelador: Bible Defense of Slavery; or the Origin, History, and Fortunes of the Negro Race [Defesa
Bíblica da Escravidão; História, e Destino da Raça Negra], de Josiah Priest, to which is added a Plan
of National Colonization, adequate to the entire remove of the free Blacks and all that may hereafter
become free [à qual é adicionada um Plano de Colonização Nacional, adequada para a remoção total
dos negros livres e de todos os que venham daqui em diante a se tornarem livres], de Rev. W. S.
Brown, 1853. Alexander H. Stephens, vice-presidente da Confederação, observou que ele tinha que
trabalhar para apoiar os seus escravos, alguns dos quais eram na verdade seus pensionistas e alvos
de suas obras de caridade.[5]
Um retrato da escravidão em suas piores formas é em geral uma descrição dos mundos africano e
muçulmano. Os abusos nessas áreas são muito reais.[6] Por outro lado, não poucos senhores são
governados por seus escravos mesmo nessas culturas. Dessa forma, Fortie observou:
Os idosos árabes gentis da África Oriental eram governados por seus escravos. Eles
aceitavam as repreensões e iras das suas mulheres bantus como visitações de Alá.
Essas mulheres eram frequentemente as mães dos seus filhos. Consideradas meros
campos arados que produziam uma descendência de sangue puro, elas eram seres
humanos adoráveis, que possuíam e despertavam sentimentos de ternura, de modo
que aquilo que era uma ficção expediente, na prática deu lugar às realidades de uma
longa vida em comum.[7]
O viajante que passa, ou o estudioso, vê os males óbvios; o homem que permanece vê os fatores
humanos que alteram todos os relacionamentos.
O direito de posse privada sobre o trabalho humano é menos comum e tem geralmente sido o
aspecto menor da escravidão humana. Nos Estados Unidos, o direito de posse privada foi abolida pela
Décima Terceira Emenda, em 1865, que declarava, na seção I, “Não haverá, nos Estados Unidos ou
em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como
punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Com essa lei, a posse
privada de escravos foi abolida, e com a Décima Sexta Emenda (1913), o Ato de Reserva Federal, e
pelas interpretações da Corte Suprema, a escravidão tornou-se um monopólio do Estado.[8]
Essa é a segunda forma de escravidão, posse do Estado, que é bem mais prevalecente hoje e em
cada era da história do que a primeira. As “glórias” do mundo antigo foram os produtos do trabalho
escravo do Estado. Hoje, os países comunistas tornam todos os cidadãos escravos. Visto que
escravidão é a propriedade sobre o trabalho do homem, sempre que essa propriedade sobre o
trabalho torna-se a força determinativa e necessária na vida das pessoas, temos uma escravidão. Em
quase todo o mundo hoje a cidadania está sendo substituída pelas obrigações da escravidão. Visto
que a servidão involuntária é definida pela Constituição como equivalente à escravidão, todo
empregador que é obrigado a manter livros e recolher impostos para o Governo Federal é dessa
forma forçado a realizar servidão involuntária ou trabalho escravo.
O Estado escravizador fala muito dos privilégios de ser uma “nação livre”. Os estados africanos
formados nas décadas de 1950 e 1960 estavam livres do colonialismo, mas, embora tenham se
tornado tecnicamente nações livres, elas cessaram de ser um povo livre: seus cidadãos tornaram-se
escravos do Estado.
O propósito da Constituição dos Estados Unidos era confirmar a liberdade do povo amarrando o novo
governo federal com as correntes da Constituição. O governo federal deveria ser acorrentados para
que o povo pudesse ser livre. Hoje, é o povo quem está sendo progressivamente escravizado.
Mentes escravas não são apenas mentes pecadoras, elas são culpadas também, movidas por culpa,
cheias de vergonha e, portanto, com fome de refúgio e segurança. A política da culpa cultiva a mente
escrava para escravizar os homens, e fazer com que o próprio povo exija um fim para a liberdade.
Escravos, verdadeiros escravos, desejam ser resgatados da liberdade; o seu maior temor é a
liberdade. A liberdade impõe um fardo impossível sobre eles. Carecendo da paz interior de uma boa
consciência, eles buscam em vez disso a paz doentia de aceitação e coexistência com todo tipo de
condição e mal.
O princípio da verdadeira liberdade é Jesus Cristo, que liberta os homens do poder do pecado e da
morte e do fardo de culpa e vergonha, para que os homens tenham uma boa consciência perante
Deus e uma independência em relação aos homens. “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente
sereis livres” (João 8.36).
Básico à Escritura é a declaração repetida do direito de posse absoluto de Deus sobre o mundo, sobre
o homem, e sobre o trabalho do homem. “Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles
que nele habitam” (Sl 24.1). O crente não pode tornar-se escravo dos homens, pois ele é propriedade
de Deus, e essa é a sua liberdade e vida. Ele não deve se revoltar, se está em cativeiro no tempo de
sua salvação, mas deve buscar a liberdade legitimamente (1Co 7.21-22). Mas ele não pode tornar-se
um escravo voluntariamente: “Fostes comprados por bom preço; não vos façais servos dos homens”
(1Co 7.23). O cristão, tendo sido comprado com o preço do sangue expiatório de Jesus Cristo, não
pode permitir que o pecado, o homem, o Estado ou a Igreja o dominem ou o possuam. Somente o
cristão pode ser um verdadeiro libertariano, e ele está sob uma obrigação religiosa de sê-lo. A
escravidão para ele é um caminho de vida legítimo para o incrédulo: é a conclusão lógica da
incredulidade e da escravidão ao pecado. Mas a vida do cristão deve refletir aqui e agora, em cada ato
e instituição sua, “a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.21, NVI).
A escravidão permanece, contudo, um caminho de vida legítimo, mas um caminho de vida mais baixo.
A escravidão oferece certas penalidades bem como certas vantagens. Objetivamente, a penalidade é
a entrega da liberdade. Subjetivamente, o escravo não vê a entrega da liberdade como uma
penalidade, visto que ele deseja escapar da liberdade. Assim como uma criança receosa e medrosa
teme o escuro, assim também a mente escrava teme a liberdade: ela é cheia dos terrores do
desconhecido. Como resultado, a mente escrava apega-se à escravidão estadista ou do Estado, à
assistência social do berço-à-sepultura, assim como uma criança temerosa apega-se à sua mãe. A
vantagem da escravidão é precisamente isso, a segurança no senhor ou no Estado. O socialismo é
dessa forma um Estado escravagista, criado pelas exigências de um senhor pelos escravos. O
escravo tem a mentalidade do farisaísmo, pois quer viver por vista, pelas obras, obras manifestas e
visíveis que o assegurarão salvação. O escravo salva a si mesmo criando um Estado escravagista
que oferece garantia visível de salvação do ventre-ao-túmulo contra os perigos da virilidade e
liberdade.
É necessário que cada geração seja recordada de sua escolha: escravo ou livre? Essa é uma escolha
moral. Um homem deve escolher entre a segurança da escravidão e a segurança da liberdade.
Escravidão é um estilo de vida: se os homens preferem-na, então que sejam honestos e vivem em
termos de sua escolha. A liberdade também é um estilo de vida, e os homens que a desejam devem
estar preparados para assumir suas responsabilidades e penalidades, bem como seus privilégios. Os
homens não podem receber assistência social, passar pelo processo de falência, ou serem achados
culpados de atividade criminosa, e mesmo assim reivindicar legítima e moralmente os privilégios da
cidadania e o direito de participar no governo civil. Tais homens podem ser apreciados por muitos;
podem ser algumas vezes homens amáveis, bem-intencionados, e os tais devem ser tratados com
toda graça e caridade piedosas, mas eles não podem reivindicar moralmente os privilégios da
liberdade. Mesmo um bom escravo é um escravo.
E, para o cristão, o mandamento é expresso de forma muito clara: “Estai, pois, firmes na liberdade
com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão” (Gl 5.1). Toda
invasão da liberdade, quer por escravos ou pelo Estado, deve ser resistida, e toda tentação pessoal
em aceitar a segurança da escravidão deve ser vista como aquilo que é, pecado.
Fonte: Rousas John Rushdoony, Politics of Guilt and Pity (Vallecito, California: Ross
House Books, 1970), p. 22-31.
[1] John Murray: Principles of Conduct, Aspects of Biblical Ethics , pp. 97-99. Grand Rapids, Michigan:
Eerdmans, 1957.
[2] William Lindsay, “Slave, Slavery”, Patrick Fairbain, editor: Fairbairns’ Imperial Standard Bible
Encyclopedia, vol 6. pp. 190-193. 1891. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1957.
[3] Cecil Woodham-Smith: The Great Hunger, Ireland 1845-1849, p. 228. New York: Harper and Row,
1962.
[4] “Next: A ‘Marshall Plan’ for Negroes?” U. S. News & World Report, vol. LX, nº 10, 7 de março de
1996, p. 46s.
[5] Veja Myrta Lockett Avary, editor: Recollections of Alexander H. Stephens , His Diary Kept When a
Prisoner at Fort Warren, Boston Harbour, 1865, p. 226s. New York: Doubleday, Page, 1910.
[6] Veja Sean O’Callaghan: The Slave Trade Today, New York: Crown, 1961; Robin Maugham: The
Slaves of Timbuktu, New York: Harper, 1961. Pode ser adicionado, contudo, que o negro sempre foi
tratado de forma muito brutal por outros negros, e isso é tão verdadeiro antes como hoje. Dessa
forma, “na conferência de Casablanca dos chefes de Estado africanos em janeiro de 1961, um
delegado da República do Mali pediu ao representante da Líbia pela extradição de um chefe tribal de
Mali que era acusado de liderar sua tribo inteira numa ‘peregrinação’, vendendo-a na ‘Terra Santa’, e
então retirando-se para a Líbia a fim de viver uma vida pacífica com o dinheiro que tinha adquirido”;
Youssef El Masry: Daughters of Sin, p. 127. New York: Macfadden, 1963. Sobre a escravidão na
África, veja Gardiner G. Hubbard, “Africa, Its Past and Future”, The National Geographic Magazine,
vol. I, nº 2, 1889, págs. 99-124, um relatório muito agradável.
[7] Marius Fortie: Black and Beautiful, A Life in Safari Land , p. 72. Indianapolis: Bobbs-Merril, 1938.
[8] Estudos liberais insistem em ver somente a propriedade privada de escravos como escravidão. A
partir dessa perspectiva, o Estado então torna-se o salvador. Para uma análise liberal, veja David
Brion Davis: The Problem of Slavery in Western Culture, Ithaca, New York: Cornelll University Press,
1966; e Barnett Hollander: Slavery in America, Its Legal History , London: Bowes & Bowes, 1962.
Ambos são estudos competentes mas com uma visão simplista sobre escravidão.
[9] O autor usa um jogo de palavras aqui: “cradle-to-grave” e “womb-to-tomb”. [N. do T.]