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temas de economia aplicada 49

A Economia Donut de Kate Raworth e Novos Paradigmas Para o


Debate Econômico Brasileiro
Gabriel Brasil (*)

O debate econômico na última déca- forma relativamente isolada, con- econômica distributiva, regenera-
da tem sido progressivamente mar- tribuindo para a construção focali- tiva e sustentável (social e ecologi-
cado por temas que refletem novos zada do conhecimento em campos camente) com base em valores até
paradigmas sociais, permeando, em que seguem relativamente pouco então relativamente negligencia-
particular, objetos como os desafios explorados na ciência econômica. dos pela economia, como igualdade
ambientais crescentes do planeta, de gênero e o entendimento defi-
os persistentes males da desigual- Kate Raworth, no entanto, aborda nitivo de que os recursos do pla-
dade e o impacto de revoluções tec- todos eles num trabalho só. Mais do neta são, efetivamente, finitos. Em
nológicas na sociedade. que isso, a economista da Univer- termos práticos, ela traz sugestões
sidade de Oxford propõe um novo sobre como produzir um debate
Com relação ao tema ambiental, framework através do qual os desa- econômico nesse sentido a partir
múltiplos autores têm discutido fios da economia moderna podem de mudanças de premissas objeti-
propostas para a chamada ‘econo- (e, segundo ela, na verdade devem) vas (como por exemplo, aquelas ba-
mia verde’, que trata essencialmen- ser discutidos de forma integrada. seadas na racionalidade estrita dos
te de mecanismos de incentivo para No modelo que batiza de Donut (em agentes, comumente reproduzidas
o desenvolvimento sustentável (em função do seu formato circular, no nos modelos de macroeconomia).
seus sentidos amplos) e para a oti- qual recursos e elementos econô-
mização do uso de recursos não micos interagem entre si de forma Há, contudo, controvérsias metodo-
renováveis. Autores voltados para contínua), campos a princípio dis- lógicas relevantes no seu modelo.
o estudo da desigualdade, por sua tintos da economia são associados Embora ele traga proposições agre-
vez, têm se debruçado em novas para subsidiar a discussão de um gadoras – e, em alguma medida,
metodologias para debater políti- novo paradigma econômico comple- otimistas no que concerne à sua via-
cas de combate a grandes gaps de to e autossuficiente. bilidade – sua tese carece de apro-
renda e de riqueza num contexto fundamento empírico e algum tipo
de aumento expressivo de grandes O trabalho, que virou best seller em de desenvolvimento matemático ou
conglomerados ao redor do mundo diferentes plataformas e foi esco- microeconômico para ser encara-
(particularmente, à luz do proemi- lhido pelo Financial Times como a do como uma sugestão prática de
nente trabalho de Thomas Piketty, melhor obra de economia de 2017, agenda e de política. As proposições
de 2014). Especialistas em inova- é provavelmente um marco para a – sete, que variam entre ‘nos tor-
ção, finalmente, tentam antecipar literatura econômica – pelo menos narmos agnósticos sobre [a impor-
os impactos de grandes avanços na medida em que organiza os tância do] crescimento econômico’
tecnológicos – como a Internet das temas que certamente marcarão os a ‘nutrirmos a natureza humana
Coisas (IoT), a Inteligência Artifi- principais debates econômicos das como incentivo intrínseco ao invés
cial (AI) e a internet 5G – no futu- próximas gerações. de promover incentivos egoísticos
ro da economia global. Em geral, isolados’ – são essencialmente retó-
dada a complexidade de tais temas, Em um breve resumo, a autora pro- ricas, e não trazem muito embasa-
economistas os têm discutido de põe a discussão de uma dinâmica mento sobre sua operacionalização.

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Fonte: Raworth 2017.

Não há também fundamentação empírica razoável endereçados pela sociedade. É contraproducente (e,
para defender que todas as medidas – mesmo as que talvez mais do que isso, seja imprudente), por exem-
são detalhadas em termos práticos – sejam de fato plo, pensar em preservação ambiental sem discutir
sustentáveis (embora, em geral, sejam associadas a os progressivos avanços tecnológicos que estamos
ideias notoriamente bem-vindas). No sentido contrá- presenciando. Além disso, esforços diversos ao longo
rio, na verdade, parte delas tem sido objeto de profun- do tempo indicam que o combate à desigualdade por
das críticas, como por exemplo, a sugestão do uso de meio de políticas específicas para isso é bem-vindo e
bancos de desenvolvimento estatais para geração de capaz de gerar efeitos positivos de médio prazo, mas
spill-over positivos no mercado de crédito para inova- segue insuficiente. Evidências crescentes sugerem que
ção – tema bastante espinhoso no Brasil nos últimos endereçamento efetivo para esse problema demanda
anos à luz da controversa atuação do BNDES, como uma abordagem estrutural profunda, que precisa con-
sabemos. siderar a questão em camadas diversas – envolvendo o
setor produtivo, governos e indivíduos.
No entanto, mais do que uma teoria, o trabalho de
Raworth deve ser visto como uma proposição de or- Se trazida para o debate econômico brasileiro, em
ganização dos paradigmas modernos da economia. A particular, a proposta de Raworth carrega frustrações
despeito dos gargalos metodológicos, a autora é feliz e alentos. Traz frustrações porque, dada nossa crise
em justificar a importância da integração de temas econômica persistente – que reflete gargalos estrutu-
que, isolados, talvez não sejam suficientemente bem rais históricos e mal resolvidos – parecemos distantes

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desse debate moderno, que trata efetiva e duradoura quanto mais o país faz parte do problema que a
do futuro enquanto continuamos abranger os conceitos trazidos por autora discute – o do pensamento
presos a problemas do passado. Raworth. A premissa de que siste- econômico limitado a frameworks
Por outro lado, um novo paradig- mas econômicos não são isolados e que muitas vezes não dão conta
ma que discute temas como meio de que sua sustentabilidade social de todos os fenômenos sociais que
ambiente, desigualdade e inovação é fundamental para a garantia do orbitam a economia e que descon-
trata diretamente de elementos seu sucesso deve ser incorporada sideram a finitude dos recursos do
caros ao nosso desenvolvimento. desde já. Não podemos, por exem- planeta. Temos, no entanto, à luz
Somos, afinal, um país altamente plo, conduzir uma agenda (impor- das reformas em curso, uma janela
desigual, com níveis de produti- tante e urgente) de ajuste fiscal de oportunidade importante para
vidade baixos e uma agenda de que perpetue problemas adjacen- a adoção de novos paradigmas – e
preservação ambiental insuficiente tes àquele que esta quer resolver, poderemos, com algum senso de
frente ao patrimônio natural que como a desigualdade e o acesso a urgência, começar a fazer parte da
detemos. Temos a oportunidade, serviços básicos de saúde e educa- solução. Embora não seja único, o
portanto, de nos engajarmos numa ção. Não cabe, também, promover modelo de Raworth pode ser um
trajetória de desenvolvimento já a redução do gasto público em bom começo para a qualificação
incorporando aprendizados que, se cima do financiamento da ciência desse debate.
por um lado tardios, seguem, por porque a tecnologia segue sendo o
outro, cada vez mais oportunos. permanente motor do crescimento
de longo prazo dos países. Final- Referências
À luz da recessão de 2015-2016 e mente, é inconcebível imaginar
da agenda de reformas em curso que o desenvolvimento econômico PIKETTY, Thomas. O capital no século
– a despeito de discussões persis- da Amazônia deva ser promovido XXI. Editora Intrínseca, 2014.
tentemente erráticas envolvendo em detrimento da preservação da RAWORTH, Kate. Doughnut econom-
temas urgentes, como por exemplo, fauna e flora local – como recorren- ics: seven ways to think like a 21st-
o complexo e mal concebido siste- temente sugerido por membros do century economist. Chelsea Green
ma tributário do país – seguimos governo federal nos últimos meses. Publishing, 2017.
num caminho de re-desenho das Além dos motivos morais, econo-
estruturas econômicas do país. micamente se trata de um plano fa-
Há, é claro, problemas latentes dado ao esgotamento, como argu-
com impacto direto no nosso atual menta com muita clareza Raworth.
baixo crescimento que deverão ser
(*) Economista pela UFMG e Mestre em
priorizados, mas a solução de longo Embora o Brasil tenha sua própria Economia Política Internacional pelo IRI-USP.
prazo para estes será tão mais agenda de desafios e prioridades, (E-mail: gabrielchbrasil@gmail.com).

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