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; ~ PERSPECTIVA
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E nquanto a semiologia teatral, de larga influência n o s an o s d e 197U e de


1980, com representantes da estatura de Patrice Pavis, An n e Ube rsfeld
e Marco de Mar inis, ded icava-se à análise dos signos espe t a c u la r e s ,
debr uçando-se sobre a passagem do texto à cena e ce ntran do-s e n a
compreensão do teatro como escritura de palco, .Ioserte Féral já inici av a
pesquisas focadas no p'"ocesso criativo, pren unciando o q u e s e r ia um dos
marcos preferenciais de análise da c e n a atual.
Sua investigação dos rastros da feitura artística do espetá c u lo por me io
do estudo detalhado d e cadernos de direção, anotações d e ato r e s e es b o ço s
de cenografia passaram a fig urar como método de a nálise Irrrp rescf rr dfv el
ao esclarecimento daquilo que se a p r ese n t a v a em cena. E m gra n d e part e
graças a seus esforços, foi nessa e t a p a dos estudos teatrais que o traba lh o
em processo dos criadores passou a ser levado em conta n o mesmo nível
que as questões ligadas à representação. É dessa amp la per s p e c t iv a de
análise que os teatros reunidos nesse livro se beneficiam.
As noções de teatralidade, performatividade, performance, presen ça
e interculturalismo, tratadas com ênfase em Além d o s Limi te s : Te o r ia e estu!os
estu os
P rática d o Teatro, foram as chaves c om que se abriram novo s â ngulos de
visão no tocante ao teatro realizado no final do século xx e i n ício do XXI _ estu os
Sí lv ia Fern andes
Professora do Departamento e do Progra m a
de Pós-Graduação de Artes Cênic a s da E C A- US I'.

~\III
- Z
~ f PER SPECTIVA
3 19 ~I\'~
Coleção Estudos
Dirigida por J. G u i nsb u r g
Josette Féral

ALÉM DOS LIMITES


TEORIA E PRÁTICA DO TEATRO

~\III
Equ ip e d e realiz a ç ã o - E dição d e Tex to : Lu ís Fe r nan do Reis; Re v is ão : A d r ia no C.A.
~ ~ P ERSPECT IVA
~I\'~
e S o usa , E le n Durando ; S o b reca pa: Se rg io Ko n; Produ ç ão : Ri c ard o W. Neves, Raq ue l
Fernandes Abran che s , S e rgio Kon , E le n Durando e Lu iz H en ri qu e So a res .
ANOS
© Jo sctte Féral, 2009
Sumário

c rr--Brastl . Cata logação na Fonte


S in d ica to Na cio nal d o s Ed ito res de Livros, R)

F386a

Féral , Io s e rt c
Al ém dos limites : teoria e prátic a do te atro I Io sctte Féral ;
t raduç ã o I. Gu ín sburg ... [et a l. ] . - I. e d . - Sã o Paulo : Perspe ctiva ,
20 1 5.
4 24 p. ; 23 c m . (Est ud os; 319)
In troduç ã o - Sílvia Fernandes XIII
IS B N 9 73 -85 -273 1027-7
I. Teatro. 2 . T e at ro - Históri a e c rít ic a . I. Título . II. S érie.

COD: 792 Parte I :


C D U: 792 UMA TEO RIA À PROCURA D E PRÁTICA

1. Teatro e Soc iedade: Da Si m b iose a u m Novo


Co n trato Social. . . . . . . . . . . . . 3

Teat ro, C ult ura e Sociedade . . 3


Os Estu dos Sobre o Teatro . 9

2. Que Pode (ou Quer) a Teoria do Teatro?


A Teo r ia Como Tradução . 17

A Teoria Não é Mais o Q ue Era . . . . . . . . . . . . . . . . 17


Uma abordagem marcada pela pluralidade . . . 19
D ire itos re servados em língu a portugue sa à As teorias instauram p erspectivas inesperadas . . . . 21
EDITORA PERSPECT IVA S.A. A teoria p ermite lev a ntar q uestões . . . . . . . . . . . 22
A v. Brigadeiro Lu ís A n tô nio, 30 2 5 A Teoria é u m a Prática 24
0 14 0 1- 0 0 0 São Pa u lo SP Bra sil
Tel cfax : (O H) 3885-8388 Teo ria e prática são dois do mínios
'"Avw.edito rapersp ect iva.com.or interdependentes . ":" 25
20 15 Tanto a Teoria Quanto a Prática Traduzem o Mundo 29
3. A Crítica de uma Paisagem Cambiante 37 2 . Mirri es e e Tea t r a li d a de 10l

O Exemplo do Esporte: O Mundial, Julho de 1998 37 Evoluções Diferentes 103


Segundo Exemplo : Setembro de 1983, o Meio Teatrurn Muridi __ 104
Artístico Contra a Crítica 40 A s T r ê s C livag e n s __ 108
Toda Pa lavra Sob re o Teatro é um Atrevimento _ 41
Descreve r, I n terpretar, Julgar 44 3. Por uma Poética da Performatividade: O Teatro
Crítica: Uma Gama Variada de Práticas e de Ide ias .. 46 Performativo 11 3
A Crítica Como Poder. 47
Uma Arte Ameaçada -. . 49
Parte III:
4 . Teoria e Prática: Além dos Limites 53 PERFORMANCE E PERFORlvIATIVIDADE
Teorias Empíricas da Produção 60
1. A Performance ou a Recusa do Teatro 135
5. Por uma Gené tica da Encenação: Ta ke 2 63
O Teatral da Performance 138
Rascun hos Text uais 66
Rasc un hos Cê n icos e V is uais 68 2. Performance e Teatralidade:
Os cadernos de direção 68 O Sujeito Desmistificado 149
Os registros de vídeo 71
3. O Que Resta da Performance?
As anotações de ensaios 72
Autóps ia de uma Arte Rea lmente Viva . . . . . . . . . . . . 165

A utópsia de uma Função .


Parte II :
A perforrna nce n asceu d e uma teori zação
PA RA UMA DEF I N IÇÃO DA TEATRALI DADE . . .
d o fienomeno artistico . 17 0
O nascimento de um gên ero . 175
1. A Teatralidade: Em B usca da Especificidade da A lguns Exemplos d o s Anos de 1990 . 177
Li nguagem Teatral 81
4. Da Estética da Sedução à do Obsceno 189
Retomada Histórica 83
A Teatralidade Como Propriedade d o Cotidiano 84 De u m a Performance a Outra 190
O Teatro Como Pré-Estética: O Q ue Permite Laurie Anderson:
o Teatra l? 88 Uma Estét ica do Descontín uo e d a Sedução 194
A Teatralidade Teatral 90 Dos objetos q ue produzem signo 194
O ator 91 A pura ressonância dos vocábu los 195
Ojogo 93 Uma organização por sobreimpressão 195
A ficção e sua relação com o real 95 Uma poética do fragm ento 196
A Proibição 97 Uma economia dos signos 197
A con str u çã o do sentido pertence ao espectador. . 198 Da p ercep ção à cogn içã o 27 6
O s mecanismos coloc a d os a nu 198 A superfíci e-limite 278
K are n Fin ley: O Fetichismo do Corpo 199 O esp a ço -p la n o 281
Um corpo teatralizado 199 Novos Mo do s de Perc epção 28 3
A linguagem do recalcado 200 Ver d e Outra Man eira 28 5
Um a narração que es t r u t u ra a repres enta ç ão 201
Um a arte do e u 202 3. O Teatro de Robert Lepage: Fragme ntos Id entitários.. 29 1
O esp ecta d o r voye ur 203
O Id e al de Autentic idade o u o Nascimen to
da Noção Mo de r na de Id en t ida d e 29 2
5. Orla n e a Dessacralização do C o r p o 205
O processo identitário como ancoragem m o ra l 295
Corpo e Ficções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 2 13 Memoria e narrativa: relação co m o temp o 29 7
Imagens e V i r tu a lidade 2 18 A necessidade d e m u dança : do interpessoa l
O Sag rado n a A r te 220 p a ra o intercultural 30 2
A Legiti mação Pelo Disc u rso 222 A Ins e r ç ã o N u m Horizo n te d e Sen t ido Colet ivo 3 04
A A r te Como Fon te Moral 306
6 . Distanc iamen t o e Multimidia o u B rech t I nver t ido .. 2 2 5

Evocação Históri c a 226 4 . A Tra vessia das Linguagens :


O D i stancia rneri t o Bre chtiano Como Teoria Valere Novarin a e C la u d e R égy 30 9
d a R ep re s entação 23 0 O Espetác u lo d o A tor n o T rabalho 311
O D is ta n c ia me n to n o Teat ro A tual 23 6 Ordem d a s P al av r a s / Ordem d o s Mortos 32 2

P arte IV : Parte v:
A CENA SOB I NVESTI G A Ç Ã O O I N T ERC U LT U R A LI SM O A INDA
P O SSUI UM SENTIDO ?
1. O Texto Espetac u lar: A Ce na e Se u Texto 2 45

Tex to e Texto P erform ativ o (Perfo rmance Tex t) 246 1. Linguage m e Apropriação :
O texto perform ativo 246 Co mo R einte rpr etar Shakespeare n o Quebe c ,
O texto espetacular 250 o Exemp lo d e R obert Lepage 333
Ericadearne rr t o e SiInulta n eidade 25 4
A ce na do texto e o tex to d o texto 2 54 2. Pe rcepção do Intercultu r alismo:
. O t exto co m o dram atu rgia 260 O Exem p lo d e A r iane Mnouchkine 3 47

Ricardo II à la Jap o n esa 348


2. Um Corp o no E spaç o : P e rcepção e Pro j e ç ã o 269
Ab ra ha m Mo les: Teo r ia d a Percepção Estética
A Emergência d e Novos Espaços 269 à L uz da Teoria da In fo rfri a ç ão 349
Espaço-volume e espaço-form a 273 Redundância e originalidade 347
Introdução
3. Toda Trans-Ação C o n cla m a Novas Fronteiras 357
O Polí tico: Territórios Con tra Localidades 36 0
Território e sobera n ia 364
O Espaço Des-terri to r ializado 36 6
O q ue a p eça exp r ime? 369
D o A r t ís t ico a o Teó r ic o 373

4. Em D ireção a Identidade s Tra nscu lt ura is:


O In terc u lt u ralis mo Ainda É Possível? 38 1

A Necess idade d e P ens a r o I n terc u lt ura lis mo


R elacionado ao P olític o 384
Uma f a scin a çã o d e d oi s g u mes 3 84
U m interculturalisrn o que a t ua en t re o g lo ba l
e o lo cal 3 87
Efe itos discutív ei s 38 9
Interculturalismo e Imagem Identitária 39 2
O Que Se r ia Esse Modelo Intercultural ? 39 5 A excele n t e compil a ç ã o d e e nsa ios qu e a editora P erspectiva
leva a público é um a s ín tese das preocupaç õ e s que a compa -
nham a t e órica Io sett e Fé ra l n o s último s v in te ano s, e ligam - s e
e specia lm e n t e ao s co nce itos e à prática d a c e na c o n te m po -
rân e a. Profe ssora durant e longo p eríodo n a U n ive rs id a d e d o
Quebe c , e m Montreal, e atualmente lecion ando na Universi -
dade d e Sorbonne Nouvelle - Paris III, Féral partiu d e s ó li da
form aç ão e m e studo s literário s , orientada p or [ulia Kri steva,
p ara e m s eguida dedi c ar- s e à p aix ão p ela ce na contemp orâ -
ne a , n o qu e ela t em de m ais inventivo e tran sgres sor. C o m
divers o s livros public ado s e textos antológicos apre s entados
em c o n g ress os e co n fe rênc ias e m diversas c idades importan -
tes , como Bruxel a s , P a ri s , Bu eno s Aires, C racóvia, Dubro vnik,
Liubliana, L ondre s , C idade d o M é xico, M o s c ou, N o v a D éli,
Sy d ney e São Paulo, a p e squisadora conc entra- se, na últ ima
década , na exp lo r a ç ã o da teoria da performatividade e da tea -
tralidade, de cuja sistematizaç ã o foi pioneira, c o m incursões
pela p erformance e pelo interculturalismo, al ém da investi -
gação especí fica d e alguns g ry pos, com o o Théât re du S ole il .
São t e mas r e c orrente s e m s e u s t rabalhos , q ue freq ue n tam as
várias seções d este li vro .
XIV
ALIôM DO S LIMITES I N TROD U ÇÃO XV

Talvez o difere nc ial dessa pensadora da ce na contempo - início d o XXI. Sem dúvida, é desse ponto de vista que devem
rânea tenha sido, desde o princípio, a preocupação em aliar ser lido s os ensaios reunidos nes te volume.
a prática à teoria d o teatro, fazendo desse t r âns it o seu foco A prime ira parte da compilação, "Uma Teoria à Procura
de atuação. E n q u a n to a sem iologia teatral, de la rg a infl uê nci a da P rát ica", centra-se nos modos de relação entre a s duas ins-
nos anos de 1970 e de 19 8 0 , com representantes d a estatu ra de tâncias e problematiza a descon fia nça em r el a ç ã o à teoria que
Patrice P avi s, Anne Ubersfeld e Marco de Marinis, de dicava - sempre aco mpanho u os artistas d e te atro . Ana lisa n do a crítica
- s e à a nálise dos sig nos espetaculares, debruça ndo-se s o b re a jor nalíst ica, o e nsaio te ó ri c o , a a bo rd a gem sociológica e os es tu -
passagen1 do texto à ce na e centrando-se na cornprce ns ão do dos ele c rítica ge nét ica, Féral d e senha o estado da p esqu is a na
teatro como escrit ura d e palco, F éral já iniciava as inv e s ti g a ç õ e s á rea, n ã o como m e r o recensea men t o ele possi b ilidades , mas
focadas no processo c r iativo, prenunciando o q ue seria u m dos como es tratégia ele investigação d a s muita s vias de acesso ao
marc os preferenciais de análise da cena atual. A p a rt ir desse fe nôme no t e atral. Especia lmen te n o s tex to s " Po r u m a Ge né tica
po nto de v ista, n a q ue le momento, inéd ito, e m cer to se n t ido d a E nce naçã o: Ta k:e 2" e "Tea tro e So ciedad e : Da Si m biose a
p r ó xi m o d a pesqu isa ge né t ica, a ensaísta passo u a pri ori z ar a s um N o vo Con t rato Socia l" re afirma a nece ssi d ad e d e te ori za r
e ta pas q ue precede m a aprese n tação de u m tra balho teatra l. o t eat ro a partir da p r áti c a , o que faz c o m rara propri edade .
O aco m pari hame nto , a o bse rvação e o e s t u d o d o pro c e ss o , a E m c a m in h o t alve z mais c o n ceit u a I e abstrato, a segu n da
compreensão do pe rc urso d o e ncen a dor, do ator e d a e q u ipe parte d o livro é d edicada à exploração das noç õ e s de teatrali-
de criação, a inves tigação d o s r a s t r o s da feit u r a a r t íst ica d o d ade e p erforrnatividad e. A sequência de texto s d edicados ao
e sp etá culo p or m eio do e s tu do d etalhado d e cadernos d e dire- tema permite ao leitor acompanhar, de form a privilegiada, o
ç ã o , a n o tações de atores e e sboço s d e ce n o g r a fi a passaram a percurso da ensaísta n o aprofundamento d e seu instrumen -
fig u r a r co mo método d e anális e imprescindível ao esclareci- tal de análise. Sublinhando, inicialmente, a dep endência da
rne rito daqu il o que se a p rese n tava e m ce n a . E m grande p arte noção de teatralidade aos co nce ito s de representação e mimese,
g raças a se us esforços, fo i n e ss a etapa d o s es t u dos teatrai s qu e a a u to ra e n fre n t a a qu e stã o d e frente em " Per for m aric e e Tea-
o t r a b alh o em pro c esso d o s cria dores passo u a se r le v ado e m tralidad e: O Sujeito D esm istificado': em qu e opõe o conceito
conta no mesmo n ível qu e as que s t õ es li g ada s à rep rese n t ação. d e teatralidade a o d e p erformatividade. O texto a presen ta a
É dessa a mp la pe rs p ec t iva d e a ná lise qu e os teat ros reunidos p erformanc e como uma fo rça din âmica cujo prin cipal obj etivo
n e ss e livro se b enefic iam . é d esfa zer a s c o m petências d o te atro, que tende a ins cre v er o
A d e sp eito d o m ergulh o n a p r át ic a d o teat ro e d a ex periê n- p alco num a s e m iolog ia específica e rrormativ a. C a rac te rizad o
cia de partilha d e pro c e ss o s co m a rtistas d e divers a s extrações, p o r estrutura n arrativ a e r epre s entacional, m an ej a có digos
Io s e tte Fé ral n u nca s e desviou d a s p r e o cupações teórica s . Pelo co m a fin alidade de realizar determinada ins crição s im bólica
con trário, a v ivên c ia d os p ro cessos le vou- a a prospectar, co m do assunto, ao contrário da performance, expressão de fluxo s
m ai or acu idade, o s c onc eito s que se ade q uavam a os percursos d e d e sej o qu e tem por fu n ç ã o desconstruir o qu e o primeiro
a r t ísticos q ue teste rn u n h av a. Co m otim is mo carac terís tico, fo r m at o u . Ainda que o pon h a o s dois conc eitos , p erc ebe - s e
acre d ito u, des de o princípio , que a a p r oximação e n t re a t eo - que uma das principais intenções de Féral é e n fa ti z a r qu e a
r ia e a prá ti c a do teatro auxiliava n ã o a pe n as pesquisadores , teatralidade é a resultante d e um jogo de forç a s e n t re duas
profe ss ore s e teóricos, mas os próprios a r t is t a s no exercício da realidades em oposição: a s e struturas simbólicas e s p e cífi ca s
cria ção. A s n oções de t eatralidade , performatividade, perfor- do teatro e os fluxos energéticos - gestuais , vocais , libidi -
mance, p re s e n ç a e interculturalismo, t r atad a s com maior ê n fase n a is - que se a t u a lizam n a performance e irnpl icam c r ia ções
nes te livro, fora m as chaves co m qu e abriu n ovo s â n g u los d e e m pro c e ss o , inconclus a s , ge r-ado ras d e lugare s instáv eis d e
v isão n o tocan te a o t e a tro re al iz ad o n o fi na l d o séc u lo xx e man ifesta ç ã o c ênic a. Ao rec us a r a a d o ção d e có d igos ríg id os,
XV I AL ÉM DOS LIMITE S IN T RO D U Ç Ã O XV I!

c omo a definição pre cisa da p ers o nagem e a inter preta ç ã o d e co n te m porâ neo corri a rea li dade . Considera um d o s t r aços
u rn t e xto , o p erform er ap r e senta - s e ao es pec tado r como u m característi cos d e s s e s t r a b a lh o s o q ue vê com o a e m e r g ê n c ia
s u jei to d e s ejante, qu e e m g e r a l s e expressa e m rn o vi m e rit o s do rea l e m cena, fe ita e m geral de forma e x t r ernamerite vio -
a u to b iog rá ficos e tenta escapar à re presentaçã o e à orga n ização le nt a , por int e r p el a r o esp ectador com brut a li dad e . Para F é r a l,
simbó lica qu e d ominam o fe nô meno teatral, lutando p o r defin i r o d enominador co m u m das diferentes formas d e real no teatro
s u as c o n d iç õ e s d e exp r essão a pa rtir d e r ed es d e impuls o . A é o ca ráter participativ o , q ue defi ne um a r uptura d e cis iv a n o s
co n d ição d e eve n to n ã o r epet ív el, q ue se a p rese n ta no a q u i m od o s d e recepção. Territór io s de experime n tação e j ogo, os
e ago ra d e um e sp aço, é o u t ro prin cípi o d e se p a ração e n t re "teatros do r e al" c o lo c a m e m a ç ã o n o vas est r a tég ias p ercepti vas,
perforrnan c e e teatro. qu e o b r íg a rn o e s p e c t a d o r a e x per imen ta r e viver o teatro e n1
No e nsa io aqui .r e p ro d u z id o , "A Tea t r a lidade: E m Busca d a lu g ar d e recebê- lo a pe nas v is ual me n te, o q ue coloca e m xeq ue
Espec ifi cida de da Lin gu a g em Tea tra l", public ad o pela primeira as fr on teiras tra di cion ai s d o fen ômeno t e atral.
v e z e m 1988 , a e ns a ís ta r e cus a - s e a d efinir a te atralidad e como A terceira p ar te do li vro é d edi cada à "a r t e d a p erfo rman c e"
um a qualid ade n o s entido k antian o , p ertinent e excl usivamen te e aos pr incípio s q ue a fund am entam. Os e ns a ios reunidos n a
à a r te d o t e a t r o e pré - e xistente ao o bje t o e m q ue se in v este . Ao s e ç ã o p ermitem c o n h e c e r as mudan ç a s d e paradigm a que
c ontrário , d e fende a id ei a d e que ela é co nse q uê nc ia d o pro - m a r caram a prá ti c a a r tís tica no final do s é culo xx . Apoiando -
cesso dinâmi co de teatraliz a ção qu e o o l h a r p r oduz ao p o stular -s e e m exe m p los re p r ese n t a t ivos, a auto ra desenh a uma rica
a c r iação de outros es p a ços e outro s suj eito s. Ess e pro ces s o traj etória e m di r e ç ã o às fo r m a s híbridas da cena de hoj e. E m
construtivo é resultado de um ato c o n s c ie n te qu e pode partir c erto sen tid o, é uma preparação para a sequência seguinte, que
tanto do p erformer no sentido amplo do termo - atar, e n cen a- trata de alguns c r ia d o r es emblemáticos do teatro contempo -
dor, ce n ó g r a fo , iluminador - quanto do esp ectador, cuja visada râneo. "A Trave s sia das Linguagens': texto dedicado a Claude
cria a cl ivagem espacial necessária à sua precipitação. Por meio R égye Valere Novarina, c o m p a r a os percursos estéticos dos
desse argumento , a ensaísta d efend e que a teatralidade tanto dois artistas , de certa forma antitéticos. Na aproximação entre
pode nas cer do sujeito que projeta o u t ro espaço a partir d e se u o e n c e n a d o r e o dramaturgo, F éral não di stingue competên -
olhar, q uanto dos criadores que instauram um lugar alterno e cias e specíficas, analisando Régy c o m o v erdadeiro escritor e
r equerem um olhar que o r e conheça. Ou d a s operaçõ e s reu - N o varin a co mo exc el e n te diretor d e atare s. Dessa comparaç ão
nidas de criação e r e c ep ção. D e qualqu er forma, faz questão de intencionalmente paradoxal, deduz um p onto comum: ambos
s ubli n h a r que a teatralidade n ão é um dado e m p í r ic o o u uma p r etendem reenc ontrar aquilo qu e e x is te "a n te s do di zer e do
qualidade, mas uma operação cognitiva ou ato performativo escrever': na intenção de chegar aos limites do apreensível e do
daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que faz (o atar). r epresentável. " F r a g m e n tos Identit ár ios" consagrado à obra do
E m ensaio recente, " P o r uma Poética da Performativi- artista multimídia Robert Lepage, propõe que o sucesso do tra-
dade: O Teatro Perform ativo", F éral ass o c ia o co nce it o d e balho del e deve- s e à capacidade de construir modelos e v a lo res
performatividade à no ç ão de teatro performativo. Co ns ider a a ind ependentes de identidades c u ltu r a is esp e cífi c as . Comple-
preponderância dos e studos da performance nos últimos v i n te tando a seção, anali sa em " U m Corpo no Esp a ç o : Percepção
anos, especialmente nos Estados Unidos e no Canadá, uma e Projeç ão" uma instalação da companhia australiana Urban
resposta incisiva às radicais transformações dos modos teatrais Dream Capsule, recorrendo a Paul Virilio para compreender
contemporâneos, que romperam com o texto e abandonaram os novos modo s d e percepção e apreensão do espaço cênic o.
a s estruturas tradicionais. A últim a parte d o livro abord a o interculturalismo e co n -
É tamb ém pela via d o p erform ativ o q ue a e nsaís t a pro - textu ali z a o espe tác u lo t e atral e m s it u ações c u lt urais m ai s
bl ematiza a r ela ç ã o diferencial d e uma p arcela do te at ro es p ecíficas, d e te ndo -s e e specialmente no fenômen o de rec epção
XVIlI ALÉM DOS LIM ITES

i n terc u lt ural, necessá r io para co rn p re e rider a recepção do t ea -


tro e rn países co m c ulturas rnult i étn icas, co nfronta das corri o
fe nôme no da g lo balização. Ao c o me n tar a t endên cia de est u-
dos cult urais exp lo rada, d e m odo inte ns ivo, nas u n ive r s idades
no r te -americanas e in gl e s a s nas últi m a s décadas , Féral o bser va
que nessa abordagem a pró pri a noção d e te a tro ten de a desap a -
r ec e r em proveito d o s cu lt ura l studies e d o s perfo rma nce st udies,
o qu e indica u ma decis iva muta ç ã o n o dis cu r s o t e óric o ligado
à cena, e spec ialme n te e m p aí s e s com g ran de infl uência n orte -
-a rri e r ic aria, corn o o n o s s o .
C OIno s e vê po r esse b re v e apo ntame n to in trod utório , as
re flexões d e Iosette Fé ral são fund am entai s para a co m p ree nsão
da s imb iose ent re a prá ti c a e a te oria d o teat ro na n o ss a cena
c o n t e m po r â n e a . São um co n vi te ao lei to r p a r a q ue pa r t ilhe
a análise aprofu n dada d e co n ce itos e criações que pennite m
ap ree nder, com m aio r pre c is ã o , o terr itório movediço ela cr ia-
ção teatral d e h oj e . Parte I
Sílvia Fe rnandes"
Uma Teoria à Procu ra
da Prática

Professora do D epa rtam e nto e d o Programa de Pó s-Graduação de Art es Cê n i-


cas d a E C A -USP.
1. Teatro e Sociedade

da simbiose
a um novo contrato social

Receio que rninha comunicação sofra urna fragmentação


extrema que constitui precisamente um dos problemas que
mais afeta o teatro hoje em dia. Meu objetivo é estabelecer um
paralelo - rápido, desculpar-rne- ão por isso - entre, de um lado,
um contrato social que sempre ligou o teatro à sociedade; e, de
outro, o trabalho que certos departamentos empreenderam para
conseguir criar urna ponte entre a teoria e a prática. O paralelo
pode parecer distante, difícil de justificar e, no entanto, tenho a
íntima convicção de que a história do teatro nos ensina preci-
samente que, no seio da cultura, os laços entre teoria e prática
são objetos de um combate que devemos enfrentar constante e
regularmente no âmbito das estruturas nas quais atuamos.
Meu desejo é mostrar que a evolução do teatro, em sua
relação com o público e a sociedade, tem corno par uma evo-
lução similar no domínio das pesquisas teóricas sobre o teatro.

TEATRO, CULTURA E SOCIEDADE

c
Atualmente a Cultura (com maiúsculo) tornou-se o último
refúgio de nossas identidades em vias de desaparecimento.
ALE M D O S LI M IT ES : U M A TEO RI A i\ PROCU R A D E PRÁTI CA T EATRO E SOCIED A D E 5

Grande s es fo rços c u lt u r a is e po lí t icos s ã o dedicado s , e m nume- â n gu lo a crítica (combin a ção difícil de j o r n a lis m o e de pesquisa) .
r o s o s país e s , ao prop ó si to de r eque s t ionar a gl obaliza ç ã o e as Ess e tri ângul o c onhe c eu difere nte s va r iações no tem p o e no
lei s do m ercado que terr d ern a transformar tud o e m mercadoria. espaço, algumas das quais merecem que nos d ebr u c erno s sob re
D aí a s batalhas feroz e s que E uropa e Estados Unido s t r a v a m elas, pois s e acham no co r a ç ã o do qu e eu g o sta ria d e d es c re ver
em torno d a n o ção d e exceç ã o c u lt ura l. Q uanto mai s a s nações co m o sendo a demanda q ue a sociedade fe z a o teatro n o c u rso
m a is tradi c ion ais s e se n te m arn ea ça d a s , mai s iInportân c ia é do ú ltimo séc u lo e m e io . Situarei , por certo, e s t e estudo no
c o n c e d id a à p a lavra "Cu l t u r a". Não é, portanto, de e s p a n t a r exclusivo quadro do teatro ocidental e u ro p e u - e alea to r ia men te
que , d e cer ta m ari e i r a , o teatro t enha se tornad o, por s u a vez, norte-americano - que conheço um pouc o mais .
a exp re ssão ú lt ima o u, a o rne no s , o trunfo cultural mai s visível D ist inguirei, d e maneira mais ou rneri o s a r b it r á r ia, trê s
que um p aí s p o d e o fe rece r, a lé m do s monumento s que c o ris - fases de exigências feitas ao te a t r o pela s oc ie dad e .
t itucm s e u patri mâ nio h abitual. E n t re t a n to, ao m e SI110 tempo a . Um a primeira f ase poderia ser ca rac te riza d a p elo m omen to
q ue o t eat r o é um tru n fo c u ltu r a l, portador d e uma iden tidade na história em que o teatro era considerado co m o puro diverti-
c u lt u r a l colet iva, ele s e to rna tarnb érn , ao rn esrn o ternp o e para- mento. Em outros termos, não h av ia encomenda so ci al específi ca
doxalrn erite , cada vez mais trans c u ltu ral ou mu lt icu lt ural , u ma e o teatro era visto essencialmente COIno u m objeto de consumo
s it uaç ã o n o mínimo es tr a n h a que exige a lgu ma reflexão. destinado a s e r aprecia do no p re s e n te , sem nenhuma c o ns ide -
Os g o v e rn os e o s E s t a d o s e m todo s os níveis (nacional, ração do q ue p odia precedê-lo e segu i-lo. Ess e "grau zero" da
reg ional, muni cipal) e stão de fato muito d e s ej o s o s de most rar d emanda social p ode r ia ser d e fi n ido como um puro período
até q ue ponto s u s t e rit a rn as a r tes e m ge ral e o t e at r o em p arti- d e divertimento . Durante todo o séc u lo X IX, apesar d e a lg u mas
c u la r, ao rnesrno tempo q ue as e scolas de t e a t r o estão lotada s e c r is es q ue tiv era m poucas cons equê n cia s , a não ser quanto aos
os programas de teat ro se mul t iplic am no q uad ro d a s univ er- as pectos d a história lite r á ria (B a talha d e H ern a ni , por exemp lo),
si dades . Pode -se d izer q ue esse estado d e coisas é realmente o a n atur e za d a relação qu e unia o t e atro e a sociedade parece ter
signo do d e s envolvim en to " n a t u r a l" da sociedade c ivil? É essa sido muito s imples. As pessoas ia m ao t ea t r o , em grande número,
a c o n s e q uê nc ia lógica de urna prosperi dade aum entada (q ue com a convicção d e que este e ra u m lugar de d ivertimento cole-
acaba d e sofrer u m golpe d e es tagnação) ? O u é , ao contrário, a ti vo. E m bora as m an ife staçõ e s , como ca fé -concer tos, salões d e
pro va d e uma fuga coletiva p ara long e d a reali dade ? O u a in da, baile, mostras , feiras , exp osiçõ es univ ersais , co rridas, c rescessem
é um dos aspectos da bolha c u lt ura l se melhante à bol ha fina n- em importân cia à m e dida que o séc u lo XIX chegava ao fim, o
c e ir a e q u e pode estourar e m um d ado m o m e n t o ? teatro co ncentrava, n ã o o bstante, toda a atenção do púb lico. Todo
Qualquer que seja a resposta dada a t al questão - eu mesma au tor que se respeitasse queria escrever peças (mesmo Balzac,
t e n t a r e i apresentar um pouco ma is ta rde a lguns elementos d e Fla u ber t e Zola experimen tara m fa zê -l o , sem grande s ucesso) e
resposta a tais ques tões - des de lo g o p are c e q ue o te a t r o fa z ga n har din h eir o - p o is era aí que se e ncont rava a possib ili dade de
parte d e um e s q u e m a rnuito elaborado e m que inte r v êm fatores enriq uecimento. É bastante sign ificativo o fa to de que n umerosos
históricos, p olíticos e e c o n â m ic o s cujas imp licações vão além d ramaturgos c ujas peças a lcançaram im e n s o êxito sej a m h oj e
das simples e s fe r a s estéticas ou ins t itucio nais . Te ntare i esboçar es q uecidos a justo t ítulo , enqu a n to a u tores q u e h oj e re p resen tam
s uas p ri n c ip a is linhas. a literatura con heceram insucess o s impo rtantes.
O te atr o si tua-se no centro d e um a est r ut ura co m p lexa q ue O teatro con tin ua se n d o um acessório q u e não prob le m a -
p ode ser descrita como um triângulo p olítico que com pree n de t iza o contrato soc ial, u m a ima g e m d a f u nção si m b ió t ica d a
em u m vértice a q u ilo q ue c hamaremos d e in d ú st ri a (comb ina- a r te em seu n ív el mais acadê mico, fi r rnerne n te e ntrincheirado
çã o d ifícil da arte e do dinheiro ) , no o u t ro ângulo a sociedade a t rás dos r it u a is sociais e da ordenação das coisas tal como pro-
(c o m b inaç ã o difíci l d o público e do E stado) e, enfim , no terceiro jetada por uma sociedade burguesa em seu ápice. Tal situação
6 AL EM DOS LIMITE S: U M A TEO RIA À PRO C URA D E PRÁT ICA TEAT RO E SOC IEDADE 7

era verdadeira em todo o Ociden te, em conj unto, que r seja luminoso que o Estado e os político s p o d ia m n os ajudar a reali-
pe nsa ndo em Paris, Londres ou Viena. zar. Instala-se um gênero d e utopia em que os teatros o c u p a m um
b . Uma segunda fase pa rece surgir com o "teatro de arte" e as lugar c entral n o s novos modelos de cidades, delineadas segundo
emp rei ta das cé n icas dos simbolis tas d urante o "[in de si écle" e se concepções que colocam em jogo relações sociais reo rganizadas
estende até os anos de 1960. Os simbolistas, no período a n terior de maneira ideal: o teatro devia ser "p o p u la r" em um sentido
à Primeira G uerra Mundial, cujas ram ificações vão a té depois altamente míst ico e os teatros iriam deslocar os lugares habituais
dessa conflagração, p usera m e m r el e v o q u e as o b ras deviarn de r itual. Malr aux c r io u, por exemp lo, com b as e n e ss e p r in cípio ,
ser d e ar te, apon tar para re ali d ad e s s u periores e mis t er io s a s . suas "casas d e c u l tu ra': conside ra das como catedr a is . Do mesrno
Ta l ideia foi compart ilhada pela m a io r par te d o s in t el e ctuai s modo, o teatro v ia-se d ota d o de uma nova m iss ã o , a d e re in ter-
da época, o q ue acarreto u o s urgi mento de peças mais "s é r ia s" pretar o passado e p edir- lhe s uas liçõ e s (o u s ua mensagem): d o s
e o d e s a p a re ci merrto de ur n públic o que bus c ava n o te atro seu g regos a Gold o n i, desco bria - se de sú b ito n o s t extos a n tig os urna
d tve r tirn e nto . O cine ma re ve zou com o te atro , p assando p or s u a n o va p ertin ência que j usti fic ava s ua a p rop r iação.
vez a d esem p enha r seu p a p el n o d omínio do e n t re te n ime n to até É a í que um novo par c ei ro se junta ao co n t rato s ocia l: o
que o s "filmes d e arte" a pa reCera lTI nos a nos d e 19 5 0: g ra n des p e squis ad o r é d aí para fr ente d e si g n ado para oc upar o p ap el
pelíc u las v ie ram e n tão à luz, mas, já àquela a lt u r a , o públic o d e intermediário entre o pres ente d a s o ciedade e se u passado .
d e ci ne ma co meça va t amb ém a diminui r. A de mais, n e sse n ovo p apel d o intele ctual que lh e é a t r ib u ído,
Durante este período, o te at ro é consid e ra do cad a vez m ai s pedem-lhe t amb ém que prediga o p orvir. É o m omento e m que
como urn a a r te e n g aj a d a - no s e n t id o mais amplo do termo. o estudo do teatro começa a atrair grandes e sp írit o s críticos
As exigências em relação ao teatro se tornaram mais precisas. formados originalmente nos moldes acadêmicos tradicionais
Es p e r a -s e doravante que ele diga a Verdade: sobre o Homem, (Dort, Barthes, Steiner etc.). O teatro não é mais um lugar d e
a Sociedade, a História. T u d o é posto em questão, não h á mais negócios. O teatro tornou- s e uma coisa p or d emais s é r ia para
n enhuma certeza que seja e viden te e o teatro participa desse vasto ser deixada para comerciantes.
qu e st ionarriento. E le deixou de s e r um acessório do contrato c. É assim que nos vinte ou trinta últimos anos , o teatro
socia l: "tornou- s e um lugar e m que o próprio contrato s o c ia l é tornou -se uma das vias privilegiadas por numerosos país es para
posto e m questão e s e vê analisado e apresentado em termos que exprimir o r espeito à s u a identidade cultural. Novos t eatros
lhe s ã o próprios d e sua tessitura dramática e de sua visibilidade foram c o n s t r u íd o s , festivais vieram à luz, e scolas viram suas
cênica. Não é de es p a n t a r, por c o n s eg u in t e, que o Estado esteja subvenções serem aum entadas d e maneira s u bs ta ncia l, os E s t a-
e n volv id o, quer volu n t a r ia m e n te, quer involuntariamente , n o s dos, o s g o vernos estabeleceram políticas d e apoio e instalaram
n egócios teatrais. E n q u a n to seu papel anterior estava limitado à novas burocracias que s e consagram ao desenvolvimento e à
censura e à distribuição de fundos públicos a um pequeno grupo gestão da empresa teatral. Somas importantes foram de repente
d e c o rnp a ri h ias, ele se torna agora um parceiro condenado a postas a s e r v iço de aventuras culturais e n t u s ias m a n te s.
intervir no cam p o a r t ís t ico. Durante todo esse período, o Est a d o O t eatro v iu -se de súbito co m o e nca rgo d e novos valores e
veio a a ssurnir o p apel d e g uar d iã o d o futuro, ao passo que antes das ex ig ê n c ia s das sociedades pós -modernas: su b s t it u in do em
seu papel se acantonava no presente. Autores, encenadores e crí- seu palco o contrato social vigente em se u início, o teatro deu o r i-
tico s ficam doravante à e sp e ra do que o teatro fale não s o m e n te gem a comunidades que se auto -organizam e mudam de forma,
do est a d o de nossa sociedade, mas do que ela poderia vir a s e r. de es t r utu r a, e cujos participantes atuam s e m co n trole externo .
A o rnesrno tempo, o Es ta do se p õe a investir p esadamente nas O que os liga é um contrato comunit ário c u ltural. A época q ue
ins t i t u ições que e r a rn c o ns ide rad as co m o representante s das eles o c u pam e que eles qu erem que o teatr o represen te se este n de
n ova s rn o d a liclacles d e um co n t rato s ocia l vindouro - um fu tu ro do passado ao futu r o . O que se esp era d o te at ro , à sem elhança
AL.IÕM DOS Ll MI T ES : U M A TEOR IA À PROCURA DE PRÃTlC A TEATRO E SO CIEDADE 9
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dos con1p u tado res e d o s s iste mas, é uma rne rn or ização to tal: sociedade que tern de lutar a cada dia para reconduzir esta
qu e se lemb re d a totalidade d a c ultura tanto quanto efe t ue um a q ues tão ao se u centro.
e x p lo ração d o d e s c onhe cido. C a da um dele s está n a m e sma Tal si t uação v a i d urar? O que ela significa para pessoas q ue
sit uaçã o que os es pec ta dores do film e Phantom M ena ce (A meaça trabalha m n e ste d o m íni o e - final mente - como p o d e m os
Fantasma ): p o ssuídos p o r um fu tu ro comp lexo e indefinido c ujo estu dos teat ra is n o s aj uda r a co mpreen de r o q u e se passo u, bem
p a ssado e les q u e re m co n h e c e r, ambos os as pecto s (passado e con lO n o s ajudar a pro ceder d e rn o d o qu e o t e atro p e rm an e ç a
fu tu ro) a parece m da forma mais e s t ran h a p o ssí vel, inclusi ve sob fi rm e me n te no centro d a s soc iedades p ó s -mode r n a s?
a forma d o o u t ro que doravan te faz p arte da maquinaria c u lt ural!
t ranscultural que nutre o teatro p ó s-moderno t anto quanto a s
sociedades p ó s - m odernas . OS ESTUD O S S O BRE O TEATRO
Este ráp ido sob revoo não tinha o u t ro o bjet iv o s e não s u b li-
nh ar o paradoxo q ue co nst itu i hoj e a s o b rev ivên c ia do teatro, É intere ss ante nota r qu e tudo q uanto a cabamo s d e dizer acerca
m esmo que el e tenha s id o campo d e batalhas que d uraram quase da evo lu ç ão da relação e n t re o t e atro e o Es tado, e n t r e o te atr o
dois sécu los e n t re duas tentações co n t rá r ia s: de um lado , o atrativo e o público, tem o s e u p endant nos e s t u d os sobre o t e a t ro e n a
d e u m teatro popu lar; e, de o u tro, de um te a tro clandestino reser- relação que tais estudo s mantêm co m o exe rcício d a profis s ã o,
vado a uma elite. Nos dois c asos , a existência do teatro repousou ao mesmo tempo q u e se r ej u n t a m, n o nível teórico, a s cl ivagens
s o b r e re laçõ es ern c o nst a n t e mudança, elas rrresrnas p r es a s em e evolu ções constatadas na prátic a .
u m a rede d e desejos e asp irações camb iantes. A q uestão que se
a . Até a rn etade do séc u lo x x, numerosos estudos efetuados
colocava era saber q uais e str u turas surgiram, simbólicas o u n ã o ,
no domín io d a pesquisa teatral não operavam a cli vagem à qual
q ue p o d iam apoiar u m a forma tão in stáv el ? A resposta reside n o
assistimos h o j e entre estudos teóricos e a profissão. Os estudos
desenvolvimento, em cada etapa q ue n ó s sublinhamos, de rela-
de Lope de Vega, Boileau, Voltaire, H urne, Diderot, Rousseau,
ções " in d ust r iais': estando entendido q ue as estruturas simbólicas
Lessing, Schiller, Goethe, Hurnbolclt', por exemplo, para c it a r
s ã o sempre a s primeiras. As estruturas sociais (governamentais,
cornunitárias) estão sempre em atraso com respeito às aspirações Ve r o s estudo s d e [odelle (L'Eugen e, 1552 ); La Tai lle (De l'Art d e la tragédie [A A rte
das coletividades. Prova disso é o fracasso d o s palcos g iratórios da T ragéd ia ], 157 2) ; Lope d e Vega (L'Art n ou veau d e co m poser d es pi êccs en ce
co nstruídos a c ustos astronômicos, assim corno num e ro s o s temp s [A Nova Arte d e Compor as Peças Nesse Tempo], 16 0 9 ) ; Labb éd i\u bi gnac
(La P ratique du th éâtre [A P rá tica do Teat ro ], 16 57 ) ; D rydcn (Essai su r la p o ésie
empreendimentos que d eviam responder às novas necessidades d ramati que [E nsaio Sobre a Poesia D ramática], 16 6 8 ) ; Boileau (L'Art po étique [A
do teatro moderno, no rnomento exato em que os modernos opta- Arte Poética], 1674); Ricco bo n i (De l'Art de repr ésenter [A Arte d e Represe nta r ],
ram por formas pobres. O q ue foi dado testemunhar através dos 1728); Voltaire (D iscours sur la trag édie [Discurso sob re a Tragédia ], 1730); Hume
(Disser tation su r la tragédie [D isser tação Sob re a T ragéd ia], 17 57) ; Diderot (Le
séculos é u m a evolução d o teatro desde uma posição d e simbiose Para d ox e su r li! co médie n [O Parado xo d o A tor], 17 7 3 ) , Rousseau ( Lettre à M .
com o público e com a sociedade, até u m a ruptura entre esse d'Alembert su r les spectacles [Carta a M. d'Alembert So bre os Espet áculosj): Lessing
(Dramatu rgie d e Ha mbourg [Dramaturgia d e H amburg o ], 1767); Beaumarc hais
mesmo público e o t eatro, entre o teatro e a s o ci ed a d e . Foi nesta
(Essa i sur le genre d ra matique s érieux [Ensaio Sob re o Gênero D ra mático Se r ia 1,
r u p tura mesmo - e por causa dela - que o s Estados e os gover nos 1767); Sc h ille r (P réface de B rigands,178 1); Goethe ( Trai té sur la p oésie ép iq ue et la
co nseguiram se imiscuir, dando origem a u m novo con trato social poésie dramatique [Trat ado Sob re a Po esi a Ép ica e a Po esia Dramática], 179 7 ) . H á
igua lmente esc r itos que se seguirão no sécu lo X IX: Humboldt ( De lét at ac tu ei d e
q ue o briga o teat ro a respon der a objetivos particu lares: o de se
la scé ne trag iq ue française [O Es ta do A IUal d a C ena Trágica Francesa ]) ; Sc h legel
d irig ir a u m público cada vez mais amplo. (Cours d e litt érature drama tique [C urso d e Lite ra tura Dramática], 1808); Manzoni
Nesta b u s c a da cultura, em seu aspecto mais vasto, o sen- (Lettre à Mr C. su r l'unit éde tem p s et de lieu dans la trag édie [Carta ao Mr. C. Sobre
a Unidade do Tempo e o Lugar da Tra-gédia], 18 23 ); Stendhal (Racine et Shakes-
tido do te atro como arte se perde um pouc o. O t eatro d eriva peare, 18 23 ) ; H ugo (Préface de Cromwell, 1827); Wagne r (L'Oeuvre dart davenir
lentamente , mas s e m dúvida, parec e, para as margen s d e uma [A Obra de Arte do Futuro], 1850; Op éra et drarne, 18 52 ) ; Zola (Le Naturalisme
ALIôM DOS LI MITES: UM A TEOR IA À PROCURA DE PRÁTI CA TEATRO E SO CIEDADE 11
10

a penas a lg u ns m orn erito s forte s d a reflexão sobre a p r á t ic a do [ .. . ]


Desde então nerih u rn prévio acordo fundamental sobre o estilo e o
te atro , p a r e ciam , n o m omento d e s u a p ublicaç ão, esta r em con -
se n tido d esses es petác ulos existe m ais en tre es pec tadores e homens de
tato d ireto co m a prática. Pre o c upavam -se co m o jogo do a tor,
tea tro . O eq uilíbrio entre a sala e a ce na, entre as ex igê ncias da plateia e a
co m a poesi a d r a m á ti c a , co m a tragédi a, t e n tand o d efin ir o s or de m d o palco, não é mais co locado co mo pos tu lado. C umpre recriá-la
parâme t ros mais a p r o p r ia dos a o teat ro de u m a é p o c a . A s p ontes a ca da vez. A p ró p ria est r ut ura da d em a nd a d o p úblico m o d ifico u -se.
e n t re a re flexão s o b r e o teatro e a p rática a rtís ti ca p a r e ci am , s e Uma mudança d e atitude e m relação ao público se p ro d uziu .'
n ã o fo r tes, a o me nos r e a is , se b ern q u e a lg u é m c o m o D ide rot ,
h o m e m de teatro e não o bsta n te pe n sador, p odi a se n t ir-se pro - A pista a be r ta po r D ort é i n teress ante , pois el a rea liza um a
fu n da me n te in teress a d o por to d o s o s a s pectos d o a c o nte c im ento re v oluç ã o que d e re pe n te fa z d o te a t r o n ã o s ó o resu lt ad o d e
te a tral: pelo texto e pelo jog o d o a ta r. A té filóso fos c o m o H egel uma evoluçã o in tern a e m urn c a m p o art ís t ico d ad o - o qu e as
(Es té tica, 1832) e N iet z sc h e (O Nascimento d a T ragédia , 18 71 ) p e squis a s habitu ais tendem a pro v a r - mas tamb ém de m u dan -
p o di am a bo r d a r que stõ e s d e es té t ica t eatral, perman e c endo ao ças ex te rnas que a fe tam a soc ie d a d e e s ua rela ç ã o co m a a r t e . E la
m e srn o temp o m ais pró xim o s d a profis são e da arte tal com o r eins creve a evolução t e atral e m uma relaç ã o c om o ext r ateat ral
e ra p rati cada ou tal c o mo d e sejavam qu e o fo s s e. e , mais p art icularrri ente, c o rn a sociedade , que con ti n ua s e n do
um dos fatores mais d eterminantes. Não c aus a esp a n to que
b . O s é c u lo xx perdeu um pou c o d e sta simbiose e n t r e a r efle-
essa s rnudariças externas afetem tarnb érn as pesquisas te óricas
x ã o teó r ic a sob re o teatro e a p rofis são artística no decorrer d os
no domínio teatral.
a nos por caus a de urria sé r ie de rupturas ou d e deslocam entos
qu e cristalizaram um desvi o que foi se ampliando. c. Alguns anos mais tarde, ver-se-à aparecer, n o domínio
Um a primeira ruptura coin cid iria, na ordem do saber, com o da reflexão sobre o t eatro, os prim eiros esc ritos que registram
m ornento em que a prática artística perde, por sua vez, o contato uma preo cupação propriam ente teórica ligada n ão mais a o fa z er
direto c o m o seu público, n o fim do s éculo X I X . OS públicos se teatral, porém à sua apreens ão como fenôm eno a se r apreen -
d iversifica m e n tão; a práti ca a r t ística n ão é algo que se impõe por dido, c o m p ree n d ido e interp retado. O â n g u lo d e preocup a ç ã o
s i, e n q uan to o enc enado r e merge como o m ediador e n ca r rega do d e d eslocou-se d o "a r t is ta que c r ia" ao e sp e ctador qu e recebe e
preencher o desvio que se a b re e m face d e um teatro que s e afirma analis a. O s primeiros t exto s de Polti no começo d o s a nos d e
como o b ra de a r te. B erna rd Dort, na Fr ança, foi um dos primeiros 192 0 (L es T re n te -six sit u a t io ns dramatiqu es - As Trinta e Seis
a a nalisar t al entrada d o te atro n a esfe ra estética, notando tratar-se Situaç õ e s Dramátic a s ) , o u os d e Mukarovs ky n o s an o s d e 19 3 0
d e um sa l to qualitativo que afetav a a prática. Dort explica o s u r- (A r t as Se m io tic Fa ct - A r te como Fato S emióti c o ) o u a in da
g imen to da nova função de e nce n a d o r no fim do século XIX pelo o s de E . Souriau (Les D eux ce n t mil/e situations dramatiqu es,
1950 - As Duzentas Mil Situações Dramáticas), de André
d esvio q ue se pronunci a doravante en t re o teatro e se u público. O teatro Villiers (La Psychologie d e Tart dramatiqu e, 19 51 - A P sic ologi a
não está m ai s a í p a ra en viar ao p úblico a imagem global e un ifo rme d e da Arte Dramática) ou m e smo de Veinstein (La Mise e n sc êne
se u d esej o o u d e se u gosto p el o divert imento , mas ele se afir m a co m o
th éâtral e et sa condition es th étiq u e, 19 55 - A Encen a ção Teatr a l e
o bra d e arte, como ob ra esté tica [. .. ] uma relação diferente [... ] in st itui -
-se no teat ro e n t re o es pec ta d or e a produção teatral'. Sua Condição Estética) consti tuem a s diversas e tap a s de um per-
c u rso que vai afastar a s pre o cupações dos pesquisadores da prática
a u th éàtre [O N a tur a lis m o n o Tea t ro], 18 81); St r in d b e rg (P réf a ce à madem oi seIle propriamente dita. Esta tendência prosseguirá com Peter Sz ondi
Ju lie ); Jarry ( De l'in tit u l é du th éâtre au th éãtre [Do Título d o Te a tro d o Dram a], (Teo ria dos Dramas Modernos, 195 6 ) , Eric B entle y (ln S earch of
1899); A p p ia (La M usique e t mise e n sc éne [Músic a e Ence nação]).
2 B. DOrI , La Condition soc iologiq ue d e la m ise en scerie t h éât ra le ., Th éátr e réel:
Essays de critique, 1967-19 70 , Paris: Seu il, 1971 , p . 58 . (Trad. b ra s .: O Teatro e S u a
Realidade, 2 . ed. , São Pa u lo : Pe rspectiva, 20 10 . ) 3 Ib id em , p . 61.
ALEM DO S LI M ITES: UMA T EORIA À PROC URA DE PRÁTI CA TE ATRO E SOCI E D A lJE 13
12

Th eater, 195 7 - À Proc u ra do Teatro), Nor t hrop Frye (A natomy A repetida importância conced ida aos estudos teól-icos em
ofCrit icism, 1957 - Ana tomia da C rítica) e tan tos o u tros. m eado s d o s anos de 19 6 0 vai cristalizar a ruptura de m aneira
De fa to, a figur a qu e e merge d e todo s e sses esc r ito s é a d e ain d a rn ais acentuada.
u rn pes q u isado r q ue se to rn a em p r ime iro lu ga r co mo crí tico, C o m efe ito, sa bem os q ue as pesquisas sobre o teatro, no
d istan ci a n d o - s e cada vez mais do p r o c e s s o d e criação pa ra se sen ti do que a tribuímos h oj e à palavra (estu dos teóricos sobre
i nteressar apenas pela obra aca bada . A r e p r e s enta ç ã o teatral a prátic a da a r te), são um fenôm e n o recen te na maior parte
se torna obj eto d e olhar e rn uma esfe ra esté tic a mais a m p la. dos p aís e s e u rope us, n a Am érica do No rte e, pro v avel rn e nte,
O p ró p rio Ro la n d Bart hes, c u jas a ná lises judic io sas sob re a n o Bra sil do mesmo mo do. Isso é conseq uên cia d o s ú b ito lug ar
ar te d r a mática m arc aram os a nos d e 19 6 0 (Sur Ra cin e , 19 6 0 - dominante co ncedido à t e orizaçã o n a virada d o s a n os d e 19 6 0 ,
Sobre Racin e ; até se us Essa is critiq ues, 197 2 - E nsa ios Críticos ) , ela própria a r eb oque das pesquis a s literárias , n a é poca, no
não esca pa a es ta te ndê n cia . O te a tro t ornou- se o b jeto d e UITI c a m po da s emi o lo gi a d e um lado e, d e o utro, n o s esc ritos de
d is curso crític o d esligado da arte d e fa z er e c entrado n o o lh o Derrida, Kriste v a e Lacan. Ta is influências maiore s (m a is fortes
do e spectador. Ora , e sse e s pec t a d o r se diversifi cou, a ssim na Am érica do N orte d o que na Europa) , quer tenham ou não
c o mo a práti ca a r t ís t ica que o cerca . E s ta se tornou múltipla, marcado fortem ente o teatro, quer t enham s i d o s eguidas ou
fragmen tária, exp lo d id a . N ã o h á mais um teatro único. Não é não ao pé da letra, não deixaram d e in fl u ir tamp ouco e rn u m
mais poss ível, p o rtant o, fal ar co m uma s ó v oz p ara dar c o n t a certo modo d e p ensar o teatro.
d e encar a r se u porvir, c omo W a g ner podia fazê -lo no firn do Elas impõem um grau de teoriza ç ã o que vai cortar ainda
século X IX em um texto maior, A Obra d e Arte do Futuro (1850). mais a relação do fenômeno teatral com a profissão. O s estu-
E s t a visão e n g lo b a n te não pode mais ter curso. Ela será bom - dos teatrais giram então em torno da representação como
bardeada pelos discursos críticos que vão se seguir, discursos objeto acabado, submetido ao olhar de um espectador encar-
que são obrigados a se div ersificar para refletir a diversidade regado de dissecar seus componentes e o sentido (escritos d e
m esma das práticas que lhes se r v ir a m de objeto de e studos. Pavis, Ubersfeld, Helbo, De Marinis, Kowzan, Cole, Elarn ):'.
Quando as pesquisas não são de n ature za semiológica , e las
d. A segunda metade d o século xx e mais particularmente são quer sociológicas ou antropológica s (Duvignaud, Burns ,
o s anos d e 1970 e de 1980 a ssinalaram, sem dúvida, o ponto de Gourdon, Deldime) S, quer descritivas e analíticas (Gouhier,
suspensão desta ruptura que eu gostaria de tentar explicar aqui. Veinstein, Bablet, Aslan , Jacquart, Bariu)", ou poéticas (Charn -
Para s er exata, convém dizer que tal ruptura que os estudos ber, Durand)7, históricas (Roubirie) ", ou ainda psicanalíticas. É
teatrais regi stram no s é c u lo x x não deve fazer esquecer que
outra corrente perdura, aquela que os séculos anteriores desen- 4 A . Ubersfeld, L er o Tea tro, '977; P. P a ví s , Probl êrn es d 'une sémio logie th éâ t ral e , '975, A
volveram e que dá a palavra a artistas preocupados com sua A n álise dos Espet ácu los , 19 9 6 ); A . H elbo , Sémiologie de la représenta tion , '975; D . Cole,
própria arte. Assim, os escritos de Antoine, de Gordon Craig, de Th e 7h eatrical Even t (O Even to Teat r al , 19 7 5); T. Kozwan, Sémiologie d u théâtre ' 9 90 ;
M . de M arinis.
Meierhold, Marinetti, Cop e a u, Appia, Piscator, Brecht, Artaud, 5 J. Duvignaud, Sociologie du th éâtre, 19 63 ; E . B u rns, 7heatr ica lity: A St u dy of C o n ve n-
Batty, Decroux, Dullin, I ouvet, B arrault, Brook, Grotowski, tion in th e Th ea te r and Soc ia l Life (Tea t ralidade: Um Estudo d a Convenção n o Teatro
e n a Vida Social, 1972); A .M. Gou rdon , Thea t re , Public, Perception, 19 8 2; R . Deldime ,
Boal, K antor, F o e Foreman, que pontuam nosso século, c ori -
L e Ouatri êrne mur; regards s ocio log iq u es su r la relation th éãt ra le, '990 .
tiriuarn a inscrever-se no domínio dos escritos sobre teatro uma 6 D. Bablet, La M ise e n sc éne co ntem pora ine ( A E ncenação Contemporânea , 1968);
tradição preocupada com a arte do artista (ator, encenador ou O. Aslan , LlActe ur au xx êrn e si écle (O Ator n o Séc ulo xx , 19 74 ) ; E. Ja c qua rt, Le
Th éàtre de d éri sion (O Teat ro de Escár nio. 1974); G . Banu .
c enógrafo ). E n t r e essas duas c orrentes (aquel a que se debruça 7 H . Gou h ie r, L'Essence d u th éátre, ' 9 4 3; R. C harnbers , La Com édie au ch âteau: Contri-
so b re a a rte de fa ze r e a q uela q ue a co n ver te n o o bjeto d o o lh a r), bu tion à la po étique du th éâtre, ' 9 7'; R Dura n d , La Relation th éâtra le ( A Rela ção
o desvio i rá se amplia ndo no cu rso dos a nos. Tea t ral, 19 8 0 ; A. Veinstein. Le Th éâtre exp érimental, 19 6 8 .
8 J.- J. R oubine , l n t rodu ction aux grandes th éories du th éátre , '990 .
14 A L ÉM D O S LIM ITES: U M A TEOR IA A P RO C URA DE PRAT ICA T E ATRO E SOC IE D A D E 15

e v id e n te que o s estudo s te a t r a is parec em a ss irn imp ortar matri - De fa t o , h á u.m v azio n e s ta irriagern, re lativa rne nte lisa, se m
zes tomadas de empréstimo a outras discip linas para melhor maiores asperezas, aqui apre sentada. É que, a desp e ito d esta
a nalisar se u obje to . diversificação de instr umentos, s istemas e conceitos inventados
Esses métodos de aná lise sofreram contragolpes de uma para nos ajudar a apreender a natureza do teatro, há urn em que
s u s pe it a gen eralizada que abarca t odas as teorias totali zante s , nossas pesquisas s ã o , se não inexistente s , a o m enos rudimentares,
qu er sejam d e natureza política, ideológ ica, científica, literá - e el e diz respeito à produção do teatro mesmo. C o m o s e faz uma
ria o u ar tísti ca. Não há mais teo ria unificadora, globalizante, criação? O que se passa durante os ensaios? O que determina
se não as d e ideologia forte. as escolhas do encenador? As do a tor? Poucos pesq uisadores
Há muito s anos, o bser va -se um a f r a gm enta ç ã o d a s teo- escolheram esse domín io como c ampo de explo ração.
rias h om o g ê n e a s d e exp licação e de a ná lise e o s urgimen to Segue-se que, se u rn a ciênc ia do teat ro - e, p o rtanto , urna
de abordage ns teóricas mais pa rcelares, c uja bus c a é menos a teoria do teatro - deve exist ir, e la só pode se f u ndar sobre
de refere nciar parâ met ros co m u ns a vários fenô menos d o q ue visões múl t i pl a s q ue dividem o d o m ín io do t e a t r o e m cam -
sub li n har as espec ificidades. p o s dis t i n tos. É p r e c is o esforça r-se p ara qu e essas v isões não
É pre cis o , p o is , a d m it ir d efinitiv am ente que hoj e e m dia não sejam cortadas d a p rópr ia prática e q ue se d eb ru c em sobre o
pode e xisti r teo r ia c ie n tífica e g lobaliz ante d o te atro. Apena s uma ato m e sm o d e c r iação d e um a o b ra.
multiplic idade de a bordagens te óricas diversas que se a pl ique m
e . A e me rgência d o teatro co mo p rát ica n o seio d a univ ersi -
à prát ica d o te atro p ode ci rc u n va lar s ua n ature z a , traz endo cada
d a d e , a c r iação d e d eparta m en tos p a r a fo rmar artista s com o
uma delas um a il umina ç ão diferente , mas sempre limitada. E m
desígni o d e vê- los integrar a profiss ão - fen ômeno mais difun -
toda abordagem do fen ômeno teatral, s u b sis ti rá sempre um "resto"
d ido na América d o N orte d o que n a E u r o p a - é algo r e cente: h á
que escap a r á a toda apreensão teórica, por mais c o m p le ta que sej a.
uma v in te na d e anos n o Queb ec e h á um pouco mais nos E sta dos
Se m dúvida, é d e tais limites inapreensíveis da cena , do
Unidos . Est a abertura para a prát ic a no s e io d a univers idade
"dem as ia d o': do "ex cesso': do "excedente", q ue vem o prazer do
c orre spondeu, sem dúvida , a um d e s env o lvim ento d a s m entali-
teatro . Mais d o que e m qualquer outra form a de arte, esse d e s -
d ade s , que recon heceram a p o s sibilidade d e e nsi n a r n o â m b ito
fr ute se deve precisame n te a tal p arte irrep re s entável n o dis curs o
da un iv ersidade a s div ersas fo r m as artíst icas e a c r iação. P ouc o
crítico, a esse n ã o pre vis ível, a esse fl ou que constitui s u a essência .
comum n a E u rop a e m u ito con testa da pela s escola s p rofiss ionais
N u merosos discurso s c r ít icos (s ociolo g ia, sem io logia, psica-
a g uerridas (conservatórios e escolas n a cionais d e teatro ) , esta
nálise, so c iocrít ica, t e o ria d a r e c epç ã o ) tentaram, não obstante ,
fo r mação prá ti ca nas univ e rs idades p odia le var a supor que u m a
fazê- lo, pro cur ando ce rcar a multipli cidade da repre s entaçã o ,
aproximaçã o ir ia operar-se e n t r e a prática e a s p esquisas t eóric a s .
privilegiando o r a um, ora outro dos discursos cên ic os (o t exto , o
Ora, c u m p re r e a lmen te admitir, ao c abo d e ssas últimas dez en a s
espaço, o jogo d e atua ção, a relação com a s o c ie d a d e, com o espec-
d e a nos, que o c orte s u bsis te e fe t ivamen te n e sse s departamento s
tado r), mas n e nhum d el e s conseguiu e d ifica r c onceito s e n o ç õ e s
multic é fal o s q ue d e v eriam a n tes ser integradores.
q ue possam d a r con ta a deq u a d ame nte da totalidade d o sistema.
Com efe ito, t em o s d e a d mitir q ue, a pesar d o s esforços e da
O te at ro per m ane c e u m sis tema flou, dificilmente d efinível.
prolifera ç ã o d e práticas e dis cur s o s te órico s , s u bsis te uma t en -
É in ter essan te o bservar, n esse c ap ítulo particular d a que stã o ,
são ent r e p r ati c antes (a profis s ã o ) e teórico s (es t u d os terci á rio s
que o teatro n ã o produz iu ci ência que lhe seja própria, capaz d e
d e d r ama ) . Tal tens ã o é difu s a e n ã o l e v a a uma confro n t ação
le v a r e m conside r a ç ã o tod as as fa s es d e s u a el aboraçã o . Privile-
aberta, q ue po deria ter o corrido h á q uase vinte a nos, no t emp o
g iando sempre um aspecto o u o utro, as d iferen tes a bordagens
do im p e r ia li s m o teórico; mas a tensão subsiste sob a superfície,
foram se m p re parcelares ou fragmentárias, constrangidas a ignorar
e emerge mesrno nos debates mais triviais .
seja a fase de produção (o fazer), seja a da recepção (o receber).
A Lf. :- l DOS LIM ITE S: U:-1A T EO R IA À P RO CU RA DE PRATI CA
16
2. Que Pode (ou Quer) a T e o ri a
Ta l tens ã o p arece provir mai s de uma atitud e m e n tal d o
que d a n atu re z a e fe t iv a d os pro c e s s o s d e pe nsa me nto q ue o do Teatro?
discurs o práti co e teóric o envolve . Quero diz e r CO In isso que
o dis cu rs o te ó r ic o, qu alqu er que seja s ua n ature z a , p e r l11 an e Ce
p ara a mai oria dos p ratican tes co rno Ul11 ex ercíc io s usp e it o a t e o ria como t ra d u ç ã o
d esde o in íci o , tendo pouca influên cia sobre a prá t ica.
M e srno que se pos s a se n t ir um a evolução n o d om íni o da
própria teor ia, d evido e m grande p arte às tra n s fo r m a çõ es m ai o-
res qu e ocor re ram n o s último s anos n o d om ín io d a te oria, a
s usp e i ta co n t in u a a í em estado larv ar. E la se t r aduz a m i ú d e
por uma ign orân ci a recíproca e por um n ã o re c orrhe cirnerito
da utilidad e d e uma form ação te óric a para o ato r. O tale n to -
ap o ian do -se e m um a técnica sólida - p ermanec e a in da e sem p re
um do s valore s dominante s do me io profissional.
É por c a us a d essas carências no domínio dos est u d o s
teóricos qu e o m eio profissional s e desinteress a da t e oria. É
talve z p o rque a teoria não ernpree nda s u fic ie n t es esfo rços para
s e interessar pela prática, pelos aspectos importantes dela , que
poucos praticantes se interessam por ela. Se n ã o tra duzim os, se n ã o rep rese n ta mos,
Urna das soluções desse d ilema pode implicar a defi nição n ós renunciamos à vida.
de campos de pesquisa dentro dos quais praticantes e teóricos Le [o u r nal d e C h a illo t, n . 10 , fe v. 19 6 3
poderiam colaborar a fim de desenvolver novos conhecimen-
tos e, o qu e é rn a is importante, realizar juntos ex p e r i me n t o s.
Aplicar amb o s os tipos de conhecimento - do artista e do A TEORIA NÃO É MAIS O QUE E R A
pesquisador, que são diferentes em natureza - poderia levar a
um relacionamento complementar mais do que antagônico e Em 1994, Mieke Bal e Inge E. Boer public aram um livro intitu-
enriquecer tanto a teoria como a prática. O teórico contribuiria lado Th e Point of Th eory ' ( O Ponto d a Teo r ia) e m qu e faziam
c o m seu con hecime n t o analítico - c o n c e ito s , metodologias, a ligação com outras e d iç õ es' s o b re a f u n ç ão qu e p oderia
perspectivas históricas - enquanto o artista contribuiria com ainda hoje ocupar a teoria nos es t u d o s literários, culturais ou
seu tipo de conhecimento, que é mais pragmático, sobre o palco artísticos. Mesmo que nenhum artigo trate do teatro, certas
e os textos dramáticos. o bse rvaçõ e s feitas então perman ecem válidas n o domínio dos
Por fim, precisamente e com tal perspectiva, a d e um pos - es t u dos teatrais.
s ível futuro , e u gostaria de concluir minha a p rese n t açã o " . N otemos, para co meça r, o r ec eio , a d e s c onfiança, para não
dizer o temor que provoca, mais do que nunca, toda aborda -
Trad. t. G uin s b u rg
gem teórica. Assinalável no domínio dos estudos literários, tal
A au tora s e re fere a uma t erc ei r a se ção da con fe r ê n c ia : " N es t a t erc e ira seçã o
for necerei a lg uns exe m p los c o nc re to s que d em o n stram que u m r e lacion a- M . Ba l; L E . Boer (e ds .), Th e Point of Th eory , Am sterdam: Amsterdarn U ni -
mento m ai s e q u ili b rado e n t re c o n hecime n to te óric o e práti c a n ã o é a pe nas v e rs íty Pre ss, 1994.
um pe n sam e n to d e s ej á v el , o u o res u ltad o d e um a e spec u laçã o puram en te 2 Jonat h a n C u lle r, Br ia n M cHa le , N o r m a n Br y so n , E lisa bet h Bronfe n , M a ri ann e
a cad ê m ica , po ré m li m a re ali d ad e mui to ta ngíve l e pro duti v a". (N . d a E .) H irs ch , S ie p S t u u r ma n , M.ich a el A nn H o!l y, Ev e ly n Fa x Keller e o u t ro s .

j
18 AL IÕM DOS LH"lITES : Ulvl A T EORIA À PROCU RA D E PRÁTI CA Q U E PODE (O U QUE R ) A T EOR IA DO TEATRO? 19

des co nfia n ça é ma io r ainda no do mí n io do t e at r o , j u n t o a o s É pre ciso, a t od a pessoa q u e se ave nt ure no domín io


p ra t ican tes q u e co m fre q u ên cia não veem nerih u ma u tilidade te ó ri c o, a h umildade d e reco n hece r que jama is o a ba rca r á
im ediata p a r a s u a práti c a n e sta s e lab o r ações t e óri c a s s o fis - completamen te e q ue parcelas inteiras d e s a b e r lh e e s capa r ã o
ti cadas que d es c asca m se u tra ba lho e m fa t ias p e r fe i tam ente in fa liv el m e n te. T al é a le i d a finitud e humana.
homogêneas e e rn s istemas q u e parecem a prese n t ar rel ações A essas p r im eiras constata ç õ e s , às qua is n ã o devem o s mini -
muito d is ta nte s d o s pro c ed im en to s e co nce itos qu e perm it iram n1izar rnes rno atualmen te , s o rn a m -se raz ões mais profundas
se u t ra ba lho de cr iação. Por que , e n tão, fa r ia m el e s o e s fo r ç o que se p r endem d e sta vez a o cam inho pe rcorr ido pela própria
d e p enetrar n esses s is te mas de co ns t r uções co m p lexas q ue por te oria n o d e curs o d o d e c êni o d e 1990 .
ce r to exp l icam - parcialmente a o meno s - a obra aca b a d a , A primeira r a z ão e stá li gada à evo lução do s própri o s es t u -
rnas q ue s e r e velam a m i úd e im p otente s para tratar d a o b ra e m d o s t eóri cos. Co m e fe ito, d ep ois d a expa nsão d omi nan t e das
gestação? Ta l p ro b lema p ermane c e e m s ua i n tei reza, a i n d a h oje. te ori a s n o s a nos d e 19 6 0 e d e 19 7 0 e do i m pe r iali s mo qu e as
É evidente q ue a t e ori a é intimidante p or s u a p r ópri a n atu - acom pan ho u, os a nos d e 1980 m arc am um a i nter r u pção b rusca .
r e z a , e m primeiro lug ar p orque el a s e b en efi ci a d o pre c on c eito, A ssim sen d o , p e squis adore s e crí t icos d eram- s e co n ta d e que
sem p re fa v orá vel e m n o s sa soc ie d a de, à s c o ns t r u ções do p en - n essa formid ável exp losão d as te ori a s q ue agita r a m, se m dú vi da
s a men to; e m s e g u id a porque a s diferentes t eorias pare c em -s e alguma , nos sos m odos de p ensar e a b o rdar a s obras, a p r ópria
por ve zes a c id a d e la s fortem ente d efendid a s . E las c o loc a m obra s e p erd eu um pouc o , t ornando -s e a m iú de pretexto p ara
g e ra lme n te a q u i e ali um a r ede d e palavras, d e c o nce i tos, de elaborações comple xas e c o nse rva n do co m a obra inicial ap enas
e struturas, d e modos de pensamento, por vezes obscuros, em relações longínquas. As e speranças depositadas em certos s is-
que o profano tem alguma dificuldade de s e aventurar sem guia. temas teóricos dominantes revelaram -se v ã s . O progresso n em
A entrada na fortaleza se faz ao custo de grandes e sforços. E sempre vem ao seu encontro. Pensemos no estruturalismo, na
o c u s to do e sforço consentido não s e mede s e m p re pela eficá- s e m io lo g ia em particular. Os pesquisadores se recuperaram
cia d o resultado obtido. Além dis so, as numerosas fortale zas dessa vontade científica qu e marcou a épo ca est r u t u r a li s t a e
co e xi stem sem qu e s ej a possível produzir pas sagens de uma à aquela que a s e g u i u , cuj o declíni o a s e m io lo g ia domin ante
o u t ra. O c aminho que leva a cada urria d elas é úni c o, longo, ass in a lo u, revelando s u a própria impotên cia d e compreende r
e m ge ral á r d u o . O es fo r ç o é recomeçar sem cessar, s e g u n d o e p enetrar os sistemas.
a a bo r d a gem es c o lhid a e a cidadela na qual se quer p enetrar. Era natural que uma co r r e ção d e trajetória se fiz ess e e que
AcrescentenlOS a essas observações de superfície a adver- o u t r as abordagens , de n atureza m ais modesta em s u as a m b i-
tência s e g u i n t e feita por Ioriathan C u ll e r em sua introdução a ções, viessem à luz.
Th e Point of Th eory e teremos um quadro, certamente ligeiro, A esse reconhecimento de fra casso ante as ilusões de toda
m as ver d a dei ro, das razões que explicam ao nível dos indiví - uma ép o c a, s o m a- se uma desconfian ça g eneralizada contra as
duo s s ua r e sistên cia frente à teoria: t e orias glob alizante s, que n ã o é se não o r eflex o daquel a que
n o ssa é p oca opõ e h oj e à s ideo lo g ias a u tor i tár ia s, d e prete n s ã o
o aspec to m ais in ti m id a n te d a te o ri a n a d é cada d e 19 8 0 é ela ser totalitária.
i n term inável [ ... ] A teoria pode p are c e r o b s c u ra n t ist a , a té terrorista
em seu s recurs o s por infinitas recorrência s [ ] A incontrolabilidade
da te or ia é a c a u sa maior de resi stência a ela [ ] Grande p a rte da h o s -
tilidade à te oria sem dúvida v e m d o fato d e que a d m it ir a im po r tância Um a Abordag em Ma rca da Pela Pl u ralidade
da t eoria é faze r um com p ro misso ilim it ad o , de ix ar- s e esta r e m u m a
p o s iç ã o e m q ue h á se m p re c oisas impo r ta n tes que não se co n h ece. ·'
A s m u danças sobrevie ram, p o is, fr ente à t e ori a , a o se u papel, ao
3 J. C u lle r, In t ro.d u cr io ri Wh at's l h e Po int ?, M . Ba l; I. E. Boer (e ds.) , o p . c it. , p . 14 . q ue del a se esperava. Não s e exigia m ais dela, d o r av a nte , t u d o
20 A LÉ M D O S LIMITES : UMA TEORIA À PRO C UR A D E PRATI CA QUE P OD E ( O U QUE R) A T E ORI A D O T E ATRO ? 21

e nglo bar, tudo explicar. Ela pode ser fragmentária, parcial. Não A s Teor ia s Instauram Perspecti vas In esperadas
se espera que responda a todas as q uestões, mas, de modo rnais
s im p les, que aj u de a colocá-las. E la to rnou-s e o instrumento q ue Detemo -nos alguns instantes para tentar del im ít a r o que é a
p erm it e interro g ar a obr a, explorá-la para faze r emergir não mais " natureza" da teoria, se é q ue possa haver um sentido na questão.
o se n tido, poré m os sen tidos q ue nela reside m . Não retornarei aqui certos desenvolvimentos s o b re o assunto
Estabelece u-se , daí e m dian te, a co nv icção de que não fei to s alhures" e q ue tentavam precisa r as d iferentes acepções da
ex is t e m ai s m odelo únic o qu e perm ita co m p r een de r u m sis - p al avr a e o sentido q ue o t e r m o "teoria" pode ter para o teatro,
tema. O p e squisador n ã o es tá m ai s e m bus c a d e m odel o s para m as incl i n a r - m e - e i de preferê ncia sobre o uso q ue os p ró p r io s
a p l ica r, de g rades de a n ál is e qu e p ermitam deco d íficar sis te- p esquis ado re s faze m da n o ç ã o , assim como da "coisa".
m a s diferentes. Ele n ão pro cura ma is est r ut uras fundamentais . N ã o ocultare i tampo uco o fato de que a dific u ldade em
E le d e s c onstrói a o b ra . delim it a r tal c o n c e it o vem precisamen te do fa to de q ue, no
C o nc e itos a m p los fora m subst it u íd os p or co nceitos ma is d omín io art ís t ico, e ma is especificamente n o teat ro, o conce ito
p r ecisos: fal a -s e d e p ó s -modernismo, de interculturalism o , d e p ermane c e vago e se aplica in d iferen te men te t anto a o s p esqui-
c u ltu r a . E m t odo s esses c asos, as n o ções não retorna m mais aos s a do res que r efle te m so bre a o b ra a r t ística, um a vez concluíd a
rn o virn e nto s claram ente de finid o s a os quais pod e r iam aderir e a presen tad a ao p ú blic o (os t r abalh o s de A n ne U bersfeld,
os p e squisado r e s, como p u d era rn fa zê- lo e m r elação ao estru- d e Marco d e M arin is , de Theresa d e La uretis , po r exem p lo ) ,
turalism o, à crítica socia l o u à des c o nst r u ção ; elas re tornam quanto a o s prati c ante s qu e te n tam t e o rizar se u própri o sabe r
de preferência às vastas c orrentes de preocupações às quais (Jouvet, Appia, Stanislávski, Meierhold, por exernplo) ".
os próprios artistas permanecem, com frequ ência, estranhos. A multiplicidade das práticas teóricas ocasiona certamente
As referências te óricas vieram apelar à pluralidade. As uma confusão da noção, mas essa confusão é parte integrante
abordagens múltiplas, rnerios dogmáticas, fo r am substituídas da própria teoria quando a aplicamos no domínio do teatro e ,
pela s teorias propriamente m ais disciplinares, e m p r est a n d o de modo mais g eral, no domínio artístico. Para deslindar essa
s im u lt a n e a me n te para diversas dis ciplinas o s instr urnerito s d os confusão, tentei, a prop ósito, em o u t r a o casião, distinguir e n t re
quais elas poderiam ter necessidade: sociologia, antro p ologia, as t eoria s d a pro du çã o e a q u elas d a o b ra co n clu ída, ch a m a d as
filosofia, ciências. teorias an alítica s? Limitar-me- ei, pois, nas páginas s eg u in tes,
As pesquisas de Ilya Prigogine e Isab elle Stengers são exem- a tratar apen a s d a s t eorias analíti cas.
plares nesse se n tid o, n ã o no que ofereceriam como m odelos
utilizáveis n o d omínio a r tís ti co - tal n ão é o c a s o . E las são
exe m p la res pelo próprio pro c edimento des s es d ois cient is -
tas que n ã o hesitam em derrubar as barreiras s ec u lares e n tre 5 C f. J. Féral, Pourquoi la théo rie du thé â t re ?, Sp ira le, Mont réal, fev. 19 8 5, assim
c iê n c i a e fil o sofia, e m fazer d ialogar Boltzmann e B e r g s o n , co mo Po ur une t héorie des ense m b le s flo us, 7heaters chrift, n . 6, 19 9 3·
Sch r 6 d inge r e Zen ão p ara coloca r a questão da irre v ersibilida d e 6 Pois, nesse ú lt imo caso, o s p raticantes rec usam-se a fa lar de teoria para desig-
na r s uas reflexões .
do ternp o s. P ens a - se por iss o n o s trab alh o s d e Ja cque s Mono d 7 "A s teoria analíti ca s partem am iú de da observação e da re presentação. Elas
e de René Thom . tê m por objetivo compreen der melhor o espetácu lo e produzir noções, con -
É precis am ente e m tal p lu r alid ade das a bordagens que ce itos, es tru turas, sinais q ue pe r mitam cap turar a e dificação d o sentido s o b re
a cena e a nat ureza das trocas que aí se p r odu zem: do te x to ao ator, do ato r ao
ainda é possív el, h oj e, p ensar a t eoria. espec tador, d o s a tares ao espaço, d o cor po à voz." As teorias da produção tê m
como objet ivo "c o m p r e e n d e r o fenô meno teatral como processo e n ã o como
produ to. Ela s procuram dar ferra-rne ntas Oll métodos para que o praticante
4 I. P r ig o g i n e ; I. S te n g e rs, La N o u ve lle alliance, Paris : Ga llim ard , 19 79 ; En tr e le dese n vo lva sua arte . Ela s vi sam à h a b ili d a d e". J. Féra l, Po ur un e th éorie d es
te m p s et l éte rnit é, Par is: Fayard , 198 8 . ensemb les flou s, op. cit.
ALEM DOS LIM ITES: UMA TEOR IA A PRO C URA DE PR ÂTI CA QUE PO D E (OU QUE R) A TEOR IA DO T E A T R O ? 23
22

A Teoria Permite Leva n tar Q uestões imagem de um "co nce it o n órriade" ( a expressão é d e l sabelle
Ste ng e r s) que se s itua em um lugar móvel entre as disciplinas:
Se a teor ia, como diz Mieke Bal, não é nem linguagem, nem uma "móvel" porque não é lo c alizável em um único lugar, "n órnade"
coisa, n e m um todo; se, como o diz Jonathan C u lle r, a t eoria n ã o porque o pesquisador a uti liza segundo suas necessidades.
é te oria d e a lgo e m particular, nern m e smo d e a lg u ma coisa e m Como a metáfora, a teoria p reencheria assim cer tas funções
ge raIB; se a teoria n ã o é tarripouc o u m conjunto de conhecimentos b em específicas: te r ia um p ap el cog nitivo im por ta nte, at u a r ia
que p odemo s ap rop r iar e comandar, então é preciso admitir que e m d e sl o c a r o se n t ido, em c r iar n o v o s , e m foca r n o v o s ele-
a teoria só exis te co mo um exercício do p ensamento: m ent o s . Instau r aria perspectivas in e s p e r ad a s, p a r a ser efetiva,
C u ller n ota: sempre m a nterido um elo e n t re o n ovo e o a n t igo.
A te oria ap a re c e r ia , p ois , co rno u rria p rát ica, urn a fo r m a
C hamei teoria o s u posto n o m e p a ra u m corpus ili m itado d e tra - d e interpreta ç ã o . N ã o es tan do m a rc a d a p el a o bje t iv idade, ela
b alhos que conseg u iu d esafiar e r e orientar o pens amento e m d omínios servi r ia antes d e p edra d e toque p or uma s u b jet ivid a de que
o u t ros que a q uele s a os qu ai s o stensivamente p erten c iam porque s u as
fix a r ia , con tu do, s ua a ncoragem n o rea l".
análises d e ling u agem , m ente , história o u c u lt ura o fe rece m n o v o s e
E lizabet h B ron fen n o t a q ue: "A v isão d e teoria t em o efeito
p e r suas iv o s valores d e s ig n ificação, t orn am estran ho o famili ar e tal -
v e z c o nve nça m le ito re s , p or si m e smos , a c o n c e ber o p ens amento e a s d e agu ç ad a fo calizaç ão. As o bsc u ras margens e sob reposições
in stituiçõ es às quais e les se rel a ci onem d e n ovas m aneiras" d e minh a s impress õ e s d e leitura de r epente ga n ham co n tornos
definidos, m esmo se a cada n o v a mirada colo q ue mais a m b i-
Nesse sen t ido, acresce n ta C u lle r, a teo r ia n ã o é d e n enhum valê ncias que r e qu eiram até u m sempre cont ín uo p rocesso de
m odo a j ustaposição d e te o rias par ticu lares, m a s d ev e te r efeitos refocalização:'13
práticos e , partic u lar men te, é ela que pe r mite conceber um Po r sua vez, Siep Stuurman observa: "Es t u d a r um tema sern
obje to de estu do d e for ma dife r err t e '". noções teóricas seria como e s ca la r urna s uperfície rnontarihosa
Por sua vez, IvIieke Bal n ã o fa la o u tra coisa qu a ndo afirma po r a leatórios movimentos c o r p o ra is : você pode chegar a a lg um
qu e a teoria funciona sobre o modelo da metáfora" , isto é, à lugar, mas é mais provável que ficará e m p a cad o, ou pior:'14
Poderíamos estender indefinidamente a li sta dessas obser-
8 " Te o r ia n e ss e se nt ido ge ral é ext re mamen te d i fícil d e d efin ir: n ã o é uma vações, mas o q u e rete m o s, s o b retu d o dessas q uatro abordagens,
teo ria de nada em p arti cular n e rn d e coisas e m geral; é men o s u m conteúdo é q ue a teoria pare c e ter definitivam ente perdido a q u ilo qu e ,
particular, parece, d o q ue a lgo que a lg uém p o ssa fazer ou não, a lgo qu e alguém em s e u s primórdios , fora s u a justi ficativa primeira: ou seja,
possa es tu dar, ens inar, o u ig n ora r, es tar in te ressado n isso o u od iar.': ). C u ll er,
o p . c it ., p . 13 . a n ec e s s idade de estabelecer os fundame ntos de uma c iê ncia
9 ). C ulle r, Lite rary Theory, lntroduction to Scholars hip in Modem Languages and
Literature, 2 ed., New York: 1he Moder n Lan guage Associatio n of America, p . 203. sim, são d escriç õ es razoáveis de p ro c esso s. No melho r d o s casos, encont ramos
10 " E sse rel ato evi de ncia dua s coisas. E n fat iz a que a te ori a n ã o é a p e nas a so ma e pro curam o s, e m troca, articu la r narrações d e experiê ncia sentida, anotações
d e teori as p articulares - ist o é, u m a teoria de s ig n ific a do, so mad a a uma te oria exe m p la res o u h eurísti c a s d e trab alh o e m pro gre sso . Essas n ã o têm stat us
d e sexualidade, à te o ri a d e p e r spe ct iva , e assim por dian te : o corpo d e teorias d e 'cie n t í fic o'. Nossos instrumentos d e percepção não são te o r ias o u hipóteses
fenômeno c ult u ral de alguma forma agrupados (. . . 1. Segundo, es sa formu lação em tra b a lho em nenh um sentido científico, o que significa falsificável, mas o
enfat iza q ue a te oria d e v e , p el o menos até um certo p onto , ser d e fi n id a em q ue eu d e n o m in o de ' m e tá fo r as d e t ra b al h o" G ~ Ste in e r, After Babel: Aspects of
term o s de efei tos p ráticos: com o o que muda a s o p in iões d a s pessoas, o q ue Lang u ag e a n d Tra ns la tion, 2 ed., Oxfo rd: Oxfo rd U n ive rs ity P ress, 1992, p . XV I.
faz com que co ncebam , d e seus o bjetos de es t u do e s ua a t ividade, estudar d e 12 "Nesse senti do teoria é u m a prática, u m a forma de in te rp re tação, não o p in á -
modo d ifere nte': Ibid e m. culo de objetividade quanto uma p edra de toque para a s ubjetividade; não
11 George S teiner já afi r mava is so After Babel. Sempre negando a existência da abst rata , mas empiricamen te ancorada ." M . Bal, Scared to Death, M . Ba l, LE.
te ori a, reconhec ia q ue toda a reflexão teórica só p odi a exis ti r sob o p ri ncip ia Bo e r (eds.), o p . c i t. , p. 4 7·
m etafórico: "Não h á 'te o r ias d e lite r at ura; não há 'te o r ia d e crít ica: Tais rótu - 13 E. Bronfen, Death: The Navel ofthe Imag e, M . Ba l: I.E . Boer (eds.), op. c it ., p . 2 8 7.
lo s sã o blefes arrogan tes , ou um empréstimo, transparente em seu p áth os, de 14 S. Stuu rman , l n the Long Run We S h a ll A il B e D ead, M . Bal ; I. E. Bo er (eds .) ,
in ve jáveis acasos , movimento a va n te de c iê n c ia e tecnologia ( .. . 1O que temos, op. cit., p. 29 0 -291.
24 A LIôM D O S LIMI T E S : U MA T EO R IA À PRO C URA DE PRÁTI C A QUE P O D E ( O U QUER) A TEORIA D O T EATRO? 25

a nalítica, cria ndo rn éro dos d e inves tigação e ferramentas de E ainda: "O teat r o é [ .. . ] o lugar da troca de ideias e do
dese mpe nho, perm itindo penetrar em profu ndidade na obra trabalh o da socieda de so b re s u a própria língua e s eus próprios
es tu d a da e fazê- la fa lar. gestos . A cena é o laboratório da língua e dos gestos da naç ão,"?
A tualmen te, n ã o é m ai s o caso, a fu nção d a teo ria v isa a n tes Se essa posiçã o de Vitez fosse nat uralme n te endossada
fazer e merg ir novos aspectos d e uma obra o u de uma p e ça , co n- p o r um grande número de encenadores e se Vitez, corno se
frontando -a com divers o s sab eres, p o r vezes al eatório s , fa zendo -a verá mais a diante, co ns idera d e bom g r ado a e nce n ação co mo
e n t rar e m a t r ito com di s curs o s difere n tes, obs erv ando - a so b traduç ã o, p o d emo s p o r esse m o ti v o diz e r qu e to do e nce nado r
pers pectivas diversas p a r a que novas interrogaçõ es s u rjam e for- faça necessar iamen te obra t e óric a?
cem a re flex ã o a ir m a is long e. Topo logicamen te p oder-s e -la dizer A resposta não é evidente e var ia, é claro, segu n do as d ive r-
q u e e la cria se n t idos n a o b r a, abr e camin hos , tra ça novas v ias. sas práti cas .
Di to de ou tra m arr e i ra, a t e o r ia cede u lug ar às t e oria s m u l- Coloca ndo ta l questão, me u o bjet ivo aqu i n ã o v isa negar
tiforrnes, p l ura is e a m iú de p arc el a d a s a d ico to rn ia hab itual e nt re p r áti c a e t e or ia , ao re c on du zir a
co m plexidade do prob le ma a um nív el d e re flexã o ún ic o , m a s
s im p les me n te red uzi r essa divis ã o que pe rs is te entre t e ori a
A T E ORIA É UMA PRÁTI C A e práti c a e pro v a r que , c o m a di ssoluç ã o d a s t eori a s " for tes"
(co mo G ia n n i Vatt imo fal aria das id eologias fo rte s '"), os li mites
Se tal é o caso, que diferença se p ode fa z e r entre a teoria e a prá - se tornaram cada vez m ais po ros o s .
tica artística? Pois, é preciso reconhecer: tudo o que acabamos Será precis o , p or isso, confundir a reflexão teórica d e ss e s
d e dizer para a teoria se aplica igualmente à prática. A prática, praticantes e a s t eoria s que s e prendem à obra acabada ? Com
por is so, pelo menos no domínio do teatro, é o lugar correto d e cer tez a não.
co n fr o n tação d e saberes, de atritos d e diversos conhecimentos
e m p re s t a d os d e diferentes domínios e de e x per irnerrtaç ão d e s -
ses rnesrnos s a b e res s o b re uma ob ra e m curso d e criação. U m Teoria e Prática São D ois D omínios Interdep endentes
e ncen a d o r, por exemplo, confrontado com um texto que d eve
montar, o s u b mete às diversas perspe ctivas, suscitando diversas Se nos e sforçamos por um breve instante e m olhar as cois a s sob
interrogações que lhe permitem fa z er brotar d ele todos o s se n - outro ângulo e d e nos p erguntarmos qual é o o b j e t iv o final do
tido s p o s s íveis. C it e mos, p or e x empl o , o que di z Vitez d e s ua praticante e do t e ó ri co, se r á que não poderíamos dizer que ca d a
v isão da e nce nação e d e seu trab alh o sob r e os t exto s: um à s u a m aneira tenta e n ten de r, anali sar e, som a n do tudo ,
traduzir o mund o que o e nvo lv e ? O homem d e teatro o fa z c o m
A enc enaç ã o é necessa r iamen te crítica d o a u to r.": su as e n ce nações, o p intor c o m seu quadro, o c o r e ó g r a fo com
s uas c o reografias . C a da um interpreta as co isas à s u a maneira.
I sso n o s faz retornar a co ns iderar q ue t u do a q u ilo q ue foi escrito
d esde a o r ige m pe r te nce a nós todo s e devem os - é urn a necess idade E le o fe rece uma re sp o sta a o que st ionam ento que lhe é feito.
imp erios a - transport á -l o ai n d a e sern p re sob re a cena. E sempre Ap r e ende , in ter p re t a , a n a lis a e p r oduz e m fun ção de sua v isão
re come çar. As obra s s ã o enigm a s aos quai s, perpetuamente , d e vernos es p ecífica , daquilo que é oferecido à s u a percepção. Ele a traduz.
respon der. I sso é ve rd a de iro, m esmo no caso em que urna obra - p ri ma É ness e sen t ido que Vitez colocou o problema nas linhas
d a e n cen ação e d a interpreta ç ã o p are ça responde r p or longo tempo a que citam o s a cima, é t amb ém n e ss e se n t ido que ap onta a
toda s as questõ e s que lhe foram colocadas. ,6

15 Antoine Vi tez . L e Th é átre d es id ées, Paris: Ga ll irnard, t99t . p . 2 7 0 . 17 Ib td e rn , p . 294 .


16 Ibidern , p . 2 9 3 . 18 G. Vatt irri o , La Fin d e la m odernit é, Pari s : Seuil , t 9 8 5.
26 AL ÉM D O S LIMIT E S: Ul'"IA TE OR IA À PRO C U R A D E P R ÁTI C A Q UE P O D E ( O U QU ER) A TEOR IA DO T EA T RO? 27

a fi rmação perem ptória q ue Steiner fazia no irr ício d e After Babel final : entende r, tradu zir, cornu n ic a r. O prob le rna, a pesar d e se r
(Depo is d e Babel): falso , não c ess a de se r formulado. As respo stas que s e lh e po d e m
dar serão, p ois, n ecessariamente pontuais. E las r e sp onderão
After Babel postula q u e a traduç ão e s tá formal e pragm aticamente cada vez a u m cas o e s p e cí fic o s e g u n d o a teoria o u a práti c a
implícita em c a d a ato d e comuni cação, na e m is s ã o e recepção d e todo
estudada. A reflexã o te órica e m V it e z e o lugar que e sta oc up a
e q ua lquer significado, seja e le no se n t id o s emiótico mais a m p lo ou em
trocas verbais mais específicas. Entender é decifrar. Escutar a s ig n i fic a- em relação à sua prátic a é dificilmente co m p a r á v e l à de Re za
ç ã o é t radu zi r. Assim a estrut ura essencial e os significados e prob lemas Ab doh no s Es t a d o s Unid o s ou mesmo à de Peter Brook. Além
de exe c u ç ã o do a to d e t r a duç ã o estão to talmen te pres entes em atos d isso, se é evidente que uma teoria elaborada a partir de um a
da fa la, da e scrita, d e c odifi c a ç ã o p ic tórica no in terior de qualquer obra press upõe a obra e m seu ponto de partida - pelo menos
linguage m dada. A tradução e ntre diferentes líng uas é uma ap lic a ç ã o ta l é o caso da maioria das teoria s analíticas - , isso não é ver-
par ticu lar d e uma c o n fig u r a ç ã o e modelo fundamental à fala humana
d adeir o para toda teoria . As teorias científicas (cosmológicas,
mesmo o n de e la é mo noglota. ' 9
rn ate rn át.i ca.s, por exemp lo) são a prova" .
Exce to ta is casos raríssimos, teo ria e prática não consti -
Steiner co n cluía qu e esse p o s tul ado é n o p r e s en te la r g a -
tuem , na maior ia das v ezes , dois conjuntos q ue se excluem um
men te aceito. A h istória das ide ias pa rece l h e d a r razão, d a
do o u tro, mas s ã o bem interdependente s, a teoria servindo
mesma forma q ue Octavio Paz, ao afirmar : " N o s s a geração,
amiúde d e moldura à prática, de ponto de partida, aj udan d o
nossas sens ibilidades p e ss o ais 'estão im e r s a s n o mund o da t r a -
s ua progressão ( teo ria d o j o g o , p or exe m p lo"). Igual mente,
dução o u , mais precisamente , e m um rn u rr do que é ele mesmo
n ã o exis te t eoria es tável qu e n ã o se f u n d a men te sobre qual -
a traduç ão de outros mundo s , ou o u t ros s istern a s'" >.
qu e r o bse rvação p rática. M e smo se as t e oria s de obs ervaçã o
Se todo ato d e comunic a ç ã o é t r adução, e n tão é fá cil afi r m a r
n ã o pare c em mais estar p articularmente na mod a (por exem -
que t anto o teóric o quanto o p r átic o são a m b os tradutore s do
pl o , ve r o que dizia Brian McH a le a esse p ro pósit o v ) , ela n ã o
mundo q ue os e n volve. O te óric o o fa z, seja diretam ente crian do
imp ede qu e se u papel n a e di ficação d o s sabe res t e ó ric o s per-
s isternas conceit u a is comple xos , seja exploran do uma o bra e m
m an e ç a imp o r t ante . Basta ver o trab alh o que exec u ta a inda
p articul ar: a r epre s enta ção específica, o texto teatral, o p e r curs o
Eugen io Barb a sobre esse que sito >'.
estét ico d e um artista. Seu p r o c edimento é a interro g a ç ã o , o
ques tion am ento d o s a ber, d e n o ss o s m odo s d e con hecimentos,
21 C f, o trab a lho d e Riem ann e Lob atché vski, p or exemp lo, procedendo a m bos
d e n o s sa man eira d e apre ender as co isas, d e exp r im i- las, d e de uma hipóte se g e o mét r ic a puram ente te ó r ic a - pensar a geom etria a p ar-
t r aduzi -las . O a rtista escolhe como ve íc ulo d e t al expressão s ua tir da e sfera e não a partir d o pl ano - e co nse g ui n d o r evolucion ar p or iss o
as p esqui sas matemáticas . Sua t eoria n ã o se fundament~va s o b re , n~nhllIn
arte; o teórico esc o lhe os conceit os. O fim d e um e d e o utro é
fen ômeno c o n c r e ta me n te assi n a lável, mas d e um a prIOri metodol ógico .
d e m elhor com p ree n der a s obras, d e r evelar s e us limites e s u as 22 Ta l é o cas o , sobre t udo das teorias da produção. P ensamos n o s texto s d e
p o s sibilidade s , d e aí introduzir as bre chas , d e es talar as estru- Stan isl ávski , Io u ve t , Brook.
23 " Te m h avido uma redução inicial d o que, para Hrush ovski, é (minimamente )
turas , de d e s cortinar, se fo r n e c e ss ário , a fa c e oc u lta.
uma estrutura tri ádica - teoria, d e s crição, obj eto -discurso - para uma es t r u -
Coloca r o problema n e ss e s t e rm o s é r econhe c e r implic i - tura binária (teo r ia versu s práti ca ) antes d o cola pso d e ss a es t r u t u r a e m uma
t am e nte que a que stã o d a pre e xistência d a t eoria e m relação à monosuperfície de 'p r á t ic a di s curs iv a'. O que está inteiramente p erdido -
apagado, s u p r i m id o - neste c o la p s o de níveis é que o nível intermediá.ri~ d e
prática o u da prática e m r el a ç ã o à t e o ria é um fa lso p r oblem a , generalização e ab straç âo, aqui d enominado 'p o é ti c a d e s critiva', s e pO SICIOna
p ois que se trata d e um pro cedimento id ênt ico e m seu o bjet ivo como j a zendo em um a hierarquia vertica l ou 'pilha' de níve is algo e n t r e o
'o b jet o- d isc u rso' (o te xto li te r á r io ) e uma extremamente abstrata 't e o ri a d a
literatura'." B. McHal e , Wh ate v er H appen ed to D e s criptiv e Poet ic s ?, M. Bal:
19 G. Steiner, o p. cit., p x II. I. E. Bo er (e d s .) , o p . c it., p . 58 -
20 O c tavi o P a z ; Ja cqu e s Roubaud , E d oard o Sa ng u i ne tt i; C h a rles Tomlin s on , 24 Ve r o tra balh o que e le e fe t ua na I S T A , lntern ati on al Sc ho o l o f Thea t re Antro -
R enga , Pari s , ' 9 7' , p. 2 0 , apud G . S te ine r, op. c it ., p . 2 47. p ol o g y, e s uas p e squis a s s o b r e a e ne rg ia, a p r é -e xpressividade d o ator.
28 AL ÉJ'l.1 DO S LIMIT ES: U MA TEOR IA À P RO C U RA D E P R ÁT IC A QUE P O D E ( O U QUER) A TEOR IA D O TEAT RO? 29

É qu e a prática e a teor ia são amb as rnetali nguageris-' das N ã o é senão guardando esse parentesco pre sente n o esp ír ito
quais só d íferern as fe rra me ntas. A teo ria s e f un d amenta sobre q ue será p o ssí vel s u p ri mi r as cli vagens , m a nter o diálogo entre
o ve r bal e a a bs traçã o do s co nce itos, a prátic a tea t ra l, so b re o prat ican tes e teóricos e paradoxaln1 ente a fi r m a r a autonornia
fazer >". Es ta últim a c on strói irnage ns , um o b j e to que a t ra i o d e cada p roced imen to, ao rnes rno tempo que sua legitimidade.
o lha r, que in t e rp e la o espec ta do r, q u e lhe " fa la". E la co nstró i
am iú de u ma na rração, in t e r ro g a a língua, est r u t u ra u m esp aço,
c r ia um a ficção . TANTO A TEO RIA QUANTO A PRÁTICA
A te o ri a , p or s ua vez, o pe ra e x cl us iv a men te s o b re o rrio d o T RA DUZEM O M U N D O
d isc u rsivo. E la se prende ao m odo ló g ic o , se apo ia n a s p a lavras,
na coerê nc ia d o p e n s amento. F u nda me n tad a so b re a o bse rva- Dizíamos acirna que a teoria pode s e r considerada como a
ção ( ta l é o primeiro s entido d a p al a vra "teo r ia" e m g rego), e la tra d ução d o mu n do. G o s t a rí a m o s de r eto rn a r a e ss a ideia e
a na lisa, co d ific a e dec odifi ca o s s in a is , estabelece as r ela ç õ e s impulsi oná -l a ad ian te e m r elação ao teat ro.
e n tre a s palavr as e a s cois as, os conce itos e a s ima g ens. E la Se a te oria d o te at ro é uma p ráti c a q u e organiza o m un do
r e o rdena , p o is , n o ssas p e r c epç õ e s , n o ss a corn p r ee ns ão d o s e n o ss o s saberes, é preciso recon hecer q ue ela só p o d e fazê - lo
fe nôme nos, p ara ir a lé m d a s impre ss ões d e s u perfície. agin do como fu n ç ão regu la d o r a d o s s is te m as s u bmetidos à s ua
Se a te oria n o s ajud a a o r g a n iza r o s a be r, se hi erarqui z a os observ a ção, n ã o n o que ela lhes imp õ e d e reg ras a se re m segu i-
si na is, ai n da d e aco r do c o m Vitez" , é ne c essári o r e c onh ece r d as, m a s n o qu e el a te nta o rd e na r d o s s a be res o u dis cu rs o s que
que a prática igualmente o faz, quaisquer que sejam o s meios pertencem à obra ao tradu zir o s el emento s , s uas v is u a lizações
que adote para fazer com q ue seja, ela também, diferente. E la mais frequentes (a diferença entre um texto e s u a colocação
tenta, da mesma for ma, fazer emergir as novas relações entre e m representação s e s it u a precisamente no a specto c ê n ico qu e
a s c o is a s, de n os fazer ver o mundo de forma diferente. a e n ce n a ção autoriza) , e m um di scurso diferente qu e os torna
Co mo o diz muito bem H .- G. Gadamer, e como o r eco r d a d e codifi cávei s. E la a pa rece, pois , co mo traduç ã o d e um a língua
Michael Ann Holly-", uma o b r a d e arte tem o poder de modi - e m outra, d e urn dis curso e rn outro.
fic a r a co ns c iência do o b s e r v a d o r que a exarniria ->. Essa seg u n da " le it ura" que p ermite a t e o ria n ão s u bs t it u i
a primeira leitura que to do e spectador faz esp o n t a neamen te
25 U ma meta ling uagem p or definição é u m sistema co nce it ua i q ue não te m diante de uma obra, el a e n r iq u ece e s t a últirna e a esclare ce
n enhum a r e fe rênci a exterio r a s i m e sm o p ara lh e v alidar. C f. I.R. La d m iral:
" E x is te a m et alingu a g em qu ando , e m t erm o s lingu ísti c o s , não h á o u tro refe -
tornando visíveis a s ramifi cações internas (est r u tu ras, se n t idos,
rente que o s ig n ifi q u e': Traduire: Th éor érnes pour la traduction, P a r is: Payot, s istemas si gnific antes ) o u exte r nas (rel ações co m o social, co m
P ·25 2. o p olítico ) d a ob r a obs ervada.
26 Vitez co ntesta ria pro v a v elme n t e essa fo rm u lação, e le que a fi r mava q ue o
t eatro é "o lug ar e m que o p ovo v em esc u ta r s ua língua': N ota v a t a m b ém: "O
·A v erdade d e ss a seg u n d a leitura - e , po rtanto , do discurso
o bje to perma nece, p erpetu amente , in s olúv el , o r a s t o do t exto , p erm ane c e , t e órico - ve m d e s u a própria coe rê n cia interna , cer ta me n te,
n ós d evemos perpe tuamente trad uzi - lo:' A. Vi te z, op. cit., p . 2 9 3 ; e a inda: "O rna s t a mb ém de s ua e ficác ia e m ler a o b ra, d o que r e vela d e
teatro é [ . . . ) o lugar d a troca d e ideias e o trabal ho d a s o cie d a d e sobre su a
própria língua e se us próprios gestos . A c e n a é o la b o r ató r io da língua e dos oc u lto, d e n ã o a paren t e. E la ve m ta m bé m e, sobre tu do, d a s
ges tos da n a ç ã o." A . V itez, o p . c it., p. 294 . brechas qu e p errnite a b r ir e m um co n j u n to complex o e apa re n-
27 " Isso me fe z pensa r que o que c o n ta n o fe n ômeno d a tra d u ç ã o - e do espe - t emente s u turado - o d a r epresentaç ão. Tal é por isso a fun ção
t ácu lo, e d e t udo o qu e s e fa z no te m p o , tudo o que corre - é a hierarquia
dos sinais:' Ib id e m , p. 295 ; o u ainda ; "Para mim, traduçã o ou encenaçã o , é o d o e nce n a do r e a d o t radutor.
mesmo trabalho, é a a r t e d e escolher n a hierarqu ia dos si nais :' Ib id e m , p . 296.
28 \Nitnessing a n Annunciati on , M . Bah l, I.E . B oer (e ds .) , op. c it ., p . 22 8.
29 Ha n s -Georg Ga dam e r ( 1987) , Tr uth and M ethod, 2 . e d . rev., trad . Io e l W ein - R elevan ce of th e B ea utiful and O t her Essay s, trad . N ic holas Wa lker, e d . R ob ert
s h e i me r e Donald IvIars ha ll. N e w York: C r oss ro a d, 199 0 ; Idem ( 19 60) . Th e B erna s c on i, C a m b r id g e : C a m b r id g e Un iv e rsi ty Pres s , 1986 .
30 A L !Ô M DOS LIMIT ES : U MA TEORIA À P RO C U R A DE PRÁTICA Q U E P OD E ( OU QU ER) A T E OR IA D O TEAT RO ? 3t

Vitez afir ma a esse propósito : e criadora de todo ato de co m u n ic a ção e d e todo pensamento. E la
implica: 1. uma passagem (de uma língua a outra língua, de uma
tudo que foi escrito depois da origem nos pertence a todos e [ . .. ] deve-
forma em outra forma ); 2. uma perda, p ois todo ato d e t r a d u ção
mos - é urn a necessidade imperiosa - levá-lo ainda e sempre em cena.
E s empre recomeçar. As obras são en igmas aos q uais, perpetuamente, se baseia em uma impotência e algo se m p re escapa ao processo.
devemos responder [ .. . ] O objeto permanece, perpetuamente, insolúvel, U ma não pode se dar sem a o utra e traduzir cons iste em um
() rasto do te x to perrnanece, nós deve mos p e r p e tuam e nte tradu z i- Io w, mesmo sopro para estabelece r tal passageTI1, para criá-la negando
se mp re a poss ibi lidade de uma tra n s fe r ên c ia perfeita, de u m a
Prossegui n do nessa via e es te nden do p ara a lém o pensa- a dequação exata e ntre a fo n te e o a lvo. Entre as d uas, u m dia se
me nto do pró prio V itez, Darn êie Salle nave e Geo rge Banu, em c r ia u m a brecha na q u al s urge toda inventividade d o "tradutor':
se u posfácio ao l iv r o d e V itez, Le Th éâtre d es id ées (O Tea tro S te i ner defin ia t r ê s movi me n tos n o pro c e s s o seg undo o
d a s Ideias), co rne ritarn: qual se e n trega o t r adut or qu ando t r ab alh a em um a traduç ã o :
1. um a to d e fé é o q ue ele c ha ma d e trust (c rença); 2 . um traba-
é , no a to que faz passar de uma língua à o utra, manter u m a afirmação lh o d e i nc u rsão na o bra e d e extração (i nc urs ivo e ext rativo ) ;
ambígua e con tradi tória . Traduzir é n e ce ssário - tradu zir é impossível.
Em o u tros te r m o s , se trad uzir é uma tare fa inte r miná vel , p orque semp re
3. um trab alh o d e in c orp o raç ã o , de im portação n o c urso d o
h á o int r a duzível (o ess e ncial tal ve z ), n ã o p odemo s n o s dispensar diss o . qu al se o per a um a certa res t i tu ição d o que d e s c obriu n a fase 2,
Há um dever d e trad ução, q ue se co n fu n d e com a p rópri a a tiv idade d o o fim ú ltimo p e r manece n d o a p e squis a d e um c erto e quilí brio
espírito. Traduzir é um hurn a n ís mo. Se por vezes as lí n guas , os te xto s , os e n t re o texto -fonte e o t e xto - alvo» .
corpos resistem, não pod emos renunciar a el a . Nós lhe devemo s sem p re". A traduç ão implica, é claro, qu anto ao seu ponto d e p a r -
tida, p enetrar no universo do outro, impregnar-se, proceder p o r
E eles prosseguem: empatia em relação ao objeto de origem (objeto-fonte, t exto -
- fo n te ), por s i m p a t ia. E la implica um trab alho d e an áli s e , d e
Toda o b ra de A n to i ne V ite z, poeta, traduto r e enc enado r le v ou ao esc u ta, de obs erva ç ão e, n o fin al d o p ercurs o , d e interpr eta ç ã o ,
á p ice essa consciência d a n e c es s idade d e tr aduzir : toda s ua o bra é u m a
transmutaç ã o , transfiguração. P ara ass im fazê- la, n e c e ss aria -
é tica da t raduç ã o gene ra lizada. Escrever, tradu zir, a tu a r, e nce nar d epen -
d em de um p ensamento únic o , fundam entado n a própria atividade de m ente, ela apela a todo s os saberes.
tradu zir, is to é, sob re a c a p acidade, a necessidade e a al egria de inven ta r A lea tó ri a e m se u s e nca m in h a me n tos , el a r epousa sob re as
se m tré gua equi valên ci a s poss íveis: n a língua e e n t re a s língua s, n o s intui ç õ e s d o tradutor. E n t r e t a n to, el a n ã o pod e se servi r de
CO I'POS e e n t re os co rpos, e ntre as gerações, e n t re um sexo e o o u tro. um m étodo rigoro s o. Wittgenstein c o m para a esse pro p ó s it o a
E, fi nal me nte, o ou tro n ome pelo qua l se des igna a arte da encenação é traduç ão de um m odelo matemático e m que se e n c o n t rar iam
a inda tradu çã o : s is te ma por o n de se c o m u n ic a m o mundo d o texto e
so lu çõ e s , mas sem metodologia r igorosa>'.
o mundo da ce n a. >
É precisamente nessa ausência de método rigoros o - que
n ã o excl u i a pos sibilidade d e e n c ont rar sol uções - q ue s u rge
D e imediato, p ró s e contras são colo cado s e m termo s idêntic o s
tod a a s u bje t ividade d o t radutor e seu t alento. A ele compe te
p ara o tradutor e o e ncenador. Tr aduzir é uma n ecessidade absolu ta

33 G . Steiner, o p . cit. , p. 313 .


30 A . Vite z, op. cit. , p . 293. O auto r vai a té m a is lo n g e , pois afirma q ue o trabal ho 34 " T r a d uzir de u m a lín g u a para o u t ra é u ma ta r e fa matemática, e a tra duç ã o de
do trad utor é "p ô r em cena': assim ele afirma que a tradução de Hamlet p o r um poema lír ic o , po r exemp lo, em uma língua estrangeira é quas e análoga
Past ernak é " u ma obra poética r u ss a e uma encena çã o, em um m omento d a a um problema matem át ic o . P o is alguém pode enquadrar bem o problema
hi stóri a': a cres centando que h á t ambém " n a própria tradu ção, um efeito d e 'C o m o e sta piada ( p . ex .) pode s e r traduzid a ( i.e . s u bs t it uí da) por um a piada
en c enação': p . 292. e m outra líng ua' e esse problema pode se r r es olvido; mas não havi a n enhum
31 Ib idern , p . 585. m éto do sis temát ico para reso lv ê - lo': Z ettel , p . 698 . Oxfo rd, 19 6 7, a p u d G .
32 !bide rn , p . 586 . Ste i n er, op. cit., p . 121.
32 A L É M D O S LIMIT E S: U M A T EO R IA À P RO C U RA DE P R ÁTI C A Q UE POD E (O U Q UER ) A TE OR IA DO T EATRO ? 33

faze r as e s c o lh a s que se irnpõem e n t re t odas a q uelas que se lh e de es t udo d e m an e ira d ife r e n te">. C o rn o a tradu ç ã o e com o
o fe rec e .rn, de s ugerir a s vias, de fazer s u r gir no seio d o m e smo a e n c enaç ã o , e la é, t amb é m , tran s muta ç ão, tra nsfigu ração,
o diferente. transp o siç ã o criadora da represen tação . C o m o a tradu ção, e la
Parece q ue a t e o r i a procede d e rnarie i ra id ê nti c a . D ian te su b li n ha a s relações q ue, d e ou t r a forma, perman e c eriam i nvi-
dos p r o ble m a s que se l h e c olocam , soluções e xi stem , cer t a - s ív e is ao o l har o u à esc u ta do espec tado r, to r nando -as qu a s e
mente n u m e r o sas , mas a s me to d o lo g ía s es tã o longe de t e r o fam ili are s. E la c r ia o d ista nciame n to no seio d a p ró pri a r epre-
rigor cien tífico desejad o . Elas r epousam tanto sobre a i n t u iç ão se ntaç ã o, se imis cui e n tre o objeto e o espec tador, reor ien t a
do pesquisado r, seu grau de inventividade, q uanto sobre os o o lhar d ess e últim o . E la explo ra a res is t ê ncia da o b ra, son da
co ncei to s ou s is te m a s c la rarne rite d efin idos. A s u b jet iv id a de d o os perímetro s . Seu o b jet ivo primei r o é o de faze r est a la r os
p esquisador es t á ainda lá n a obra. Por is so, não é espan toso qu e sistemas e práti cas os q u a is el a agr ide.
o resu ltado d a e mpreitada difira s egundo os m étodos utilizad o s Esse pro c ess o d e es clarec ime n to nã o p ode, e n tr e ta n to,
e os indivíd uos q ue a isso se entregam. s e r exa u stivo. De um lado , c a m a d a s inte iras d a prática e sca-
O que sublinha essa co ntradição no seio do andamento d a pam n e c e s s a r íam enr e a ess a a t i t u d e d e "passagem". Por outro
tradução é q ue o própri o ato d e traduzir impõe n ecessariamente lado , o processo impli ca escol h a s : t e óri c o e tradutor a í t êm
uma di stância crí tica. Se o o b jet ivo fi n a l do tradu t or p erm a - o privi légi o, sublinh am os e ix o s, marcam as p r e fe rê nc ias,
nece exatamente a q uele de restituir o espírito da o bra-fonte, s u a efe t uam as escolhas o b li t e r a n d o outros a s pec t os que lhes
poesia, seu se nt ido, n ã o de mora muito q ue nesse p e r c u r s o ele parecen1 me no s interessante s a explorar o u menos corretos .
se e ncont re a s u b lin h ar igualm ente os limites e as difi culdades . N ã o seria de s urpree n der q uan tas d ife r e n ç a s e a ss imet rias
Assim faze n do, intr oduz o estran ho no â mago d o famili ar e faz s u bs is tem o u pe r manece m inexp lora das. Tais são os li m ites
e mergir o n o v o p ara a l ém d o a n tigo. É ce r tamen te n es s a brecha d e tod a tradu ç ã o .
que o t r adutor trab alh a : e n tre o j á con hec ido e o d es c onhe c ido , A t e ori a , como a t rad ução, tor nam -se assim jogos d e reve -
o re presen t a do e o irrepre s e nt á v el , o q ue tra nsita faci lmente na la ç ã o e d e m á s c a r a s e m q ue os s is temas esco lh idos d e p e n d e m
lí n gua e o que lhe es capa. E le revela, pois, as t ens õ e s da o bra, t anto d e m odel o s teóricos ap lica dos q uanto da s ubje t ividade
fazen do c o rn q ue ela se a l tere. d o p e s qu is a d o r.
Q ue, nesse processo de tradução, camadas inteiras d o real
A literatura em tradução apres enta-s e co mo a réplica de textos que
lh e escapem, ig u a l m e n t e não é de s u r p r e e n d e r. Aris tóteles
já exi stem. É por isso q u e ela oferece u m po st o de o bservação privile-
gia d o. Podemos rebater cad a um a d as traduções sobre o texto origin al n otav a d e s d e e ntão que a s palavras n ã o podem d e nenh um
que lh e corresponde e assinalar d essa m aneira o q ue os tr ad ut o res alte - m odo ser a cópia perfeita da r ea lidade. E Michel Foucault,
raram [... ] A tr adução é por excelência um lugar d e imped imentos e trab a l han do sobre a história das ide ia s através dos séc u los,
de ten sõ es. Por n atureza, ela cria a diferença . É por isso que ela oferece d e m onstr ou como no correr dos a nos as p a l avra s vieram pro-
à investigação d o s fenômenos disc ursivos e de seu fu ndamento insti- g ressivam en te a se separar das co isas e a s e tornar suspeitas.
tucionaluma área d e ob se r vação privilegiada.»

"C r ia r a dife r e n ç a", suscitar a s "t e n s õ es" n a obra estudada. 36 J. C u lle r, In trod u ctio n . . . , o p. c it ., p . 13 . C f. a s pro p o sta s d o a u to r evocadas
a ci ma: "Ch a m e i te oria o s u p ost o n om e p ara u m ili mitado co rp us d e tr a b alh o s
Fala ndo d a teo r ia, os termos q ue u til iz a C u ller n ã o são m uito q u e con seg u iu d e s afiar e r e ori entar o pens amento [ . . . 1 torn ar e s t ra n h o o
d iferente s . Este ú lt i mo evoca, também, o fa to d e q ue a t e o r ia fa m iliar e t al ve z p ersu a dir leitore s a c o n c eb e r po r s i próprios p ens amento e
inst ituiç õ e s aos q uais se relacion e m em n o vo s ca m in hos." ; c f. ta m b é m "Teoria
" to r na e stranho o famil iar, nos força a conceber nosso obje to
é o que m odi fic a os p onto s d e v is ta d a s p ess o a s , fa z c o m q ue co nceb a m s e u
o bj e to d e es t u d o e s ua at iv idad e d e e s tu d a r d e u m mo do di fe r ente ." Ibid em.
35 A nn ie B riss e t , S o ci o critiq u e d e la t radu ction : Th éâtre et a lterit é au Q uébe c E e le ac resc e n t a : "A n at u re z a d a te o r ia é d e s fa z e r, m ediante u rn d eb ate de
(1968-1988) , Lo ng ue u il: L e Pré a m bule , 19 9 0 , p. 2 8 . prem issas e po stu lados , o q u e vo cê pen s a c o n hece r" Ibide m , p . 15 .
34 ALIô,\' 1 D O S LIMI T E S : U MA T E O R IA À P RO C URA DE P R ÁTI C A Q UE P OD E (O U Q UER ) A TEORIA D O T EAT RO ? 35

A n n ie Brisset fa lava da traduç ã o c omo réplica dos t e xto s Ev ide n temen te, não s e trata de est e n d e r derria is o paralelo
exis te n tes . A teo ria n ã o pode, d e m an eira a lg u ma, a ssumi r esse en t re tradução e teoria . O s o bjetivos visad os p o r esses d oi s proce-
papel. E la é s o m e n te interpreta ç ã o , questionamento d e um a d im e n to s "p rá t ic os" são bem diferentes, mas nem p o r isso deixa
o b ra. E la a exp lo r a, a f rag m e n ta, a desloca. de ser verdade q ue, ao co nsiderar o tra balho teóric o e m uma
Por isso, s e é imp o ssí vel e m todas as traduções atingir um a perspe cti va s imi lar, n o s é dado esca pa r d a s d icotomia s nas q uais
s irnet r ia real, fazer passar adequadamente urn sistema sern ân - nos e nca deamos com rnuita fre q uên c ia e n t re o p ens a r e o fazer,
tico a outro (passagem de uma língua a outra, de um s is tem a o corpo e o e s p ír ito, o v is u a l e o v e r bal, o es té tico e o polít ico.
discursivo a outro), é preciso admitir, c o m toda razão , que não Tal p e r curs o p e rmite, nã o obstante, ao e nca ra r a t e oria
é possível haver uma adequaçã o perfeita e n t re doi s s is te m as co mo u m es fo rço d e tradu ç ã o d e uma obra o u d e um proce-
co nce it uais t ão diferentes com o podem s e r uma representa ç ã o dimento, colocar como a prio ri , p ara t odo p roce d imento d e
teatral e a te oria que o a n a lisa . Aqui, como alhures, um pro cesso ordem teóric a , um ce r to núm e ro d e b ali za s e , p arti cula rm ente,
de entropia está sen1pre presente na obra e fa z com que haja a n e c e ssidade:
s e m p r e uma perda.
1. De certa escuta, para n ão dizer observa ç ã o fund am ental
Que esse longo processo seja ditado pelo desejo de melhor
da o b r a o u dos fen ôm enos que se quer estudar.
c o m p reen d e r os fenômenos é uma evidência, porém esse desej o
2. De ce r ta humildade ante a ex te nsã o d os saberes e d o s co n he-
s e duplic a junto ao te órico na vontade de explicar a obra. Ora ,
e m tal vontade existe um perigo inflacionista que Steiner a ssi - cimentos à o b r a na r epresentação e na sociedade que a integra.
nalou com propriedade: " P o rq u e a explicação é aditiva, porque 3· De um procedimento incursivo e extrativo frente à prática.
4· De uma interdependência o u diálogo entre a prática e a teoria .
s im p le s men t e não reafirma a unidade original, mas deve criar
para ela um contexto ilustrativo, UH1 campo de ramificações 5· Da n ecessidade enfim de pesquisar ao termo do procedi -
mento um determinado equilíbrio e n t re a fonte e o alvo.
atualizadas e perceptíveis, as traduções são inflacionárias [ . .. ]
Em sua forma natural a tradução supera o or igirial"." Tal r eflexão nos relernbra tamb ém de qu e o p e squisador
A teoria não escapa ao perigo q ue Steiner sublinha para a não deve e squecer que todo ato teórico o coloca, antes d e tudo ,
tradução. Ela extravasa muito do original, o ultrapassa, engloba, como suj eito da enunciação e e le próprio como sujeito neces -
se serve dele amiúde para assinalar outras vias. Com efeito, para sariamente inscrito no social e no político do discurso qu e ele
além da prirrreira pretensão do teórico que visa confrontar-se veicu la.
com uma obra de partida para descobrir o s aspectos, estrutu- Além disso, parec e que a interrogação fund amental que que -
ras, leis ocultas, se perfila o desejo freq uente de estender mais remos propor sobre o papel da teoria e m face da prática teatral
longe as investigações em direção à edificação de sistemas reúne a de todas as práticas discursivas (t r a d uçã o e encenação
mais complexos e abarcantes em que a obra-fonte toma, é certo, inclusa) . A teoria teatral, co m o a teoria literária ou ci entífica , pro-
seu lugar, mas de maneira marginal. A pletora espreita. c u r a a seu modo reinterpretar o mundo, traduzi-lo s eg u n d o o s
Por isso, jamais será possível dizer, a propósito do discurso parâmetros que lhe s ã o p rópri o s. A ssim procedendo, ela traduz o
t eórico, o que Steiner ponderava a propósito da tradução, que que o envolve tal qual o faz o artista frente à s u a própria prática,
e sta última existe não "em lugar de': mas "no lugar do" texto de ainda que com outros meios. Ambos apresentam, sem dúvida,
origern-". As construções teóricas estão condenadas a existir ao um discurso diferente, mas cujas finalidades são as mesmas: as
lado da obra, como complemento, trazendo um esclarecimento, de melhor fazer compreender o mundo, a s coisas e a s práticas
ce r t a m e n te diferente, mas necessariamente incompleto. que nos rodeiam.
A te o ri a a pa rece , po is, como- u ma p rática d e um a n atu re za
37 G. S te ine r, o p . ci t. , p . 29 1.
38 Ib id e rn , p . 271. divers a d a prát ic a artístic a , mas ainda assim um a p r áti c a .
36 AL lõM DO S LIMI T ES: UM A TEO RIA Ã PRO C U RA D E P RÁTI C A
3. A Crítica de uma Paisagem
Por isso, contrariamente a Brian McHale, nós endossa re- Cam íante:
mos de bom grad o as palavras de Virgil L. Lokke ao afirmar:

o que constitui a teoria não é uma essência ou algo imanentemente


superior à prática e a 'seu domí nio: é antes simplesmente outra pr ática
discursiva, gerando cer tos padr ões e marcações retóri cas, sinais para
um a dada cultura que o discurs o em pro cesso agora deslocou par a o
mod o teorético - isto é, que o discurso agora é teor ia praticante."

Não é dessa passagem perm anent e entre prática e teoria


qu e os praticante s como Peter Brook ou Antoine Vitez nos
oferecem o exempl o? Não é senão sobre essa base comum que
práti ca e teori a pode rão dialogar e cessar de se excluírem. Não
é senão ao preço de seu própri o requestionamento perp étu o
que a teori a sairá enfim do enclausuramento que a espreita. Os críticos j ulgam a obra e
nã o sabem que são julgad os por ela.
Trad. Fa ny Kon JEA N COCT EAU

o EXEMPLO DO ESPORTE:
O MUNDIAL, JULHO DE 1998

Estamos no domingo, 12 de julho de 1998. A Copa do Mundo de


futebol opõe na final França e Brasil. A França ganha por 3 a o.
Dentro de alguns minutos, estará finalizada a partida. Con-
tra todos os prognósticos, contra todo s os críticos de esporte,
pela primeira vez em sua história a França vai vencer o jogo,
entrando para o clube seleto dos ganhadores do Mundial. O
júbilo popular é sem precedente: 1,2 milhão de pessoas estão
na Charnps-Êlys ées, a França se reconhece por inteira nessa
equipe: azul, branco, magrebino, negro.
Mas, apenas terminada a partida, as televisões transmi -
tem em todos os canais a imagem do técnico Aimé [acquet e
toda sua cólera, uma cólera que não provém de ter vencido -
certamente, ele estava eufórico por isso. Não, sua cólera se
desencadeia contra os críticos e, mais particularmente, contra
os críticos do jornal ERquipe, o jornal desportivo que é lido por
39 Vl., Lokke, Narratol ogy. Obsole seent Parad igrns, and Scienti fie "Poetics; or
Whatever Hap pened to P TL ?~ Modem Ficticn Studies, n. 33. p. 550. ap ud B.
MeHale. Wh atever Happened to Deseriptive Poeties? M. Bahl, I.E. Boer (eds.), Confer ência m ini strad a no semi ná rio organ izado pelo Nordie [ournalist
op. eit.• p. 58. Ce nter, Tarnpere, Finlândia. jul. 1998.
ALtM DO S LIM IT ES: UMA TE OR IA A PROC URA DE P RÁTI CA A C R1TIC A DE UMA PAISAGEM CAM BIANT E 39
38

todos os adeptos do esporte. Durante os dois anos que durou o do público, eles que são considerados como os "cães de guarda
treinamento, os críticos esportivos não cessara m de censurar da sociedade"?
cada um de seus atos. Denunciaram sua incompetência, as más 3. Resta enfim a questão do papel do crítico: deve ele comen-
escolhas que fazia de jogadores , suas técnicas de treinament o... tar, analisar, julgar o que se submete ao seu olhar? Deve ter
Em suma, para os críticos e os jorn alistas, particularmente os uma empatia pelo trabalho do artista (ou do esportista)? Deve,
do L'Equipe, Aimé [acqu et não estava à altur a. "Um bando de ao contrário, permanecer do lado externo da empreitada sem
vagabundos" rugirá Aim é [acquet na noite da vitória , ao falar tentar compreender as etapas que aí foram conduzidas? Deve
dos críticos, reiterando alguns dias mais tarde sua opinião em contentar-se em analisar os resultados colocando-se acima da
termos tant o mais fortes: a Copa do Mundo "deve ser a recom- confusão, ser o olhar "objetivo" que reivindica? Ou, ao contrário ,
pensa daqueles que trabalharam como mouros e não daqueles tomar par tido e arriscar-se em dar uma opinião forçosamente
que se aprove itam dela, essas pessoas que gravitam em torno subjetiva? Q ue parcela deve dar à aná lise circu nstanciada e à
do futebol profissional e que ainda vão se ernpanturrar'" . crítica temperamental, apaixonada e parcial?
"Aqueles que se empanturram" são, certamente, os críti - Para ser exemplar, a história que precede é, no entanto,
cos e os jornalistas. Durante dois anos, Aimé [acquet tentou bem par ticular e não pode se aplicar ao domínio das artes. Na
ma nter-se long e deles e durante os dois meses dos jogos - nas verdade , o que torna as posições tão nítidas no caso do esporte
oitavas, nas quartas, na sem ifinal e enfim na final- ele se rec u- é que, no final do percurso, há sempre a sanção da vitór ia ou
sou a lê-los. Fechou-se em silêncio, longe das mídias, longe da da derr ota. Foi pelo fato de ter a equipe francesa ganh o que
im prensa escri ta. E depois, vejam! O time da França ganhou e Aimé Iacquet pôde ser tão virulento. Sua vitória lhe dá razão,
essa vitória dá razão ao técnico , ao seu tra ba lho, às suas esco- ela justifica seus métodos, suas estratégias. É por ter obtido a
lhas. Ela invalid a o qu e puderam pen sar os crí ticos d uran te vitória que pôde fazer calar a crítica.
todo o períod o dos trein amentos preliminares e dos primeiros No domínio ar tístico, sabemos que isso jama is será o caso:
jogos. Vemo- los, doravante, reduz idos ao silêncio. Fim dessa um ence nador não vence nu nca de mo do tão espetacular.
pequena históri a. Mesmo se o públi co lhe faz uma ovação de pé e sai entusias-
O que interessa desse pequeno desvio pelo espor te é que ele mado de um espet áculo, o crítico não se comove. Ele pode
oferece,em resumo e de maneira bastante clara, as posições habi- achar suspeita essa adesão sem reserva, essa alegria popular e
tuais de todo artista em confronto com a crítica. Visivelmente, o a explicar. Tal não o imp ede, a ele, de pensar diferentem ent e.
paralelo aproxima esport e e arte. Ele afirma - ou reafirm a: Um sucesso popular não invalida, pois, jamais a crítica - e Aimé
1. A convicção junto aos artistas (e aos esportistas) de que [acquet, mesmo ganhando no domínio ar tístico, poderi a da
existe superioridade de ação ("aqueles qu e tr abalh aram como mesma forma ter errad o. Por outro lado, um a dolorosa derrota
mouros") sobre a opin ião pa ras ita dos come ntado res ("eles não imp ede um sucesso de crítica. Afinal, os primeiros da fila
ainda vão se empanturrar"). são amiúde ignorados pelo grande público .. . Estam os, pois, no
2. A dist ânci a qu e opõe por vezes, para não dizer co m fre- direito de colocar a questão de qual é o pap el da crítica hoje e
quência, os críticos ao público. No caso do Mundial, aparece qual o papel que ela ainda pode vir a ter?
nitidame nte que o público sempre teve fé em sua equipe, que foi
mesmo a fé que impeliu os jogado res. Se o pú blico é afavor e os
críticos são contra, em nome de quem falam, pois, os críticos?
São na verdade seus próprios representa ntes ou falam em nome

2 Le Monde. 18 jul. 1998 .


40 ALÉM DOS LIMIT ES: UMA TEORIA À P ROCURA DE PRÁTI C A A CRITICA DE UMA PAISAGEM CAMBIANTE 41

SEGUN DO EXEMPLO : TODA PALAVRA SOBRE O TEATRO


SETEMBRO DE 1983, O MEIO ARTÍSTICO É UM ATREVIMENTO
CONTRA A CRÍTICA
O que esses diversos exemplos sub linham é que toda palavra
Em 16 de setembro de 1983, foi publicado no jornal LeDevoir uma sobre o teat ro - e sobre as artes em geral - é um atrevimento.
crítica de Robert Lévesque, jornalista encarregado da rub rica de Ela carrega em filigrana duas questões fundamentais:
teatro, sobre a peça Visite libre (Casa Aberta) de Michel Faure,
1. Apoiado em que direito fala o crí tico da obra artística? A
um espe tác ulo em car taz no Théâtre de Quat'so us. A crítica
que título? Em nome de quem ou de qu e ele fala?
foi severa. O meio, sempre crítico da crítica, se choc a com o
2. Como falar da obra artí stica ? O qu e dizer? Co mo tradu zir
artigo que considera violento e injustificado. Decidem boicotar
em palavras o que é relevante de ser feito?
o jornal recusando toda publicidade em suas páginas, recusando
oferecer entradas gratuitas ao crítico e recusando as entrevistas. Tais questões pressupõem uma concordância de definições
Cento e cinquenta e seis artistas e artesãos da peça assinam uma sobre o que é preciso entender por "criticá: Ora, essaconcordância
petição denunciando os rigores do crít ico, seu tom virulento, é ilusória. Ela cobre duas realidades diferentes conforme se faleda
suas críticas acerbas. O debate se agrava. Todo o meio reage. O criticacomo horizonte de espera ou como prática da vida cotidiana.
público intervém no debate e envia cartas de denúncia, fustigam Digamos primeiramente que a prática artística, a prática da
amiúde os artistas. Alguns jorn alistas aproveitam para acertar critica assim como a prática da teoria são fundamentalmente três
suas contas e acusar tamb ém o meio art ístico. Eles denunciam modos de tradução do mundo: o crítico traduz em palavras sua
a insegurança visceral dos art istas, falam de um a "matilha de visão da arte, o teórico tradu z em palavras sua visão da prática.
raivosos", denunciam até a complacênc ia das críticas, dando Que a arte seja tradu ção das coisas é afirmar que toda form a de
uma considerável publicidade gratuita e, por vezes, injustificada arte é de antemão crítica; que ela dá o que pensar. Era àquela
aos arti stas, esses esfolados vivos, que não hesitam em solicitar altura a visão de Antoine Vitez afirmando que o encenador faz
a ajuda pública sem querer prestar contas. O debate toca tod os antes de tudo obra de tradução' . Era também, desde a origem, a
os críticos. Dentre aqueles, um a que acabara de publicar uma visão de Aristóteles afirmando em A Poética que o poeta traduz
crítica à Sorciêres de Salem (Bruxas de Salém ), até recebe pelo em palavras as coisas.
cor reio um a bon eca vodu trespassada de agulh as. Como em toda a tradução, a questão que se coloca para a crí-
O caso acabará por voltar ao normal, os teatro s retornando tica assenta sobre a natureza da tradução que opera . Tratar-se-a
a ter sentime ntos melhores par a com os críticos, os críticos por de uma tradução fielda obra de arte sob forma de testemunho ou
seu lado reencontrando um pouco de sua serenidade nesse de comentário sobre o modo de pensar do artista? O crítico tra-
debate em que as paixões se inflamaram}. balhará então por empatia com o artista, entrará em seu universo,
O qu e essa crise sublinha, próxima de um acting out explorará seu processo de trabalho, suas intenções, sublinhará
(atuaçã o) coletivo é, uma vez mais, o mal -estar geral do meio seus objetivos independentemente do resultado obtido? O crítico
art ístico ante à crítica teatral, tolerada, mas não verdadeira- oferecerá daí um trabalho próximo a uma leitura tautológica da
mente aceita, sobretudo quando ela é negativa. O meio admite obra, oferecerá um espelho apenas distorcido e não será senão
".
mal que a crítica se ar rogue o direito não apenas de julgar, mas um elo suplementar na corrente que conduz a obra de arte ao
de denu nciar. No fun do, ele adula a crítica quando ela é posi- público, prolongando os revezamentos dessa trajetória qu e vai
tiva; tolera-a quando é neutra; e contesta-a quando é negat iva. do art ista ao espectador.
3 Para um relato detalhado desse acontecimento, ver Pierre Lavoie, Aimer se
faire haír ou haír se faire aimer, Cahier de Th éãtre lEU, n. 31, 1984, p. 5-13. 4 Ver supra, p. 30, nota 30 .
42 AL!ÔM DOS LIMITES: UMA TEORIA À PROCURA DE PRÁTICA A CRITIC A DE UMA PAISAGEM CAMBIANTE 43

Ao ocupar uma fu nção de cron ista ou co mentar ista, d e correntes que a história recuperou em seguida como referências
comentador ou escriba, ele se co ntent ará em fazer eco às obras para pensar a h istória da arte" ,
artísticas de maneira sem d úvida esclarecida, ma s necessaria- No domínio teatral, alguns pesq uisadores realizaram esse
mente insuficientes. Tornado porta-voz, sua p er so nal idade, trabalho, mas com menos envergadura, sem dúvida, do que
sua identidade se perderá na sombra do andamento da criação aqueles que se consagraram às artes plásticas. Max Herman na
que escolheu esclarecer. Para ser necessário, esse trabalho do Alemanha, [an Kott na Polônia, Martin Esslin nos Estados Uni-
crítico não é menos limitado e pode-se pe rguntar se tal é sua dos e, sobretudo, Bernard Oort na França, são alguns exemplos
verdadeira fu nção. dos que realizaram tal trabalho de recuperação e deco dificação
A segunda forma de t radução da obra de arte é a de um das obras teatrais, permitindo ler a história do teatro de seu
olhar crítico mais analítico e, portanto, necessariamente defor- tem po, pressentindo as novidades e analisando todas as prát icas
mante . Pode-se tra d uzir sem tr air, propondo-se com o qu est ão de sua época, int egrando-as na persp ectiva mais vasta de um
o problema dos esp ecialist as da tr adução? A questão se coloca trabalho sobre um domín io pa rticu lar: teat ro, artes plásti cas,
necessariamente no domíni o da crítica. Toda crí tica é traição. m úsica, cinema ... Bernard Dort permanece um modelo do
Mas podia ser diferente? No mundo de hoje , o crítico não pode gênero, ele que soube aliar finura de análise, con hecime nto
m ais se co nte ntar em receber a obra de maneira inocente. Para aprofun dado do tea tro, desejo de pen sar a his tó ria e a arte da
lh e d ar sentido, deve fazê-la operar em um tod o mais vasto: escritura. Suas an álises críticas, que apa rece ram ao m esm o
d eve fazer referência ao encaminhamento global do artista, tempo em jornais e rev istas especializadas, permane cem como
insc revê- lo em um m ovimento estétic o, marcar seu percurso referên cias ainda hoje . Essa vitó ria da crí tica so bre o tempo é
em relação às correntes dominantes. Deve de alg uma forma o princip al sinal de sua pertinênc ia.
reescrever a obra ao seu m odo, mostrando a originalidade ( O U De forma mai s modesta, outros crí ticos como Bonnie Mar-
a ausência de originalidade), faze ndo-a dialogar com as outra s ranca e Théodore Shank so uberam dar, cada qual a seu m odo,
obras, situa ndo- a de novo no de sen volvimento da his tória. Um um n ome a certas co r rentes artístic as, desenhando eixos qu e
traba lho crítico que não faz tal labor de construção analítica e foram retomados em seguida para desenhar o mapa do teat ro
teórica se co ntenta em ser um espelho muito pálido da reali - atual: teatro de im agens, teatro alte rn at ivo... Esse tr abalh o que
da de artís tica. Não preenche sua fun ção . baliza a prát ica permite esta belecer a cartog rafia da prát ica de
Impelid o para mais longe, como ocorre no domínio d as nossa época. Sem isso, haveri a um mosaico em que a prát ica de
ar tes plást icas mais do que no domínio do teatro, isso leva o cad a um se jus ta poria a dos o utro s, se m que dessa multiplici-
crítico a im prim ir no campo cultural que escolheu percorrer os dade emergisse uma leitura globalizante e necessária segundo
sulcos co rresp on den tes ao s m ovimentos, tendências, corren - a qu al cada obra ganha sen tido em um vasto co njunto.
tes artísticas que ele tenta assinalar e até nomear, dando -lhes É preciso, pois, qu e o crítico atual pense a arte contempo-
por veze s existência em meio às leituras e observações q ue faz: rânea, faça emergir con ceitos no vos, correntes qu e vão permitir
pensamos nos escritos de Clément Greenberg, de Rosenberg a todos assinalar e criar a história de um a arte.
ou me smo de Baudelaire ou de Oiderot sobre a pintu ra. Eles
so ub eram , a seu m odo, fazer ver aq u ilo que os artist as mes-
mos não viam de sua própria prática, situa ndo-os nos grandes 6 Aconteceu, é claro, de chegar a se enganar. Os escritos de Baudelaire a respeito de
certos pin tores pretensiosos da época sobre os q uais gabava os mérito s (Bougue-
movim entos estéticos que agitavam o mundo deles, revelando
reau) não sobrevi veram ao tempo e. no entanto, o trabalho de reflexão critica que
Baudelaire realizou é um exemplo notávelde análise e lucidez criticas. Cf tamb ém
5 Era a política editorial do The Drama Review sob Michael Kirby. Toda análise 'hoje toda a polémica lançada por Jean Clair sobre a arte contemporânea é outro
dos espetáculos era co lada a um desejo ilusório de estar o mais pr óxim o da exempl o do papel fundamental que pode ter o critico a despeito da parcialid ade
obra artística sem o filtro pessoal e deformante do olhar do analista. de que tais combates são portadores.
44 ALÉ M DOS LIM ITE S: UM A TEORIA À PRO C UR A DE PRÁTI C A A C RITICA D E UMA PA ISAGEM C AM BIANTE 45

É evide nte que para concl uir tal trajetória, as competências rapidamente, o texto (se for necessário) , diz algumas palavras
do crítico atual diferem necessariamente das de outros tem- sobre a encenação, a atuação dos atores, a cenografia. Faz, pois,
pos . Elas necessitam de um saber teórico, estétic o e artístico para o espectador, um trabalho inicialde filtragem. Para executar
importan tes. Necessitam por isso, compreende-se bem, que as tal tarefa, é necessário que tenha discernime nto e a possibilidade
competências do crítico difiram daquelas que lhe são comu- de especificar, de denominar as coisas. Para assim fazer, ele
mente solici tadas. É preciso que ele seja analista e tenha um designa as obras que merecem atenção. Seu trabalho habitual-
conhecimento especializado do domínio que escolheu percor- mente se interrompe aí. Raros são os casos em que estende mais
rer /, Do tado de uma visão mais vasta do que a do artista preso além a análise, indicando pistas, situando mais amplamente a
na rede de sua própria forma artística, deve poder elevar -se obra em um contexto histórico e estético mais vasto.
acima do campo cultural para poder analisá- lo com distancia- Escrevendo sobre seu ofício de crítica, Solange Lévesque
men to. Ele deve, pois, ter uma visão. "O crítico atuan te é aquele assinalava que para ela importava "receber e anali sar a obra
que já descobriu por si mesmo o que pod eria ser o teatro': nota teatral utilizando a si mesma como primeiro instru mento, e de
Peter Broo k, "e que tem a audácia de recolocar em questão essa se deixar vibrar da maneira mais precisa possível'>. A expressão
fórmula cada vez que participa de um acontecimento'". parece bastante exata na visão que é mais comumente propalada.
Essas novas necessi dades da crítica explicam sem dúvida Ela sublinha o que causa o perigo da crítica (mas também sua
as razões pelas quais hoje as po ntes entre crítica jornalística e grandeza): tornar a crítica tributária da personalidade do crítico.
crítica eru dita são mais fáceis de transpor. Numerosos pesqui- Concebida assim, a crítica por vezes parece sem risco e tem
sadores, na verdade, se entregam a uma ou a outra segun do as uma duração de vida limita da. Consu mida rapidamente, não
necessidades dos órgãos nos quais publi cam. A crítica erudita deixa senão poucos rastos. Ela só é útil como reação epidérm ica
perdeu sua soberba e tornou -se menos esotérica, a crítica jorn a- para um espetáculo em curso. O crítico aparece aí como um
lística aspira, por seu lado, ser menos superficial. Tal é a imagem "cão de guar da" da sociedade, encarregado de citar seu prazer
do crítico qu e se poderia desejar. A realid ade da profissão é ou seu tédio e, por tanto, indiretamente de servir de diapasão
completame nte outra . ao resto do públi co.
Mas ele pode fazer mais. Se atualmente não precisa respon-
der à questão "o que é a arte?", quest ão outrora fundamental,
DESCREVER, INTERPRETAR, JULGAR ele pode apresentá- las como obras que extravasem o que dizer
a respeito delas, que são os enigmas a cujo respeito tem a sen-
De fato, na acepção comum, um crítico é aquele cuja leitura sação de qu e a aná lise não é capaz de esgotar o sentido. Ele
das obr as se que r, em princípio, "esclarecida'; no sentido que pode apresentá- las como obras aber tas ao lhe abr ir as portas.
o sécul o XV III dava a esse termo. Não se trata de fornecer a Evitando os dois perigos que o espreitam - o dogmatismo
leitura do que aparecer, mas oferecer uma leitura documentada, e o impressionismo -, ele pod e ter em mira aproveitar a cau-
analítica, informativa. Agindo como primeiro filtro do espe- salidade ent re a forma e o efeito pro duzido, entre a sensação,
táculo, ele informa o espectador, esclarece a obra, situa de novo, a emoção e o que a causa. Assim procedend o, o percurso do
artis ta permite ao crítico traçar o seu próprio percurso, bali-
7 No domínio do esporte, por exemplo, os comentadores espo rtivos são ex- zando a obra artística sem tom ar seu lugar ou oc ultá- la. É
-atletas. Sem querer que os críticos de teatro sejam ex-arti stas, é importante
preciso que encontre um equilíbrio difícil entre a originalidade
que seu conhecimento da prática arti stica se apoie sobre outra coisa do que
apenas na competência de espectador: é necessário que tenham um bom de seu próprio mo do de reflexão e o respeito pelo trabalho
conhecimento da dramaturgia,da prática teatra l em seu conjunto não apena s
local, m as além da [romeira. 9 s. Lévesqu e, Por trait du cr itiqu e en créateur, Cahiers de théâtre lEU, n. 40,
8 P. Brook (1968), L'Espace vide , Paris: Seuil, 1977. p. 53. 1986, p. 61-65.
46 A L1Ô M DOS LIM ITES: U M A TEORIA A PRO C URA DE PRÁTI CA A C RIT IC A DE UMA PAISAG EM CAM BIAN TE 47

do ar tista, esforçan do-se por deixar ver a obra através de suas ele se torna o espectador básico ao qual supostamente ele deve
palavras sem ocultá-la e sem tomar seu lugar" . se dirigir. Há, po rtanto, uma indigência da crítica voluntaria-
Tal exige de sua parte um "atletismo do pe nsamento': a mente promovida pelas mídias de massa. O críti co é incitado,
fim de desentocar o sen tido, de fazer significar as obras além pelo pouc o espaço que lhe é dado , pelos breves prazos que lhe
de seu primeiro e imediato sentido, de nomear as formas para são impostos, a nã o tomar distância em relação às obras, a
permitir qu e as "reconheçamos': Dito de out ra maneira, seu evitar toda argumentação verdade ira para escorar seus julga-
encaminhamento po de e deve ser criativo, como o do artista. mentos. Ele se deixa, pois, levar por julgamentos que partem
Os melhores críticos são aqueles que têm , também, o exercício do coração (ele gosta ou não gosta). Não é espantoso que vários
de um pensamento pessoal, que são criativos, pesq uisadores, críticos acabem por subst ituir seus próprios gostos , sentimen-
ensaístas. Co nverg imos nesse ponto com Peter Brook. tos, emoções, para se colocar diante da obra com o perigo de
Essa visão idílica, entreta nto, é infelizm ente amiúde fal- ocultá-la completame nte. São eles próprios que se termina por
seada por out ra realidade e um jogo de poder que ultr apassam ver por detrás de sua crítica e não a obra. O crí tico acaba por
ao mesmo tempo o artista e o crítico. se apresentar como espetáculo, feliz pela ocasião que a obra
artíst ica lhe concede de se colocar a si próprio em cena. Sua
popularidade, ele a deve, para começar, não ao seu talento, mas
A CRÍTICA: ao meio que o carrega e que o projeta em evidê ncia a cada vez
UMA GAMA VARIADA DE PRÁTICAS que ele tom a a palavra para falar de uma obra . Na maioria das
E DE ID EIAS vezes enfrenta po ucos riscos nesse longo processou.

Efetivamente, a realidade da prática é outra. Forçoso é cons-


tatar qu e a profi ssão de crítico oscila com frequência entre o A CRÍTICA CO MO POD ER
discurso complacente e tautológico sobre a obra de art e em que
se apresenta na cena o discurso do mesmo e um discurso em A isto se acrescenta um segundo pro blema de impo rtância que
que o crítico se faz passar por juiz e sua opinião se apresenta não se pod e deixar passar em silêncio. A crítica é poder. O
como espetáculo, exibindo-a em cena, justificando-a por vezes crítico se ben eficia, quer queira qu er não, de um argumento
como um processo até certo ponto executado. de autor idade, do qual, por vezes, parece abusar. Com efeito,
Para isso, podem-se encontrar várias razões. Uma dentre elas,
a mais importante sem dúvida , é que a crítica atual sofre de uma 11 Aqui aind a é preciso estabelece r nuan ças e variações. Se todo s os críticos
falta flagrante dé referências. Ela não é uma ciência e não pôde se reúnem aparentemente sob uma única bandeira , a realidade do que eles
se dotar, apesar dos anos, de um aparato científico adequado. Ela concluem difere profun dame nte de um para outro segundo a personalidade
de cada um e, mais ainda, segundo o órgão de imprensa para O qual escrevem.
permanece antes de tudo uma arte tributária da arte de escrever. Qual O parentesco que existe entre os críticos da televisão, do rádio e os que
Além do mais, ela geralmente se apresenta à imagem das escrevem nos jorn ais? Nenhum. Os primeiros são comentadores em geral
passivos da atualidade teatral , os segund os, de acordo com os casos, tentam
mídi as às qu ais se destina. São estas últimas qu e lhe imp õem
assinalar na paisagem teatral as atividad es dignas de interesse, as come ntam
não apenas sua forma, suas escolhas, mas igualmente seus con- e as analisam proc ura ndo informar o público. É preciso, por tanto, começar
teúdos. Ela desposa o mínimo denominador comum. por diversificar um vocabulário que dê a impressão ilusória de que todos os
críticos fazem o mesmo trabalho, qualqu er que seja o órgão de imprensa ao
Esse m odo de funcionam ento justifica a incompetência qual se consagram. Ora , o crítico que escreve nos jornais de grande tiragem,
artística do crí tico; não é senão segundo essa qu alidade que o cronista que anima uma emissão cultural na televisão ou no rádio, o analista
que publica nos jornais especializados, aquele que se contenta em fornecer
os ecos ou seus humores sobre a atividade cultural e artística, não têm nem
10 Duchamp nos record a qu e são os contempladores que fazem o quad ro. os mesmos imperativos, nem as mesmas exigências.
48 ALI:M D O S LIM ITE S: UMA T EO RIA A PRO C UR A DE PRÁTI C A A C RiTI C A DE UMA PAISAGEM CA MB IAN TE 49

se a crítica é intolerável para o arti sta (sobretudo qu and o é crítica, pois, cede u o lugar tamb ém à função espetacular, tor -
negativa), é porque participa de um jogo de poder cujas forças nando-se um espetáculo em si. Não são mais as obras que são
são em geral desiguais . Se encenadores com o Robert Wilson, valorizadas, mas o próprio crí tico servindo-se amiúde de tal
Peter Brook, Peter Sellars, Ariane Mnouchkine", pod em não terreno para se colocar em cena. A própria obra de arte se perde
dar importância à crítica é porque a do mina m com tod o o atrás de seu valor como acontecime nto.
peso de sua arte. Eles pod em ignorá-la com soberba sem que Último ponto, relativo ao desequilíbrio que se estabelece
isso afete profundamente sua arte ou seu talent o. Mas, para a entre o artista e o crítico, é qu e este último não tem contas a
maioria dos artistas, não é o mesmo caso. A crítica e o crítico prestar a ninguém e, no entanto, por vezes a parcialidade de
têm uma incid ência imp ort ante sobre a frequência do público, seus julgame ntos autorizaria, e até mesmo exigiri a, um direito
o financiamento e as subvenções do s quais eles se beneficiam, de resposta do qual o arti sta é necessariamente privado. O crí-
o reconhecimento do meio, dados que ninguém pode ignorar. tico se beneficia , pois , de certa imunidade, qualquer que seja a
A isto se acrescenta uma relação de forças que desfavorece natureza (ou a violência) de suas palavras.
o arti sta e que toca um número de indivíduos atingidos pela Acres centemos enfim que, segundo o país , segundo as
crí tica e por um espetáculo. Se Mnouchkine chega a alcançar cidades, segundo os casos, a incidência das críticas é mais ou
com alguns de seus espetáculos pert o de 250 mil espect adores menos considerável sobre a frequentação dos espetác ulos. É
(Os Átridas, as peças de Shakespeare), poucos artistas pode m relativamente fraca qu ando aquelas são dirigidas aos encena-
dizer o mesm o. Eles atingem, no melhor dos casos, algumas dores mais renomados , é pouco diss uasiva em cidades onde
dezenas de mil hares de espec tado res lá on de o crítico, pelo há uma diversidade de órgãos de imprensa, que raramente são
poder de seu órgão de difusão, alcança de imediato várias cen- da mesma opinião, mas se torn a importante qu and o incidem
tenas de milha res (jornais, televisão, rádio). Em número de sobre as companhias jovens ou encenadores ma is dependentes
pessoas atingidas, o peso de um ar tigo fica evidenciado, pois, da opinião pública. A responsabilidade da crítica nesses últimos
como infinitamente mais atuante do que aquele do espetáculo. casos é, portanto, gran de.
Ora, qu an to tempo o crítico investiu em uma crítica? Apenas
algumas horas lá onde o ar tista empenha o trabalho de vários
meses, senão alguns anos. É verdade que o "tempo em nada UMA ARTE AMEAÇADA
interfere na questão", mas é evidente que essa diferença suscita
ali também um problema ético. A despeito do impacto importante que a crítica possa ter sobre
Por outro lado, quando a crítica não é concebida de modo um dado espetáculo, é preciso reconhecer, tod avia, que esta
criativo, como tentamos apresentar acima, ela permanece um não tem senão uma incidência limitada sobre a evolução da
exercíc io superficia l de digestão rápi da da obra ar tística. A arte e, com mais razão, sobre a socie dade. E, contu do, a des-
esse trabalh o superficial nos induz tod a a nossa soc iedade e, peito desse dom ínio bem exíguo que lhe é reservado, ela está
partic ular me nte, as m ídias de massa que se apoderaram das ameaçada. Em nossos dom ínios, há rarefação do espaço crítico.
obras artí sticas como bens de consumo, em busca de eventos Na verdade, a ar te da crítica está ameaçada por tod a no ssa
culturais, do mesmo mod o como são eventos sociológicos ou cultura de massa que recusa a crític a. Está ameaçada pela era
políticos, transformando tud o em espetáculo em si. A fun ção das mídi as, na medida em que ela tem senão um fraco impacto
frente ao que as mídias podem trans mitir. Sofre, por outro lado,
12 E, no enta nto, o próprio Th éâtre du SoleiI no tava que as críticas que tardam a concorrência da pu blicidade, pela multiplicação de cópias
a sair os obr igam por vezes a fazer um a camp anh a publicitária que não havi a
sido prevista, pois o trabalho de d ifusão da inform ação tarda a se fazer. Foi o
promocionais nos jorna is, pelas entrevistas dadas pelos artistas
caso, parece, para Et So udain des nu its d éveil (De Repente, Noites de Vigília). para anunciar e explicar seu trabalh o. Seu campo de ação está,
50 ALÉM DO S LIMI TE S: UMA T EOR IA À PRO CU RA DE PRÁTI C A A CR IT ICA D E UMA PA ISAG EM C AM BIANTE 51

po is, terrivelmente restri to. Daí a necessidade de lhe enco ntrar vista do público, Sandier tem razão. O crítico deve preencher tal
um novo sentido na falta de lhe encon trar novas formas. papel. Ele é mesmo o único que pode fazê-lo. Do ponto de vista
Ademais, perante a fragme ntação, ao parcelamento das prá- do artista, a coisa é mais difícil de aceitar. O arti sta não pod e
ticas, à sua multiplicação que faz com que seja impossível para senão sentir-se necessariamente lesado pelo procedimento.
o crítico tudo ver, esse perdeu a função política e social que lhe A dificuldade se prende às exigênci as contraditórias que
dava sentido: a de formar o gosto do público, de orientá-lo, de impomos ao crítico. Sua arte é em primeiro lugar "arte de
canalizá-lo. Tendo perdido por isso seu objetivo inicial- aquele combate", certamente, segundo a expressão de Sandier, ma s
reivindicado por Diderot e Baudelaire - de forma r o gosto ou é também uma "arte de solidariedade", solidariedade com o
mesmo o julgamento, de ensinar o discernimento, tal como pode- meio artístico ameaçado em nossas sociedades, uma arte que
mos pensar que ela fazia outrora, a crítica se contenta atualmente deve sempre provar a sua necessidade . É também uma "arte do
em inscrever uma individualidade suplementar, a do crítico, à diálogo", diálogo com a obra, com o artista, com o público . Ele
de todas as outras individualidades que constituem a tram a de é aquele que permite tornar coletivo o que realça do par ticu lar.
nossas sociedades explodidas . Ela dá, pois, inde vidamente um Ameaçada, a arte da crí tica não permanece menos essen-
lugar exorbitante ao parecer de um único sujeito. cial. A co~tin uar por praticá-la como o fazemos nas mí días, não
Q ue lhe resta ? No melh or dos casos, ela inscreve um a será em breve senão um a sobrevivência do passado sem urgên-
solidariedade com o meio, com o pú blico, com a sociedade cia e sem necessidade. Por falta de encont rar novas referências
(Lucie Robert); ela converte o crítico em "cúmplice da aventura no mundo atuaI, ela será levada a desaparecer ou a sobreviver
teatral, o parc eiro de criação" (Pierre Lavoie), ao conduzir uma como vestígio s de um outro mundo. É preciso, pois, que o crí -
"formação do olhar': Tal papel não é desprezível. tico reassuma com tod a urgência sua responsabilidade social e
Mais imp ortante aind a, ela inscreve o espaço na obra , uma sua função estética. Utilizando sempre com circunspecção sua
distância entre o espetác ulo e o espectador, entre a recepção subjetividade e explorando o espectro comp leto do saber, qu e
e seu tratam ento pelo pensament o. O crítico analisa esse per- vai da reação epidé rmica aos espetáculos até as análises mais
curso qu e vai da reação epidé rmica, gostar ou não gostar, às aprofundadas, é preciso qu e ele efetue a ligação entre emoção
imp ressões mais profund as. Ele traça os caminhos, faz as liga- e conhec ime nto, ten do consciência qu e esc reve a história ao
ções . Insc reve o afastamento no seio da experiência estétic a. deline ar o traçado do futuro.
Afirma que toda obra artística exige reflexão, que ela não é sim-
plesme nte um bem de cons umo imediato e sem consequ ência, Trad. Fany Kon
qu e par ticipa de um conjunto soc ial e estético e que faz parte
de um a coletividade. A atitude indi vidual do arti sta encontra o
coletivo. É ela que permite tornar coletivo aqu ilo que depende
do particular. Mesm o sendo produto de um indivíduo, ela é,
antes de tudo, destinada a todos. E, destinada à coletividade, a
pos ição crítica se justifica. A coletividade delega um indivíduo
para repre sentá-la, e este último faz a relação com a coletivi-
dade. Sem essa missão social, a função do crítico seria obscena,
intolerável.
Existe então um a crítica justa? Provavelmente não. Gilles
Sandier reivindicava o "direito à indignação': Como fazer para
que esse direito não seja abusivo? Considerado do ponto de
4. Teoria e Prática:
Além dos Limites'

Digamos, num primeiro mom ento, que o dom ínio da pesquisa


teatral, como o da busca em outras disciplinas artísticas (artes
plásticas, música) traz em seu cern e uma cesura, uma ruptura
que opõe o mundo da prática e o da teoria. De um lado, figura
o universo do artista e de seus lugares de referência, do outro,
aquele do pesquisador e de suas categorias epistêmicas. Entre
os dois, o decurso passa com pouca dificuldade , passa com
dificuldade ou não passa absolutamente. Esta clivagem está
presente, é preciso reconhecê-lo. Mesmo contorna da às vezes
por uns ou outros - arti stas ou pesqui sadores - , ela não deixa
de ressurgir quando cada um se embrenhar na lógica de seu
próprio encaminhamento intelectual.
Pode-se distinguir esta clivagem com o um a situação ine-
vitável que se refere à natureza de cada disciplina (a prática de
uma arte ou a reflexão sobre uma prática ) ou à forma de cada
atividade (a prática buscando a construção de um objeto artístico,
a pesquisa visando ao desenvolvimento do conhecimento). Mas
a esse respeito pode-se também interrogar seu sentido e seus
fundamentos, explorar as razões dessa ruptura. Numa época em

Texto aprese ntado na abertur a do XVIII Congresso da FlRT-IFTR (lhe Inter-


nation al Federa tion for lheatre Research) , Canterbury, em julho de 1998. cujo
tema aborda do era precisamente lheórie et pratique: au-delà des limite s.
TE ORI A E PRÁTICA : ALÉM DO S LIMITES 55
54 ALÉM DO S LIMI T ES: UM A TEOR IA À PRO CU RA DE pRATIC A

que inúmeras pesquisas teatrais ocorrem na Amér ica do Norte ou naquele canto do mundo tudo isto já pertence à norma. Eu
no seio de escolas de teatro que formam atores, essas clivagens, gostaria, portanto, que isto fosse apreendido como o olhar, forço-
se não são dolorosas , são pelo menos prob lemát icas. Elas nos samente parcial e parcelar da cientista que sou, no nosso campo
obrigam a interrogarmo-nos acerca da natureza dos processos disciplinar. Estou feliz que o tema do congresso me ofereça esta
que opõem, deste modo, o encaminhamento do praticante e o possibilidade que desencadeia a questão dos limites.
do pesquisador. Não há, da parte de uns e outros, ausência de A noção dos limites é essencial em tod o camp o teórico. Ela
compreensão dos encaminhamentos próprios a cada um, não há é indispensável à edificação de um campo de análise homogê-
arrogância dos pesquisadores ao constatar que estamos satisfei- nea. Ela afirma impli citamente o que faz parte de um campo
tos com nossos próprios domínios de exploração, indiferentes à de estudo e aquilo que dele é excluído. Falar, portanto , de
rejeição do limite de nossos campos de competência, ao enfren- limites é constitui r necessariamente um interior e um exterior
tarmos domínios da arte teatral em que os instrumen tos que de um campo específico , uma abordagem teórica particular.
nós instalam os não são suficientes para ana lisar? Onde estão Tal clivagem, todo cientista realiza-a automaticamente assim
os questioname ntos fund amentais relativos à nossa disciplina? que recorre a uma metodologia ou teoria específica, desde que
Quan do nos interro gamos a respeito dos limites de nossos pró- escolha uma determinada compilação. Nós falaremos, portanto,
pri os instrumentos metod ológicos? Das fronteiras de nossos de du as formas de limites: a que concerne a uma aproxima-
campos de análise? Parece-m e que atuamos muito melh or às ção teórica determinada; e aquela que é relativa tamb ém a um
vezes, para não dizer frequentem ente, na convicção de nossos campo de investigação par ticular.
sistemas realmente expe rim entados do que nessas zonas mais Falar de limites é desencadear certo número de observações:
problemá ticas, terra de ninguém das posições front eiriças. a. No domínio científico, leis são consi dera das como verda-
Gostaria, portanto, de aproveitar a ocasião, que me oferece deiras e opera tivas, desde que elas não sejam confrontadas a
hoje o tema do congresso, para inte rro gar o campo disciplin ar casos em qu e elas cessem de ope rar, portan to desde que elas
no qu al nós todos operamos e par a tent ar ver algumas de suas não tenh am atingido certos limites na sua aplicação. Quando
lim itações. É evidente que não trato de submeter à discussão estes são atingidos, é corren te que outras metodologias sejam
tudo o qu e acontece nos diver sos campos de esp ecialização, descobertas para prestar contas da evolução das coisas. Falar,
realizações reais e qu e construí ram, ao longo dos séculos, uma portant o, de limites é interrogar, num pr imeiro momento, os
base fundamental aos nossos conhecime ntos, mas gostari a de funda mentos episte mológicos sobre os quais funcio na toda
me avent urar nessas zon as não tão frequentadas, nos confins pesqui sa teatral.
de nossos sistemas, de nossas metodologias, de nossos campos Segundo Michel Henry, "Toda ciência constitui-se numa
de pesqui sa e de criação para ver o que nossas abordagens dei- redução que delimita o própr io campo e lhe fornece seus obje-
xam habitualmente no esqu ecim ent o. Meu trabalho não será tos - contudo, na med ida em que ela coloca fora de jogo nesta
nem sistemático nem exaustivo. Ele se constitui num tracejado redução, e por ela, tudo com o que ela não se preocupa - o que
dos aspectos do teatro que me pare cem esquecidos ou insufi- no fundo de suas decisões iniciais, ela não será jamais um tema:'>
cientemente desenvolvidos, ou porque evoluem em tais zonas Tal modalidade de funcionamento que descreve Michel
fronteiriças de nossos campo s disciplinares (desempenhos lim i- Henry para a ciência aplica-se muito seguramente ao teatro .
tes), ou porque não temos os instrumento s para apreendê-los Tod a aná lise teatr al, tod a metodologia, tod a teor ização se
(trabalhos sobre os conceitos imprecisos de energia, presença, constrói através de um a redu ção que delim ita seu obje to. Esta
interpretação do ator).
Sem dúvida, haverá alguns que me dirão que vão me julgar, 2 M . Henry. Descarte s et la qu estion de la technique, Le Discou rs de la m éthode,
que tud o isso já é objeto de estudos apro fun dado s, que neste Paris : P UF, 1987. p. 28 5.
56 A LEM DO S LIMITES: UMA TE OR IA À PRO C UR A D E PRÁT IC A
TEORIA E PRÁT ICA : ALEM DO S LIMI T ES 57

limitação, nós queríamos pô-la em destaque em algun s casos estamo s engastados, prisioneiros. Ilimitados, não somo s mais nada! A
específicos realçando o que permanece na penumbra. cada vez, trata-se de escalas. de medidas, de cadastros, de trocas e de
rejeições [.. . J Em outros term os, cada recort e cria uma estrutura, que
b. Destacar também a questão dos limites ou das fronteiras, diferencia, mostra ao irmã o vide nte.' .
é supor que estas são fixas, ou nós estamos numa época em
que essas fronte iras estão elas própri as em movim ento? O que Tal est rutura é também a das metodologias específicas
estava outro ra excluído da ciência teatral, hoje faz parte de seu de que vamos tornar a falar. Essas recortam o objeto, o saber
objeto, respondendo assim a uma evolução das mentalidades em conjuntos isolados e concebidos como autônomos. Ora , a
e a uma evolução das formas . realidade da prática teatral exige que se analise as interferên -
Observa Ch ristian Décamp s: cias entre os diferentes sistema s significantes. Estes puderam
ser definidos, mas existem po ucas pesq uisas que conseguem
Atualmente, os campos filosóficos como os campos cien tíficos não
colocá-los em con formidade uns com os outros.
cessam de se deslocar - de marcar igualmente - os limites e as direções
do saber. Desde Dad á, pelo menos, a ar te é também uma longa inter- Afirma Jean Hamburger:
rogação dos limites da obra.'
Mais a pesquisa progride, mais é claro que abordando um objeto
por métodos e escalas múltiplas, nosso espírito pode adquirir reflexos
O teatro não escapa a tais flutuações de limites, longe disso,
distintos. Nós notamos então o objeto sob pontos de vista diferentes e
prova que os limites do campo teatral flutuaram no decorrer dos não podemos mais passar livremente de um para o outro. As regras do
anos, adotando as trocas da própria prática. Assim a noção de jogo do objeto não são as mesmas nas diversas escalas de observação.'
teatro cedeu pouco a pouco o lugar a esta noção de representação
teatral, de desemp enho, à medida que o texto cedeu o lugar ao É reconh ecer que nossas pesquisas teatrais assinalam a descon-
corpo do ator, que o palco enfatizou o espaço e a interpretação. tinuidade e não podem oferecer uma imagem global integrada.
À medida que emergiram forma s artísticas limites, nos confins As diversas disciplinas acabam por constituir-se em arqui-
das artes : teatro -dança, but ô, perfor ma nce art, os limite s do pélagos que poucos vínculos têm umas com as outras. Elas
teatro alteraram-se, englobando todas as formas de represen- oferecem pontos de vista de abordagens diferentes e não integra-
tação, esticando às vezes ao extremo a representação, tais como dos (ver, por exemplo, o que diz Michel Serres sobre o assunto).
todo s os estudos americanos sobre o 'carnaval, os espetáculos É preciso reconh ecer que não é possível obter uma visão inte-
de circo, os treinos de anim ais, os peep shows, os rituais. Desse grada da ciência. A unidade da ciência é um fato passado. O
ponto de vista, é claro que não há lim ites na compilação que mesmo ocorre no teatro. É-nos necessário reconhecer, de agora
pode conter os estudos teatrais. Ganhou-se realmente muito em em diante, que pode haver diferentes modo s de conhecimento
tal abertura, para todos os sentidos, da noção de teatro ? Difícil de um mesmo objeto, como observa Jean Hamburger",
dizê-lo. Seguramente nós ganhamo s nisso um a ampliação de
nossas mentalidades, mas também nos trouxe instru mentos mais o ato do conhecimento pode ser representado simul taneamente
em vários palcos, comunicantes. mas distintos, ilusoriamente confun -
precisos de análise, uma melhor apreensão dos fenômen os que
didos pelo nosso espírito apaixonado pela unicidade. Ademais, que essa
nos cercam ? A questão merece ser formul ada. ciência dividid a em pedaços permaneça parcelar e múltipla, enquanto
c. Observemos tamb ém: ela tenta descrever um mundo exterior que nós supomos sem cesura,
e que traduza talvez simple smente os limites da inteligência humana.'
Cada recorte do saber, do espaço, faz ressurgir a necessidade -
tant o quanto a arb itrariedad e - dos limites. Demasiado restringidos, 4 Ibidern, p. 11.
5 J. Hambur ger, La Raison et la passion, Paris: Seuil, 1984. p. 14-15.
6 Ibidern, p. 18-19.
3 C. D écarnps, Fronti éres et limites. Par is: Centre Pornp ídou , 199'. p. 9. 7 Ibidern, p. 19.
58 A Lt M DO S LIMIT ES: UMA T EOR IA À P RO C U RA D E PRÁTI CA TEOR IA E PRÁTICA : ALÉM DO S LIMITES 59

Em resu mo, os lim ites se ligam a vár ias coisas: ao ca mpo elucidam a respeito do fenômeno teatral, na sua relação com
inculto d as observações; ao modo de seleção dos fen ômen os; o social e com o indivíduo, mas elas nos dizem bem po uco, é
à esco lha da ling uagem utilizada; à impossibilida de de pr ovar preciso reco nhecê- lo, sob re os mé todos da própria produção da
qu e tal teoria é ve rd ade ira, mas que sim plesmente ela não é obra (inter pretação do ator, afinida de do diretor com uma obra,
falh a. Há um ca rá ter provisório da adequação de um a teor ia correlação do ato r a um papel, afin ida des entre a produção da
à natureza, esp erando um modelo melh or qu e o precedente. obra e a socieda de) . Quase sem pre tais an álises contentam-se
O s esc r itos teóricos so bre o teatro, na for ma intensa qu e em estuda r as tem áticas da obra numa peça o u numa repre -
eles tomaram hoje, são o res ultado de uma época, a nossa, qu e sentação para ver o qu e elas nos di zem de uma dete rm inad a
desen volveu há aproximadamente tr inta anos uma teorização soc iedade ou de uma psicologia pa rtic ular: Hamlet, O Cid, O
excess iva de todos os fenô me nos literári os e artísticos. É evi- Príncipede Homburg ou Tartufo.
dente, p or o utro lad o, qu e esforços de teorização pontuais não O utras afinidade s inscrevem -se nessa linhagem. Menos
são recentes e existem há muitos séc ulos, mas a forma int en sa frequentes hoje, elas não se fazem m en os presentes. Inspiradas
que tais pesquisas adqui ri ram hoje é o resultado de um a ace- pela filosofia, pela estéti ca ou pela dramaturgia, elas tentam
leração co m ênfase na teoria. A auto no m ia da pesquisa teatral, criar um a po éti ca do teat ro, analisando os gêneros e procu-
ela própria em relação a uma época não tão distante, em qu e rando difer enciar o teat ro das outras formas artísticas (Go uhier,
os estudos teatrais inscreviam-se na dir eçâo das investigações Veinstein, Kowzan, Banu).
literárias, não está tão longe. Portanto, nã o surpreende qu e Mais recentes, outras afinidades foram especificamente
no ssas pesquisas atuais contenham a marca dessa história. concebidas em volta da obra teatral. Ao emprestar seu impulso
De fat o, no sso s modelos epistemológicos foram trazidos para pesquisas que se desenvolveram elas próprias em o utras
da literatura, antes de se adaptarem às formas mais recentes de disciplinas: se rriiolo gia, p or exemplo. Essa s parecem ter
análise centradas na representação. Os estudos sociológicos, modelado um instrumento especificamente destinado à repre-
psicanalíticos, sociocríticos, por exemplo, até mesmo h íst óri- sentação e em condiçõe s de delimitar a natureza", Os exemplos
cos", não diferem na sua essência (e no s instrumentos que eles são inúmeros. Aí está um do s únicos exemplos de constituição
adotam) daqueles que utilizam outros campos disciplinares, sistem ática de uma ciência própria à representação teatral:
sobretudo literários. No que os instrumentos metodológicos pesquisa das categorias de significação na representação, reco-
utilizados diferem quando se aplicam à literatura ou à repre- nhecimento do s diferentes sistemas significantes, definição da
se ntação teatral? No que as metodologias propostas foram noção de personagem.
modificadas pelo seu objeto de an álise? No que o objeto teatral Ora, nes se caso, a semi ologia marcou seus limites. Na
trabalhou as categorias epi stêmicas em uso? verdade, ela deixa por completo na ob scuridade essas zonas
Às vezes, tem -se a impressão de um mold e uniforme que se imprecisas e, no entanto, fundamentais, da produção teatral, que
aplica indiferentemente ao romance, à po esia, ao cinema, bem são o desejo, a energia, a em oção. Em resumo, a representação,
como acontece com o teatro. Sem dúvida tais aproximações nos a produção, a criação. É possível delimitá-las? A resposta não é
segura. Mas continua sendo importante questionar e reconhecer
8 Duvignaud observa: "Quem acreditará que exista um a continuidade no temp o, tal deficiência como limite de certas abordagens metodológicas.
uma evolução misterio sa e oc ulta do teatro desde as primeiras manifestações Aliás, essas abordagens, que nós chamamos "analíticas?" ,
neolíticas (duvidosas, é verdade) até nossos dias? A ideia de uma criação das
formas na sucessão, criação resultando numa lógica interna do desenvolvimento "partem muitas vezes da representação. Elas têm por objetivo
huma no, perten ce certamente ao arsenal ideológico do século passado [.. .] Não
há vestígio de evolução quanto a isso. e nenhuma sequência liga, entre elas, 9 Cf. A. Ubersfeld , E. Fischer-Lichte, P. Pavis, M.de Mari nis, K. Elam, E. Rozik,
os gran des períodos de expressão dramática europeias, exceto, sem dúvida , a G. Savona.
iden tidade das inquiet udes" Le Th éãtre, Paris: Librairie Larousse, 1976, p. 7. 10 Cf. Pour une théorie des ensembles flous. Theaterschrijt, n. 5-6, 1994>p. 58-80. C.
60 ALIÕM DOS LIMITES: UMA TEORIA A PROCURA DE PRÃTIC A TEORIA E PRÃTICA: ALIÕ M DOS LIMITES 61

compreender melhor o espetáculo e produzir noções, conceitos , Esboçadas quase exclusivamente pelos próprios pratican-
estruturas, referências que permitam apreender a cons trução tes, tais teorias da prática são úteis para os diversos artífices
do sentido em cena e a natureza das trocas que aí ocorrem: do do espetáculo: atores , diretores, cenógrafos. Elas não visam à
texto para o ator, do ator para o espectador, dos atores para o melhor compreensão, mas à melhor realização. Elas constituem
espaço, do corp o para a voz.. . Elas analisam o fenômeno tea- um a forma de teorizar a prática. Entram nessa categoria os
tral como produto acabado , exploram os diferentes sistemas da textos de Appia , Craig, Meierhold, Taírov, Vakhtângov, [ouvet,
representação, interrogam a relação do teatro com a sociedade, Stanislávski, Brecht, mas também aqueles de Dullin, Brook,
analisam o corpo do ator, seus movimentos, sua voz. Essas Grotowski e tantos outros.
teorias visam ao saber : desenvo lver os conhecimentos, melhor Por vezes, mais próximas de uma metodologia que de uma
compreensão da representação. verdadeira teoria, essas reflexões permitem, no entanto, melhor
Essas teorias agem de duas maneiras: pensar o fenômeno teatral como aprendizagem e como criação.
Esses múltiplos esquemas que nós distinguimos pela como -
1. De maneira induti va: nesse caso, elas partem da observação
didade da intenção, realmente não se excluem . Seus limit es, às
de inúmeras práticas para referenciar constantes, assentar as vezes, são nebulosos uns aos outros, porém nos pareceu útil
bases de uma metodo logia, construir sistemas de explicação. marcar tais distinções, a fim de melhor circunscrever a natureza
Porta nto elas ultrapassam frequentemente, no fim do processo, das con fusas relações que a teoria mant ém com a prática. Mas,
a aná lise de uma represen tação específica, de um a prát ica ou ao final desse pe rcurso, perg unta-se contudo se não haveri a
de uma forma estética, buscando extrai r concl usões de orde m meio desses dois eixos teóricos (esses dois modos de referência)
mais geral que seriam aplicáveis a outras práticas. que nós mencionamos (as referências analíticas e as teori as da
2. Ou de ma neira ded utiva: nesse cao, elas part em de sis-
produção) se encontra rem, desenvolverem-se dialeticam ent e
temas de pensamento já constituídos qu e tentam aplicar ao e enri quecerem-s e mutuamente. Eis a questão que gostaria de
texto para descrever o fenômeno da representação. Tais teorias, formular.
esboçadas a partir de campos ideológicos diferentes daquele do Para o mom ent o, isso parece ser difícil, dada a diferença
teatro, apesar disso encontram neste último, um campo fértil dos obje tivos processados segundo cada um dos gru pos e a
de utilização. É o caso das teorias socio lógicas, psicanalíticas, diferença dos interesses. Não se descarta qu e haveria talvez
ant ropo lógicas, sem iológicas, assim como teorias da recepção a possibilidade de pro curar, com o terceiro vetor teórico das
ou da co mu nicação mencion adas acima. Todas elas pedem zonas onde o question ament o e as expectativas do prático e do
em prestado de outros domínios de observação seus instru- teórico seriam da mesma natureza, zonas teórico -práticas ou
mentos e suas metod ologias e, tod avia, conferem um brilho prático-teóri cas em que as questões form uladas partiriam da
particular ao fenômeno teatral que elas extravas am à larga. prática, mas onde as respostas não pod eriam ser encontradas
sem uma cooperação entre art istas e pesq uisado res, sem qu e
interviesse seus mod os de reflexão recíproca: trabalho sobre a
TEORIAS EMPÍ RICAS DA PRODUÇÃO energia, por exemplo, na presença do ator, no corpo, na voz e
na relação com o texto. Tanta s zonas "imprecisas" e contudo
Existe um segundo grup o de referências, mais empíricas, que fundamentais, ao mesmo temp o, para a evolução do prático e
se pode ria chamar de teorias da produção, cujos objetivos são a para a compreensão do analista.
compreensão do fenômeno teatral como processo e não como Não se po de ria acrescentar tamb ém , aos modelos já
produto. Elas procuram fornecer instru mentos ou métodos para existen tes, outros modelos de teo rização mais apropriados à
que o prático desenvolva sua arte. Elas visam à experiênc ia. natureza efêmera da representa ção teatr al: teoria do impreciso,
62 ALÉM DOS LIMITE S: UMA TEORIA À PROCURA DE PRÁT ICA
5. Por uma Genética
do movime nto, do acaso, do caos? Teorias dos sistemas instá-
veis, noções de escolha, de risco, de incerteza? Isso permiti ria
da Encenação: Take 2'
adaptar nossos model os à evolução dos conhecimentos. Nesse
quesito, a pesquisa teatral tem ainda um incontestável caminho
a percorrer.
Deixando portanto os sistemas de teorização rígidos , pare-
ceria útil que hoje definíssemos novos caminhos de exploração,
novas dimensões da teor ia, que possam compree nder esses
conj untos imprecisos (teoria da sed ução, do obsceno, talvez).
É somente a esse preço que o discurso teórico poderá encontrar
a prática do teatro e falar disso de mane ira viva.

Trad. Aimée Amaro de Lolio

As primeiras bases desta reflexão foram lançad as em 1998, no


artigo "Por uma Genética da Encenação': publicado na revista
Th éãtre/public' e traduzido pela revista Assaph, de Tel Aviv,
no mesmo ano. Retomamos aqui alguns aspectos dele por-
que aquela cartografia de um campo ainda frágil permanece,
todavia, válida . Em todo caso, há algun s anos , vários textos
e pesquisas importantes foram publicados sobre tal tema,
especialmente os trabalhos de Jean-Marie Thomasseau, de
Marie-Madeleine Mervant Roux e de Sophie Proust, bem como
o número especial de Genesis, dedicado ao teatro '. No âmbito
anglo-saxão (no caso, australiano) podemos mencionar os
estudos de Gay McAuley, um pioneiro nesse campo e que, há
mais de vinte ano s, observa o trabalho dos arti stas em ensaio' .

Publicad o co mo in trodução ao número espec ial d o T RI (7hea tre Research


lnternationali so bre G ené tica d a Performan ce. Towards a G ene tic Study of
Perfo rmance: Take 2, TRI, v. 33. n. 3, oc t. 2008, p. 223-233.
2 N. 144, p. 54-59.
3 N. 26, automne 2006.
4 Ver a revis ta About Performance (Universidade de Sidney), dirigida po r Gay
McAu ley. Pode-se acresc en tar a esta lista do universo anglo-saxão Shommit
Mi tter, Systems of Rehearsal: Stanislavsky; Brecht, Grotowski and Brook , Lon -
donoRou tledge , 199 2; Susan Letzercole, Directors in Rehearsal; a Hidden World,
LI
t
t 64 A L ~ M DO S LIM IT ES: UMA TEORI A A PROCURA DE PRATI CA PO R UMA G ENnICA DA ENCEN AÇÃO: TA K E 2 65
í
1995, take 1.Em visita à Un iversi d ade de Toronto, onde a inscreve na duração, devendo ser necessariamente lida como
Schaubüh ne foi conv id ad a para apresentar um de seus espe - tal. Isso é co nfirmado, aliás, pelas várias obras in progress das
táculos, a ence na dora Andrea Bret h oferece ao público uma quais acompanhamos o percurso : as de Waj di Mo uawad,
~
master class basead a em uma d as ce nas de A Gaivota. A cena Robert Lepage, Robert W ilson, Peter Sellars ', ape nas para citar
I
C
I
escolh id a foi a d o último encon tro en tre Trepl ev e Nin a, onde algumas. A obra cênica, portanto, es taria sempre em vias de se
j Treplev d escobre que Ni na, d e regr esso já há algum tempo, e fazer e esta r ia inscrita em u m pro cesso de constante criação.
íC aba ndo na da por Trigo rin, não pod eria, contudo, jam ais amá-lo. Aq uilo qu e é ve rda de iro so bre uma obra apresentada ao
i Os d ois ato res, so b a d ireção de Breth, interpre tam a cena. Nina público o é, m ais ainda, em relação a um a obra em gestação . E,
I está estirad a so bre um di vã enq uanto Kóst ia, se ntado na extre- se não é uma novidade, no cam po da pesquisa teatral, o interesse
1 midad e super ior, aperta-lh e os d ed os co m força, exprim indo pelas fases d e criação d o esp etáculo e a investigaçã o de cer tos
ass im, ao mesm o tempo, o seu desesp ero e a sua pa ixão. A atriz, documentos exist entes (entrevistas co m ence nado res e atores,
en tão, inte rrom pe a cena e se queixa qu e a pr essão da m ão de depoiment os pessoais, descrição de se us modos d e trabalho ou
se u retr aído enamo rado está lh e quebrando as articulações. de suas visões de teatro, estudo de m aquetes, cro quis, ano tações
1998, take 2 . Em visita à Sch aubü hne de Berlim, ass isto diversas), o estu do sistemático desses doc umentos e, ma is ainda,
ao espe táculo já estrea do de A Gaivota, encenado por Andrea dos cade rnos de d ireção, do s esboços e ano tações de cena qu e
Breth, e constato, agora, que os doi s atore s interpretam esta cena document am os en saio s (red igidas pelo próprio en cen ador, por
m antendo vá rios m etros de distân cia ent re eles, im óve is e com seus assistentes ou pelos atores), isso sim, ainda é ra ro. Contudo,
uma emoção contida. A força dessa relação à distância, onde os se anali sado s de modo sistemático, todos esses materiai s permi-
co rpos não se to cam, mas onde toda a paixão de Tre plev está tem qu e adentrem os concretame nte no mundo de tr abalho de
lá, diante da indiferença de Nina - d estruída por um amor não um criador - por mei o de um determinado espetácul o - e que
cor respond ido - mostra com força a irrevogabilidade daquela exploremos as fases de um processo de criação. Como trabalha
se pa ração e intensifica o sentimen to de fatalidade qu e vai se um ence nado r? Que conselhos ele dá aos atores? Que diretrizes
abater sobre aqueles jovens, esquecidos pela vida. ele adota no que concerne ao espaço e à gestualidade? Como
A primeira disposição espacial originalmente encontrada, acontecem os ensaios? Como se efetua a entrada dos atores no
aq uela d e 1995, revela , dessa maneira, suas insuficiências. O que palco? Em qu e momento a cenografia interfere no processo? De
terá levado a encenadora e os atores a esta tran sformação? Por meio que forma ela afeta a marcação e a interpretação? Por que um
de quantas etapas tal afastamento na cena ocorreu? Que d iscussões determinado adereço de cena foi incorporado à obra? Tais an ota-
conduziram a tais escolh as? Essas foram as primeiras instânci as de ções, por mais fragmentárias que sejam, são as únicas que podem
uma interrogação que me despertaram o interes se pelos processos revelar, em sua multiplicidade, as modificações trazidas ao espe-
de criação de uma obra e, de modo especial, pelas fases de prep a- táculo ao longo de sua gestação, bem como as hesitações, rasura s,
ração de um espetáculo antes de sua cristalização final. descobertas e escolhas diver sas que acompanham o trabalho.
Qualquer apresentação de um espetáculo, estudado par a Tais documentos, qu e chamaremos de "rascu n hos'", a fim
fin s de análise, se constitui ap enas co m o um momento do de caracterizar o seu statu s de obra inacabada e incompleta,
processo , o qual se deve reafirmar co ntinuam ente como um
ins tan tâneo, capturado ao vivo, de uma circunstância qu e se 5 Seuls (Só), Incendies (Incênvios) , Littoral (Litoral) , de W. Mouawad; Os Sete
Afluentes do Rio Ota, de R. Lepage; Civil Wa rs (Gue rras Civis) , de R. Wilson;
I Was Looking at the Ceiling and 7h en I Saw th e Sky (Eu Estava Olhan do para
London: Routledge, 199 2; Vasili Toporkov, Stanislavski in Rehearsal, London: o Teto e Então Eu Vi o Céu ), de P.Sellars, po r exemp lo.
Methuen, 2001. Na França, Geo rge Banu. (ed .), Les Répétitions: Un siecle de 6 A. Grésillon dá o nome de "pré-texto" a todos os docum entos dessa fase de
mise en scéne, De Stan islavski à Bob Wilson, Bruxelas: Alternatives Théâtrales gestação de um espetáculo. Cf Élém ents de critique génétique: Lire les manus-
52-53-54 ,1997, e reeditado pela Actes Sud em uma versão revisada (2005). crits modernes, Paris: PUF, 1994, p. 241. Artigo retomado em A. Grésillon; ).-M.
66 ALÉM D O S LIMITES: U M A TEO RIA A PRO CURA DE p RATI CA POR U MA GE NÉT ICA DA ENCENA ÇÃ O : TAKE 2 67

compreendem, ao mesmo tempo, tudo aquilo que diz respeito aos etapas que levaram à forma final de um manuscrito. Inspirada pela
rascunhos de dramaturgos, tradutores e mes mo de encena dores, teoria genética da literatura, com a qua l ela part ilha certo número
bem como todos os elem ento s qu e servem à com posição do espe- de elementos metodológicos, a gené tica textual se concentra sobre
táculo: maquetes, cro quis, registros visuais e sonoros e, sobretudo, '0 processo de escritura da obra em seu momento de gestação,
os documentos que pe rmitem rec uperar as d iferen tes etapas dos tanto quando ele ocorre mu ito antes - a escritura de uma peça que
ensaios. Criados d uran te a ges tação de um espetác ulo, eles se preceda em muito a sua representação -, quanto no momento em
dividem em dois gra ndes gru pos, de acordo com a natureza dos que ele se efetua no corpo a corpo com a cena: como pode ocorrer
vestígios remanesce ntes: podem ser de o rdem textual ou cênica. nas peças de vários dramaturgos que trabalham com um ence-
nador na urgência do palc o e que modificam seu texto ao longo
dos ensaios. A análi se genética se esforça, portanto, em acom-
RASCUN HOS TEXT UA IS panh ar e em reconstitu ir o processo de criação do texto a partir
dos vestígios existe n tes, especialme n te das ano tações, ras ur as,
Esse primeiro grupo de documentos reúne tud o o que conc erne ao sobrepos ições, rascun hos de toda natureza - textos ma n uscr itos
texto propriamente dito: texto ou manuscrito de partida, onde se ou partituras de encenadores ou de ateres". O método, q ue se
encontram sobrescritas todas as correções, modificações, ad apt a- pretend e o mais rigoroso possível, deve, certamente, deixar espaço
ções e reescrituras, os cortes, que alteram uma determinada versão para a esp ecul ação, apo ntando pistas e elab orando argu me ntos
de partida. O estudo desses "rascunhos" textuais pode con stituir - possíveis, sem qu e se ten ha certeza absoluta.
como havíamos chamado a atenção em um de nossos primeiros No campo teat ral, os rasc un hos textu ais po dem, certame nte,
artigos sobre o assunto?- a genética dos textos propriament e dita. ser estud ados indepe ndentemente da represent ação, mas eles só
Criada por Louis Hay em 1968 e depois sistematizada por Almuth encontram seu verda deiro sentido no jogo de vai e vem en tre a
Grésillon em 19948, a genética dos textos procura traçar as diversas cena e o texto. Em opos ição à an álise gen éti ca dos textos pro -
priamente dita, a análise gené tica da representação não pode
Thomasseau, Sc ênes de genêses th éâtrales, Genesis: Revue lnternationale de Cri- ser reali zada sem o estudo d as relações entre o texto e a cena,
tique G én étique, número especial dedicado ao teatro, n. 26, automne 2006, p. 21. mostrando co mo as modificações trazid as ao esboço tex tual
7 Ver o art igo Pour une analise génétique de la mise en sc êne, 'Ih éâtre/public, Paris,
n. 144, p. 54-59 , autom ne 1998. Foi pub licado também em inglês sob o titulo For a
Genetic Approach to Performance Analysis,Assaph, Tel Aviv, n. 13,199 8, p. 41-54. primeiro tais pesquisas na França. Seus prim eiros art igos sobre o tema datam do
8 Ver o número de Genesis mencion ado an teriormente. Editado sob a coordenação fim do s ano s de 1990 . Qu ant o aos ensaios de cena, eles constituem um campo
de Nathalie Léger e Almuth GrêsiJIon,ele procura exatamente lançar as bases, pela de investigação imp ortante em si mesmo, indispensável ao estudo dos processos
primeira vez na França, de uma "genética do teatro" Ver, de modo mais preciso, o de criação. Gay McAuley, na Austrália, é sem dúvida o primeiro a se interessar
artigo de A. Grésillon; l.-M. Thom asseau, Scenes de geneses Th éâtrales, p. 19-34- pelo acompanhamento constante de ensaios . Cria até mesm o um a estrutura, no
Quanto à genética textual prop riamente dita, ela teve por precursor - conforme interior de sua universidade , que permitia às companh ias trabalhar ali, o que
o indicamos anteriorm ente - Louis Hay (e isso já desde 1968) , que foi o primeiro lhe possibilitava condições de observação rigorosa do trabalho dos atores. Ver,
a se interessar pelos pr ocessos de criação, tra balhando particularmente sobre no ãmbi to francês, Sophie Proust, La Direction dacteurs: Dans la mise en scêne
os manuscritos de Heine, encontrados em um cofre. Depo is dele, foi Almuth th éãtrale contemporaine, Montpellier: I'En tretemps, 200 6.
Grésillon que instituiu a genética textual na França, em seu livro Eléments d'une 9 Ver, a esse propósito, o est udo de Anne- Françoi se Benhamou, Genes e d'un
critique g én étique (Elementos de um a Crítica Genética, 1994 ). Foi tomando os combatoUne Rencon tre "derriere les rnots" publicado em Genesis, n. 26, p. 51-69.
textos como seu corpus, que a análise genética encontrou, mais facilmente, sua que analisa, de modo conciso e esclarecedor, os documentos com as ano tações
aplicação e seus métod os. A passagem da genética textual àquela da represent ação de Chérea u sob re os textos de Kolt ês,especialme nte sobre O Combate de Negro
foi, po r sua vez, ma is lenta e mu ito mais difícil de estabelecer. A anál ise genética e Cães. Confira tamb ém Marie -Madeleine Mervant-Roux sobre Le Square (A
passará, então, primeiramente, pelo estudo das tran sfor mações das peças escritas Praça) , de Duras: The Fragility of Beginnings: The First Gen etic Stra tum of Le
an tes de ter como objeto o trabalho de preparação do espetáculo . Foi necessário Squa re (M. Duras, 1956 ). Theatre Research lnternational, n. 33, autu mn 2008,
determ inar, nas primeiras fases da reflexão, não somen te a factibilidade de tais Genetics ofPerformance, núm ero dedi cado aos pro cessos de criação. Mer vant-
estudos, mas também o corpus dos documentos que seriam submetidos à obser- -Ro ux ana lisa aí, parti cularm ente, as diferen tes etap as de criação pelas qu ais
vação do pesq uisador. No ãmbito francês, foi l.-M. Thomasseau quem conduziu Duras teria passado e qu e a levaram do romance à peça de teatro .
68 A LBM DO S LIMITES: UM A TEOR IA A PRO CURA DE PRÁTI CA PO R UM A G EN BTI C A DA ENC EN AÇAo : TAKE 2 69

condiciona m o trabalho cênico e como esse últim o, por sua vez, interessan te de pesquisa, embora raramente sejam de domín io
interfere no texto e interage com ele. Seria instrutivo, por exem- público. Constituem-se, na maioria das vezes, de testemu nhos
plo, estudar as diferentes fases de escritura das peças de H él êns das diversas fases pelas quais a montagem passou. Permitem
Cixous em relação ao trabalho de ensaio do s atares do Théâtre acompanhar as experimentações cê n icas, as correções, observa-
du Soleil, especialme nte em Elndiade ou l'Inde de leurs rêves (A ções, modificações, hesitações de uns e de outros e as escolhas
Indíada ou A Índi a dos Seus Son hos; Théâtre du Soleil, 1987) ou definitivas. Se são bastante interessantes de cons ultar depois que
em L'Histoire terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi o espetácu lo'está terminado (por exemplo, os cadernos de dire-
du Cam bodge (A História Terrível mas Inacabada de Norodim ção de Roger Blin, Patrice Chéreau, Antoine Vitez'", arquivados
Sihanouk, Rei do Camboja; Théâtre Du Soleil, 19 85- 19 87). no IM EC *) , eles o são ainda mais enquanto a montagem está em
Pondo de lad o os rascunhos referentes ao manuscrito da curso, pois permitem, então, um jogo de vai e vem entre a obra
peça, subsistem, com frequência, bem poucos vestígios facil- em proc esso e o espetáculo acabado. Os cadernos de direção de
mente con sultáveis sobre as etapa s que conduziram à construção Roger Blin ou de An toine Vitez são reveladores nesse sentido".
de um espetáculo.
10 Ver também as anotações de trabalho de Stanislávski (M ise· en·Scene d 'Othello de
Skakespeare, Paris: Seu ii. 1948 . 1973) ou aque las feitas por Brecht, por exemplo.
l M EC é a sigla para Inst itut Mém oir es de I'Editio n Co nte rnpo raine , que reúne e
RASCUNHOS CÊNICOS E VISUAIS preserva os arquivos das principais editoras da França , bem como de inúmeros
artistas, constituindo uma m em ó ria do livro , da edição e da criação artística
(N . d a T.).
O segundo grupo de documentos constitui aquilo que den o-
11 Conferi r os diá rios de trabalh o de Vitez, tornados pú blicos graças aos esforço s
minamos de rascunhos cênicos e visuais. Compreende o vasto de Natha lie L éger, do [M EC, e da editora POL. Eles permitem um merg ulho no
conjunto de todos os documentos escritos, visuais e sonoros rela- un iver so vitez iano. Ver Écrits sur le théâtre I . II, III, IV, Paris : POl , 1994, 1995.
1996 e 1997· Ler. por exe mp lo, as notas sobre Partage de midi, que Antoine
tivos ao trabalho de ensaio propriamente dito. Esses escritos são
Vitez m onta em 1975: «29 de dezembro de 1974 (a Yannis Kokkos) : A ideia
gerados, primeiramente, pelos diferentes criadores e técnicos do do 'M use u Claude l' m e per segue [ ... ] No fun do, tr at a-se m enos do m useu
espetáculo (encenador, ator, dramaturgo, cenógrafo, figurinista, Claudel. mas do int er ior da cab eça de Claudel . no mo me nto de sua mort e.
Ha ver ia lá todas as épocas de sua vida desde 1905. Os retratos de mulheres,
iluminador, engenheiro de som, aderecista). Figuram, portanto, o Ernest-Sirnons (uma ma rinha soberba) , as cartas guardadas, os móveis de
nessa categoria, os cadernos de direção, as anotaçõe s dos assisten- dife rentes épocas. crucifixos, um genullexório, um rosário. um retrato de sua
tes, as notas dos atares, os cadernos do "ponto teatral" (quando irmã Ca m ille, uma esc ultura feita por ela e lum inári as de esc ritório, móvei s.
co rtinas. forros [... J O utra ind ica ção [... 1é a sua id eia sobre a iluminação.
existem ), os planos de marcação, os procedimentos de condução Uma arte figurativa no lim ite da abstração, pois só é necessário mostrar pou -
do espetáculo, as nota s do encenador para os atores, os planos de cas coisas do cenário real [.. .] somente a luz. .
luz, as maquetes, os croquis do cenário, os desenhos de figurinos. 10 d e março de 1975 (a Yannis Kokkos): Ai está a árvore. Mas ela deveria
ter um q uê a mais de ch inesa. o u m ais Ho kusai. E de modo geral, eu gos taria
Eles podem ser enriquecidos por outros vestígios, relativos aos q ue o quadro da cena. assim claro e frág il. tivesse qualquer coisa de Hokusai
meios atuais de notação e registro (fitas de vídeo e áudio, anota- e de desenho japonês. verdade o que você diz : se nós atulharmos o palc o
É

ções de observadores externos), que permitem recuperar assim, em declive. ele parecerá um mecanismo. necessário selecionar os signos
É

ut ilizados na parte de ci ma - por exemplo, os sapatos.


mais facilmente, as etapas anteriores do trabalho. 15 de agos to de 1975. A ra mpa. Ela precisa ser util izável. É indispensável
que os m óveis possam se manter nela, pois os objetos devem ser a co isa qu e
tran sfor m a a apa rência de brinca de ira em um verda deiro teat ro - a não ser que
tenhamos um cenário figurativo estilizado (e de forma nenhuma abstrato),"
Os Cadernos de D ireção Ao final de todas essas observações, das q uais reprod uzimos aqui apenas
alguns fragmentos, o espaço de Partage de m id i, criado po r Yannis Kokko s
"será co mposto po r um g ra nde se micírculo bran co em declive. atravessado.
Temos, antes de tudo, por ordem de importância e de confia - no lad o mais distante da plateia, por u ma faixa de p iso em madeira clara , e
bilidade, os cadernos de direção, que permanecem uma fonte fechado. ao fundo. por um to ldo branco. Algun s objetos marcavam o ritmo
70 ALÉM DO S LIMITES: UMA TE OR IA À PROCU RA DE PRÁT IC A PO R UMA GENÉTICA DA ENCE NAÇ ÃO : TAKE 2 71

Se esses cade rnos se tornassem acessíveis logo após o final outra dificuldade: de fato, a maior par te dos encenadores tem
dos ensaios, eles perm itiriam aná lises mais pert inentes e mais tendência a apagar os registros das etapas anteriores de uma
esclarecedoras sobre o espetáculo, análises que dir iam respeito montagem, preservando por escrito apenas as suas últimas
dir etam ente ao trabalho de criação, conectando este últim o ao escolhas. Co mo então resgatar essas etapas, a fim de conse-
resultado fina l. Seria possível, portan to, perceber as fases de guir registrar, em palimpsesto, os rastros dos desloc~me ~t~s
criação de um encena dor, quais vozes toma emp restado para anteriores? Seja como for, o pesquisador permanece tnbutano
efetuar as suas pesqui sas, em que moment o retém ou elimina da forma de notação que cada assistente invento u em função
um a det erminada interação cênica, um gesto, um desloca- de suas necessidades.
mento, um ade reço relativo àquele espetác ulo em questão. É claro que as modalidades de pesquisa e de trabalho dos
Contudo, os cadern os não revelam como um encenador dirige encenadores diferem não somente em função de cada artista, mas
os atores, com o a cenografia intervém no seu trabalho, em que também em função dos espetáculos e das condições espaciais e
moment o e de acordo com quais parâmetro s entram em jogo a temporais sob as quais elesse desenrolam. Cada espetáculo cons-
cenografia e os figuri nos, elemen tos funda mentais de qualquer titui um caso único, cada cena um caso com feições particulares.
criação teatral. Para tal, é necessá rio recorrer a uma observação O estudo genético aplicado ao teatro não estudaria, então, a
do trabalh o em processo. totalidade de uma encenação, mas escolheria alguns momentos
A visão analít ica, levada à representação pelo viés genético, privilegiad os a serem analisados, a fim de escl~rece r as etap~s
lon ge de recortar a encenação em momentos descontínu os, que conduziram até ela. Tentaria, dessa maneira, tornar mais
reintegra-os na continuidade de um fluxo geral, reinscrevendo claras as mod alidades de criação de uma determinada cena, de
a escolh a específica de um determinado movimento, desloca- um gesto, de um deslocament o, com objetivo de delinear, nuan -
mento, gesto, objeto, no fio de um processo esboçado no tempo. çadamente, as sombras sobre as quais o trabalh o de gestação se
Os cont ornos do presente se desenham, dessa maneira, sobre constrói, o modo como se operam as renúncias, as retifica ções,
as virtualidades de um passado , cuja principal virtude é aquela as mudanças de percurso, ou seja, toda s as etap as preliminares
de ter sido esquecido. Contudo, é sobre os rastros e as sombras que levaram às escolhas definitivas.
deixados por tal passado que melhor se pode ler as escolhas Não se trat a, de maneira nenhuma, de realizar tal trabalho
deliberadas do presente e aquil o que foi pres ervado. para o conjunto de uma peça - o que seria um trabalho titânico,
Todavia, uma questão se coloca: a da interpretação desses de necessidade discutível -, mas sim para alguns momento s
cadernos de d íre ção , já que não existe um sistema uniforme de escolhidos, privil egiados pelo olh ar do pesqui sador por lhe
notação para registrar as escolh as da encenação e nem mesmo parecerem portadores de instânci as significativas de um espe-
para an otar as modificações que interferem no curso de um táculo. Portant o, a aná lise genética é marcad a, em seu pont o
processo de criação. O que registra um determinado encenador de partida, por certa dose de subjetividade, pelo menos em
nos seus cadernos? De acordo com quais parâmetros? Privile- relação às escolhas efetuadas, subjetividade essa que nos parece
giando quais detalhes? As respostas diferem dependendo do indispensável de ser preservada a todo custo.
artista. Se para um Vitez as anotações são bastante detalha -
das, para vários outros encenado res elas se configuram muito
mais sóbrias e menos sistematizadas. Por outro lado , surge Os Registras de Vídea

da represen tação: a maqu ete d o navio a vapor Ernes t-Simons descia do urdi- o segundo material de pesquisa a partir do qual é possível se
ment o; uma mobília de rotim: cade iras. mesa baixa. cadeira de balan ço; um
grande apo io de ped ra; uma árvo re estiliza da, ideograma da China': La Scêne,
trabalhar compreende os registros em vídeo que alguns ence-
Ecrits sur le th éãtre, p. 7-27. nadores realizam durante o período de ensaio e aos quais eles
PO R UMA GEN ÉTI CA D A ENC ENAÇAo: TAKE 2 73
72 ALÉM DO S LIM ITE S: UM A TEORIA À PROCURA DE PRATI CA

recorrem com o documentos de trabalho. Tais fitas de vídeo, seja perturbado por ele. Outras, quando conco rdam com esse
espécie de arquivo da montagem em processo, repr esentam "direito de observar': exigem uma presença assídua por part e
as diversas fases de elaboração do projeto. Elas constituem um do pesq uisador, o que implica um a disponibilida de que ele
momento específico, ao longo dos ensai os, durante o qual os nem sempre pode assumir. Habitualmente, ele prefere optar por
encenadores e atores se detêm para um temp o de reflexão, para uma presença episód ica, que pod e se configurar como um mal
observar a cena e avaliar o estágio no qual eles se encontram. menor, mas que não substitui o acompanhamento completo do
Ocorre também que essa instância de "parar sobre a imagem" processo de trabal ho'}.
nasça de um a dificuldade particular do processo, sobre a qual o As proposições esparsas, nascidas da prá tica e mantid as
vídeo, por meio do distan ciamento, possibilite uma explicitação. pelos artistas, estão no centro de seu processo de criação.
Hoje em dia, são vários os encenadores que fazem uso corrente É necessário assegurar o lugar que lhes cabe na análise dos
de tal procedim ento, mas ainda são poucos os pesquisadores que
13 Coloca-se também a questão do estatuto a ser dado a outros tipos de documen -
abordam sistematicamente a análise desse tipo de docum ento. tos não mencionados anteriormente, já que muitos deles pontuam o percurso
Tais regi stros das fases de trabalho são fund am entais. dos artistas: trata -se de entrevistas, declarações públicas, depoimentos de artistas
Ocorre-me como prova o filme Tartuffe: A u Soleil. m êm e la nuit q ue esclarecem o trabalho de um encenador. Conferir os livros sobre o u de
encenado res, p ub licados há m ais de dez anos: Phili ppe Adrien, lnstant par
(Tartufo: o Sol, Mesmo à Noite), que Eric Darmon e Catherine instant, Pari s: Actes Sud, 1988; Luc Bondy, La Fêtede l'instant, Pari s: Actes Sud,
Vilpoux realizara m ao acompanhar a gestação do espet áculo 1996 ; Jacqu es Lassalle, Pauses, Par is: Actes Sud, 1991; Richa rd Forernan, Unha-
de Mnouchkin e", Mais que o próp rio espetáculo, o trab alho de lancing Acts: Foundationsfor a Theater, New York: Theatre Com munication s
Group, 1992; Claude Régy, Espaces perdus (1998), L'Ordre des mots (1999), CEtat
criação da obra foi aqui privilegiado, tendo sido reconstruído d'incertitude (20 02 ), Besançon, Les SoUtaires intempestifs; Bernard Sobel, Un
para o benefício do espe ctador. É evidente que tal filme ilu- Art l égitime, Paris: Actes Sud , 1993; Antoine Vitez, Le Th éãtre de; id ées, Paris:
mine, de modo fun damental, o espetáculo visto pelo público. Gallirnard, 1991, Ecritssur leth éãtre, I , II, III, IV, apenas para citar algumas ob ras.
Estudos sobre a prática, mu ito raros nos anos de 1960 e 1970, propagaram-se
Ele preserva os fluxos de vida que animam a representa ção. E bastante desde o inicio dos anos de 1990 . Co nfi ra também os livros edi tados
por trazer à ton a, por exemplo, as diferentes etapas que cond u- sobre di re ção de atores: Thom as Ríchards, TravailleravecGrotowski, Paris: Actes
Sud, 1995; Vassiliev,maitre de stage, Bruxe lles: Lan srn an , 1997. Ver ain da Maria
ziram ao surgime nto da personage m de Dam is ou de Dorine,
Delgad o; Paul Heri tage, ln Contact With the Godsi Directors Talk Theatre, Ma n-
ele explicita não somente as escolhas da encenação, mas, sobre- chester: Man ch ester University Press, 199 6; [osette Féral, Dresser un monument
tud o, o trabalh o profun do, ind izível, do ator em busca de sua à léph émêre: Rencontres avec Ariane Mnouchkine, Paris: Ed itio ns Th éâtrales,
1995;Mise en scêne etjeu de l'acteur - t. 1: EEspacedu texte, Montréali Bruxelles:
perso nagem , e tamb ém o de toda uma companhia .
[eu/ Émile Lansman, 1997; 2001; t. 2: Le Corpsen scêne(1998; 2001); t 3: Voix de
femmes, Q uébec: Am érique, 200?
Essas entrevistas e reflexões sobre a prática teat ral , escritas frequente -
mente a posteriori, são igual mente esclarecedoras sob re as etapas prelimi nares
A s Anotações de Ensaios do es petáculo acabado, cu mprindo um papel fundamental , po r motivos
d iversos, para a compreensão d o pe rcurso de um a rtis ta. Permitem acom-
Na ausênc ia de todas essas balizas, as sessões de observação e as pa n ha r a criação em mo vimento: criação da encenação, de um papel, de
um a pe rsonagem , do es paço. A importâ ncia de sses vestígios é grande, já que
notas tomadas pelo próprio pesquisado r ao longo do s ensaios eles co n tribue m para recolocar a trajetó ria de um d eterm in ad o ar tis ta numa
se tornam um a imp ortante font e de referência - desde que o persp ect iva ma is am pla, englob ando o co nju nto do teatro. Dessa m aneira, o
percurso d e C laude Régy ou de Vitez se torn a m ais cla ro, evidentement e, por
encenado r e os atores aceitem esse olhar exterior lançado sobre
° seu trabalho. De fato, nem sempre tal presença é bem-vinda, e
co n ta de se us próp rios escritos.
Por m ais úteis que sejam, esses documentos ligados reflexão a posteriori
à

algumas pessoas ligadas à prática recusam qualquer observador de um artista sobre a sua pr óp ria trajet ória não são, ent retanto, levados em
consideração nas páginas seguintes, poi s não se encontram conectados com
extern o em suas empreitadas, a fim de evitar que o tr abalho
a urgência da representação. Isso não os torna menos importantes. É que
somente nos int eressa aqui os vestígios ligados di retamente ao processo de
12 Uma coprodução de LaSept ARTE. Agat Films & Cie. com o Théâ tre du Soleil, 1997· gestação d e um determinado espetáculo.
74 ALÉM DOS LIM ITES: UMA T EORI A À PROCU RA DE PRÁTI CA POR UMA GENÉTI CA DA ENC ENAÇÃO: TAKE 2 75

espetáculos, mesmo que elas sejam, frequenteme nte, apresenta- Além disso, a ambiguidade de tal trabalho genético se ampli-
das de maneira fragmentária, pois deter min am a form a final da fica em razão de todos os vestígios remanescentes não terem o
representação. Constituem, com frequência, o terre no fértil que mesmo status nem a mesma finalidade . De fato, a maior parte
conduz a certas escolhas, que define determi nados gestos, que dos - senão todos os - documentos produzidos pelos ar tistas
incita a algumas rasuras. São os eixos profun dos que nu tre m tem como primeira intenção auxiliá-los na construção da obra.
a peça acabada. Silenciá-las, em proveito apenas dos signos . Estão lá, antes de tudo , como instâncias do trabalho que permi -
perceptí veis sobre o palco, é arrancar a peça do solo adubado tem a com unicação e o acordo entre os realizadores. E, uma vez
no qual ela floresceu, fazendo dela um objeto abstrato de pes- que sua missão foi cumprida, são relegados ao esquecimento.
quisa. O teatro está em outro lugar. Ele se enco ntra na própria portanto, o seu uso a posteriori para fins de aná lise é secundário
vida que anima a cena e que faz, ano após ano, espetáculo após para o artista, o qual costuma devotar um interesse moderado
espetáculo, com que o teatro não pare de se renovar, sem que em relação a eles, uma vez que o espetáculo esteja terminado.
nenhum estudo cons iga petrificá- lo e nem mesmo descobri r as Mencionamos as notas do encenador como exemplo do desa-
suas leis fun da men tais. É essa vida que a aná lise genética deve fio com o qual o crítico genético se vê confrontado. O desafio é
proc urar preservar a fim de evitar tais clivagens mo rtais, das ainda maior na medida em que os eleme ntos reun idos para o
quais toda a aná lise teórica do teatro carrega estigmas. estudo são de natureza diversa, se apoiam sobre diferentes supor-
Portanto, a análise genética privilegia o espetáculo como tes materiais (pap éis, fitas magnéticas, vídeos, ovos, imagens
uma obra de criação em mov imento, como um processo do digitais, fotos etc.) e carregam com eles informações fragmen -
qual aqueles que realizam a prática não são jamais excluíd os. tadas que respondem aos imperativos dos diferentes criadores
Ela ten ta cons truir a pon te entre o saber prático do arti sta (teo- e executores do espetáculo (encena do res, ata res, cenó grafos,
rias do fazer, mas também todo um saber pragmático que lhe assistentes, iluminador etc.). Ao trazer informações sobre os
é próprio) e o saber teórico da aná lise (teo rias do espetáculo e diversos aspect os da repre sentação, eles oferecem um quad ro
da obra acabada) . caleidoscópico e inacab ado das distintas etapas da mont agem
e da imbricação do s vari ado s discurs os cênic os. Traça m assim,
Tal abundâ ncia de documen tos, cada qu al trazendo infor- nas entrelinhas, as diferentes fases do trabalho anteriores à
mações diferentes passíveis de exame ao longo da análise dos apresenta ção do espetácul o.
processos de criação, não nos deve fazer esquecer nem do ecle- Em face de tal diversidade de documentos, coloca-se de
tismo do conjunto, nem do fato de cada um desses documentos modo mais agudo ainda, não somente a que stão da coleta des-
se enco ntrar necessariament e cheio de lacunas. Com efeito, eles ses registres, mas tamb ém a de sua decodifi cação e análise.
são, com frequência, difíceis de datar, incompletos e nenhum Coloca-se também , de forma crucial, como já dissem os ante-
deles pode, por si só, explicar a gênese do espet áculo. riormente, a importância do s cadernos de direç ão. Percebe-se,
Desejar empreend er a posteriori tal trabalho de reconstru- por exemplo , pelos escritos dos assistentes de d íre ção, qu e não
ção, por uma via exploratória, coloca, tod avia, certo número de existe nenhum método de notação, e que, a cada assistente, não
problemas: por um lado, o da reunião dos documentos, e até o somente adota uma maneira de tomar notas que lhe é peculi ar,
da existência mesma dos vestígio s iniciais da montagem, mas mas decide - segundo os imperativos do encenador ou dele
também o relativo à legibilidade, à credibilidade e ao modo de próprio - anotar certos detalhes em detrimento outros'<. O
análise de tais documentos. Tamb ém se coloca a questão do resultado disso é que, para aqueles que desejariam acompa-
estatuto con ferido a eles em um a obra em processo. Trata-se nhar as diversas opções esboçadas antes do trabalho de seleção
de uma memória fiel convocada a durar ou de marcas elípticas
inscr itas no imediatismo da ação presente? 14 Ver, a esse propósi to, S. Proust , op. cit.
76 A LIOM DO S LIMI TE S: UM A TE OR IA A PRO C U RA DE PRÁTI C A POR UMA GE N IOTlC A DA ENC ENAÇ ÁO: TAKE 2 77

fina l ter sido opera do ", tal objetivo torna-se frequentemente espetáeulo, e compensa, pelas anotações por ele efetuadas, as
impossível, pois as versões anteriores anotadas pelo assistente omissões, as rasuras, os vazio s que os do cumentos habituais
são apagadas, na maioria das vezes em fu nção da opção atual deixam necessariamente int ocados.
em curso. De fato, amiúde não subsiste nenhum registro das Para o pesquisador, esses vestígios são hoje indispensáveis.
diversas escolhas anteriores que pontuaram a montagem. Os Vistoo crescente interesse em relação ao processo de uma obra
cadern os de direção tornam-se, portanto, palimpsestos impos- em construção, eles fo ram repostos na ordem do dia, com o
síveis de prospectar, pois as novas versões se sobrepõem às intuito de esclarecer a trajetória de um enc enador e de interro -
precedentes, sem deixar que nada subsista. E empobrecem, gar a sua criação. Tal mudança de foco reflete uma modificação
proporcionalmente, a aná lise genética. importante do po nto de vista dos est udos teatrais. Doravante,
É necessário se render às evidências . Con trar iam ente à longe de se concentrar so bre a análise de um espetáculo como
análise genética de textos aplicada à literatura, a relativa à repre- uma produção acaba da, capaz de veicula r um sentido ou revelar
sen tação não pod e ser exaustiva e só a muito cus to co nsegue uma estéti ca, traba lha-se sobre esse ponto nev rálgico da obra
ana lisar todas as etapas que conduzi ram ao espetáculo final. Ela em vias de n ascer, buscando refazer o c urso do tempo para
pode, no máximo, ajudar a co m preender me lhor a forma de saber como o artista consegue efetuar suas escolhas e de que
trabalhar do encenado r, um modo de inte rpretar do ator, uma modo determ inad a esté tica se constrói.
co nexão p art icul ar do ce nógrafo co m o espaço, uma relação Tal visão se impõe ainda mais quando todo teatro contempo-
específica co m a lu z, co m um volume, com um a geometria, râneo de natureza performativa decid e, a partir de agora, encenar
mas não pode ates tar todos os detalh es qu e levar am da ideia obras em constante movimen to, nas quais o processo é levad o
in icia l à rea lização fina l do espe táculo. O pesquisad o r deve, para dent ro da obra acabada, onde o acontecime nto se sobressai,
po rtanto, se co nte n tar em pinçar dos do cumentos existentes eonde tud o se passa na urgência de um encon tro que tudo tende
algumas in formações qu e escla reça m um ou o utro asp ecto do a privilegiar (Jan Lauwers, Guy Cassiers, Ivo van Hove, Elizabeth
tr abalho do encenador, dos atores ou demais ideali zadores, caso Lecompte, Josef Nadj, Ian Fabre ). Daí ser, como afirmamos, na
não esteja sujeito a cons titui r ele mesmo essa memória, como análise gen étic a, imprescindível a manuten ção do impacto da
fru to da obse rvação de numero sas horas de ensaio. Foi isso o subjetividade evidenciada nas opções efetuadas",
que tentar am fazer, cada um a seu m odo, Gay McAuley, Sophie
Pro ust o u And reas Yandl, em relação às obras dos encena dores Trad. Antonio Araújo
cujos ensaios eles obse rvar am". A pre senç a desse tipo de pes-
qui sad or, ainda pou co frequente na s sala s de ensa io, cria uma
narra tividade do tr ab alho construída em relação às origens do

15 As difere ntes etapas de imp rovisação da personagem de Valere, no filme


Au Soleil m ême la nuit (E. Da rmo n e C. Vílpoux , coprodução de La Sept
ART E, Agat Films & Cie. e Théãtre du Soleil, 1997), constituem , nesse sentido,
um a exce ção, tanto quanto o filme Claude R égy, Le Passeur (Claude R égy, o
Barqueiro) realizado por Elisabeth Coronel e Arna ud de Mezam at (1997),
consagrado ao trabalho de criação de Régy, ou ainda o filme realizad o por 17 São os diferentes estágios dessa reflexão que tentamos conduzir no ãmbi to
Stéphane Metge sobre o trabalho de Chéreau em Fedra. do grupo de trabalho da FIRT (Fédéra tion Internationale pour la Recherche
16 Ver ainda a revista Rehearsal, editada por Gay McAuley,bem como a disserta- Th éãtrale), dedica do aos processos de criação , criado em 2 003 e cujas
ção de Andreas Yandl intitulada En qu êted 'une v érit é: Analyse herm éneutique atividades ocas ionaram um dossiê especial da revista 7heatre Research
de la gen êse d'Urfau st, tragédie subjective; mis e en sc êne de Denis Marlea u. lnternational (a. 3 , n. 33, out. 2008, número especial sob re Genética da Per-
Th éàtre us u, UQ AM, 200 1. Outros também se dedicaram igualmente ao estudo formance). Tal dossiê procura tom ar mais claro esse campo de pesquisa, ainda
dos ensaios, mas de modo, às vezes, menos sistemátic o. Ver nota 13, supra. pouco desenvolvido, que são os processos de criação.
Par te II

.Pa r a um a Def iniç ão


da Tea tral ida de
1. A Tea tral ida de

em busc a da espe cific idad e


da ling uage m teat ra l'

Coloc ar-se hoje a questã o da teatra lidade é tentar defini r


o que
dis t ingue o teat ro d o s outros gêner os e, m ais ain da, o
q ue o
d ife r en c ia das outras artes do e s p e tá c u lo , partic ularm ente
da
d an ç a , da perfor mance ' e d as artes multim ídia. É esforç
ar-se
por atuali zar a nature za profu nda d o teatro , para al érn da
m ul -
t iplicid ade de prátic as indivi duais , te orias d e atuaç ão, estétic
as.
É tentar e n co n t r a r parâm etros c o m u ns a toda realiza ção
teatral
desde s u a origem . O proj eto pare c e ambi cioso, titânic o,
t a lv ez
irreali sta. Portan to, tratare mos a q ui d e e nsa ia r referê ncias,
est a -
b ele c er baliza s para uma reflex ão que d eman da contin uidad
e.

D es envol vimento d e um a co n fe rê nc ia d ad a e m 19 8 7, n o
D epartam ento d e
Teat ro d a Facu ldade de Letras e Filosofi a da Univers i dade
de Buenos Aires.
Foi a mpliado e publica do pela p rim ei ra vez n a revista
Po étique, e m 19 8 8 .
La Th éât ral it é: La spéc ificité du la n ga ge théât ra l. Po étiq
ue, Paris . se t. 19 8 8 ,
p . 347 -361, . O fina l d o artigo foi modific ado pa ra le va r em
conta pesquis as
re ali za d as posterio rme nte sobre a q uestão da tea t r ali dad
e.
2 O ter mo "pe rfor rnance" corres po nde âqui lo q u e o in g lês
c hama d e perfor-
man ce a rt, quer di zer, uma a r te n a scid a do h appenin g, c
ujos lim ites com as
o u tras a r tes ( pi n t u r a. esc u lt u ra, músi ca ) n ã o são esta n q
ues. Cf. o es tu do d e
Ro s e Le e Goldbe rg, Perform a nce: Live Art, 19 0 9 to the
P resent o New Yor k :
E .P. Dutton. 1979 . Cf. também J. Féral, Perform ance e Théâtra
l ité: Le s uje t
d é m yst ifié, J. Fé ral; J. Savo na; E. Wa lke r (eds.), Th éãtra lit
é, écr it ure, m ise en
sc éne, Co ll. B r êc hes, Morit r éa l: H urt ub ise HMH. 1985. p.
125 -140 .
82 ALÉM DOS LIM ITES: PA R A UI" IA DEF IN iÇÃO DA TEATRALIDADE A TEATRALlDADE 83

Diria que o s éc u lo xx colocou em x e q u e as certezas do RETO M ADA HISTÓ R ICA


teatro e das outras a r tes , s e é q ue se pode fa lar a ss irn. O que
a in da era irnpor ta n te par a as es té t ic as teatrai s d efinida s e essen- A noção de teatra lidade parece ter s u rg id o na história ao mesmo
cialmen te normativas d o fi nal d o séc u lo X IX, fo i quest ionado tempo qu e a noção de literaridad e 4, ainda que t enha e xperi -
no s é c u lo X X , ao mes mo terrrpo que a cena d istancio u -se do m e n ta d o uma difusão m enos ráp id a , j á que a maior parte dos
texto e d o lugar que e le deveria oc upar na rea lização teatral > textos que abordam o tema, e que pudemos inventariar, datam
Desse modo, com o tex t o sofrendo ataques e não poden do dos ano s de 19805. Portanto, é preciso dizer, antes de tudo, que
mais garantir a teatra li dade da cena, era normal q u e os h o m ens a noção de teatralidade enquanto conceito é uma preocupação
de te atr o co meçass e m a se interro g a r so b re a es pec ific ida de do recent e , q ue aco mpanha o fenômeno de teor ização do teatro
a to tea tral, especialme n te porq ue essa es peci fic idade p a re ci a, no s e n t id o moderno do termo. Entre tanto, pode -se objetar q ue
a par t ir daí, fazer pa rte de ou tras práticas como a d a n ç a , a A poética de Aristó teles, O Paradoxo Sobre o C o med ia n te, de
pe rfo rmance, a ópe ra . D iderot, o s prefácios de Rac ine e Victor H ugo, para c ita r alguns
A emergê ncia d a te a t r alid ad e em o ut ros espaços q ue exemplos, c o n s t it u e m , efetivame nte, um trabalho de teoriza -
n ã o o tea tro p a r e c e t er p or coro lário a di ss oluç ã o dos lim ites ção do t e a tr o. É claro que sim. Mas sabemos que a te o r iz a çã o
e ntre os gê neros e d a s d is t inções form ai s e n tre as p rá t icas: d a d o te at ro no sen tido atu.al, o u seja, e n q uanto re flexão so b re a
da nça - teatro às a r tes m u lt i m íd ia, passa n do p el o s h app en ings, es pecific idade dos gê neros e a defi n ição de concei tos, como
a perfo rmance, as n o v a s t e cnolo gi a s , é cada vez mais di fícil a "serniot iz a ção ", a "osterição", o "e n q u a d ra m e n to", a "li min a -
d ete rmin a r as es pec i fic idades . À rrie d id a q ue o es petac u la r e o ridad e" é muito m ais rece n te. É o s ig no d e um a é poca c u jo
te atral p a ssaram a fazer p arte d e n o vas form as , o t e atro, repen- fascí n io pel a te o ri a R oland Barthe s ex pôs.
tinamente d escentrado, foi o b r ig a d o a se redefinir. A partir daí, Se a n o ç ã o d e t e a tralidade di fundiu - s e a ti vame n te há ce rca
p erdeu s u as c ertezas. d e a lg u ns anos , essa di fus ã o rec ente pare c e ter es q uec ido a hi s -
C o m o, e n t ã o, definir a teatralidade hoj e? É pre c iso falar de tória m ai s longínqua d o co nceito, já que a n o çã o d e te atralidade
te atralid ad e , n o s i n g u la r, o u d e te atralidade s , n o plural ? A tea- pode ser e ncon t rada n o s primei ro s texto s d e Nico lai E v réi nov
t r alidade é um a propri edade que p ertenc e , e m sen t id o p r óprio (1922). Nesses escr itos, ele fa la de teatra lnost e insiste na impor-
e ún ic o , ao te atr o , o u p ode investir, p aral el amente , o c o ti d ia no ? tâ ncia d o s u fixo n ost, afi r man do q ue é s ua m aior d e s cobe r ta".
É um a q uali d a de ( no se n t ido k anti an o d o termo) p ré-exis tente Po uco d efinida lex ic al m e nte , e t i mologica mente p ouc o
ao o bjeto e m qu e se ap lica, a con d ição d e eme rgência d o te atr al? clara, a teat ralidade parece res u lta r dess e "conceito t á ci t o" que
O u seria a n tes a c o ns e q uê n cia d e um d eterminado p ro c e sso
d e t eatral iz açã o d irigido ao r e al o u a o s u jeito ? Ess as são as 4 Ver a respei to Mircea Marg h e scou, Le C on cep t de littéra rité: Es sa i su r les possibi-
lit és th éoriques d 'un e scien ce d e la litt érature, C o ll. D e proprietatibus litterarum ,
q ues tões que p re ten demos propo r a q u i. H ai a : Mo uton, 1974 ; C h a rles Bouazi s , L itt ératu re et société: Th éorie d'un m od éle
du fo nction nemen t litt éra ire, P ari s : M arn e , 1972 ; Thomas Aron , Litt ératu re et
littérarité: Um ess a i d e mise au p oi nt , C a lL Annale s littéraires de l' U ni versité d e
Besanç on, Paris : Le s B elles Lettre s, 19 84, assim COITIO as prim e ir a s referên cias
à n o ç ão d e " Iite rar idadc" e sbo ç adas n o â m b ito d a Escola de Pra ga.
S No entanto, é p reci so notar que O termo " teatralidade" foi i ntro d u z id o na
França por R o lan d Barthes e m 1954 (em Le Théâtre d e Baudelaire , prefácio
3 Um indício des sa impo rtância foi a pesquisa r e a lizada em 1912 pela revista à edição de O euvres co m p le tes de Baudelaire, Paris : C lu b du meille ur livre ,
Les Marg es, que perguntava a o público: " Se g u n d o voc ê , quem é superi o r, o 195 5; reeditado em Essais crit iq ues, Pari s: Seuil, 19 64 ) .
h om em que ama a leitura o u o h om em que tem p a ixã o pelo t eatro ?". a oca - 6 Ve r Sha ron M arie Ca r n icke, L I ns ti nc t t héât ral: Ev re inov e t la th é âtralité , Revue
s ião, a maio ria d o s p art icipante s re sp o n d eu que o te x to e ra m ai s importan te des ét udcs slaves , v. 53. f. I, p . 9 7 -ro8 , 198 1. Em f r a n c ê s , a expressão man t ida
q u e o espe tác u lo. O fato é d e s c rito po r A n d ré V e in ste in e m L a M ise en sc éne foi " t héâ t r a l it é", em in g lê s , parece osc ila r ent re " t hca t ra l ity " e the atri c a lity ", e
th éát ral et sa co n d i t io n es th étiq ue, Pari s : Fl ammari on , 19 55, p . 55. seu u s o é ITI en OS impo r ta n te do qu e faz o f ra ncês .
AU~ M DOS LI :VUT E S: PA R A UlVI A D E FI Ni Ç Ã O DA T EAT RALIDADE A TEATRA LIDADE R5
R·I

Ivlic hacl Polanyi me nciona? e defi ne c o m o u ma " id e ia c o n c re ta obede ce: ins u ltos, a rneaças, o t om sobe. O s o u tros e sp ect a do res
d ireta mente rn a n ip ul ável , mas q u e s ó p ode s e r d e scrita ind ire- o bservam at entame nte, a lg u ns fazem comen tários, to rn am partido.
ta m ente", ass o c ia n do -se, d e m odo p r iv ile g ia do, ao tea t ro . a vagão para d iante d e uma impone nte p ropaga n d a publicitária. A
agredida (é um a mulh e r ) d esce, fazendo com que o s esp ec tad o re s
presentes n otem a desproporção e n tre a pro ib ição de fum ar, escri ta
A TEAT RA LIDA DE C O M O P ROP R IE D ADE em letras rnuito pequenas sobre as late rai s d o rnctró, e o estím u lo
DO COT ID IAN O a fu mar q ue ocupa tod a a parede d a plataforma .
H á teatralidade n esse incidente? A tend ência ser ia respon-
A par t ir d a inv e stigaçã o da s c o n d ições de manife stação da d er pela n egativa: n ã o houve nem enc ena ç ã o , n em ficç ã o , ne m
te at r alidad e e m c en a e fo ra d e ce na , p ode-s e escla recer que apelo a o o l h a r do o u t ro por p arte d o s p r otag onista s; a penas
a te at ralidad e nã o p erten c e , e m se n t ido excl us iv o, ao t eatr o. p essoas envo lvidas n urna escaramuça. Ora , o espec t a dor que
A lg uns exem plos são cap azes d e o r ie n ta r nossa re flexão. S u po- tivess e d escido na m esma e s t a ção teria d es c o b e rto que a s p e s -
riharno s os seg u in t es cenári os : soas eram a to r es e faziam te at r o invisíve l, s eg u n do os princ ípi o s
definidos por Augu sto Boal''. Po rtanto, h a via t eatralidade n o
12 C enário : Vocês e n tra m e m um teatro onde uma determinada
espetác ulo a que o espectador assis tiu involuntariamente ? A
d ispo si ç ão c enográfi c a es t á, e v id e n t e m e n t e, à e spera do início
posteriori, s e r ia possível di z e r q ue s im .
d a r epre s entaç ã o; o a to r está au s ente ; a p eça n ão com e çou .
O qu e c o n cl u ir dessa m udança de opinião? Que a t eatra-
P ode- se dizer que aí ex is te teatralidade?
lidade , nesse caso, parece ter s u rgi do do c o n h e c i m e n t o do
Responder de modo afirmativo é reconhecer que a d ispo-
espec tador, d e s d e que fo i informado d a intenção de teatro em
s iç ã o "t e a t r a l" do lu g a r cênico traz em si certa teatralidade . O
s ua dire ç ã o. Esse s a ber m odific ou se u o lhar e fo rço u-o a ve r
e s pec t a d o r sabe o q ue esperar d o lug a r e da cenog rafia: t e at ro ".
o espetac u lar onde a té e ntão só h av ia o espec u lar, ou seja, o
Quanto ao espaço, s u rg e como portador de teatralidade porque
even t o ?", Ele t r an s fo rmou e m ficção o qu e pe nsava s urgir do
o s u jeito percebe nele relações, uma encenação do especu lar.
coti diano; sem iotizou o espaço, d esl o c ou os signos e pode lê -l o s
Essa importânc ia do e spaço parece fundam ental a toda teatrali-
em seguida de m o d o dife rente, fazendo emergir o s imulacro
d ade , já qu e a passagem do literário ao teatral sempre s e funda,
n o s cor pos d o s performers e a ilus ã o o nde, supostamente, ela
prioritariamente, sobre um trabalho espacial.
não estaria pró xima, ou seja, em seu espaço cotidiano. Nesse
22Cenár io: Vocês es tã o e rn 'u.rn metrô e ass istem a uma discus- caso, a teatralidade surge a partir d o perform er e de sua intenção
são e ntre dois passagei ros. Um deles fuma e o outro lhe pede, expressa de teatro. Mas é u m a intenção que o espectador deve
com veemên cia, que não fume, pois é proibido. O primeiro não conhecer, n e c e ss a r i a n l ent e , sem o q ue não consegue notá-Ia, e
a t eatralida d e lhe escapa.
7 E m 7h e Ta cit D im ensi on , New York: Garde n C ity, 19 6 7, Pola nyi no ta qu e
esse s a b e r tácito pro vé m d a s li g a ç õ es qu e o in divíd uo es ta belece e n t r e duas 3 2 C e n á r io : Enfim, o último exemplo. Sentada no terraço de um
e n ti da d es. O co nhecim en to d e u m a p er m ite q ue d e d u za a s c a r ac te r ís t ic as d a café, o lho os hom ens passando na rua. Eles n ão t êm intenção
o u t ra ["tac it knowing establishes a mean ingful rel at io n betwe e n two te rrns" ( I"
13 ) ; " we know the firs t te r m o n ly r e ly in g o n o u r a w aren ess of it for a tte n di ng 9 F oi efetivamente o qu e aco n te ceu nesse exem p lo re al. O p a ss a g eiro ag ressor,
to th e sec o n d " ( p .ro j ] . Ap l icado à n o ç ã o de teatralid ade , iss o s u b li n ha que que desceu n a rn e srn a es tação, n otou a rnulttdã o q ue s e forma v a e m torno
n o sso c o n h e c imento d o que é o te a t r o perm it ir ia d edu z ir as c a r a c te rí s t ic as d a passageira agredida , e com p r een d e u que se t r a ta v a de urna fic ç ão te at r a l.
da teat rali dade . Ve r tamb ém Ja cque s Ba íllo n , D'u ne ent re prise d e t héât rali té , Fi cou irri tad o p or ter s ido e n gan a do d es sa m ane ir a .
Tr avail th éát ra le , n . 18 - 19 , 1975, 1' .1 0 9 -1 2 2 . 10 A re sp eito d o es p e tacu la r, G u y D eb o rd es creve : "O espe tácu lo n ã o é ide nt ifi -
8 A au s ên ci a d o a to r coloca um prob lem a . H á te at r alidad e se m at or ? Ess a é a cável a o s im p les o lhar, m esmo c o m b in a d o à escu ta . É o que escapa à a t iv id ade
q u e stão fun dam ent al. Be c kett te n ta da r u rn a res p o s ta fa ze n do com que o a ta r dos h omen s , à recon s ide ração e à c o r re ção d e s u a o b r a. É o opos to d o di ál o g o :'
traba lh e n o limi te d o d es ap are cimento. G uy D eb o rd , L a S oc ié té d u spec ta cle, Pa ris : C ham p lib re , 197 1, p . 4 ·
86 AL ÉM DOS LIM ITES: PARA UIVIA DEFINI ÇÃO D A T EAT RALIDADE A T EATRALIDAD E 87

de ser vistos n e m d e s ej o de a tuar. Não p rojetam s imulacro nem que faz surgir aí a alteridad e , mas a p rópria c o n s t it u içã o desse
fic çã o , a o menos apare ntemen te. N ão exib ern se us corpos ou, espaço por meio do o lhar do espectador, um olhar at ivo q ue
ao m eno s, n ã o é essa a razão de s u a pre sença nesse lugar. Eles é condição de emergência da teatralidade e realmente prod uz
m al d ã o a tenção a esse olhar q ue s e dirig e a eles e que ignoram . uma modificação "qualitativa" nas relações entre os sujeitos: o
O r a , o olhar q ue lh e s di r ijo lê certa teatralidade nos corpos o u tro torna -se ator seja porque m o s tra que represe n ta (nesse
q ue o bserva , e m s u a gest ualidade, e I11 s ua inscrição no espaço. caso, a iniciativa parte d o ator), sej a po rq ue o o lhar do espec-
O s i m p les exercíci o d o o l h a r in screve essa t eatra lid a d e , colo- tado r transfo rma -o e rn ato r - a d e spe it o d ele - e o inscre ve
can do a gest u a li dad e d o o u t ro n o esp aço d o especular. na teatra lidade (nesse caso, a iniciat iva parte d o espec t a dor) .
Desse exem p lo fi n al, pelas rest ri ções mínimas qu e ex ige do Ass im, a teatra lidade cons is te tanto e m si tu a r a coisa o u o
espec ta do r" , p ode - s e depree n de r uma irnport a nte conclusão: a o u tro n ess e o u tro es p aço, e m q ue ela p ode a parecer g raças ao efeito
te atralidade não parec e relacion a r - se à nature za d o objeto que d e e n q u a d ra me n to a través do qual ins cre v o o que olho (v er
investe - o a t o r, o espaço, o o b jeto, o even to ; tamb ém não se no ss o t e r c eiro exe m p lo ) quanto e rn tran sfo rmar UI11 eve n to
re stringe ao s im u la c r o, à ilusão, às aparências , à ficção, j á que em s ig no ( q ua n do um simple s fato c o tid iano tran sfo rm a - s e
pudem os apre endê-la e m s it uações c otidianas . Mais qu e urna e m espe tác u lo - ver n o ss o seg u n do exem p lo ) . P ortanto , n ess a
p r opriedade, c u j as características s e r ia possível a n a lisar, é u m e tapa d e nossa refle xã o, a te atralidade n ã o a parec e c omo um a
process o, uma produçã o relacio nad a s o b r e t u d o ao o lhar qu e propri edad e , m as c omo um p r o c e sso qu e indica "s ujeitos em
postula e cria outro esp a ço, tornado e spaço d o outro - e s p aço pro c ess o" >: a q u ele que é o lh a d o - aquele que o lh a . É um fa zer,
virtual, é claro - e dá lugar à alteridade dos sujeitos e à emer- um vir a ser que constrói urn objeto antes de investi-lo. Essa
gência da ficção . Esse espaço resulta de um ato consciente tanto construção é resultado de uma dupla polaridade, que pode
do próprio p erformer (no sentido amplo do termo: ator, ence- partir tanto da cena e do ator quanto do espectador.
nador, cenógrafo, iluminador, e tamb ém arquiteto) - e ess e é o O que faz o olhar da espectadora sentada no terraço do café,
sentido dos dois primeiros exemplos -, quanto do e spectador, ou o do espectador no vagão dometrô, ou mesmo aqueles dos
cujo olhar cria urria clivagem espacial de onde surge a ilusão; espectadores que entram no teatro, é criar esse e s p a ç o de cli-
o lh a r dirigido, sem distinção, a eventos, c o m p o r t a m e n t o s , c o r- vagem, um outro es p a ço ou o espaço do outro no lugar do seu
pos, objetos, espaço cotidiano e tamb ém ficcional - e isso tem próprio. Se essa clivagem não existisse, não haveria possibilidade
relação com nosso ltirno exemplo.
ú de teatro, pois o outro estaria em meu espaço imediato, ou seja,
A condição da teatralidade s eria, portanto, a identificação no cotidiano. N ão haveria teatralidade e muito menos teatro.
(quando é produzida pelo outro) ou a cria çã o (quando o s u j e ito Portanto, e m princípio a teatralidade aparece como
a projeta sobre as coisas) de um outro esp a ço , espaço diferente operação cognitiva e até mesmo fantasmática . É um ato per-
do cotidiano, criado p elo o lh a r do e s p e c t a d o r que se mantém form ativo daquele que olha ou daquele que faz. Cria o espaço
fora dele. E ssa clivagem n o esp a ço é o espaço do outr o , que virtual do outro, o espaço transicional referido p or Winnicott,
instaura um fora e um d ent r o d a t eatralidade . É um esp aço o espaço liminar mencionado por Turner, o enquadramento
fundador da alteridade da teatralid ade . ev o c a d o por Goffman. Permite ao sujeito que fa z, e àquele que
Percebida dessa fo rma, a te a t r a lidad e não seria apen a s a olha, a passagem daqui para outro lugar.
e m e r g ê n c ia de uma fratura n o e sp a ço, uma clivagem no real
12 Segu n do a exp ressão consag rada p or Iul ía K r is teva ( '977) e m O Suj ei to e m
11 Isso nos p e r mite ler. p el o avesso. o segundo exemp lo dado (a ce na no metr ó), P rocesso. Po lylogue, ca l. T e! qu el , P ari s : Se u il , 19 91. Co m essa expressão.
dessa v e z p ara re spo nder afirmativamente à q uestão co locad a anteri orm ente Kr isteva prete nde sub linha r O móVimento d o s ujeito s e m p r e e1T1 pro c e ss o
(Esta cena é te a t r al ?) : s im , o e sp e tác u lo no metrô é po r ta dor d e teatra lidade. de est r u t u ração, s u j e it o n ã o m on ol ít ic o . qu e escapa à le i u ni ficado ra d a
rnesrno que o espec tado r ignorasse tra tar- s e de teat ro. lingu a g e m .
88 ALÉM DOS LIM ITES : PARA UMA DEF INi Ç ÃO DA TEATRALIDADE A TEATRA LI DADE 89

oque q uer d izer q ue a teat ra lidade não te m ma n ifestações da teat r a lidade é pré - e s tét ic o . A pela à criatividade do s ujeito,
físicas o briga tórias, riern p ropriedades q ualitativas que per ~li ta m m a s precede a criação co mo ato ar t ís t ic o e estético aca bado.
re c onhe c ê -l a com exa ti d ão . E la n ão é um dado e m pí r ico. E urna C o n lO n ota Evréinov, é um a tr an sforrnaç ão qu e p ode a co n tece r
s it uação do s ujeito em relação ao mu n do e a se u im aginá rio. É n a v ida co t id ia na . Nesse aspec to, o limi te e n tre te a t ro e cot i-
essa s it uação das estr u t u ras d o imaginário, fundadas sobre a pre - dian o é mínim o . E m s u a d e fini ç ã o m a is a m p la, a t e atralid ade
sença do espaço d o o utro, que p ermite o te at ro. Ve r a teatralidade p ertenc e a todo s.
n e ss e s ter m o s coloca a que stão da transcen dência da te atralidade. A i n d a que s e c ompreenda profundamente a s co n v icções
de Ev ré i no v e a r el açã o qu e mantém c o m a é p oca e m que
foram elaboradas ( e specialInente no que se refere à noçã o de
o T E ATRO COMO PRÉ - ESTÉ TI C A : instinto ), trata - s e de um m odo d e ver a t e atralidade que não
O Q U E PE RM ITE O T E A TRA L ? diz r e s p eito esp ecificamente ao teatro, e que pod e se r aplicado
à ant ropologia, à etnologia , à so ciol og ia ' >. Na tentativa d e
Para Nicolai Evréiriov, um dos primeiros a te o rizar sob re a n oção, aproximar teatralidade e cotidiano, Evréinov c orre o risco d e
a te atralidad e é vis ta co mo in stinto d e " t rans fo r maçã o d a s a p a - anul a r a especificidade da teatralidade cênica (pois in s cre ve
r ências da n atureza" E sse instinto, que Evréinov chama , em a teatralidade no cotidiano), mas confere uma extensão a o
outra passagem, de "vontade de teatro", é um impulso irresistível termo teatralidade que merece ser explorada. Evréinov nota
e n c o n t r a d o e m todo s os homens ( ve r O Teatro Por Si Próprio, que a t eatralidade, antes de ser um fenômeno teatral, é uma
193 0, ou Apologia da Teatralidade, 1908), do mesmo modo que o propriedade (uma transcendência) que pode ser deduzida, sem
jogo nos animais (ver Teatro Entre os Animais", 1924, L e Th éâtre passar pelo estudo empírico que pressuporia a observação de
dans la vie [O Teatro e a Vida], 1930). Portanto, trata-se de uma diversas práticas teatrais.
qualidade quase universal e presente no homem antes de todo S e estamos próximos de admitir que existe de fato uma
ato propriamente e sté t ic o . É o gosto pelo travestirne nto, o prazer teatralidade dos atos, dos acontecimentos , das situações e
d e criar a ilus ão, projetar simulacros de si e d o real em direção dos objetos fora da c ena teatral, coloca-se , a partir daí, uma
ao outro. Nesse at o que o transporta e o transforma, o homem questão de ordem filosófica , a da existência possível de uma
parece ser o ponto de partida da teatralidade: é sua fonte e seu transcendência da teatralidade (para falar em termos kantia -
primeiro o b jeto - o fe re c e s im u la c ros de si . E v réi n o v fala da trans- nos) de que a teatralidade cê n ic a seria apenas uma expressão.
forrnação da n atureza':', outro norne dado ao real. Assim , para Colocando e m outros termos, a teatralidade é uma proprie-
E v r é i n o v o ho rnern está no centro do processo; é fundamental dade transcendental que pode investir todas as formas do real
para a emergênci a e a manifestação da teatralidade. (o artístico, o cultural, o político, o econômico)? Ou só pode
C o m origem no " in s ti n t o", nesse caso a teatralidade liga-se ser deduzida a partir do empirismo e da observação do real,
sobretudo ao c o r p o do ator e resulta de uma exp e r iê n c ia física com base em um denominador comum a práticas artísticas
e lúdica, antes de tornar-se um rne io intelectual vi sando a uma dotadas de teatralidade?
dada e stética. E ss a e xperiência lúdica leva à transfor m a ção da Vista como e strutura transcendental, a teatralidade s e r ia
natureza. Isso quer dizer que, nesse caso, o processo fundante dotada de características nas quais o teatro poderia inscrever-
-se naturalmente. E seria justamente por existir a possibilidade
13 o títul o exa to d o li vro é Tea t r u j ivotnyklz ( O Teatro n o s A n imais : So bre a de transcendência da teatralidade que haveria teatralidade em
S ig n ificação Biológica d a T e atralid ad e ) , Len ingrado / Moskvá: Kni g a , 19 2 4 , cena. Dito de outra forma, o t«;:.atro só seria possível porque a
n ã o tradu zid o e m fra ncês.
14 Não d e s en v ol v e r em o s aq ui as q uestões teóric as le va ntad a s pe las n o ç ô e s d e 15 Co mo faz E lizabe t h Burns em se u Thea tr ícali ty. A Study of C o n ven t io n in the
n a tu re z a e de rea l. Thea t re and in Socia l Life, New Yo rk: H arp er & Row, 1973.
90 AL ÉM DO S LIM IT E S : PA RA U M A D E FI NI Ç ÃO DA TE ATRA LIDAD E A TEATRALIDADE 91

tea t ra lid a de ex is te e o teatro a co n voca. Urna vez convoca da, teatro , respeitando as mudanças históricas, s o cio ló g ica s ou esté-
a t e at r al idad e passaria a a d q u ir ir ca rac terísticas p ro priamen te tica s: o atar, a ficção e o jogo.
t e a t r ais , va lo riza das co letivame n te e socia lmente p rofundas.
Atar F ic ç ão
Mas essa t e atrali dade pró pr ia ao teatr o não pode r ia existir se
Jogo
n ã o houve ss e a p o ssibilidade d e um a t ranscen dênc ia d a tea-
t ra l ida de . O a tar tom a lugar n e ss a e strutu ra t ransce n de n ta l,
m ergulhando n e sse es p aço clivado que escolhe u o u que lhe OAtor
fo i irnp osto".
Se o a tar é portador da teatra lida de no teatro - axioma que
Pete r Bro o k , sem dúvida, e n dossa r ia " -, é porque tod o s os sis -
A T EATRALIDADE T EATRAL tem a s s ig n ifican tes - espaço cenográfic o, figurinos, maquiagem,
nar ra çã o , tex t o , iluminaçã o , a cessório s - p odem d esaparecer sem
Se a co n d ição sin e qu a n o n d a t eatralidad e , co mo aca bamos d e que a te atralid ade cén ica sej a p rofu ndamente afetada. É s uficien te
d efini -l a , é a c r iação d e ou t ro espaço o n de a ficção pode s u rg ir, que o a tar p e rm an e ça p a r a qu e a t e atral idade sej a pre servada e o
essa c a r ac te r ís t ic a n ã o nos parece es pecí fica d o teatro . E n tão, teatro poss a a contecer, prova de que o ato r '? é UITI dos elementos
quais s e r ia m o s s ig n os ca rac te r ís t icos da es p ecificid a de cê rrica?? indispens ávei s à p rodução da teatralidad e cên ic a .
O qu e ap ena s o teatro co n s egu e produzir? Pois o a tar é, a o m e smo tempo, produtor e portador da
Evréinov afirmava que a teatralidade do teatro repousa essen - teatralidade. Ele a codifica, inscreve -a em cena por meio de s ig -
cialmente sobre a teatralidade do atar, movido por um instinto nos, de estruturas s im b ó lic as trabalhadas por suas pulsões e seus
teatral que lhe suscita o gosto por transformar o real circundante. desejos enquanto sujeito, urn sujeito em processo que explora
Apresentava a teatralidade como uma propriedade que parte do se u avesso, seu duplo, seu outro, a fim de faz ê -lo falar. E ss a s
atar e teatraliza aquilo que o rodeia: o e u e o real. Ora , temo s es tr u t u ras s im bólicas p e rfeitamente co d ifica d as, facilmente iden-
nessa dupla polaridade (eu - rea l) as " in te r faces" fu n damen t a is de tificáveis pelo olhar d o público , que delas se apropria como modo
toda reflexão sobre a teatralidade cénica: seu lugar d e emergência d e conhecimento ou de experiência, são todas as formas do nar-
(o atar) e s e u ponto de finalização (a relação que institui com rativo e do ficcional que se ins crevem em cena (personagens,
o real). As modalidades de rela ção que s e estabel ecem e n t r e os atleta s do ges to, m arionete s m ecanizadas, narrativas, diálogos,
dois pala s são dadas p el o jogo, cujas regras tem a ver, ao m esmo repres enta çõ e s ), e que o a ta r faz s urgirem no teatro. R esultan-
tempo, COITI o pontual e o permanente. Na ve rd a de, o s p ercursos te s d e s im u la c ros, de ilusões, ess as estruturas manifestam em
entre esses dois palas podem ser variados, mas não obrigató-
rios . Eles organizam as três modalidades da relação que definem 18 Ver Peter Brook: " Eu po deria tomar n ã o imp orta que espaço vazio e ch a m á -lo
o processo de teatralidade e que pode env olver o c o n j u n to do de cen a. Alguém a travessa esse espaço v a z io e nquan to a lgué m o obse rva, e é
s u fic ie n te para que o ato te a t r a l se inicie." Peter Brook, L'Espace vide: Ecr its su r
le th éâtre , cal. Pie rres vives, Paris: Seu il, 19 7 7, p . 25 . A essa pri mei ra definição,
Pete r Brook acrescen ta a n e c essid a d e de u m d iál o g o sob re a ce n a . "O elemen to
16 Ver a p articip a ç ã o forçad a a qu e os es pec ta dores são s u b met idos, à s ve zes , de base d e uma p e ç a é o di ál o g o . E le implic a um a tensã o e s u põe q ue du as
p el o s a to res. São e lo q ue ntes, n es s e se n ti do, as expe riências d o Living e m p essoas n ã o es tejam d e aco rdo. O q ue sig n ifica um co n flito. Q ue e le seja
Antígone, p o r exem p lo, ou de terminadas práticas teatrais dos anos de 19 6 0 , laten te ou manifesto, po uco im porta': em Pe ter Brook, Points de Suspensi on ,
em que os espectado re s eram forçado s a ent rar no espaço de representação, coI. Poin ts Essa is , Paris : Seuil, 2 0 04 .
o u seja, no es paço do o utro, muitas vezes com rel u tâ n ci a . 19 A noção de a to r é tomada aqui n o senjído mai s amplo possível: pode -se trata r de
17 Em Le So uffleu r in quieto número espe cial de Alternatives Th éátrales , n . 20- 2 1, dez. marionetes, é cl aro , mas ig u al m e n te d e te a t r o sem atores , como fa z o Nou veau
19 8 4 , Je a n - M a rt e Pi e m m e afirmava que a teatrali d a d e é aquilo que o teatro é o Théât re Expér imen ta l de Mon tr éa l, quando a prese n ta um a peça e m q ue apenas
únic o a prod uzir, aq u ilo que as o ut ra s a r tes n ã o o fe re ce m, não podem pro d u zir. o s obje to s a t uam (Les Objets p a rlen t [Os O bjetos Fa la m], 1986- 1987) .
92 A Lf M DO S LI l'vIl T ES: PARA U M A DEFI NI ÇÃO DA T EAT RALIDA D E A TEAT RA LI DA DE 93

cena a e mergê ncia de In un d a s possíveis, d o s q uais o espectad o r difi culdad e d e se r. Porque, aqu i, o corpo é imperfeito por defi-
apreende, simultaneamente, toda a ve rdade e to da a ilusão. Mais niçã o , co nhece se us limites . Feito de matéria, é vuln erável e
que as es tru t u ras d ad as a ver o q ue o o lhar d o p ú bl ico interrog a su r p ree n de quando se s upera" .
sob a másca ra, é a pres e n ç a d o o u tro, seu savoir-faire, s ua té cnica, Mas esse co r po n ã o é ape n as p erf orm a n ce. Posto e m ce na,
se u jogo, s u a arte d a dissi mula ç ã o , da represen tação. posto e m s ig nos, semiotiza tudo q ue o rodeia: o espaço e o tempo,
Po is o o lhar do p ú bl ic o é sempre dup lo. Jam a is se d e ix a a narrativ a e os diálogos, a cen o g rafia e a música, a ilumina ção e os
tomar co m p leta men te. O paradoxo do comed ia n te é o seu pró- figurin o s. Introduz (c r ia?) a teat ralida de em cena. Quanto menos
p ri o : acred itar n o outro se m ac re d itar. Co mo di z Schech n er, o é portador de inform a ção e sabe r, quanto m eno s le v a em conta a
espectado r é c o nfro n t a do COIn o not-not me d o ator'''. O atar representação, n ã o assu mindo a mirnese, m ai s fa la da presença d o
se oferece a ele p or m e io de s irn u la c r o s qu e são es tases d e um atar, do imediatis m o do evento e d e su a p rópria m a te r ialida d e v.
p r o c e ss o e o p ú blic o sabe m u ito be m que aq u ilo q ue a ssi ste Exibido e n q uan to espaço, ritmo , ilus ã o , o pacidade, t ransp a -
rep resenta a penas um a d e s uas e tapas. D iz respeito à trav essia rência, linguagem, n arrati va, p ersonagem, a tle ta, o co rpo do a ta r
d o i mag inár io, a o des ej o d e se r o u t ro, à transforma ç ã o , à a lte- é um dos el ementos m ais importantes d a teatr alida d e em cena.
r idade . A ss i m qu e stionado , p o sto e m cena, d ad o a v e r, o a tar
trabalha nos limite s d o e u , o n de o d esej o torn a - s e p erformance.
Ele si na liza a diferença, o d eslocamento, o d esconhecido. Dfogo
Po rtanto, a t eatralidade d o p erform er e s tá n e sse d e sl oca-
m ento que o atar opera entre ele próprio e e le como um outro, É nesse ponto que intervém uma s egun d a n oção fund amental
nessa dinâmica que registra. A teatralidade está nesse processo para a teatralidade do ato teatral: a noção de jogo. Para quem tenta
do qual o atar é o foco, que faz com que ele sinta, nos momen- apreender a noção de jogo no teatro, a definição d e Huizinga é
tos d e imobihsrno das e struturas simbólicas, a ameaça sempre apropriada. Jogar é fa z er
presente de retorno ao s u je ito . C o n fo r m e as estéticas, a tensão
e n t re as e s t r u t u r a s simbólicas d o teatral e as invectivas do pul- uma ação livre , sentida como "fic tíci a" e s it u a da fora da v id a C Of-
s io na l é rna is o u m eno s valo r iz a da . E m um ext remo encontra -se rente, e no e n ta n to capaz de absorver cornpletarnente o jogado r; é um a
ação desprovida d e tod o intere ss e m aterial e de toda u t ilida d e , que
Artaud, e rn outro, o teatro oriental. De um a outro , está toda a
se pratica ern um temp o e u m espaço exp ressame n te circ unscritos ,
di versidade das escolas e das práticas individuais" . desenvolve -s e segu n d o uma o rdem e co m regra s d ada s-',
O lugar privilegiado dess e confronto da alteridade é o
co r p o do atar, UIn corpo e m jogo , em c e n a , c o r p o pulsional Portanto , o jogo implic a uma a t it u de co n sc ie nte da p arte d o
e s im bó li c o em que a histeria fr iccio n a a maestria. O corpo p erform er (tomado aqui em seu sentido g e ral: a ta r, e ncen a dor,
é , a um só tempo, o lugar do c o n h e c im e n to e da mestria. Um
corpo co n s ta n te m e n t e ameaçado por certa insuficiência, falhas, 22 Surpreende nte m e nte idên t ica àq ue la qu e o e s pec tador sente em uma com -
p eti ç ã o espo rtiva ; o para le lo en tre o s esportes c o tea tro é retom ado c o m
freq uê ncia . Ver Th éãtre/Public, n . 63 , maio 1985 .
20 " To d o s os espetácu los partilham esse ' n ã o - n ã o eu': O livier n ã o é Ham let, mas 23 Para Je a n -M a r ie Piemme, esse corpo traz a m a te ri a li d a d e, a s i n g u la r id a d e,
ao m e smo temp o e le n ão é n ã o H a mlet: se u jogo se sit ua e n t re a n e g a ç ã o de se r a v u lnerab il ida de, p oi s é cada vez m ai s a nac rânico diante das t e c n ol o gias.
um o u t ro (= e u so u e u) e a n e g a ç ã o d e n ã o o ser ( = eu so u H aml e t ) ". Ri chard Mesmo sen do ca da vez m a is m ed iat izado , per ma nece singu lar. "No momen to
Schech ne r, B etw een Theatre and An thropology, P h iladelp hia: U niversity of e m que o r e al mediat iza-se cada vez mais, em q ue o ser humano mergu lha
Pennsilvania Press, , 1985 , p . 123 . n a s im a g e n s de si mesmo que as mo dernas tecnologi as de reprodução lh e
21 A r el a ç ã o co m o co r po difere, é claro, seg un do as escolas de formação. r emetem de volta, o corpo, n a ra d ic al id a d e de s ua p resenç a materia l no espaço
A lgumas te n dem a inc ulcar n o a to r u ma m a est ri a absoluta. fundada em um n ã o p a r a de ga n har ím po r t ância. "; õp. ci t., p . 40.
mé todo a t lé t ico - é o exe mp lo de G rotowsk i - e o ut ras exal tam a p e rd a do 24 /ohan H u iz ing a , O Jog o Co mo Elemento da Cu ltura , 7. ed.. São Pau lo : Pers -
a tor em si mesmo: é o exemplo de A rtaud . pecti va, 2012, p. 16 .
94 A LI'.M DO S LIMIT ES , PARA UM A D E FI NI Ç A o D A TEAT RA LI DAD E A T EAT RALIDADE 95

ce nóg ra fo, d r a m a tu rg o .. . todos e les p articipam), re a liza n d o -se u m a apreensão, urn a iluminação das relações pe rcep t iv as e n t re
n o a q ui e agora de o utro espaço q ue não o cotidiano, visan do à um sujeito e um objeto; s u b lin h a que esse obj eto t ransforma-
realização d e "gestos fora d a v id a corre n te". Esse jogo provO ca -se em objeto teatral e, nessa t r a n s fo rm a ç ã o , e s p aço cênico e
um d is pê n d io pessoal cujos objeti vos, intensidade e manifes- ficçã o estão imbricados. A teatralidade n ã o e m e rg e aí c o m o
tações var iarn de u m indivíduo a o utro, d e uma época a o u tra p a ss iv id ade , o lhar q ue registra conj u n tos de objetos teatrais
e d e u rn gênero a o u tro . (de qu e seria p o s sí v el e n u merar as proprie d a d e s ) , mas como
A lé m di ss o , o jogo é co d ifica do aí a p a rtir d e reg ras especí- din âmic a , r e sultado d e u m fa z e r q ue s em dúvid a pertence, de
fi c a s q u e se relacionam, por um lad o , com as regras d o jogo e m form a p rivilegiada , ao t e at r o ; mas a teatrali d a d e também pode
geral (e n q uadramento c ên ico, o u t ro espaço, liberdade no inte- p e rten c er à q uele q ue se a p ossa d ela p elo o lhar, q uer dizer, o
rior d e ss a rn o lclu r a , ostensão, transfor mação, tra nsg ressões), e esp e ctador.
p o r o u t ro com regras m ai s específicas q ue é p o ssí vel h is t o r ic í-
zar, n a m edida em que dão co n ta d e esté t ic as te atrais diferentes
d e aco r do co m é pocas, gê nero s e prát ic a s especific as » . Essas A Ficção e Sua R el a çã o Co m o R eal
regras i m põe m u m a moldura d e ação no interi o r da q ual o a to r
po de toma r certas li b e r d ad e s em rela ç ã o ao c otidi an o . o terc eiro t erm o d a r elação é a q ue le que t r a ta d o real. Optar
Essa mo ldura não é cên ica, como se p o d e ri a pe nsar (rnol- por falar d a r elaçã o co m o real n o teatro pode pa recer p r oble -
d ura fís ica q ue perte nce, co m f req uê nc ia, ao domíni o do m ático, j á que s u p õe a e xistência de um r eal c oncebido com o
visível) , m a s uma moldura virtual, aquela que o jogo impõe entidade autônoma, cognoscível e representável. Ora, a re flexã o
com suas constriçõ e s e suas liberdade s. Ela é visível graças à filosófica atual tende a mostrar que o real só pode ser resultado
c o d ifi c a ç ã o tácita que o p e r a no espaço e nos seres que o ocu- de uma observação problemática, pois é sempre produ zido,
pam, c r ia n d o o fen ô m eno te atral. E m lugar d e moldura, s eria sendo ele próprio resultado de uma representação, para n ã o
convenien te fa lar a q u i d e e n q u a d rame n t o teatral, p ara retomar dizer um simulacro. E n t re ta n to , é importante questionar a rela -
u rn c o n c e ito que E r v in g Goffman" definiu e tern a v a n t a g e m ção da teatralidade com o real porque ela m arcou a r efl e x ã o
de sublinhar o ca ráte r din âmic o d o proce sso. Se a moldura teatral desde o princípio do s éculo xx, e diversas arte poéticas
é um resultado que é pos sível impor, o enquadramento, ao (Stanislávski, Meierhold) trazem a marca dessa interrogaç ão.
c o n trár io , é um pro c es s o , uma produção qu e exp ress a o suj eito Em outros termos, seria possível associar a teatralidade a urna
e m ato. O enquadram ento sublinha muito bem o fa to d e s e r adequaç ão, maior ou menor, da r epresentação te atral ao r e al?
Para determinados artistas ligados a outras form a s de arte
25 As r e g r a s do jogo teatra l s ã o d ifere nte s, po r exemplo, n a época e lisabe tana que não o teatro, e também p ara certos artistas de teatro, a
o u na é poca cl á ss ic a ; d a m e sma form a q ue a Co m med ia d ell'A r te n ã o i m põe
a s mesmas regras de jogo que a tragéd ia d e Sófocles. H oj e , à m edi d a que n o s noção de teatralidade traz uma soma de conotações pejorati -
colocamos ao la d o do teatro he rdado dos a nos de 19 6 0 o u do lado da t r a d iç ã o , vas. G é r a r d Abensour escreve: " N a d a é mais odioso para uma
a s r e gra s d o j o g o cé n ico s ã o d ifere nte s . Nesse sen t ido, a h isto ri ci z a ç ã o das peça lírica do que a ideia m esma de 't eat r a li d a d e'. E m s e u pri-
regras d o jogo s u r g e de um estudo da e stética.
26 A n o ç ã o de e nquadramento foi definida por Ervi n Goffman em 1959 e m Frame meiro nível, ela designa uma atitude cornpletarnente exte ri o r,
Ana lys is: An Essay o n th e Organieation ofExperience, Londo n : H a rp er & Row, descolada do s e n t im e n t o íntimo que s e supõe inspirá-la, e se
'974, ass im como em La M ise e n scé n e de la v ie q uotidienne, P aris : Éd itions d e identifica com a ausência deliberada de s in c e r id a d e. A partir
M irur ít , ' 9 73 (1959). Nesse d o m ín io d a p si c ol o g ia, o e nquadra men to é aqu ilo
q ue p ermite a i n te rpre tação da experiência. Esse e nquad rame nto vi r t ual q ue dessa ót ica, s e r teatral é ser falso.?'?
impõe re g r a s, m a s ta m b é m liberda des, tem certo p aren tes c o co m o espaço
tran siciona l d e Dona ld Woods W inni cott em [e u et réalité: L'Espa ce pote n ciei
( Playing an d R ea lity) , 19 7 ' , trad u z ido do in gl ê s por C la u d e Mo nod e J.-E. 27 Géra rd Abenso ur, B10ck face à M e y erh ol d et Stan isl a v s k i ou le p roblême de
Po n ta lis , Paris : Gall imard , '9 9 7 (19 7 5) , re e d it a d o na c o I. Fo lio, 20 0 2 . la t héâtrali t é , R e v u e d es ét udes slaves, v. 54 , f. 4, p . 671-679 , 19 8 2.
96 AL ÉM D O S LIM IT E S: PA R A U ,'l.IA D E F IN IÇ A O DA TEATRALIDA D E A T EATRALIDADE 97

Na li n g u a g e m pop ular, a teatralidade o p õ e -s e à sinceridade natural contra o a r t if íc io teatral do final de s écu lo X IX, que
q ue lVIeierhold e Stanislávski reivindicam c o m objctivos dife- todos c o n d e n a v a m. Mas s e o c o rn b a te contra o real ís rn o ainda
re n tes , cada um p or se u lado. n ã o termi n ou d e fato, não po de ma is ser li d o n o s mesmos
O objetivo m anife sto de Stanis lávski é fazer o espectador termos, já q ue o próp rio rea lismo é reconhecido como uma
esquecer que está n o te atr o , e o te n n o "t e a t r a l" t o r n o u - s e pejo - forma de teatralidade .
r a t ivo n o Te atro de Arte de M oscou. A verdade da peça depende Hoje parece clara a resposta à questão de saber s e a t ea tra li-
da proxírn idade en tre o atol' e o real a ser re prese ntado. A tea- dade po de ser definida por meio da relação que a ce na mantém
tralidade aparece aí como um desvio e m relação à verdade, u m co m o rea l que toma por objeto. A teatralidade aparece co m o
excesso d e efeitos, u m exagero de compo r tamen tos que soa m um p r oces s o li g a d o , a ntes de t u do, às co n d ições d e pro duç ã o
fa lsos e estão d ista ntes da verdade cên ica. do te a tro e n ã o ao g rau de sem el ha nça ou d e s vi o em relação ao
Em sen t id o opos to à tese stanislavs k iana, para Me ierho ld real rep resentado. Nesse sen t ido, é possível d izer q ue não há
a ce na d e ve rrian ifestar-s e p or meio do realismo g rotesco, rea- ass untos mais t e a t r a is que o u tros, im it a ç õe s ma is te at r ais q ue
lismo que refu ta as teses nat ural istas e m todos os pon tos . A o u t ras, e qu e a teatralidade te m a ve r c om o próp r io p rocesso
teatra lidad e é o ou são os procedimentos po r m e io d o s quai s o d e re p rese n tação.
a to r e o encenado r faze m com qu e o espec tado r j am ai s es q ueça
q ue está no teatro e q u e t e m , d ian te d e si, um ato r ern p le n o
dom ínio de se us m e io s, interpret a n d o u m papel. Afi r mar o A PROIBI Ç Ã O
" te a tral" como di stinto da v ida e d is tinto d o r e al ap are c e c o m o
con dição s ine q u a n on da t e atralid ade e m ce na. A ce na deve N a tripla r el aç ão qu e a din âmica c ênic a r egistra , apare c em
fa lar s ua p ró p r ia linguagem e imp or s u a s próprias lei s. proibi ções. Co m e fe i t o, c o m o em toda moldura , o enqua -
Meierhold questiona-se a c erca d a a deq u açã o d a r epresenta - dramento teatral é dotado de uma dinâmica dupla: visto do
ç ão ao real. S u b li n h a que a te atralidade n ã o pode s e r e nco n t r a da exter io r garante a o r de m ; visto do interior autori z a toda s ,
n a r elação ilus ória c om o r e al ; n ão es tá ligad a a uma esté tica p ar- o u quas e to das". as tran s g r e s s õ e s. "A e ssê ncia d o t e atro n ã o
tic u lar, mas deve s e r buscad a n o dis cu r so a utô nomo que const itui está, a n tes d e tudo , na capac idade d e trans gredi r as n o rm a s
a cena . Insiste n a n e c e s sida d e de uma especificidade teat r a l. e stabelecid a s p el a natu reza, o E stad o e a soc ie da de ?", pe r -
No pensa men to de Me ie r hold, é i mporta n te r ete r a ideia g u n tava E v ré i nov. Essa p o s sibilidade d e tra n sgre s s ã o ga ra n te
que defi ne a n o ç ã o d e te atrali d a d e co mo um ato d e osten ção
s us te n ta do pelo ato r ( ao m o s tra r ao espec tador q ue e s tá no
teatro) e que d e sign a o teatro e n q uan to t al , e n ão o rea l. A dis - 28 Seria correto d izer que as t ransgressões q ue o jogo autoriza são dete rminadas
ti nção é fu n dam e n tal, p o is ce n t ra a t e atralid ade , por um lado , por div e r s o s gêneros. épocas. países e estét icas. É onde a teatralidade no
singular dá lugar às teatralidades no plural (conceito que é . aqui. quase s in ô-
exclusiv am eri t e no fu n c ion a rn e rrt o do te a t r o e nquan to teat ro, nimo de estética s ) . Ex p lor a r esses lim ites poderia ajudar -nos a est ab elecer a
tra nsfor ma n do-o n a rn áq uiria cibe rnética de q ue fa lava Barthes; diferença entre teatralid ad es específicas ligadas a é pocas ou g êneros d ados e a
teatralidad e profunda . aquela qu e s o b re v iv e atravé s de tod as a s teatralidad es
p o r o u tro lado, coloca-a e rn um es paço fo ra d o cotidiano, onde
específicas. A título d e iníc io de reflexão. poderíamos di zer. por ex e m p lo. que a
o pro c e ss o d e produção d o te atral é i m p o r tante , e onde tud o se nude z h oj e aceita e m c e n a , como já o fo i n a Idad e M édia, provocou escãndalo
torna sign o , e é e xteri or a t od a re l a ç ã o c o m o r e al. n o s a no s d e 19 6 0. No en tanto, o q uad ro v irt ua l do jogo estava bem c o lo c a d o .
mas as li berdades e transgressões a u torizadas pela cena e pelas e s té ticas de
Ao c ontrário d a d efini ç ã o d e t e atralid ad e dad a po r Meier-
épocas ante r iores não permitiam o d esnu d a m e n to do co r p o do ator. Prova de
h old , a d e S ta n is lávsk i t em a m a r c a da h istó ria , pois le v an t a que o quadro vi rtual c o lo c a d o pelo p ro c esso de jogo n ão permite (a u to r iz a)
que st õe s q ue h o j e n ã o se colocam rnais nos mes mos ter mos . todas a s liberdades e el as continuam-marcadas por c e r t as restrições ligadas
a épocas específicas. estéti c as, gêneros. mesmo se uma das fun ç ões do te atro
Corres po n de a um m oment o hi s tór ic o e m qu e se b uscava o
é ass u mir e ssas t ransgressões.
98 AL!Ô:y1 DOS LI MI T E S: PA RA UMA DEFIN IÇÃO DA TEATRALIDADE A TEATRAI.lDADE 99

a lib erdade c ê n ica d o a ta r e a po tê ncia d o li vre - a r b ítr io dos esp ec t ador. A e le cabe ass istir a um ato de representação ins -
dive r s o s p arti cip an t e s 2 9 • crito num a t emp o ralid ade o utra, qu e não a do cotidiano, o n de
As lib erdade s qu e o jogo ofe rece são d e re pro d uzir, im it a r, o te mpo é como que s uspe nso e, p ode -se di zer, reversível, o q ue
dupl ic a r, t r ans fo r rn a r, d e for rnar, t ra nsgred ir as n o rma s , a natu - imp õ e ao a ta r o r eto rn o se rnp re p o s sí vel ao p onto d e par t ida
r e z a , a o r de m social. N o e n t a n to, c o m o m o s t r o u H ui zinga , o (ve r o Pa radox o d e D ide ro t). Ora, a t acan do o p róp ri o cor po,
j o go e m ger a l, e o j ogo t e atral e m pa r t ic u lar, são c o n s t it uí d o s, (o u o d e um a n ima l q ue é mo r to), o a tor d e strói a s co n d ições
ao m e smo temp o , po r uma m oldura limitativ a e um co n te ú d o d a te a t r al id a d e . A partir d aí , n ã o e s tá m ai s n a alte ridad e do
tran sgre ssiv o . O jogo é , ao m esmo te m po, a q u ilo q ue a u toriza e teatro . Ao s e mutilar, o perfo rm er a ssocia- s e a o real e se u a to
p ro íb e . N ã o é cons t it u ído p o r tod a s as lib e rdad es. As lib erdades fora das r e gra s e do s cód ig os n ão po d e mai s se r p erc e b ido
qu e o fe rece são dad a s p o r reg ras inic iai s - o u s ej a , pela m oldu r a co mo ilu s ã o, fi c ção , jogo . O esp aço e o t emp o da ce n a são
v ir t ual que os p arti cipantes p artilham (mas na qu al o espec t a- dram a ti c a m en t e mo di fic a d o s e , p o r is s o m es mo, dest r u ídos .
d or n ã o pode intervi r, p o is franqu earia um esp aço que n ã o lhe é Es sas p r oibiç õ e s cons t it ue m p rec is a mente u m d o s lim it e s d o
d e stinado) - , mas tamb ém pelas liberdades admitidas p o r uma teatro " , p ois a rnea çarn a rn ol du r a d o j o g o e t ransfo r ma m o
é po c a o u um d eterminad o gê ne ro . T a is lib erdades li g am - se, tea tro, m omentan e am ente , e m p is ta de c irco. Se a teatralid ade
c o m freq uê nci a, a es té t ic as es pecíficas e a n ormas de r e c ep ção do e ve n to co n t in u a lá , o t e at r o , ao co n trá rio, d e s ap are c eu.
qu e constituem para o a ta r e o espec t a d o r um có d ig o co m u m
d e co m u n ic a ç ã o . É p o s sível transgredir o c ódigo, s u r p ree n d e r Trad. S ílv ia Fern andes
o público, chocá-lo, ampliar o s limites da moldura; mas não é
possível fazer de tudo nesse lugar.
De fato, as liberdades não podem nos fazer esquecer cer t as
proibições fundamentais . A transgressão des sas proibiç õ e s faz
explodir a moldura do j ogo e abre esp a ço par·a a vida> , a m e a-
çando a cena teatral.
Há uma dessas proibições que podemos chamar d e lei de
ex cl usão do n ão -retorno. Essa lei impõe à cena a r eversibilidade
do tempo e dos acontecimentos, que se opõe a toda mutilação
ou m orte do sujeito. Dessa forrna, são recusadas co mo t eatro
cen as d e retali ação d o c o r po às quais certas performan ces dos
anos de 1960 apelaram: mutilação real eD1 cena, a ssim como
morte teatralizada de anirnais sacrificados em benefício da
r-epre serrtaç ão». Tais c e nas rorripern o contrato t ácito c o m o

29 E m o u t ro lug ar, D o sto ié v s ki o bser vou q ue "n o te atro dua s vezes d ois são três
o u a té m e smo ci nco, e m fun ç ã o d o g rau maior o u m enor da teatrali d ade im p le-
m entada': C itad o p or Evr éiriov, e r etomado p or Marie Carn ic ke , op. c it. , p . 105 .
30 n um pro cess o p aralelo àquel e que D .W. Winni c ott es ta belecia, a o a fir m a r
que o inv e stimento pulsi on al n o j o g o n ã o d e vi a r edu zi r o s d e s ej o s do s u j e it o, pa re c e , pa r adoxa lmen te , entrar ma is fa ci lme nte n a o r dem d a re p r e sen ta ç ã o
s e n ã o o j o g o n ã o se r ia m ai s pos sível. do q u e aq ue le d e mutila ç ã o d o a to r.
31 Ve r os esp e t á c u los d e H er m arm N itsc h, c uj a c e n té s ima p e r fo r m a n c e , c o n- 32 Ma s n ã o os limites d a te a t r a lid a d e . Ve r a ess e re s p ei to a n o ç ã o d e "sag rado"
ceb ida como a co nclus ã o d e s ua o b ra, aco n tece u em 1998 e durou seis di a s. e m Georges Bat a ill e , es pec ia l me n te e m L a Sociologie sacr ée du m on d e co n-
Aind a q u e s e m an ten h a e n q ua n to proib iç ã o, o pro c e ss o d e m orte de anim ai s tempo ra in , Co ll. L ígn e s , Pa ri s : M an ife ste s . 2004, p . 33-3 4 .
2. Mimese e Teatralidade l

É necessário fazer urn paralelo entre m imese e te atral id ad e. Se


o teatro traz em seu núcleo a no ção de teatralidade, que funda
o processo teatral, também traz a noção d e mirnese. Analisada
por Aristóteles e Platão, Diderot e Brecht, Stanislávski e Artaud,
a mimese está no núcleo do processo c ênico, ao mesmo ternpo
co m o texto e j ogo' . D e fato, exis te no teatro uma dupla mim e se:
uma mimese textual, fundada na noção d e representaç ão por
meio da linguagem , noção que Aristóteles foi um dos primeiros
a afirmar, e sobre a qu al a s pesquisas de Saussure projetaram
uma luz particular. P or s e u lado, Derrida c o men to u ex te ns a-
mente a representação que se coloca nos fundamento s d a língua
e do pensamento ocidental. Existe também uma mimese que

A p rese n tado i nicia lmente como conferên cia n a Fun dação Soros e na Uni-
ve rs idade d e Bras tilava e m Es lováq uia, durante enco n tro sobre questões de
m ím es is r eali zado e m 13 - 16 jan. 200 1. U ma ve rsão m odi ficada fo i ex posta no
Coló q u io I nte rn a cional de Es tu dos Tea t rais, o rga nizado pela seção d e Teat ro
Com parat ivo, Sociedade Ja ponesa d e Pesqu isa Tea tra l, Unive rsi dade de Se ijo,
Tóquio, 2 - 8 maio 2001.
2 A mime se é abordada segu ndo várias abo rdage ns: a . de modo onto-ep is te -
mo ló g ico (Re né G ira rd) ; b. b io-a ntrõpo lóg ico ( Wa lter Be njami n e Theodor
Ado rno); c . ps ic a nalí t ico (S igm u nd Freu d) ; d . lin g u íst ic o e lit e rár io (Jacques
De r rida) , e n tre ou t ros .
l0 2 A Lf. M DO S LI M ITES: PA RA UM A DE F IN IÇAo D A TEATRA LI D ADE MI MESE E T E AT R ALI D AD E 10 3

di z r e s p e i to à "representaç ã o " e , portanto, ao jogo do ol har, As du as n o ç ões tê m um a arn b ig u id a d e c o n c e p t u a l. Co m


mim e s e que e stá n a base do jogo d o at or e da ce n o g r a fia . efeito, mirnese e tea tralidade p o d ern c obrir um call1po bastante
As ligações q ue s e e s tabelecem e n t re a noção de mimese vasto d e manifesta ç õ e s. A um só t emp o r e s u lt a do (da a ç ão
apli cada ao teat ro e a de teatralidade também são de d uas o rd e ns: O1imética ou teatral) e pro cesso, são aplicadas , s em discrimi -
ligaç ões n o nível dos fundamento s teóricos ( filo s ó fic os, m etafí- na ção, a tod o s o s a spect o s da repre s enta ç ão: t exto, narração,
s icos ) qu e essas duas noções evid e nciam e também ligaç ões no personagens, j ogo, c en ografia; a teatr alidad~ (c o m o a mimese)
nível da prag m ática da cen a , já q ue am b a s, mimese e teatralidade, são, a o I11eSmO tempo, o ato de tornar a a çao teatral e o resul-
faz e rn a cena f u nc io nar: o tex to , o jogo do atar, a cenografia. tado o bt ido.
Também po deríamos nos perguntar, com razão, se a teatralidade E n fi m , a s duas noções são indissociávei s da noção filosófica
n ão é uma das moda lidades particulares da m imese. de representação definida por numeros o s filósofos, especialmente
Pai-a começar, pode -se notar que tudo a proxima a s duas De r ri d a : rep resentação dirigida p o r texto, jogo e n a rrativ a .
noções, so bre t u do a exte nsão dos conce itos . Em um e o u tr o Po r ta n to, eI11 princípio, tud o justificaria a aproxi m ação q ue
caso - mimese e tea tralidade - os concei tos u ti lizados ul t r ap a s- fizemos entre mimese e teat ralidade .
sam o domínio es tri to das artes e nos o b ri g a rn a exarniriar as
relações e n t re a arte e o rea l. Forçam o pesq u isa do r a q uest io n a r
a inserção da obra em seu e ntorno (rea l, n a tu r e z a , sociedade) . EVOLU ÇÕES DIFERENTES
Do mesmo modo, as duas noções i n te rpelam o posic io-
n am ent o do s u j e ito . Se a mim e s e , e m s u as rn últ ipl a s acepçõ e s, N a tradiç ã o a n g lo -aI11er icana\ a n o ç ã o d e mimese (e n te n d ida
implica a intervenção d e um suj eito (porque r equer os atos como " i m itação"), pre s ente na r eflexão do s fi lósofos através d o s
d e r epres entaç ão ou interp r eta ç ã o ), a n o ç ão d e te atralidade sécu los, rea d q u ir iu ce r ta a t u a lidad e no princípio do s éc u lo x x ,
pre s sup õ e um s uje ito que o lh a (o espec tador) e só tem sen t id o p o r m ei o d o s t rabalhos de Sam u el H enry Bu tche r, d a Esco la d e
e m r elaç ã o a ele . Chicago, q ue trad uz iu e a p resen tou a Poética d e A r is tóteles n o s
F il ó sofo s e h om ens d e t e at ro (Ren é G i ra r d, Nicol ai Evréi - anos d e 1930 . A segu ir, v ie ram os trab alho s de E r ic h A uerb ach
nov ) a fi r m a rn qu e m imese e t e atral id ad e são d oi s rno d o s e No r thro p F rye . Na F rança , a noç ã o p a s s a a in te ressa r a o s
f u n da me n tais d e fu ncio n ame nto d o se r hurn ari o e s u rge m da p e sq ui s a d o r e s especial men te n o s an o s de 19 7 0 : R ol and B ar-
própri a essência d o hom em. G ira r d fal a t amb ém d e in stinto th es , Ja cques De r rida, Gé rar d Ge nette, R en é G ira rd, todo s se
m im ético c a r acteríst ico do s u jeito; Ev ré in ov fal a d e in stinto m a ni fe s t a ram sobre a q uestão .
tea t ra l. Ass iI11, e n q uan to o pr irne iro s u b lin ha a t endênc ia do Por se u lado , a noção d e t e at r alidade s u rgiu n o in ício d o
í nd iv íduo a imitar o u represen t a r, o seg u n do sa l ien ta a ten- sécu lo x x, co mo di s s emos a n te r io r men te . Evréinov fo i o pri -
d ência a se trarisforrn a r , Afirmaçã o que o própri o A r is tó tel es m e iro a m encion ar a palavra e m ru s so (tea tra ln os t) e m 19 2 2 .
já havi a feito, qu and o not a va n a P o ética : Será e s q uecida durante a lguns d ecênio s , a n tes d e reaparece r
no s textos. E la se apoia na palavra literaridade, q ue aparece n o s
Desde a infância os h o m e n s têm, inscritas e m sua natu reza. ao anos de 19 50 e e n tra e rn voga n o s a nos d e 1960, ainda q ue s ua
m e s rn o te rnp o a ten d ên ci a a re p r e s enta r - e o h omem d ife ren ci a -s e
di ss em in a ção n o s texto s crític o s s eja m e n o s ráp ida .
d o s o u tros a n irnais p orque é p articularmente inclinado a re pre s entar
e reco r re à r epre s enta ç ã o e m s uas p rimeira s ap re n dizagens - e uma A d e fin iç ã o da mi mese como írn ita ç ão (ou r epr e s enta ç ã o )
tendência a e ncon tra r praze r n as rep resen tações .' da natureza po de irnp licar :

4 Ve r o históric o feito p or Mihai Spa r iosu e m Mim esis in C o n tem p o ra ry Theory ;


3 Ar ist o te , Po étiqu e, e h . 4 . 4 8b4, trad . Ro selyne Dupont - Roc: Jean Lall ot , Pa ris : A n Ln t ersdisciplin ary Approa ch , Phi lad elphi a l Am sterdam : John Berij arn in s,
Se u il , 19 8 0 , p . 4 3 . 19 8 4 , p. [-X XIX.
MIMESE E TEATRALIDADE lO S
10 4 AI.ÉM DOS LI M ITE S: PA RA Viv iA D E fI N I Ç ÃO D A T E AT R ALID A D E

a imitação ( re p rese n tação) d e o bjeto s ou fenômenos da natu - N u s s o o lh a r, n oss a ex pec tat iva, n o s s o co n heci men t o d e q ue
reza (visão n e ocl á ssi c a ) , a ss o ci a da à rnirn es e imitativa , O U ; haverá teatro começa a se rn iot iza r o esp aço e os o b jetos , o u
a imitaç ã o ( re p resen taç ão ) da nature z a c o m o p rocess o seja, a tran sformá -l o s e m signo s que ain d a não s ão s ig n ifican tes,
(visão r o m â nti c a ) , ass o ciada à mi m ese não i m it a tiva. mas p o d em vir a s e r. Dois in c ide n te s p ermite m ide n ti fica r o
pr o ce ss o desencadeado n o espectador:
Essa dual id a d e n o interior da noção d e mim e s e perm ite a
P h ili p pe Laco u e-Labar the d e fin ir a ex is tê ncia d e du as rnirn esesv 1. Após me ia hora d e espera, qu a ndo s a b e m o s que o espe-
tá culo a i n da n ã o c o m e ç o u , não h á nen h u m ator e rn cena,
a mimes e r e st rita , qu e é a re pro d ução, a c ó p ia , a red up li- n enhu m a fic ç ã o acon teceu, uma fu maça com eça a s u b ir d e
cação d o q u e é d a d o - traba lhado, re ali z ad o , ap rese n tad o um a p e q uena ilh a s it u a d a à es q uerda d a c e n a , há c erca d e
pela n atu reza; d ois met ros . N a da indi c a que a ilha fa ça p arte d o es paço
a m im e s e ge ral, q ue não re pro d u z n ad a d o q ue é d a do (e, cên ico e n em sabe mos se a f u maça q ue sob e é acid ent al o u
p o rtanto, não reprodu z ) , m as s u p r e um a certa car ê ncia da s e foi proj etada, voluntariamente, pelo e n c e n a d o r.
n ature za, s u a inc a p a c id a d e d e tudo fa zer, o rganizar, traba - 2. Quas e s i m u lta nea me n te , um barco s u rge ao longe , d o o utro
lh ar ; d e tu d o pro d u z ir. É u m a mim e s e produ t iv a . lado d o lago . N ã o consegu imos disti n gui r quem está a bord o ,
Portanto, a t eat r alidad e poderia s e r apenas rnais uma das mas podern o s ve r que cresce lentarnente". E le se dirige ao
modalid ad e s d o a to m irn étic o. Ao menos, é o qu e g o s t a ríamos palco? A distân cia n ão p ermite respon de r à questão.
d e provar a partir d este último exemplo. O espectador não s a b e se os dois eventos estão ligados à
representação, mas é evidente q ue seu o lhar começa a semiotizar
o espaço e o s evento s, a v ê -lo s de forma diferente. Portanto, el e
T EATRUM MUNDI os transformou em s ig n o s ao inseri-los em uma ficção poten -
cial, que não sabe como va i se desenrolar, mas que supõe que v ai
Estamos n o Brasil, à b ei r a de um lago. Eug ênio B arba a n u n c io u aco n tece r. Dito d e o u tra forma, o pro cesso d e teatralização extraiu
que haveri a um espetá culo de teatrurn mundi. Est a mos s e n tad os os o bj e tos o u even tos d e s e u co n tex to cotidiano para inseri-los
na grama, cercados por 2 mil espectadores. E m fr ente, e s t á um (hipoteticamente) e m outra estrutura, d e onde poderiam s u rg ir.
palco flutuante d e dim ens ã o modesta, montado para a o c a s ião. É preciso reconhe c er que se instalou cer ta teatralidade . No
O espetác u lo ainda nã o co m eç o u , nenhuma ficçã o se esb o ço u e, e n t a n t o , ainda não há ator, nem aç ão, nem fic ç ão. De fat o , a
n o entanto , a teat ralidad e d o esp aço e dos obj eto s c irc u n d a n tes teatralidade apareceu d e forma latente quando o espectador
já é perceptível. O espaço e as coisas começaram, de fato, a se so u b e que haveria teatro. A teatralidade nasceu, portanto, da
transformar. Tudo diz a o esp ec ta d o r que haverá te atro. ex pecta t iva do e spe ctador, c o n fi r m a d a por certos indícios -
É interessante c o n s t a t a r que nossa expectativa já modi - ce n a , refletores, público, anúncio - e ess a ex p ec t a t iv a modificou
ficou nos s a p erc ep ção d a s co is as ao redor, que r d iz e r, no sso seu olhar, se u mod o d e ver as coisas , e es tim u lo u sua atençã o
o lh a r d e e s pectado r c ome ç ou a p erceb er d e forrna diferente de tal forma que ele c o m e ç o u a enxerga r o s e ve n t os e os o bjetos
o e spa ç o , os e ven tos e os o b j e t o s c ir c u n d a n tes . E rn lugar d e circ u n d a n t e s d e m odo diferente.
serem p erceptíveis em s u a relação com o real, e v entos, obje- Se analisarmos a c e na de outra forma , é preciso reconhecer
tos e s igno s diversos co meçam a significar de modo diferente. que, no caso de qu e nos o cupamos, o trabalho do e spectador
baseia-se no r as t rea me n to de uma m irne s e . O que o esp e ctado r
5 Na seq uê n ci a, r es u m i mo s as pro po s t a s d e Philipp e La c ou e -Laba r th e.
6 Ser ia n e c e ss á r io qua s e m ei a h ora p ara qu e ele c hegasse à be ira d o p a lc o tl u-
L.Lm ita t io n des rn odern es , Co ll. La p h ilos ophie en effet , Par is : Ga l il ée , 1986,
tu ante e p udé ss e m o s v er os a to res sai n do dele.
p . '5 -35 ·
[06 A LÉ M D O S LI M IT E S : PAR A UM A D EFI NI Ç À O D A T E ATRALI DAD E MU"tESE E TEAT RA LI DADE 107

fez , e fe t iva mente, q u ando identi ficou o barco n o lag o e a fu m aça d a ce na no me tr ô - não pode fa zer isso n o m orn ento d o eve n to.
na ilha? Leu - o s , s o bret u do, c orno s ig n o s e os integro u à es t r u_ Fo i a penas a p osteriori, com d is tâ n c ia te m p ora l e m r e lação à
tura teatral qu e supunha e star na o r ig e m dos evento s q u e Se ação, q ue a iden tifi cação da mim ese pode ser fe ita e o esp ec t a -
p roduzi am. Ass im fazendo, p erc ebeu a "sem e lh a nça" do b a rco d o r reco n hecer a im itação e m ação. Assim, a parti r d o momento
e da fu m aça c o m e v e n to s idêntic o s qu e po de r iam a co n tece r em que o e s p e c t a do r so ube que se trata va de teatro, a leitu r a d a
na reali dad e . te at r ali d ade foi s uced id a , imed ia tame n te , pela iden ti fic a ção d a
Aquil o qu e se u o lha r id entific ou como te a tralid a d e é, de mi m es e . Se m ta l co n hec ime n to, não h ave ri a qu alquer sernio -
fato, o pro c ess o de imita ção p or trá s do e ve n t o ou d o o bjeto . Ele ti zação d e s ig n os de s ua p a r te e nenhum reconhecimento d e
p ercebeu o a specto repre s enta ção . Portanto, leu o s d o is in ciden- mime se.
tes c o rno r esultantes d o trab alh o de um artista qu e d is põe os Mais um a vez, esse e x e rn p lo co nfi r m a o que diss emos a n te -
s ig n os com fin alidad e fi cci onal. De fa to, est a mos n o do m ín io riorm ente a respeito da teat ralidade:
de urna dupla m irn ese : urna mim es e passiva fundad a n o reco -
co rn o a rn irn e se, a t eatralidade tern pouca relação com a
nb e c irn e n to e uma mimese ativa fundada na tran sform a ção, no
natureza do o b jet o ou d o e v e n to que investe (ator, espaç o).
jogo. Ora, o público vai d escobrir, à m edida que o temp o passar,
O que importa n ã o é o result a d o d o process o - o engano, a
qu e a fuma ç a era a cidental e n ã o tinha nenhuma r el a ç ã o co m
ilusão , a aparência, a imitação (a teatralidade n ão se med e em
o e s p e t á c u lo, e n q u a n to a aproxim a ç ão elo ba r c o vai re vela r os
graus ou intensidade) . É o próprio processo que importa, a
atores a bord o. O que aprendemo s c o m e ss e exemplo ? So b r e-
transformação que permite identificar. Isto é válido também
tudo, o papel fundamental que o espectador representa. São
para a mimese. É o processo mimético que importa.
necessárias duas condições para identificar essa teatralidade:
corno a mimese, a teatralidade tem relação fundamental
saber que o teatro vai acontecer, que há intenção de teatro; com o olhar do espectador. Esse olhar identifica, reconhece,
intencionalidade confirmada por indícios, signos (reflete- cria o espaço potencial ern que a teatralidade será identi-
res, palcos, anúncios) cuja presença p ermite semioti zar os ficada. Ele reconhece esse outro espaço, espaço do outro
objetos e o s eventos circundante s, que poderiam n ão partir, onde a ficção pode surgir. Esse olhar é sempre duplo. Vê o
necessariamente, ela produção teatral (barco, fumaça). real e a ficção , o produto e o processo. Como dissemos ante-
riormente, a teatralidade diz respeito, sobretudo, e antes de
As mesmas condições prevalecem quando há o reconheci-
tudo, ao espectador. Sem ele, o processo mimético e teatral
mento de uma aç ão mimética. Na identificação da teatralidade,
não tem nerihurn sentido.
foi a expectativa de teatro que modificou o olhar do espectador
e semiotizou aquilo que o cercava. E s s e estado levou-o a ver A partir dessas observações, pode-se deduzir que a tea -
teatralidade mesmo onde não havia. tralidade não é urna sorna de propriedades ou urna sorna
Entretanto, mesmo se admitirmos que não chegamos à de características que se poderia delimitar. Ela só pode ser
ação teatral propriamente dita ( a peça não começou), a teatra- apreendida por meio de manifestações específicas, deduzidas
lidade já está ali. Ela precedeu o espetáculo propriamente dito. da observação dos fenômenos ditos "t e a t r a is': Longe de ser sua
Manifestou -se c o rn o urna possibilidade de teatro. forma exclusiva, tais manifestações são apenas algumas de suas
Em todos os aspectos, esse exemplo é contrário àqu el e do expressões, pois a teatralidade excede os limites do fenômeno
passageiro fumando no vagão do metrô, que apresentamos estritamente teatral e pode ser identificada tanto em outras for-
a n t e r io r men t e . Co rn efeito, nesse c a so o olhar semioti zou os mas artísticas (dança, ópera, espetáculo) quanto no cotidiano.
s ig nos imed iatam en te e leu a rn i rn e se onde e la não e s t a v a (a A n o ção d e teatralidade exc e d e os limite s d o teatro porque
f u m aça ). Ao c ontrá r io, o passageiro - es p ec tador i nvolu ntário não é uma p ropri edade que o s suj eitos ou a s coisas possam
!U I! ALÉlv\ D O S LIMI T E S : PA RA U MA D E FI NI Ç Ã O D A TE AT \{ALl IJ AD E M IMES E E TEAT R A LIDADE 109

adq u irir: ter ou não ter t e a t r a l id a d e . Ela n ão p erten c e exclu , que o espectador põe em movimento visando à di sjun ção d o s
s iva rn e n t e aos o bj e to s , ao espaço e ao próprio a to r, mas pode sistemas de significação, na intenção de fazê -l o s atu ar uns em
i nvesti-los se ne.ces s r io. Acima de tudo, é res ultado de uma
á relação aos o utros a fim de criar as condições da representação.
dinâmica perceptiva d o olhar que u n e a lgo que é o lhado (sujeito A pr i rne ira clivagem q ue o olhar do espectador realiza
ou objeto) e aquele que olha. separa a a ção ou o s uj e it o observado do espaço cotidiano que
Tal r el a ç ã o pode acontece r por iniciativa do atar q ue o rode ia. Assim, isola a ação de se u e n torno e, dessa forma, con-
man ifesta sua intenção de jogo o u do espec tador que toma a segue localizá-la em o utro espaço, o n de a representação pode
iniciativa d e transforma r o outro em objeto espec u lar. Desse surgir. Sabernos que, sem ess a r u p t ura no espaço, a ação (até
modo, p or meio do ol har que dirige àqu ilo q ue vê, o espectad o r então inseparável do rea l) não pode dar lug a r à ficção. Graças
c r ia o ut ro e spaço - cujas leis e regras já n ã o são as do co ti- a ess a tra ns fo rm ação in ic ia l, o espectador percebe que o e ve n to
diano, e o n d e inscreve o q ue olha, perce bendo-o co m um o lhar que tes t e rnu nh a pertence a o ut ro espaço que n ã o o cotidiano.
diferente, distanc iado, como se p e r t enc e ss e a uma a lte r idade Ao m esmo tem po, percebe q ue os s ignos adq u ire m um sentido
que só pode olh ar do ex ter ior. Sem esse o lhar, i n d ispe n s ável à diferente ness e espaço, pois p e rtenc em à estr u t u ra secundária
emergência da teat ralidade e ao seu reco n hec ime n to enq ua n to d a ficção e m vi a s d e se co ns t it u ir. Tal es p aço d e rep rese n tação
tal, o outro que "e u olho" es taria em me u p r ó prio espaço, no te m p arentes c o evide n te com o esp aço qu e W in n icott charna
e s p a ç o do espectador e, portanto, n o espaço cotidiano, exterio r d e potencial e con s ide r a a p rimeira condiç ã o d o j o g o ".
a todo ato de represen tação. A defasagem e n tre espaço c otidiano e e spaç o d e re p resen -
Ora, o qu e c r ia a te atralidade é o registro do esp eta cu la r tação cria uma primeira du alidade, sem a qual a teat ralidade
pelo espec tador, ou até m e smo d o esp ecu la r, ou seja, de outra não seria reconhecida, e constrói um primeiro nível de fr icção
r elação com o c o ti d ia n o , de um at o de representação, d e uma realizado pelo olhar do espectador. E fe t iv a m e n te, e ste último
cons t r ução fic c io n a l. A teatralidade é a imbricaç ão d a fic ção não limita seu olhar a um único espaço, mas apreende os dois
COJll o real, o s u r g im e n to d a a lte r id a de em um espaço qu e s itu a ao mesmo tempo, navegando d e um a outro e m um j ogo d e vai
um jogo de o lhares en t re a q uele que o lh a e a q uele que é o lhado. e vem que é uma d as c o n d içõ e s constitutivas da tea t r a li dade .
Entre todas as arte s , sern dúvida é o t eatro que melh o r realiza Portanto, ess a primeira d efa sagem p ermite ao es pectado r
essa experiência . sair do univers o co t id i a n o e r econhecer o caráter fi c cional
d aquilo que se oferece a se u olhar. P el a mesma raz ã o , permite
que coloque as bases da teat r a l iz a ção do o b jet o o u da ce na
AS TRÊS C LI VA G E N S oferecida a seu olhar. Ator e esp ec t a dor r e articulam o s s ig nos,
retirando-os d e seus s is tem as habituais d e s ig n ific a ção e inte-
Para chegar a u ma d efinição d a t eatralidade, digamos que ela grando-os a outro universo ficcional. Por meio desse simple s
seja o resulta do d e um a to d e recon hec i me n to p o r p arte do jogo, conseguem fazê -los s ig n ific a r de outra forma e cons tr oem
e s p e c t a d o r. Foi in s c r it a pelo artista n o o bje to o u n o eve n t o as bases da teatralidade.
que o espectador o l ha pelo fi ltro d e pro cedimento s qu e s e A s egunda clivagem a co n tece n o próprio núcle o d a r epre -
pode e studar (dis tanciame nto, ostensão, e nquad ramento, por se n t aç ã o e m a is urna v ez opõ e r e alidade e fic ç ã o, a go ra n o nível
exemplo). Para o es pectador, o reco n hecimen to d e s s e s pro-
ced imentos é a prime ir a e tapa d e urn p rocesso d e p e rcepção 7 A in da que D .W. Wi nnicott t rate do jogo da crí ança, tudo q ue diz sobre a s
q ue opera uma sé rie de clivage ns nas ações oferec idas a s e u co n dições q ue favorecem esse ú lti m o parecem poder aplicar-se a o jogo te a tral.
Ver D onald Wo od s W inn ic ott ('9 7..l) , l eu et r éalit é: L' Espa ce potentiel ( Play-
o lh a r, que lhe permite reconhecer a existência da teatralidade.
ing with Reality ), trad . C laud e Monod e ) .- 8. Pontalis , P aris : G a lli rn a rd , '99 7
A teatralidade resulta precisamente dessa série de clivagens [' 97 5], reedi tado n a coI. Fo lio , 20 02.
ALf: M DOS LIMIT E S: PARA U M A D EH NI Ç A o D A TEAT RA LI DA DE lI.IIMESE E TEATRA LIDADE 111
I IU

da ilusão. Efetivarnente, cada evento representado inscreve -se, forças opostas s empre presentes no j o go te a t r a l: aqu elas que
ao mesmo tempo, na realidade (por meio da rn ate r i al i d a dj- permitem o confronto entre a ordem e a des ordem , o instintivo
sempre p resen te d o s corpos ou dos objetos e também da ação e o simbólico. Tais forças estão p resentes e m todo sujeito, mas
e m vias de se desenvolver) e na fic ção (as ações e os e ve n to s são mais sensívei s n o teatro. pois de sua h armonia dependem
s imulados remetem à ficção. ou pelo menos a uma i lu s ã o ). o talento do ator e a e specific id a d e do jogo.
E n1 qu alquer evento observado, a ação representa~la envolve Portanto, o olhar do espectador lê nos corpos ern ce na
o r e al - a pesar do j o g o d e apa rência e ilusão - e é percebida o movimento dessas forças e m a ç ã o constante, que reat ivam
e nquanto tal : os corpos movimentam-se, fazem gestos, reali- incessantemente o processo do jogo e o fragi lizam . O especta-
zam ações, os obje tos tê m certa densidade, as le is da gravidade do r lê o jogo de fricções e tensões perceptível na ação cênica.
funcionam. Ma is u m a vez, o espectador percebe tal du al id a d e, a Tem prazer e m reconhecer os s ig nos q ue se expõem a se u ol har
fr icção e n tre realida d e e ficção . Se u o lhar se movimenta de um e s ua s ubve rsão p e r m a n ente p el o p r ó pri o a to de ilus ã o. Dessa
n ív el a o ut ro, o pe ra n do urn a d isjunç ã o -unifi c a ç ã o de n a tu reza fo r ma, no ta o esforço do a tor pa r a co n tro lar a te nsão profunda
se mel h a nte à quel a q ue Michel Ber nar d descreveu". O rnov í . n o in terio r do jogo - tensão que o co loca e m p e rig o , em es tado
m ento une e o põe dois uni v ers o s q ue se excl uem e , n o e ntan to, co ntín uo d e vu lnerabi li dade. N o a tar, as forç a s do s im bólico
se s up e r p õern . É p r ec is a me n te e sse rnovi rne nr o d e vai e vem semp re s u peram o ins tin to q ue, n o e n ta n to , s u rge co m fre-
qu e co nsti tui a s egu n da c o n d ição d a teat ra lidade. quência d e modo im prev isto. A bel e za d o j o g o d o a tor pro v é m ,
A té a q u i, consid erou-se a teat ra lidade o re sultad o de du as prec isarrie n te, desse combate incess a n te e n t re a m e str ia d e seu
clivagens s im u lt â neas : aquela que o p õe espaço cot id ia no e espaço co r p o e o permari ente t r a nsbor d a me n to qu e o a m e aça.
de repres entaçã o, e a que opõe realidade e ficç ão n o interior A s sim, o olhar que o e sp ect a d o r dirige ao ator é s e m p re
da mesma cena. A primeira mostra que o s signos e o s objetos d uplo: vê neste ú ltimo a o mesmo tempo o s u je ito que é e a ficç ã o
adquirem u m s e n t id o d ife rente quando d eslocados d e s e u con- que e n car n a (a ação que interpreta e a il u s ão cênica em que se
texto c o m u m . A segunda estabele c e a disjunção no in terior do in screve; el e o vê a o m esmo tempo c o rno sen hor de s i e traba -
mesmo, s u bstit u i a un idade da s for mas pela dualidad e , ao p asso lh ado pela a lterid a de, p el o o u t ro em si) . A pree n de n ã o a penas
qu e n oss a p ercepção c o m u m vê a pen as un id ade e n tre s ig no e o que o atar di z e faz, mas t amb ém o q u e lhe esca p a - o qu e di z
sentido. Por seu la d o , o esp ect a d o r p ercebe as fricções e as ten- a despe it o d e s i m e smo, ap e sar de si mesrno. E n t ã o c o n s eg ue
sões e n t re os diferente s mundos qu e a teatr alidade p õ e e m j o go. ap reen der a extensão d a a lteridad e d o ato r e a g r a n deza de se r,
Por is s o m esmo , é obrigado a o lhar d e o u tra form a. C r iada pelo a um só te m p o , o mesmo e o o u t r o. O espe tác u lo veic u la todo s
a r t is ta o u pelo esp e c tado r, a te a tralidade sem p re t e rn , e rn seu os olhares ao rnes rno tempo, m a s é a últ irn a clivagem que causa
núcleo, a duplicidade d o olhar, d a percepção que reconhe ce a um d o s p r aze res m ai s pro fundo s do espectador. Nesse nível, nin -
existência simultânea d e realidade e ficção, e sua mútua excl usão. guém duvida que est a mos muito próximos da perforrnatividade .
À dupla clivagem m encionada a c i ma, a cres centa - s e uma
terce ira cl ivagem, qu e d e s t a vez se s it ua n o p r óprio n úcl e o do
Espaço cotidiano Espaço d e rep resentação
t eatro , à m edida que tem r elação es p e cífic a com o a tor. Liga -se
a o e s cl arecim e n to do e q u ilíbrio pre cário que e s te deve es tabele- Re al Ficção
c e r, e m s e u íntim o , e n tre as forç a s d o pulsional e d o s lrnbó l ico.
No s u cesso d e tal e q u ilí b r io e ncon tra-s e g ran de p arc el a d e su a S írnb ólico P u lsional
a r te. É t a m bé m esse e q uilíb rio que o espec tado r vê, atento às
8 Mi chel Bernard, L'Expressivité d u co rps: R ccherch es su r les fondem ents d e la Esqu em a : a s t rês clivagens constit uin tes da te a tra lida de.
th é ât ralite, Co I!. C o r p s et c u lt ure, Par is : J.P. De lage, 1976.
A LEM DO S LIM ITE S, PA RA U M A D EFI NI <,:Ã O DA TEAT RA I.IDAD E
1 12
3. Por uma Poética
Quando as t rês cl ivage n s op e r anl e se s u p e r põem , p er m i-
tem qu e um o bjcto, um e v ento e Ul11 a ação sejarn c o n s id e r a d o s
da Performatividade:
" te a t r a is". Elas co n st i t u e rn os f u n d a me ntos d a tea t ra li dade e
s ã o tarn b érn s u as estr u t u ra s co nst it u t iv as , o que p ermite pro-
p or a seguinte defin ição do c o n c e ito : a tea t ralidade nã o é u m a o teatro p o r t o r m ati v o '
pro p r iedad e , um a q u a li d ade ( no sentid o kan tia no do termo)
q ue p e rten c e ao o bjeto , a o c o r p o , ao e sp aço o u ao s uj e ito . N ão
é um a propriedade pré-exis te n te n a s c o is a s. Nã o esp e ra se r
desc obert a . Não t ern ex is tê n c ia a u tô no ma. Só pode se r a p ree n -
di d a e n qu anto pro cess o e d e v e ser atual izada e m u m s u j e ito
ao m es m o tempo como ponto de par ti d a elo p r ocesso e com o
s ua co nclu são. Resu lt a d e urn a v on t ad e delib erada d e tran s -
fonnar as coisas. Imp õe aos obj er o s, a os eve n to s e às ações
urn p o nto d e v is ta co ns t it u ído por vári a s clivagen s : espaço
co t id ia no - es paço da re p res e n tação, real - ficção, s im bólic o -
pulsi onal. Tais cliva g ens imp õ em a o o lh ar d o e s pec t a dor um A p erform a n ce pode ri a se r h oj e u m
j ogo d e disjunç ã o -unificação perman ente , um a fri cç ã o e n t re p onto nev rá lg ico do co n te m p orâ neo."
e s ses níveis. No rnov í mento incessante entre o sentido e seu
deslocam ento, entre o mesmo e o diferente, surge a alter idade Meu objetivo é apresentar os conceitos de performance e per-
no interior da identidade, e a teatralidade nasce. formatividade, amplamente utilizados nos Estados Unidos há
duas décadas, e que gostaria de utilizar para redefinir o teatro
T ra d . S ílv ia Ferna n des que se faz hoje e que carrega e m s eu cerne essas duas n o ções .
Tal teatro, que c h a m a re i de teatro perforrnativo, existe em todos
os palcos, mas foi definido como teatro pós -dramático a partir
do livro de Hans- Th ies Lehrnarm, publicado em 2005, ou c o m o
teatro pós -moderno. G ostaria de lembrar aqui qu e seria mai s
justo chamar esse teatro de "p e r fo r rn a t ív o", pois a noçã o de
p erformatividade está no centro de seu fun cionamento.
Para realizar tal empreendimento, uma incursão em direção
à noção de performance s e impõe, concebida aqui como forma
artística (performan ce art) e a performance concebida como
ferramenta teórica de conceituação do fenômeno teatral, con-
ceito popularizado por Richard Schech n e r, particularmente nos
Estados Unidos, e que constitui a base principal sobre a qual se
estruturam os Estudos da Performance nos países anglo-saxões.
Ap rese n ta do em con fe rê nci a du rante o Ec u m (E n co n t r o M u rrdial d as A rtes
Cên icas, Bel o H orizon te/ São Paulo ), m ar. 2008 . Foi publ icado e m ve rsão mod i-
ficad a em Th e ãtre/Public, n . 19 0 , se p t.Y o o s .
2 La ure nt G o u m a r re ; C h r is to p h e K ih m , Perfo r man ce co n te m p o ralne , Artp ress,
Paris , n . 7, n o v -d é c -j an. 200 8 .
P O R UMA POf:TI C A D A PERFORMAT IV I DALJ E 1 15
11 4 A Lf: M DOS LIMITES: PARA U M A DEI'I N IÇAO D A T EATRALIDADE

M í n h a a bordage m será feita em t rês momentos: por Um discutida no decorrer dos a n o s de 1980, cujo i rrrp a cto no meio
lado, ten ta rei d e l i rn ita r as noções e rn vigor, t r a ç a n d o um mapa acadêmico literário e artístico s e r ia importante . A primeira,
d o s p rin cip ai s se n t idos qu e l h e s são atrib uí dos; e m segu ida, The E nd of Hurnanism (O Fim do H umanismo) de Richard
te n tare i es tab elecer a lg u mas das ca r acterís t icas da p er fo rm a - Sch e c h n e r-" abria de c e r t a fo r m a a década de 1980 e reun ia
tivi dade e, e n fim, p o r m e io de exemp los e excertos de peças, texto s publicados no decorrer dos anos precedentes com u rna
tentarei rnost rar como a lg uns dos espe tác u los evocados são quest ã o fundamental: o que é a performa nce? Ou melhor, o que
propriamente p erfor ma tivos. é uma perfor ma nce? Schechner ampliava a li a n o ç ã o p a r a a lé m
E xi ste, d esde s e n l p r e, e nt re a performanc e e o teatro , uma do domín io art ís t ico par a ne la i ncl u i r to dos os d omínios d a c u l-
d e s c o nfian ça r e cípro c a qu e n ã o p arou d e se des env ol v er ao tu r a. E rn sua a bordagem, a performance d iz ia re sp eito ta n to aos
lon g o dos an o s , um a desco nfiança q ue M ic hae l Fr ie d res u me es p or te s q uanto às d iv e r s õ e s pop u lares, tanto ao jogo q uan to
n e s t a s p a la v r as lapid are s, f re q ue n te me n te e vo cadas: "A a r te a o c i n e rn.a, ta nto aos ritos dos cura n de iros o u d e fe rti lidade
d egenera à medida qu e se a p r ox ima do teatro" o u ainda " O quanto a os ro de io s o u ce r imô n ias r elig iosas. E m se u se n t id o
s ucesso, o u m e srn o a so b revivê nc ia das a r tes, co rncça c resce n- m ai s a m p lo, a p e r fonn a n c e e ra "étn ica e intercultural, h istóri c a
tem ente a d epend er d e s u a capac idad e d e n e g ar o teat ro"> . e a- h is tó r ica, esté t ica e ritualís tica, soc iológica e p olitic a" >.
E nt re t a n to , se h á uma arte qu e se beneficiou d a s a q u is ições Ta l trab alh o d e d efiniç ã o daquil o que p ode re c obrir a n o ç ã o
d a p erformance, é ce r tame n te o te atro, d ad o qu e ele a do to u irá se afinando - mas também t ornand o -s e c a da vez mais ab r an -
a lg u ns d o s e le rne nto s f u n dad o res qu e a ba la r a m o gê ne ro ge n te - n o s livro s q ue s e segu ir iarn , par ti c u la r me n te ern Teoria
( t r a n s fo r m a ç ã o do ator em perform er, descrição dos aconte- da Performance6 e em Estudos Performativos: Uma Introdução?
cimentos da ação cênica em detrimento da representação ou Em quadros cada vez mais inclusivos que ele desenvolverás,
de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na Sche chner ch e g a a incluir neles , atrás da noção de performance,
ação e não rnais s o b r e o texto, apelo à uma rec eptividade do
esp ectador de natureza e ssen cialmente e specular ou aos mod o s 4 Era o segu ndo livro da sér ie Perjormance St udie s, la n ç a d o po r Brooks McNa -
das percepções próprias da tecnologia). Todos e ss es elementos , rn a r a , o p ri mei ro se n do a q u ele de Vi c to r T u r ne r, Fro m R itua l to Th catre: 7h e
Hu rnan S erious n css of Play, Ne w York: I'cr fo r ma nce A r t [o u r rí a ] , 19 8 2 (PA I
que s e inscrevem numa p erformatividade cênica, hoje to rnada
Pub lications, 19 R2 ) .
frequente na maior parte das c e n a s t eatrais do Ocidente (Es ta- 5 Proposta de Broo ks McNamara e Ri chard Schechner no texto de apresentação
dos Unidos, Países Baixos, Bélgi ca, Alem anha, Itália e Reino . d a série.
6 Pub licado d e sde 1977, m a s re torn a d o em 19 8 8 e d ep o is e m 2003. Ne w Yo rk:
Unido em particular), constituem as características daquilo a
Rout ledge.
que gostaria de chamar de "teatro p erforrnativo" 7 R. Schechner, Performance Studies: An In tro d u ct io n , New York: Rou tledge, 2002,
Desejaria discutir algumas das características de tal teatro mas ta m b é m em The Future of Ritual: Writings a n Cult ure and Perfarmance,
New York: Routledge , 19 9 3 ; By Means of Performance: In tercu lt ural Stu d ies of
e de s u a evolução, posicionando -o em relação à s práticas artís - Thea tre a rtd Ritual, Cam bridge: Camb r idge U n ivc rs ity Press , 19 9 0 ; Be tween
ticas norte-americanas, mas tarnb érn flamengas, britânicas etc. Thea ter and Antropology, Philadelphi a : Un iv e rsi ty o f Pe n nsylvan ia Press, 19 8 5.
De início, e para c o n tex t u a l iz a r essa refle xão , parece -Ine 8 Ver quadro p . 7 1 (3 . 1 Overlaping Circles) e p. 7 2 (3. 2 Theater Can Be Considered
a Sp eci a le zed Kind of Pe rfo rmance [O Teatro Pode Ser C o n s id e ra d o u ma Fo rma
que r ecapitular o se n tido (ou os diferentes se n t idos) da p al a vra Especializada de Pcrformance]) da edição Performance Theory, New York: Rou -
performance s e fa z nece ssário. G o s ta r ia de fa zê- lo rapidam ente , t ledge, 2003, e o q uadro p . 2 45 (2 .2 La " Bo uc le in fin ie" [A " Vo lt a Infin ita"] ref. do
croquis n a ve rsão inglesa, p . 68 de Perfarmance St u d ies ), "A 'vo lta in fin ita' ilu stra
lembrando as publica ç ões de duas obras fundadoras d e d ois
a positividade da d inâ mi c a d e in tercâmbio (t roca). Os drama s sociais a feta m
eixo s ao longo do s qu ai s a que stão d a pe rformanc e se r ia o s dramas estéticos e v ice- v e rsa . As a çõ es visíveis de u m dado drama social sã o
sustentadas - moldadas , condicionadas, guiadas - p o r processos estét icos sub-
3 Pari s, em Art an d Obje cthood, publicado in ic ia lm e n te e m Ar tforurn , 5 , N e w j a ce ntes e té cnica s teatrais/retór icas específi c as. D e maneira recíproca, a es té ti ca
York. )un e 1967, depoi s re tornado em Grego ry flat tcock (e d. ): Min i m al Ar/: teatral numa dada cu ltura é s us te n tada - mo ldada. co ndic io nada, g u iada - p or
A Criticai Anthalagy, Ne w York: PP. Dutton , 19 6 8 , p . 139 e 145 . p ro c es sos de interaç ão socia l s ubjacentes" R. Schechner, op. ci t. p. 245 ·
1 16 A Lf: i\ 1 D OS LI MI T ES, PARA U.\ IA D E FI Ni ÇÃO D A TEAT RALIDADE P O R U ,\ I A P O f:TI CA DA PERFORMAT I V IDA DE 11 7

to d a s a s fo r m a s d e rn an ífe s t a ç óes teatrai s, rituai s, de d iv er t i- .A v isão de Huysse n t rata da p e r fo r mance no se u se nt ido


rn e nto e toda manifesta ç ã o do co t id ian o v. Uma i n cl usão tão p urame nte a rtíst ico - e não antropoló g ic o . E le se coloca numa
vasta s u sc ita, s eJ11 dú vi d a, um p rob lema impor tan te. Por qu e rer v is ã o ess enciabnente e s té t ic a que co n t in u a a dom inar n a m aior
ab arc ar tanto , não nos arri s camo s a di luir a noção e s ua e ficác ia parte d e nossos d epartamentos das Arte s d o Espetáculo. A p e r-
te ór ica? Ta l é um a p r irri e ira qu es tão que co riv érn se r c o loca d a . fo rmanc e , n o se u se n t ido, é a arte d a p e r forman c e , uma a rte q ue
Po r trá s d ess a redefinição da n o ção de pe r for mance e Su a a b al o u nossa v isão d e a r te n a s d é cad a s d e 1970 e 1980 . (T r a t a re i
ins c ri ção n o vas to d omínio da cult ura, é p r e cis o antes ve r um d as c a rac te rís ticas d essa arte um pouc o mais adiante. )
des ejo p olí ti co - m uito forteme nte a nco r ado na ideolog ia ame - M eu o b je t ivo não é favorecer urna v isão mais q ue outra, m as
ri cana d o s a no s de 19 8 0 (i de o logi a q ue p erdura até hoje ) - d e enfatizar q ue emergem. por m e io d e ssa s duas v isões d e perfor-
rein s cre v er a a rte n o domí nio do polític o , do co tid ia no, qu içá man ce - urna herdada d a vanguarda e d a arte d a pe rformance
do co rnu rn, e d e a taca r a separaçã o r a d ic a l e n t r e c u lt ura d e (a d e I-fuy ssen e d e tudo que poderei c ham a r, para ser bre ve , d e
elite e cultura p o p u la r, e n t re cultura nobre e c u lt u ra d e massa. tradição europeia d o s p aíses latino s), a o u t ra herdada d e uma visão
A expa ns ã o da n o ção d e performance s ublinh a , portanto a ntropológica e in tercultural com a q ual Schechner con trib ui for-
(ou quer s ublin har) , o fi m de um ce r to teatro, do teatro dramá - temente para sua difusão - o s dois grandes e ixo s a partir dos quai s
t ic o particularm ente e, co m ele, o fi m do p r ó p ri o c o n c e it o de podemos pensar o teatro - e, mais amplamente, as artes - hoje.
teatro La l c o m o praticad o h á a lg u m as décadas. Mas tal t e atro A concepção d e Sc hech n er é dominan te nos p a ís es a nglo -
e s tá realmente rn or to, a pesar de todas a s declaraçõ es qu e afi r- -s a x õ e s ; a de Huysse n em ce r tos países e u ro p e u s (F rança), ou
rnarn se u fim? A q ues tão pe n nanece a tua l rn es rn o n os Estados Ca nadá, e m n o ssas universidade s, n a s escolas d e fo r m ação q ue
Un idos. Es s a é a segu n d a q ues tão que gos ta ría m os d e le vantar. bus c am preservar uma visão purame n t e estét ica da arte.
Leva n tan do os m esmo s questionam entos , mas d e u m ponto
d e vista t e ó r ic o di fe r ente (fi losó fico e es té t ico d e s t a vez) um o intere s se d a e v ocação d e ss es d ois e ixos (pe r fo r mance
segundo liv r o é p u b licado al guns a nos rnais tarde, em 19 8 6 , c ujo corn o arte e p erforman ce co n10 ex periê ncia e c o m petê ncia) vem
títul o Afte r th e Great Divide (Após a Grande Divisão) analisa os d o fato d e que e mergem, n o c r u za me n to d el es , uma gran de par te
la ç o s e n t r e o rn od.er n isrrio, a c u ltura de massa e o pós-mode r- d o teatro a t ual, um teat ro c uja div ersi d ad e d a s caracterís ticas
n isrno '". Andreas H uyssen, p rofessor em C o lu rnb ia , reún e a li a t uais Hans -Thies Leh rnarm anali s ou co m pre c is ã o e que el e
artigo s que tes t e m u n h a m uma refl e xão in iciada no fim dos d e fin iu como p ó s -d r a m á t ic a s , m a s para o q ual e u gostaria de
anos de 19 7 0 e no c o rri e ço dos anos de 1980 e se empenha e m pro por a de nom inação "tea t ro p erfo r rn a ti v o", que m e parece
mostrar, dessa vez so b u m a perspectiva p urame nte ar tí s t ica - e m ai s exata e m ais d e acordo c o m as q ues tões a t u a is .
n ã o s o c io ló g ic a e a nt ro pológ ica -, qu e fo i o m ode rnismo - e D e fa to, se é eviden te que a p erformance r edefiniu o s p a r â-
n ã o as vanguardas his tó ric a s - o r e spons á v el pela rupt ura com m etr o s , p e rm itindo -no s p ens ar a arte h o j e , é e vide n te tamb ém
a vis ã o elitista da arte e da c u ltura pop ular e que foi igualme nte que a prá t ic a d a p erfo r m anc e t e ve uma inci dência r a di cal sobre
o res ponsá v el p elo a fast amento da arte das es fe r as política, e c o- a p ráti c a teatral como um todo . Dessa forma, seria p reciso des -
n órn ic a e so ci a l. Huyss en lembra que as vangu a rda s hi stóric as tacar t a m b ém mais p rofundame nte tal fi liação, operando essa
recusam-se a separar a ar te d e s ua in s c r iç ã o no rea l. r u p tu ra e p is te mo lóg ica n o s t ermo s e a do ta n do a exp ressão
"teatro p erfo r m ativo "
9 O que E lizabe t h Burns e E rvi ng Goffma n n j á h a viam fe ito a n tes d el e . Burns
t in ha, a ss im . m ost r ado q ue a te atralidade im p reg na o cot id ia no . V e r E. Burn s, Pe rfo rm er, que r seja num s entido prime iro "de s u perar o u
7heatricality, Londre s : Lo ngma n , 19 73: E. Goffm a n (1959 ), La m ise en sc éne ult rapas s a r os li mite s d e um padrão" ou a inda n o se ntido d e
d e /a vie q u otidienne, Pari s : Minuit , 19 73 .
"s e engajar num esp e t á c u lo , num j ogo o u num ritua l", implica
10 A n d reas H u ys s e n , Afi er th e Great Div ide : M o d er nism, M a ss C u lt u re, Post -
rno d e rnis rn , Blo m m ingto n : Ind ia na U n ive rs it y Pre ss , 19 8 6 . a o meno s três operações, diz Schechner:
118 ALÉ,\.l DOS LIMITES ; PARA U M A DEF INI ÇÃO DA T EATRALIDAD E POR U MA PO ÉT IC A D A P E R FORMATl VI DA D E 119

Se r/es ta r, Ou sej a , se com p o rtar;


L unívoca entre um discurso (ve rb a l ou visual) e um sentido dado.
Faze r. É a a t iv id a de de t u do o q ue exis t e , dos qu arks aos
2. Logo, quando Schech ner menciona a i m portância d a "execução
seres humanos; d e u m a ação" n a id ei a de p erformer, e le, na real idade, não faz
3. Mostrar o que s e faz (ligado à n atureza d o s comportam en - senão insis tir n est e ponto nevrálgico d e toda p erformance cên ica,
tos human o s ). Esse c onsi ste e m a prese n tar-se co m o es pe tác u lo, d o "fazer': É eviden te que tal fazer está pres ente em toda forma
a m o strar (o u se mostrar). teat ral q ue se dá e m cena. A dife r en ça aqui - n o teatro p e r fo r -
Tai s verb o s (que repr-es eritarn açõ es ), que tod o o a r t is ta m ativ o - vem d o fa to d e q ue esse "fazer" se t orna pr irn o rd ial e
re conhece em seu processo de c r iação, es tã o eITI jogo em qu al - um d o s a spe c to s fund am entai s pre ssupostos na performanc e .
quer performance. Por vezes separados, por outras combinados, Para ilu strar t al imp ort ân cia , gostaria de tomar doi s
el es não s e excluem jamais. Muito pel o co n t r á r io , e les inte ragem exe m p los qu e ex p r i me m b e m essa a rg u rnc n taç ão, ess e "e nqu a-
com frequ ência no processo cê n ic o . dram ento ", po d c r-se- ia d izer, p ara retomar a exp r e ssão d e
Perform er, no seu sentid o sc he c h n e r ia no, e v oca a no ção Turn er, d o " faze r". O primei ro é d e La C ha m b re d 'Isabell a ( O
de p erformatividade (antes mesmo daquel a de teatralidad e) Qu arto d e Isabell a ) , e s pe tác u lo d e [a n Lauwers que debutou
utilizada por Schechner e por toda a esco la arrre r icart a ". Mais e m Avign on e m 200 4 e qu e d e sde e n t ã o n ã o pa rou d e roda r
recente que a noção de teatralidade, e de uso quase e x cl u s iv a- não s ó pela E u r o p a e pela Arn ér ica do Norte, mas tarnb érn
mente norte -americano (mesmo que Lyotard utilize o terrrio), p ela Á sia (Seul, 200 7) e p el a Am érica Latina (Bogotá, 2008) .
sua origem poderia ser retraçada nas pesquisas linguísticas de O seg u n d o v em de D ortoir ( Dormitório) de um encenador do
~~stin e Searle, que foram os primeiros a impor o conceito pelo Quebec, Gilles Maheu.
vies dos verbos performativos que executam uma ação. Eis uma Uma mulher, velha e cega, conta a história de sua vida, de
primeira consideração. 1910 aos dias atuais , mas não a conta sozinha. Todos aqueles

Trata -se de ideia que valoriza a ação em si, mais que seu que tiveram importância para ela contam a história com ela, os
valor de representação, no sentido mimético do termo. O teatro numerosos mortos de sua vida: Anna e Arthur, seus amantes
está indefectivelmente ligado à representação de um sentido, Alexander e Frank. E juntos, não apenas contam a história de
passe ele pela palavra ou pela imagem. O espetáculo nel e s eg ue Isabella, c o mo a c a n t a m também. Não é a primeira vez que a
uma narrativa, uma ficção. Ele projeta ali um sentido, um s ig n i- música é tocada ao vivo e que os atares cantam em cena em um
ficado.Esse vínculo com a representação, que Artaud recolocou espetáculo de Jan Lauwers, mas isso nunca havia sido feito de
e.rn questão na sequência das grandes correntes artísti c as do uma maneira tão aberta e convidativa quanto aqui.
início do século xx, deixou igualInente sua marca no teatro Rapidamente, entretanto, percebe-se que a vida de IsabelJa é
ainda que mais tardiamente. ' dominada por uma rneriti ra. Seus pais adotivos, Arthur e Arma,
. Nã? ~econstituirei aqui toda a história da evolução da pr á- que moram juntos num farol, numa ilha, onde Arthur é o vigia do
tI~a artist íca no decorrer do século xx , mas é possível di zer que farol , fizeram-lhe a creditar que é filha de um príncipe do deserto
d iver's os autores e encenadores buscaram c r ia r essa dissociaçã o que desapareceu na ocasião de uma expedição. IsabelJa parte
em busca desse pai e essa viagem a leva não à África, mas a um
quarto em Paris, cheio de objetos antropológicos e etnológicos.
11 Sc hec h n e r: co m c e r teza, que esteve no ce nt ro desta mutaç ão linguísti c a e
e pís te rnol ógíca e n a o r igem d a o n da d o s Perform an c e S t u d ies n o s Es t a dos
Tal história comporta alguns episódios diretamente ins-
~n i dos ( q u e e le co n t r ib u iu fortem ente p ara impl em en tar n o s es tudos te ó - pirados na vida do próprio Lauwers. De fato , ele conta que
rICOS so b re as a r tes d o espe tác u lo), m a s ta mbé m Phil ip A usla rrder, Michael quando seu pai faleceu em 2002, ele lhe deixou de herança em
Benamo u , Ju d ith B ut ler, Marvin C a rIs o n , Dwight Conqueergood, Barbara
Klrshenblatt-Gimblett, Bill 'vVorthen e vários out ros que c o n t r ib u ír a m igual -
torn o de 58 0 0 o b j e tos etnol ó gi co-s e a r q u e o ló g ic os . Se u pai era
mente na r e fle x ã o cole t iva sob re o assu n to. m édic o , mas nas horas livre s tarnb érn era etnógrafo amador.
12 0 AL EM D O S LI I,ll T ES , PARA U M A D EFI N iÇÃO D A T EAT R A LI DA D E P OR U M A P O ET IC A D A P E R f O RM ATl VID A D E 1 21

Quando criança isso nunca despertou questionamentos em s u a p ó s - dra m ático e que e u d e s ej a r ia , de preferênc ia, definir c o m o
casa e e le cres ceu entre tais objetos . Tendo falecido o pai, e lc s e teatro p e r fo r m a tiv o.
v iu "c o m essa coleção n o s b raços': Foi -lhe necessário dec idi r L e Dortoir, u m pouco à imagem de La C h a m b re d'Isa bella,
o que fazer c o m aq uilo . Era igua lm ente uma q uestão é t ic a , já é uma vi agem pela m emória ( u m quarto de m em ória , d iri a
que a lguns daqueles objetos haviam sem dúvida sido roubados Kantor) , memória da vida e m um d o rmitóri o nos a nos d e 1960 ,
daqueles que o s haviam feito. Daí veio a história que Lauwers n a épo ca da rnor te d e Ke n nedy. Tra ta - s e, porta nto, da vi da de
concebeu. E la é contada por uma mulher, lsabella Morandi que, u m grupo, r ealizando a çõ es rotin eiras ( to d as estili zadas s o b a
na realidade, jamais ex is t i u " . for ma d e co r e o g r a fi a s) li gadas a uma v id a numa escola co rn
O início da narração s u b li nha, de m aneira muito clara, a direção de religiosas. Mas , nesse casulo aparentemente fechado,
colocação em primeiro pl a n o d a execu çã o da s aç ões po r parte se apre seritarn todas a s notícias do m orn cnto, prin cipalm ente
do s p erforrn ers qu e c a n t a m , da nçarn , c o ntarn , às vezes e ric a r - a morte d e John Fitzgerald Kenn ed y.
riarn a pers onagem, m as q ue saern dela c o rn p letarne nre na Gilles Mahe u é u m e n c e n a d o r do Quebec, formad o e m
sequência. O ator aparece aí, antes de tudo, como u m p erform er. mímica, que fundou e m 1968 L es Enfants du Paradis ( A s
Seu corpo, s e u j o g o , s uas com petênc ias téc nicas são colocadas C r ia n ç as do Paraíso) - qu e em 1981 tornou - se Carbone 14 - e
na frcnte. O espec tador e nt ra e s a i da narra tiva , n a v egando ao que evoluiu g rada tivamente na d ir e ç ã o do te a tro corporal, na
s a bor das imagens oferecidas ao seu o l har. O se n ti do aí n ã o é seq uência, ao p e r fo r m a t i vo e e m d ireção à d an ç a - te a t ro , sem
redutor. A narrativa inc ita a urn a v iage m n o i magi ná rio q ue o rea lme n te deixar d e lado o teatro.
c an to e a dança a mpl ific a m . Os a ra bescos do a to r, a elasticidade O espe tác u lo m e parece e lo q uente na med ida em que apre -
d e se u corpo, a sin uos id a de das fo rmas q ue solic i ta m o o l har do s ent a d e for m a límpida num e r o s a s carac terís ticas d e sse t e atro
espec ta dor e m primeiro plano, d ep e ndem da pro e za e, long e p er formativ o qu e o cup a as ce nas t e atra is . D e fa to, n o cer ne da
d e bus c a r u m s e n t id o para a im agem , o espect a do r se d e ix a n o ç ã o de p erform an c e r e sid e uma segu n da co ns ide ração, a d e
prender por essa p e rforrna ti vidade e m a ção. E le p erforma. que as o bras p erforrnativa s não são verdadeiras, n em f a lsas. Elas
Ao aprese ntar a co leção d o p a i de Isabella, para a lé m da s i m ples me n te sobrevê m . "As p lay acts, pe r for ma t ive a re n ot
descrição exata d o s obje tos mencionados qu e d el a fazem par te, ' t r ue' or 'false, ' r igh t' or 'wrong', t hey happen', disse Schechrier" .
a performatividade dos ato res t o rn a o prirnei ro lug ar e termin a Essa é uma seg u n da consi deração. In sis t ire m o s, portanto, nesse
por se veicular corno U In excesso, urn " por dernais" p leno, urna c aráte r de d e s criç ã o dos everitos " q ue se tor na, ass irn , u rna
cólera, u rn a fr ustração, a qual p ode m o s fac ihnente i mag i nar carac terística f un d ame n ta l da performance.("I t h a p p e n s', d isse
ter sido a do p róp r io Lau we rs qu and o co nfr on tado co m essa
coleção legada p or s e u pai c o mo h eran ç a . Es tam os b em ins eri - 13 Schechner, o p . cit., p. 127.
Ev énementiel (vocábulo do qual prova velm ente év én em en t ia lit é tenha d e r iva d o )
d o s n a pe rformat ividade do a tor (e fora d e uma p e r s onage m ) ,
é utilizado para desi gnar "a q u ilo que a penas d escre ve os acon teci m e n tos"; d essa
aquela da ação que se exec uta. O espectador é confrontado co m fo r m a , histo ire év énem en t ielle ser ia aquela q ue apenas d escre ve os g r a n des fa tos
esse fazer, com essas ações colocadas, das quais só lhe resta, a históri c o s (g u e r r as co n q uistas, e tc). E m se u es t u do E n t re p oints d entr ées et
p oi nts d e rupt ures ép isté rno log iq u e ts ): L'Ev énementia li te architectural e . . . en
ele próprio, encon trar o sentido.
q uestio n ( q ue p od e se r acessad o e m http:/ /www.re s -s ystemic a .org/ a fscet/
O segun do caso, o es pe tác u lo Le Do rtoir, é um p ouc o resSystemica/Pariso s /i smai l.pdf) M aldin e y faz a lg u m as reflexões so b re O se n -
m ais a n t igo, j á q ue foi c ri a do e m meados d o s anos d e 1980 . tido d e év én ern en t ia lit é q u e nos parecem pertin entes: "O evento [levén ement]
é frequ entemente c o nsid e ra do co mo si nâ n im o d e referência [repere ] ou de
To davia, p arece - me q ue e le oferece um exemplo qu a s e per- d esc ontinuidade, ou sej a, d e ruptura d e co n t i n u idade [ . . . ] O ponto de partida
fei to desse teatro qu e Hans- Th ies Lehmann chamo u de t e a t r o e p is te mológico d a ques tão d a v énementialit é c ria um es paço d e reflexã o e d e
é

e mergência de e sobre o c o n h ec i rn e riio : el e s e in scre ve, n o e n ta n to , n es te d u p lo


m o vim ento : co mo referência [repêre ] te mpora l e como s ig n ifi ca n te (p a râ m e t ro
12 Livrement e a dap ta do a p artir do s ite d a co m pa n hia. ag indo ) d e um a ruptura produtora d e se n t ido." ( N . d o 1~ )
122 A L E:>''! DOS LIMIT E S: PARA U M A D EFI Ni Ç Ã O DA T E AT R AI.ID AD E P O R U M A P O ÉTI C A DA P E RF O RM ATI VI D A D E 12 3

Sch ec hner) A esse respei to, os textos fa lam de event ness. E la Tomemos u rn t erceiro e x e mp lo, emprestado desta v ez de
coloca e m cena, com esse firn, o processo. E la a m p lifica, por- Robert Lepage. Em 1994, Lepage funda sua própria companhia,
ta n to, o aspecto lúdico do s eve n tos be m como o a s pec to lúdi c o Ex Mach ina, após ter sido membro do Théâtre Repere de 1980
daq ueles q ue d el e part ic i pa m (pcrforme rs , o b jetos o u máqu i- a 19 86 . Se u obje tivo é o de favorecer a pe rmeab ilidade das disci-
n a s ) . Existe um a tom a d a de ris c o real ao performer. plin a s e a m u lti disc ip linaridade em cen a. Porta n to, d e renovar
Derr ida se r á o primeiro a prol ong ar t al n o ç ã o , introdu zindo o teatro p or me io d as o utras a r tes . E le quer fazer urn te atro ern
n el a um fator importante , o d e s ucesso o u m alogro . Mes rno s in to n ia co m n o ss a época. E le vai d es env olver um a "poé tica te c -
s e o essenci a l d a re flex ão d e s s e ú lt imo reca ia sob re a esc r it a no lógica" na qual as tecnolog ias estão a serv iço d a arte d o te a t ro.
e n q ua n to o b ra p erformati va p or excelê ncia, e le a fir ma rá que E m certo t r e ch o d e La Face ca ch ée d e la lu ne (A Face Oc u lta
a obra, para ser r e al m ente p e r fo r mativa, pode o u n ã o a t ing ir d a Lu a ) , de 2000, a rn áq ui n a d e la v a r se torna um cosmona uta.
os o bje t ivos visad os. A r e fl e x ão d e Derrida m arca um red ire- O inte r e s s e d e s s a p a s s a g e m é ver n a o bra a m a n eira p el a q u a l
cioria rne ri to n a evo lução d o con c e i to d e p erformativid ad e, n a Lepage d e s env olv e a n arr a t iv a , imbric a as nar rações e m jogo
m edida e m qu e e le a fir rna qu e a ação co n t id a n o e n u nc iad o n o s espaços ( i n ter ior/exte r ior), e ncaix a n do -as, invertendo - a s.
pe r fo r mat ivo pode o u não ser efet iva , p o rtanto, na m edid a "O t e atro é um a a r te d a tran s formaçã o e m tod o s os nív ei s",
e m que essa o bservação s e torna um r eal princípio in erente à ele escre v eu ". L epag e v a i, p ortanto , buscar n ova s man eira s d e
p ró p r ia n atureza dessa c a teg o r ia de lo cução. O "va lo r d e ri s co", c o n t a r e c r ia r uma "ex pat r iação". E le poeti s a o banal. É a t e c -
o " m a logro", tor n a m-se cons ti t u tivo s da p erformatividade e nologia qu e o le va a tran sformar e m po esia tal cot id ia n o . O n d e
d evem s er c o n s id e r a d os como lei. Insistiremos, portanto, nesse s e ntirnos , com certeza, a influ ên cia do cin ema ( c o r t es nítidos;
caráter de descrição de eventos que se torna, dessa maneira, fu s ões encadeadas ; mudanças de foco ). É um a arte da metáfora
uma característica fundamental da perforrnatividade ':'. que p ermite a e stratifi c a ção d o sen t id o (d os s e n t id o s) a partir
Se segu ir m o s n o s so primeiro impulso, duas forte s ideias d e um m esmo elemento, d e um m esmo o bjeto ( u m a escot il h a) .
estã o no c e n tr o da obra p erformativa. De um lado, seu c a r á te r Para Lepage , c o m intuito d e es tar d e a c ordo c o m s u a é p oca,
d e descriç ã o dos fato s. Por outro, a s ações que o performer ali o teatro d eve dar c o n ta da evolução dos modos de narraç ã o , dos
realiza. A p erforrnari c e toma lugar no real e enfoca essa rn esrna modos d e percepção e c o m p ree nsão do mundo. Não se pode
realidade na qual se inscreve, desconstruindo-a, jogando com os mais fa zer o mesmo teatro se não pelo passado, mesmo s e no
c ó d ig os e a s c a p a c id a des do e s p ec t a d o r (co m o puderam fazer fundo s ão sem p re a s m esmas hi stóri as que nele s ã o c o n t a das .
Guy C ass ie r, [an Lauwers, Heiner G oeb b e ls, Mariann e W eems O pe rfo r me r d e sfa z o sen t ido unív o c o - d e lima imagem
o u a Societa s Raffaelo Sanzio, d e maneiras diversas ). Tal d es cons- o u de um t exto -, a unidad e d e uma vi são úni ca e institui a
t r uçã o passa por um jogo com o s sign os que se tornam instáveis, pluralidad e , a ambi guidade, o desli ze do se n t id o - talve z do s
fluidos, forçando o o lhar d o espectador a se adaptar incessan- s e n t i do s - na c e n a . Ess e t eat r o procede por meio d a frag -
temente, a migrar d e um a r eferên ci a a outra, d e um s is te ma de menta ç ão , paradox o , so b re pos ição d e significado s ( Ho te l Pro
r epresentação a outro, inscrevendo sem p r e a cen a n o lúdico e F o r ma), p or m eio d e co lag e ns- mon t a ge ns ( Big Art G r o u p ),
tentando por aí escapar da representação mimética. O p erform er interte xtualid ade ( W o o s t e r Gro u p ), citaçõ e s , ready -mades
instala a ambiguidade de significações, o deslocamento dos c ódi- (Weems, Lepage). E n c o n t r a mos a s noçõe s de descon strução,
gos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de d esconstruir a d is s erni na ç ão e deslocamento de De rr i d a '",
realidade, os signos, os sentidos e a linguagem.
15 Ire n e P ere lli -Contos; C h a n t a l H ébert, La Tempête Robe rt Lepage, Nuit Blan-
14 É a ssim que Derrida c o n s e g u e fazer a performatividade sair de s u a a p o r ia che, n . 55, Prim a vera d e 1994, p. 64-
austiniana , perm it indo - lhe to rnar- se urna verdadeira ferramenta teórica 16 Quant o ao s s ig nos , nec es sariamente p res e n tes - p oi s é imposs ível esca p a r a
tran sferível a outros campos além do da linguística. qu alqu e r represent a ç ão - es ses perrnanecenl decod ífi c ávei s. mas seu sentido
12 4 AL É M DOS LIMIT ES: PARA U M A D EFI Ni Ç ÃO DA T EATRALIDADE P OR WVIA P O f. TI CA D A P E RF O RM ATI VI DA D E 125

A escrita cên ic a n ã o é m a is hie r á rqui c a e o r de nad a; e la é diá logo que o espectador a companha c o m fa scínio e prazer. A
desconstr uída e caót ica, e la in troduz o evento", recon hece o risco. música, de uma grande v a r ie d a d e , é emprestada de dife re ntes
Mais q ue o teat ro dramátic o , e corno a arte da pe rfo r mance, é o co m pos itores , de Br yars , Ku rtag (o Black Angel de Crumb) , e
p rocesso, a inda mais q ue o p ro d u to, q ue o te a tro p erfo r m a ti v o Sc e1si, a Ba ch ( A Ar te da F uga), passa ndo por S c hostakó v i tc h
co loca e m ce na: K antor prati c a v a já esta anteci p ação da ob ra e R a v el. A peça co meça pelo "Oitavo Q uarteto de Cordas de
sendo fe ita; Lepage a co loca n o centro de sua conduta de criador. Schostakóvitc h".
Me u qu arto exemplo é a par t i r de Era ritja ritjak at-musée Goeb bels afi rmava : " C o m o a mú s ica po de se r vis íve l? Is s o
d es phrasesv, de H ein er G oeb bel s, co m pos ito r e e nce n a d o r é algo qu e e xp e rim e nto e m E ra ri tja r itjalca t: n ã o a pe nas c o mo
qu e m ontou a peça e m 2 00 4 , no T héâ t re Vi dy de La usa n ne . É a men t e p o d e ser visíve l de rn a ri e i r a rnu it o diver tida, rn as
b a s e ad a na o b ra d e E lias Cane tt i, roma ncis ta a le mão d e or igem t amb ém co rno a mús ica pode ser vi sive ]": ? . A certa altu ra, a
b ú lga ra (d iár io e an o ta ç õ e s , aforis mos) e foi interpretad a p or músi ca é to c ad a ao mesmo te rn po qu e o a to r descasca ce bo-
A n dré Wilms e o Mondrian Strin g Q u a r te t n o Teatro V idy de la s o u b ate um o m ele te no m e sm o ritm o qu e o pizzica to d o
L au s ann e. Nela, C a ne tt i ex p lo ra as m a n eiras co rno u m a r t is ta Qu arteto d e R a v el.
p e rc eb e e a bso r ve o mundo . N ó s sabe mos p ou c o, obs erv a Goeb- T ra ta-se p r e c isarne nte de u m jogo co m os sistemas de
b el s , ape n as qu e C a ne tt i preen cheu ci nco o u se is c a derne tas representa çã o , u m jogo de ilus ã o e m qu e o re al e a fic ç ã o se
co rn o bs e r vações feita s c ot id ianarn e n te durante s e u s pas s ei o s, interp enetram . A li o n de o espec ta do r c rê esta r n o real, el e d e s -
o lhan do p ela janela, len do o s j o r n a is e o l ha n do as pes s o a s no cob re que tinha s ido e n gan a d o e que o que e ra d ado com o r eal,
rri etr ô o u no trem. É a partir dessas anota ções e aforismos que e ra a penas ilus ã o. Ess a câmera ao vivo , qu e s urge no in te r io r d o
se co n s t r ó i a peça , co mo um a longa med itação in terior por teatro, é some n te ilus ã o. Ho uve, ao m e s m o tem po, p r e cisam ente
parte da personage m principal q ue atravessa o mundo. Essa u m a d e rrota do real e da r eprese ntaç ão . Ao invés de percebe r o
e n t rada n o e s p í r i to d e UIn indivíduo agrada Goebbel s parti - real media do pel a tela, ele descobre um efeito de real, e o teatro
c u lar me n t e, pois p ermite " to r n ar v isíve l o irrvis ível": ". Trata- s e retom a todos o s s eus dire itos.
de um gênero n ã o d r arn át ico n a m edida em q u e n e n h u m a Acre s ce nto que nas "co locações em s itua ção" (mis es c n
n arrati v a lin e ar m ant ém o s elementos unidos. situ a t io n ) qu e o s espe tác u los p erformativos instalam, é a inter-
Fato importante, a música oc u pa um lugar tão ess en c ial - re lação, q u e li ga o p erfo r m er, o s o b je t o s e os corpos , que é
qu ant o o do atar e d o texto. Es t a b elece-se e n t r e o s trê s u m prim ordi al. O o bjetivo d o pe rfo rrne r n ão é ab solu t amente o
d e construir ali s ignos c u jo s e n t id o é definido de uma v e z por
é freque n teme n te t ribu t á ri o d a relação cênica bem mais q ue de um referente t od a s , m a s d e inst al ar a a m b ig u id a de das s ig n ifica ç ões, o d e s -
pré-existente. A ficção em si, ass im q ue se torna presente. n ã o co ns t itu i neces - locamento dos có d igos, o d e sli zamento d e sentido. Ele joga ali
sariame n te o c oração d a o b ra. Ela está a li como u m d o s co m po nen tes de u m a
fo r ma e m q ue a c o la ge m d a s form as c dos gêne ros. a j us tapos ição d a s ações com os s ig n o s , transforma - o s , atribui -l hes u m outro significado
domina . P e r fo rm ati va , n o sen t ido d e Derrida , ela pre co n iza a "d issemi nação" (Lepage c r ia n do o fog ue te a partir d e um p acote d e s a lgad i n h o
escapan do ao h o ri z onte da u n id a d e do sentido.
e m L a Face cach ée de la lu n e , o Big Art G ro u p, e m H ouse ofNo
A e timo logia da pa lav ra événement (e ve n to, a contecimento). segund o Henry
Mal drney, re mete r ia àquilo que ac ont ece e ta lvez daí ven ha a s ua associação Mo re (A Casa d o N u nca Mais), c r ia n do o s obj etos cê n icos por
co m a p al av r a avcnement (a dve n to) . (N. d o T.) meio d e uma bric ol a g em de n atureza cinematográfica a partir
17 O título d a peça reme t e a uma pa lavra a us tral ia na que s ig n ifica "espe rar a lgo
pe r di do".
d e s i m p les truque s d e luz ). O que o espec t a d o r olha, a q u i lo
18 C f. sítio do artista ( http:/ /ww.v.heinergoebbe ls .coml) : " W h a t l love so much pelo qu e se deixa se d uzir , é preci samente essa a r t e d a esq u iva,
i n thi s gen re of n o n d r a m a t ic li terat u re is th a t yo u can a tte nd sornebo dy's da fal sa a p a rê nc ia, d o jogo e m .9 u e e le está pre cisamente num
thinki ng. I t ry to make it v is ible or a u dí bl e" ( "O qu e e u a do ro n e sse gê nero de
lit e r atura n ã o d ra má tica é qu e você p od e assi s t i r ao p en sa rn e nto d e a lg u ém .
Eu tento torná- lo vi sí vel e audíve l"). 19 ibidern .
126 ALEM DOS LIM ITES: PARA UMA DEFIN iÇÃO DA TEATRALIDADE POR U,\' IA POETlCA DA PERF OR;\;IATI VI D A D F. 12 7

luga r onde n ão sa b ia q ue e s t ava. Ele des c obre , p ortan to , a forç a d es c r iç ã o pu ra das ações (Annie Sprinkle, La u r ie A n d e rs o n ) ;
d a ilu s ã o. n a fa lta de referencialidade por t rás dele -'.
O último e xe m p lo é proveni ente d e Ivl ariann e We em s , É p r e c is a m e n te essa fa l t a d e referencial idade que le t Lag
que fundou em 19 9 4 a companhia Builders A sso ciation, após en cena. A p ers on a g enl se co n te n ta e rn nos fazer cre r que es tá
t er s ido drama turga e a s sistente d e E l iz a b e t h Le c om pt e do o n de n ã o está. E Wee ms n o s rn o s t r a, graças à tecno logia, esse
W o oster Group. T ra ta- s e de um t eatro que alia t e cn olo gi a , jog o d e ilusão. Mas, ao nos m o st r ar o p rocedimento, e la dissi pa
performance e arquitetura. Seus trabalhos gostam de colo c ar o jog o d a ilu s ão , m antendo ao mesm o temp o à v ista d o esp ec-
e m paralelo as imagens do real com o real reproduzido pelo tador a ilusão (el e está n o mar) - e s ua e nganação (ve mos s ua
v ídeo. E la tamb ém deseja modi fi car a s rno d al id ades atu ai s ins ta lação rudim entar). Es tamos aqui di ante de um a per form a -
d e narra ção, buscando cri ar na cena urn mundo qu e reflita tividade da te cn ol ogi a que d e sm onta h abilm en te a te atralidad e
a c u lt u r a contemporânea. A obra d e \Veems questiona o uso do process o para tra zer à luz sua performatividade.
d a t ecnologia em sua relação corn o homem . À s u a maneira, Allad een j oga a i n da p ara rnais longe o s is te m a, ce n tr a n do,
e la procura a u rn e n ta r as fronteira s do t eatro. C onforme e la d e s s a v ez, t oda a p erformatividade s o b re os pro cedim ento s
rn es rn a afi rrna, a tecnologia é a p ersonagcrn principal de suas te cn ol ó gic o s , qu e n ã o ap enas permitem o j ogo d a ilus ã o , ma s
peças e os p erform ers devem aprend er a compor c o m ela, não que o d e smontam do ave s so, na m edida em qu e assi stimos
a se n t i n d o c omo um perigo, mas como uma c ú m p li c e . let Lag à construção do cen á r io (que é fort emente r ealista) . Mas a o
foi criada em 1998; Alladeen em 2003. colocar em pr irn e iro plano o proces so, Weems põ e ern xeque
[et Lag relata dois excertos extraídos de fatos vividos. Um a teatralidade, estabelecendo a performatividade - tanto a dos
deles conta a história de um eletricista que empreende uma performers quanto a das máquinas - no centro da cena. É o que
corrida ao redor do mundo num veleiro, patrocinado pela BBC. demonstra essa passagem de Alladeen,
Vendo que não vai conseguir vencer, ele usa um estratagema Alladeen c o n t a a história verídica de operadore s de ca ll-
que consiste em fazer crer, por rneio de uma instalação tec - -centers indianos e m pen h a d o s e m atender aos telefonemas dos
nológica, que ele está ganhando a corrida. Ele transmite as clientes nos Estados Unidos. As exigências da profissão fazem
imagens de sua corrida por satélite, enviando dados falsos que corn que eles tenham que simular um sotaque americano para
o colocam na dianteira. Ele desaparece antes que o subterfúgio que os clientes acreditem que eles n ão estão longe e qu e são
seja desvendado. Apenas seu barco abandonado é ericontrado-". mesmo norte -arnericanos. A ssistimos, portanto, a uma lição de
cultura norte -americana que tende pouco a pouco a modificar
O que está em jogo em todos esses casos é um jogo com a seus referentes culturais e fazê -los adentrar em um universo,
representação , Uma forma de representação que nega a si mesma do qual são, a priori, excluídos.
(o eletricista faz como se estivesse na dianteira e coloca em cena - O ato performativo se inscreveria assirn contra a teatra -
encena - sua vitória). lidade que cria sistemas de s e n t id o e que remete à memória .
Escrevemos bastante s o b r e a fuga da representação ou Lá onde a teatralidade está mais ligada ao drama, à estrutura
a desconstrução que colocava em jogo (desafiava) o teatro narrativa, à ficção, à ilusão cênica que a distancia do real , a per-
atual, tentando por vezes operar nos lirn ites do simbólico, na forrnatividade (e o teatro performativo) insiste mais no aspecto

21 "O p erformat ivo não te m seu referente [. . . J fo ra d ele o u, em todo caso, a ntes dele
20 A segu n da narrati v a d e Ie t L ag trat a d e um a v iagem e m "a lta velocidade" e diante d el e. E le n ã o d es c re ve a lgo que existe fora da lingua g e m e a ntes del a .
d e u ma mulh er que fo g e p ara salva r se u n eto d a intern a ç ã o . Os d o is e nco n- Ele produ z ou tra ns for ma uma si tu ação, e le opera; e se po de mos dizer que um
tra m -se co mo prisi o n eiro s d o s ae ro po rtos faze ndo 16 7 vezes a ida e a vo lta e n u ncia do c o n s ta t ivo efe tu a tam b ém a lgo e sem p re trans fo r ma um a s ituação,
A ms te rd ã - N ova Yo rk. A avó n ã o sobrev ive rá a esta experiência e mo r re rá n ã o se p od e diz er q ue iss o co ns t it u i s ua es t r u tu ra in te r na, s u a fun ç ã o o u se u
de je t lag (cansaço ex tre mo ocasionado pelo excesso de v iagens). des ti no m a n ifesto s." C f. J. De rrida, Marges de la philosophie, Pa ris: M in u it, 19 7 2 .
I'OH UMA POlõTI C A D A P ER FO RM ATl V!D AD E 12 9
128 A LlõM DOS LIMITES : PARA U MA D EFI NI ÇÃO D A TE AT RALID ADE

lú dico do discurso sob s uas múltiplas formas - (visuais ou ve r- nem selnpre irnpl ica a abs o rç ão n a o bra. E le pode tamb ém
ba is: as do perfor m er, do texto, das imagens o u das co isas) . Ela sLlstentar um direito d e o lh a r q ue p ermanece exterio r.
os faz di al o g a r e m co nj u n to, completarem -se e se contradize- É d ize r q ue, mai s que nas outras formas teatrais (particular-
rem ao mesmo tempo, corno nos e spetáculos de A . Platel o u mente as dramáticas ), o tea tro perfo rm a tivo to ca na su bjetiv id ad e
110S de Gó mez Pe na e Coco F usco . Mas é realmente possível
do performer. Para al ém d as p el-sonagens e voca d a s , ele impõe o
escapa r de toda a r e feren cialidade e , assim, à r e p re s en t a ç ã o ? A d iálogo dos corpos, dos ges tos e toca na densidade da matéria,
q ues tão p errnan e c e ab e r ta. sejam. as do perform er e m c e n a ou das m áqui na s performati -
E u d iz ia que h a via du a s ide ias p rin cipais no cerne da vas: vídeos , ins talaçõ es, c in e m a , arte vi rt ual, s im ulação (The
o b ra p e r fo r rna t iva, A seg u n da co ns is te no e ngaja m e n to t otal Bu ilders Association , B ig Art Gro up, Cas traf).
do a rtista, colocan do e rn cena o desgaste q ue caracteriza suas Q uais co nclusões t irar deste pe r curso traçado:
ações (Nadj, Fa bre) . Não se tr a t a n ece ss a ri a m e nte de uma inten- 1. In icialmente, urna ress al va: apesar do quadro que te n t am o s
si da d e e ne rgé t ica d o c orpo n o mo delo grotowsk iano, m a s d e es boçar de m a n e ir a ampla, qualquer ge neralização no dom ín io
urn inves t irne n to d e s i m e sm o p el o artista . Os tex tos evoca m a da prá t ic a e m si não é bem -vinda. O panorama teatral é bastante
"vivicida de" (liveness) d o s pe rform ers, d e uma presença forte- d iversificado tanto na Améri ca do Norte quan to na França. As
m ent e a fir mada qu e pode ir até um a co locação e m r is c o rea l e p rát icas a t ua is n ã o são n e m urr ifo rrues nem u nívocas e elas não
um g os to pelo ri s co (é o caso d o [an Lauwers q ue mos t ramos podem ser comparadas umas corn as outras sern q uaisquer fa l-
anteri orm ente ). sos ap oritarn ento s. To das elas tornarn empres ta das d e dive rs a s
Poderíamos tentar uma análise rnais aprofundada des sas filiaçõ es - tanto a do texto, quanto a da imagem, a d o formali smo
duas características do teatro performativo, mostrando os grandes das artes v is u a is, c o m o a d a interpreta çã o - e nem seln p re é fácil
princípios e a diversidade das práticas que fazem parte dele, d o di stinguir as influên ci a s e as ru ptura s. Se r ia n ecessári o , p ort anto ,
Théâtre de Reza Abdoh ao d e Robert Wilson, das e nce nações para aproximar a realidad e d a prática, ofere cer d e preferência o
de Wajdi Mouawad às d e Ivo van Hove , dos es pe tácu los de quad ro ca le idoscóp ico d a s fo n nas e das estéticas.
Karen Finle y ao s d e Anne B o gart, d o s d o B ig A r t Gro up às 2 . Exis te, ap e s a r d e tud o , u ma linh a, um a fra t u ra entre d uas
p erformance s d e Annie Sprinkl e . S e r ia rnuito lon g o fa z ê -l o n o s v is õ es d o t eatro, um a qu e rompeu co m a tradição e se in spira
limites d e ste capítul o, mas é n ecessário insistir no panorama n a p erforman c e e um a v isão ma is clássica d a ce na tea t ra l. A
bast a n te diversificado das práti c a s que se ins crevem nele , a prime ira é m ais livre e inve n t a os parâmetros qu e permitem
pe r fo r mat iv id a de p enetrando e m t odas as fo r mas d e teat ro , p ens á -la , a seg u n da p erm an e c e e m ce r ta m ed i d a t ributá -
com p ree n den d o as mais tradicionais, a ssim co m o o drama ria d o texto e d a fal a, m e smo que ess e últim o não seja rn a is,
impregn a todas as forma s p ós -dramáticas. n e c essariam ente, o se u m o t o r. O s e nce nado res d e que fa la mos
( no r te-ame r ica n os, flam eng o s c al emães p arti cul arm ente ) , e m
Quanto a o espec t a do r, ele es tá, a ss im co mo o p erform e r, su a g r a nde mai o ri a , pr ivilegiam a primeira d estas opções, a qu al
situ a do n a intimidade d a a çã o , a bsorvido por se u imediati s m o ch a m a r e m o s d e te atr o perforrnativo '>, lá o n de a aproximação
o u p elo ris co c o locado e m jogo (Le Do r to ir, d e G illes Ma he u),
mas el e t arnb érn pode ficar no e x te r io r d a açâ o, grav a r com 23 Termo q ue nos parece ma is adequado q ue teatro pós -dramát ico. cuja defi -
ni ç ã o d a d a por Le hma nn é a seg ui nte: "O teatro pós-dramát ico é um teatro
f r ieza as a ções que se cle s en r o lam di ante d .ele '", m antendo um q ue exige u m even to [acontecimen to] cénico que s e r ia, a t a l pon to, pura
direi to d e o lhar que permane ce exte r ior, co mo ele o faz di ante represen tação, pura presentificação d o tea tro. que ele apagaria toda ideia de
d e c ertas performances. Sua m an eira d e pe rcepção, p ortanto, reprod ução, de re p e t iç ã o do rea l" J-P. Sarrazac, C rit iq ue du th éátre, 2 000 ,
p . 63 . ci tado pelo p r ó p ri o Le hrna n n, p. 14 . f: e vide nte que não pode exi stir
22 Pode tarrrb érn tratar- se de um a altern án cia destas du a s formas d e re c ep ç ã o " p u r a repres enta ção do te atro", n ão mai s no te a tro p ó s -dram ático que n o
(adesão . di st ância ) , co m o em C a s t o rf o u Mar ian n e W eern s . te atro perform a ti vo. A tese d e Lehmann é d e que "a profunda rupt ura das
130 A LIÕ:-'1 D O S LI MIT ES: PARA U MA D E FI NI Ç Ã O D A T EATR A LIDAD E P O R U M A PO ÉT ICA DA P ERFORM ATI VID A D E D I

frances a e do Q ue bec, por exernplo, per nlanece m, ambas, cla- do esp e ctador, são bem mais i mp o rt an te s do qu e o resul tado
rame nte mais teat rais . final obtido.
3 . Se a a rte d a pe rfor mance se di sp e r s ou n a s n u m e r o sas 4. A diferença e n tr e as duas abordagens é ig ua lrnerrte per-
prá ticas perfor mat ivas atuais , ela o fe z e rn m ai or g ra u do lado ceptível no t ocante ao s disc u r s o s te óric os e da s ab ordag ens
n orte -arner íc an o , a nglo -saxão, d e v er- se -i a di z er, rn a s ta mbém a na lí ticas, os u nivers itários n orte-arner icanos tendo pre ferido
fl a me ngo, b elga, britânico, it aliano, s u íço, a lem ão. U m a das d es env ol v e r o co nce ito d e pe rfo r ma nce em se u sentido antro-
p r i n ci pa is ca rac te rís t icas des s e te a tro é qu e e le c o lo ca em jog o pológico, multicu ltu ral e mu lt id iscip li nar, abarcan do pelo fato
o processo sen do feito, pro c e s s o qu e tem m ai or imp ort ân cia e m s i toda a irne n s idade do rea l e perdendo, nessa emprei -
do q ue a prod ução fin al , mesmo quando esta fo r m e ti cul o sa- tad a , a especificidade da obra a rtística em si. Do lado francês,
rn e n te p rog rarna da e r itmada , ass im co rno na p erfo n n a n c e . a r e s is tê n c ia ao con ceito é grande ( o conc eito permanece ali
O dese n ro lar da ação e a exper iê ncia qu e e la tra z, por pa r te d e s c onh e c id o ou s ubestimado), como já havia sido com a p er-
formance a rt , A visão permanece defin itivamen te estética .
5. No te a tro pe r fo r rna t ivo, o atol' é chamado a " fa z e r ': a "e s t a r
vanguardas nos a rredo res de '900 a [ . . . ] c o n t in u o u a p reservar o esse ncia l
d o ' te a t r o dram áti co', e m despeito d e tudas as in o va ç õ e s revo lucionár ia s. As pres ente", a ass u rn ir os riscos e a " rn o s t.ra r o fazer", e m o utra s
forma s tea trais que s u rg ira m e n tão, c o n t in u a r a m a s e r v ir à represe ntação, a palav r a s , a a fir ma r a p erform a t ividade do p rocesso. A ate nção
partir de en tão m od erni z ad a co m uni v e rs o s te xtu a is" p. 28. Es tas m es mas
va nguarda s s ó c o lo c a va m e m q uestão () 1110 d o t r ans m iti d o d a represe nt ação
d o espcc ra d o r s e coloca na exec ução d o ges to, n a criação da
e d a c o m u n ic a ç ã o teatra l de rnan eira li n li t a d a , p ermanecendo, fina lm en te, for m a , na di s s oluçã o d o s s ig nos e e m s ua reco ns trução pe n na-
fié is ao princíp io de u m a m im ese de u m a ação no p a lc o p. 28 . É "n a este ira n e n t e . Um a esté t ica da pres en ça se instaura .
do desenvolv ime n to, segui do da o n iprese nça das mídias n a vi da co t id ia na
desde os anos de ' 9 7 0 , [q ue] s urge uma p rátic a d o dis curs o t e a t r al nova e
6. N e ssa forma artística , qu e d á lu g a r à p erformance e m se u
diversifi cada': aq uela a q ue Lehmann q ua lifica d e te a t ro pós-dramático (I" 28) . sen t id o a n t ro p o ló g ico, o teatro asp ira a faz er even to (aco n teci -
O epíteto " p ó s- d ra m á t ic o " apl ica-se a u m teatro le va d o a operar para além do m ento) , r e enc ontrando o pres ente , m e smo qu e ess e caráter d e
d ra ma; isto é, q u e o d rama n ele subs is te co rno "e s t r u t u r a do t e at r o norma l,
n urna estr utu ra, enfraquecida e em perda de c rédi to : co mo e spera de uma des criçã o das ações n ã o p o ss a se r a t ing ido. A p e ça n ã o ex is te
grand e parte de seu púb lico, co mo base de inúm e ra s de s u as fo rmas d e rep re- se não por s ua lógica interna qu e lhe d á se n t ido, lib erand o - a,
se n ta ção, e nqua n to n o r m a d e dra m at urgi a f u nc io nan do a u tom a t ica me n te", com frequ ência, ele tod a d ependên ci a , exte r ior à uma mime s e
1'. 35. Será p re ci so espe rar os a n os d e 19 8 0 , fa to ai nda o bse r va d o p o r Le h man n,
p a r a que "o te atro o b r ig ue, p ara t om ar os te rm o s d e M ic hael K i r b y, a cons i- precisa, a U111a fi c ç ã o nar rativa c o ns t r uíd a d e m ane ira li n e a r.
derar que urn a açâo abst rata, u m t eatro forma lis ta em que o p r o c e ss o rea l da a t eatro se di stanciou d a repre senta ç ã o .
'p e r fo r m a n c e' s u bs t itua o mimetic a cting, u m t e atro c o rn t e xt o s poéticos nos
M a s , el e se di stan ciou, d e fa to, d a te atral idad e ? A q ues tão
q ua is pra t icamente rren hu rn a ação seja ilu s t r a d a , não define mais some n te
um 'e x t re m o ', mas u m a di me nsão primo rd ial d a nova r e al id ad e do t e a tro " (p. rnere c e ser co lo c a d a.
49) . O te a t r o pós - dramático tem certo parentesco com a id ei a desenvolvida
por J.- E Lyo tard de t e at r o e nergético que não se rá sob re maneira teatro d a Trad. Lígia Borges/Rev. Cícero Alberto d e Andrade Oliveira
significação, mas " t e a t r o das forças, d a s in te ns idades, das pul s õ e s cm s ua
pre se nça [ . .. ] Um teatro e n e rg é t ic o exist iria p ara a lém da representação - o
que , certamente, não que r s írn p le smente d ize r sem represen tação, mas antes
n ã o s u bmeti do à s ua ló gic a': p . 52 . E de ac resce n ta r, "é so me n te quando os
me ios te a trai s - a lém da lín gua - s e r ã o co locados n o rriesrrio níve l q ue o tex to
e p en s áv ei s m e sm o se m o te xto , que p oderá s e fal ar d e teatro p ó s -dram át ic o':
p . 81. A ação tend e a d e s apare c er, assi m como o co meço d e p rocessos fic t í-
c ios (p. 10 5 ) ; desaparece tamb ém a d e s criç ã o , a n arrativ idade fa bul ado r a do
In u n d o . Esta definição d e Leh man n deve, cer tame nte, ser nu a n ç a d a , como
ele m e s m o faz . Ela co ns titui um h ori zo n te de espera mais que um a realidade,
na medida e m qu e é impossível p ara uma forma t e a t r a l, qua lquer qu e e la seja ,
de escapar à narrati vidade e, de fato , à represent a ç ão. Hari s -Thi e s Lehm ann ,
Le Th éátre post-drarnatiqu e , Pari s : LArche, 2002 .
Parte II I:

Performance e Performatividade
1. A Performance
ou a Recusa d o T e atro '

A performance não gosta do teatro e desconfia dele. O tea -


tro, por s u a vez, não gosta da performance e se distancia dela.
Existe entre essas duas artes uma desconfiança recíproca. Tudo
coloca a performance do lado das artes plásticas : sua origem,
sua história, suas manifestações, seu s lugares, s e us artistas, seus
obje tívos, sua co ncepção de arte, sua relação com o público. É
preciso ler o livro de RoseLee Goldberg que marca a genealo -
gia da performance a partir do surrealismo e do dadaísmo até
os nossos dias, passando pelo happening d e Kaprow e pelas
manifestações do F luxus.
A origem reconhecida é pictórica, escultórica, arquitetural,
musica l, lit e r á r ia . Ela é raramente e, por assim dizer, jamais
teatral, corno se o teatro fosse uma forma de decadência que
espreitava as artes plásticas. É assim que RoseLee Goldberg
ignora v oluntariamente performan ces teatrais que se apro -
xirnarn, no entanto, muito nitidamente do teatro: assim, os
efêmeros de Jodorowski, o delírio de Arrabal, os espetáculos
de Bob Wilson ou, mais próximas d e nós, as p erformances d e
Valere Novarina.

Publi cado pela primeira v ez e m Prot ée , v. 17, p . 60-66, 19 8 9 .


1 36 A LÉM nos LI M ITES: P E R FO RM A N C E E PERFORMAT IV ID ADE A P E RF O R,\,IA N C E ou A RE C U SA DO T E ATRO
13 7

As perfo rma nces têm lugar esse ncia lmente nas galerias, muito dife r entes (mú si ca, pintura. dança, e s c u lt u r a , literatura ,
rn u seu s o u ao ar livre. Rararncrrte no s teatros . Quando o correm teatro ), os p erform e rs inte graram progressr v am eri n, e m s u as
nos teatros , elas são vistas, de iníc io, como prod uções teatrais criações as rn íd ia s e a tecno log ia mo derna, a tal ponto que
(casos de Rachel Rosenthal e de Va lere Novarina ) . Hoje, tal essas novas tecnologias constituem hoje LIma das características
c liva bz e m é rnerios acentuada , na me d id a em que , cada ve z essenciais da perforrnance do s anos de 1980, e m b o r a a título s
mais, gente de teat ro se a ventura a esta experiên cia. M a s essas d iversos e com uma maior ou menor intensidade .
pe rfo rmances estão m u ito longe das q ue são real izadas por per- E , no entanto, para além de ta l diversidade, u m ponto
fo r ma dores, co reógra fos ( M a r ie C h o u i n a r d ) , cantores ( M ic h el com um une as di fe r e nt e s performa nces e mu ito partic u lar -
Lem ie ux) e músi c o s ( Rober Racine) . me n te urn a in te r rogação id ênti c a e m face da a rte e d o lug a r
Nos anos de 1980, era possíve l fa la r na proxim idade da q ue essa deve oc upar co m re s p e it o ao real. A performance se
performance e do gêne ro teatra l. Nessa época, es c rev i, a l iás , um propõe, com efeito, c o m o modo de intervenção e de ação sobre
texto q ue s e in t itu lava "Performance e T e atra l id a d e" e c o n cl u ía o rea l, u m rea l que ela p r o cu r a descons truir por i nter m é d io da
pela teatralidade da performance e s ua a p roximação evidente obra de a rte q ue ela pro d uz. P o r iss o ela va i t r a b alh a r em um
do fenômeno te a tra l. Hoje, isso não é m a is possível, e c o n v ir ia d up lo nív el , proc urando, d e um la d o , reproduzi- lo em função
reescreve r a históri a . A arte d a pe rfo r ma nce d o s a nos de 1980 da s ubjet iv idade do p erforme r; e, de o u t r o , desco ns truí- lo, seja
n ã o é m a is a dos a nos de 1970 . O gê ne ro - pois ela se torno u um por m ei o do corpo - per fo r ma nce te at ral - seja d a im agem _
gê ne ro, um gê ne ro n ã o h o m o g ên e o , rnu ito d ive rs ificado, mas image m d o real q ue projeta, co nst rói o u d e s tró i a per for mance
a in d a a ss im um g ênero - evo lu iu , modificou - s e, t r a nsformou - tecnol ógic a. E m um caso como n o outro , a ima gem nunca é fix a
- s e . Observa-se concomitantemente um aprofundam ento das e o performe r; a manipul a à sua v ontade , conforme a instal a ç ã o
práti cas e, a o rn e srno t emp o , o que se poderia c h a m a r uma que es ta b e lece u em tal lugar.
" in s t a la ção" na performan c e. Quero dizer c om is s o qu e a É ess a relação c om a irnagern, que consideramos aqui com o
urg ência que governava ce rtas performanc e s d o s a nos d e 1970 LIma relaç ã o co m o esp e c u la r, que n os p erm it e clas sifi c ar hoj e
e as j usti fic a va d e sapare c eu. E la foi s u bs t it u ída p or uma p rática as p erfo rman c e s e m dua s grande s ca tego r ias, uma q ue se s it ua
c ujos objetivos n ã o são rnais t ã o cla r os q ua nto pu de ram ser n a d o la d o d o teatra l, e ou t ra d o lad o d o te c n o ló g ic o , s u b li n hando
é poca d a e mer gê ncia d e ta l fo rma a r t ís t ica. E, n o e n tanto, tudo p or aí um a div e rg ê n ci a de ordem esté tica que a evolução a t ual
coloca cer tas p erformanc e s atuais ao lado d o te a tro, e m partic ular, ela per fo rrnance parece con fi r m a r.
s ua esc r it u ra cê n ica, s u a relação c o m o co r p o d o perfo r rnador, Co m efei to, em face d a s p erfor m a n c e s t e at r ai s , q ue n ã o
co rn o t empo d e r epre s ent a ç ã o , co rn o r e al, corn o espaço. pare c em s e r senão o pro longam ento d a s prátic a s d o s a nos d e
T oda via, querer fal ar d a per formanc e d e m aneira geral e m 1970 , as p e rforman c e s midiáticas conhe c e m h á a lgu ns a nos um
s ua relaç ã o com o t e atro , con de n a r ia a a n á lise a inte rrompe r -se su r to que as p r opuls ion ou, levando- a s ao p roscé n io e conve r-
rapidame nte por falta de parârnet ros com uns . A necess idade tendo - a s em urna arte a u tôno ma, d ota d a de le is própr ias que
de estar em guarda impõe -se, pois. conservam uma lembrança long ín q u a das fo rmas artís ticas d a s
Ja m ai s se dirá o s uficien te sob re a div e r sidade do fenôme no q uais são ori un das . Será pre ci s o ver e m tal evo lução o fascín io
d a performance. D e sd e se u in íci o, n o fim d o s a nos d e 19 6 0, de nossa é poca p el o mundo da im agem, c u ja importân cia e m
n a esteira dos happening s e a té s uas manife st a ç õ e s midiáticas n o s s o s dias Je an B audrill ard e M arc elin P leynet m o straram?
a t uais, p a s s ando p el o s a nos de o u ro que fo r am os da d écada de Ou s e rá precis o ver aí antes a rec usa d e ce rta t e atralida d e que
19 7 0 , a p er formanc e sempre afixo u uma mul tipl ic idad e de ins- a performa nce afixa desde s uas origens? A essas d uas q uestões
p irações e de fo r m a s , q ue nenhuma o utra arte pôde preservar convém responder, perguntando-se, todavia, que preço a per-
co m a mesma intensidade. V i ndos à perfo rma nce de ho r izon tes fo rmance paga por esta evol ução?
13 8 ALÉM DO S LIM IT ES : P E R F O R M A N C E E P E R I' O R M ATI V ! D A D E A PERFORMANCE OU A RECUSA DO TEATRO 13 9

o TEAT R AL DA P ERFO RMAN CE Rachei s Brain (Céreb ro de Rac h el), de R ac hel Rosen th al, 19 8 7.
Soz in h a e m ce n a, um m ús ico na lateral, Rac h el R osenthal se
Mi ch a el Fr ied afirmava e m 19 6 8, "o s ucesso, incl us ive a sob re - veste. E la p õe saia e pantalona uma por vez, e n fi a u rn vestido e
vida das ar tes, passo u a d e p e n d e r d e maneira crescente d e SU a p ega um a ces ta à medida que d esfilam na parede diapos itivos
fac uldade de pôr e m xeq ue o teatro" e acrescentava mais adiante: s ern o r ci e rn a p a r e n te, e rn que a par e c e rn ce n a s da cidade, do
"A a rte se d e g en e r a à medida que se aprox im a do te at ro : 'z P ode- ca m p o , do mar, d e pessoas que caminham , de c rianças q ue
mos nos perguntar sobre as razões dessa desco nfiança das artes, andam de bicicleta, de an imais enjau lados e tc. D u rante esse
e cump re en tender por ar te a s artes plás t icas, em r el a ç ã o ao te m p o ela fa la , e se d irige a uma mesa do la d o do pá t io em q ue
tea tro. Por q ue e s s a in q u ie t ação? Po r q u e tal r e cus a ? se en contra, e rn urn a tigela, u m a co uve - flor q ue e la começa
A desconfia n ça de Fried com res pei to ao t e a t r o de fa to a cortar com u m a faca, d e início com c a lm a e determ inação,
carrega consigo a recusa de certas noções fu n dame n tai s : a d e depo is cada vez mais corn violência, para aca ba r a r rancan do
teatra li dade e m primeiro lug a r (a performance não deve recor- as fo lhas, fazendo saltar por toda par te os ramos . D ura nte esse
rer ao teatral, que a faz soço brar n o exagero, n a rni se -ert -sc éne, tempo , profere com v iva intensidade u m d isc u rso so b re a ori -
no falso); a d e j o g o de a t uação e m segu ida (o p erform a d o r não gem d o céreb ro, sobre a s experiências a q ue são submet idos os
pode in te r p r eta r, s e não ele se in s tal a na me n ti ra, porquanto anima is, sobre s uas faculdades in tel e ctuais pessoais, sob re s uas
ele não é mais ele rnesrno ). Ora, interpretar implic a necessa- possi b ili dades, seus limites, s ua exploração, s ua u tili zaçã o p elos
ri ar n e n t e tornar-se outro, es tar à esc uta do o utro dentro de h omens. E q uanto mais fa la, rnais a couve- flor que ela man ipul a
s i; implic a r epr e s entaçã o enfim , n o ç ã o fu n d a men tal aqu i, na tor n a - s e o bsce n a sobre a rn e s a , asse melh a n d o- s e progressiva-
m edida em que a p erformance, d e sde s uas origens , qu e se tor- m ente ao se u c rân io calvo para terminar chocando -s e com ele.
n a ra m a g ora d ista n t e s , i n sistia no aspec to " p resença" d e t oda Ela se e rrrpa ntu r r a , come e fal a , fala e come; o a lim en to esco r re,
ma ni fes tação. O te m po a í se escoa e fet iv a me n te e os corpos tra ns bo r da, d eforma se u ros to; dep ois , voltan d o à calm a, ela
se trans for ma m d e m an e ir a irre v o g á vel. Os o bjetos vi aj a m , as ve m ao proscê n io e, com se us punhos nus , b ate v iole n tamen te
v id raças se qu ebrarn , as escadas caem; os a tos s ã o e fetivarnen te na ca beça e, de fr ente para o públic o , co m urn a v o z cada vez
p r ati cado s. ma is ro uca , e nro u q uec ida p elo s gritos, lan ç a à plateia "Eu n ã o
No e n tan to, um ráp ido p erc urso hi stórico n o s per m it iria so u nada, e u sou um a f raude, e u s o u um ninguém; e u n ã o sou
cons tata r q ue ta l desco n fia nça corn r e spe ito a o t eatr o é mais n ada , e u sou uma fra u de, e u sou um ningué m ': A p erforman ce
ve rbal d o q ue real e q ue, se a per fo r m an c e n a s c eu d a s ar tes to da cond uz a esse momen to d e g ra n de intensidade d e d enún -
plá stic a s e se e la se insc reve r e alm e nte na linhagem s urrealis ta c ia d e s i e m qu e , e m u m ges to d e oferenda ao públic o , a a tr iz
e dad aísta , se ela e ra profundamente nutrida pela a r te co ncei- perfo rrner se mortifi c a ver d a deir a men te .
t ual, p el a a r te mini m alista, pela body a rt, p elo h appen ing , pela O segun do exe m plo é me nos t eatral e repousa m a is so b re
pap art, e la n ã o cessou, no c u rso d e s ua e v o lução, d e produzir as m ídias .
o b ras qu e e u não d i r ia d e im ediato qu e são te atrai s , mas an tes
que nela s a teat ralidade n ã o es tá a use n te. B asta pe nsa r n a s p ri - A la s Cinco de la Ta rde, de Marie- Io Lafon t ai ne, 19 84 .
m eiras criações de C age , d e Kaprow e, mais p ró xima s d e nós, De co n for midade com se u hábito, M a rie -J o Lafontaine trabalh a
d e C h ris B urden, Lucile M e r cile , M arie C ho ui nar d, Meredit h cercan do-se d e r igorosas instalaç õ es d e vídeo e m que se des en-
lvlo nk, R o s e E ngl ish, Marie-[o Lafontaine o u Rachel Rosenthal. rolam cenas d e m orte infin it amente repe tid as. Na perfo rmance
que nos interess a , o es pectador está rodea do de u m a quinzena d e
2 M. Fr ieci, A r t and Object hood, e m G regory Battc o ck (ed.), Minimal Art: A Criticai
monitores dispostos em se m icír c u lo que difundem todos as mes -
A n thology, New Yor k : E. P. Dutton , 19 6 8 , p. ' 3 6 -14 2 . mas cenas: as de u m a corrida, entrecortada de cenas d e fIamenco .
A LÉ M DOS LL"II T ES : P ERF O RM AN C E E P ERI' ORM ATIVID ADE A PERfORMA N C E OU A R E C U SA D O T E AT RO
141

Mas as ce nas s ã o to d a s de fasadas uma s em relação às o utras, de essencial dessa perfonnance, antes meSI11 0 da decodifi cacão
tal rno d o qut:, a todo m orne nto, o espectador pode captar CO IU d a narrativa q ue se desenrola. O espectador é , pois, co lo c ~ d o
UDl lan ce de o lhos e de m an e ir a sim u ltâne a , ern c ada tu n a d as de pro nto e IU UI11 a p o s içã o voyeurista eI11 face de urna ação
telas, diferen tes morneritos da ação, per dendo nesse p r oce sso em p r o c e s s o e não em c u rso de apresentação. É a ssim que, na
s u a s refe rên cias temporais. C o rn o noto u Marie- [o Lafo ntai ne p e r fo r m an c e de Marie-Jo Lafontaine, a condução à morte do
por ocasião de urn a entrevista efet u a d a e I11 .19853: touro, re la ta da d e m a n e ir a ind ireta, em mú lt ip las telas, atrai
m ais a a ten ç ão so b re o modo de narração u tili za d o (tela) e sua
Quand o s e ralenta a im a ge m , c r ia -s e uma in t im id a d e com o o bje to [.. .] es trutura (red u n dânc ia d o fi lme) d o q ue sobre o ato mesmo q ue
Si mb ol ic ar n c nte, parece -n1e que a sed ução é sempre u rna execução de é contado (a morte d o t ouro ) , portanto, sobre o fa to d e que u m
mo rte i mise à mo rt). Acontece o mesmo com a dança r i na d o flam en co.
filme se d es enrola s o b os n o ss o s ol hos e q u e esse filme é u s a d o
Ela se o fe r e c e ao espec tador SeITI nada dar em t ro c a . E la tem um a r
ameaçador, provocador. E la provoca como o ma tador. É o d e s ej o do pelo p erfo rmacl or como um objeto com o qua l ele atua.
p úb lico qu e a impele.
E stá aí u rn a das p rim eira s c arac te ríst icas da p erfonn an c e :
Nos dois exernp los que a p r e s entam o s acim a, t ão diferentes a rec usa do sign o em prov eito d e urna Iuani p u lação d e o bje -
e m seu espí r ito c s uas apos tas, co mo apre ende r a teatralidade tos, a permitir o li am e com um real im e di a ta m ente o perató rio.
da p erfor m arice? O qu e c h arn a a ate nção desde logo, n a rnaior O p erformaclor não cons trói s ignos , ele faz. Ele é n a a ção, e
pa r te das pe rforrri ances, e p arti cularmente naquela s que são o sentido em erge d o e nco nt ro de t o dos esses fa z eres . A s s irn,
a q u i des critas, é antes de tudo R~c hel Rosen tha l, ao golpear o crânio, no seu jogo de atua ç ão,
nao representa urna personagem, d o mesmo modo qu e n ão
U M A M I 5E-EN- 5 I T U A T I O N . Ass iste-se a í ao rec urso a certos ele- represen ta Rachel R o s en thal martelando -se a cabeça; su a a ção
men tos cê riicos, ali importados corno objetos e não como signos, é bem real e é p r e ci s o t o m á -Ia sem distância. A denún cia re side
e c u jo des lo c a me n t o já é portador d e s entido. Esses o bjetos são aí na r e alid a d e d e tal v iol ência: v iolê n c ia d o g esto, viol ên cia do
pos tos ern relação un s c om os o u t ros de ma neira a interagir verbo, "E u so u u m ningu ém': Toda a força da p erforman ce está
prirneiro e ntr e s i, d epois co rn o p erformador e, enfim , com o nessa convicção que ela c o n seg ue insuflar n o espec tador. N ã o!
espec ta dor. D ess a interação nasce a d inâmica da p erformance. Ela não r epresenta. N ó s estamos na imediatidade d a ação! N ós
Ta is objc tos e stã o raram ente e m repres entação e não é seu valor estan::os aqui no domínio d o s éri o. N a da é fictíci o. Os o bjetos,
s imbólico que const itu i s ua importância, mas a n tes a ação q u e os as aço es, os seres, o tempo m esmo são r eais .
in tegra, p o is esses o b j e tos s ão tomados por um fa zer que lhes dá A s it u a ção é, p ois , d ada d e pronto: um p erformer e m u m
sen t ido, do mesmo modo como dá sentido à performance to da. zoológico (Al berto Vidal), e n cerra d o c om coiote s, (Joseph
Assim , na per fo r m.a nce de Rach eis Brain , a couve-flor est á ali Beuys) , ro deado de objetos que ele vai desl o c ar um a um, blo-
corno que remeten d o a s i própria e não à catego ria couve-flor. ~ueado a t,rás d e vidraças d as quais vai procurar s a ir. A s it uação
Ela não é sign o d e o u t r a co isa. Igualmente, na p erformance d e e dada; s o resta des cobrir a ação; mas bem d epre s s a el a ser á
lVIarie-Jo Lafo n t a ine, o film e da corrid a de t ouro s, apresentado previsível. O cenário, muita s v e z e s mínim o (B a rb ie, d e Lu cille
p el o s mon ito res d e v ídeo , não r emete a qualquer denúncia Mercile, a E sca la Williams, d e Rob er R a cine ), é pos to n o lug ar
d o s combates d e t ouro, mas de fato à própria irnagern fílmica, desde o começo e in s tala-se urn a des c on struç ã o em que cad a
iInag em q ue é m u lt ip lic a d a, dessincronizada no trans curso gesto, cada objeto co n t a.
da perfo rmance. Essa dess incronização d a imagem é o pon to Não há a bem di zer s u r p resa, a p en a s um a espe ra m ai s o u
m en o s longa , c u r iosa , e a q ues tão : "O q ue ele es tá faze n do? Por
3 Art Press, n . 92 , May 1985 . que ele está fa z end o isso ? O q ue ele q uer d ize r ? A té o n de e le
1 --12
A Ll'OM D OS LIMITES : I'ERFORM A N C E E P E Rf O RM ATI VILJ AL>E A P E R FO R M A N C E ou A RE CUSA DO T E AT RO 14 3

po de rá ir ? Q ua n to tempo poderá ficar nisso?" e depois a inte r- o in s c re ve no real e in s t it u i e n t r e ambos uma p erm eabilidade
rogação a ng us tiada : "Por qu e estou aí ? Quanto tempo mi n h a q ue o teatro não autoriza. É aí onde a performance se separa
paciê nc ia vai a g ue n t a r? O qu e h á aí realme n te para se ver ?" d e n o v o do teatro.
A palavra imp o rtante aqui é "ver" Tudo se passa na perfo r- Porque difuso, e provindo do performador, que aí dispõe
mance ao nível do o lhar. Nós estamos no d omínio do especu lar suas leis, o espaço da performance a utoriza transgressões q ue
(e n ã o do espetac u lar) e da espe ra. E spe ra d o aco n teci me n to, o teatro não per m ite. Os tab us são fra n que ad o s , os in te r di tos
espera de ser imp regnado pela s coisas, espera q ue permi te aos d e r rub a d o s. Com efei to, na med ida em qu e o e n quadramen to
sen t idos, às se nsações, e n t ra r e m atividade, es pera s imples men te da p erfo r m a n c e é menos nít id o d o qu e o da cena, el e a u to r iza
qu e a q u ilo ac a be. O espec tado r n ão emba rca, o u rara m e nte o fa z. d e mo do be m part ic u la r a t ran sgre s s ã o d e uma d a s leis f u nda-
Ele n ã o se de ixa le v ar. Não h á aí efeito catár t ico como n o teatro, m e n tai s do teat ro, um a lei q ue e u c harnaria d e le i d a excl usão
m es m o n o s mom ento s d e ext re ma violência, p orque n ã o h á jogo do n ão re to rn o . T al lei , a p lic a da ao t e atro, imp õ e h abitu al m e nte
d e repres enta çã o propriamen te dito , porque não h á corpo lúdico, um a reversi b ili dade d o t erri p o e d o s a con tec i me n tos q ue s e
por érn um c orpo s ério a expe r irne n t a r se r iam e n te n o real. op õ e a to da mutilaçã o o u exe cuç ã o d e m orte (mise à m ort) d o
É qu e a p erfo rman c e , e a p erfo r m an c e medi átic a mais sujeito. São rec usadas corno n ã o p e r ten c ente s rn a is ao te a t r o
a in da d o qu e a te atral, pro cu r a pro v o c ar os se n t idos, a o pe- cen as d e fragm enta ç ã o d o corp o às quais cer tas p e rforman c es
ra r u ma di s s oluç ã o do s re fe re nciais h a bi tuais (e m r el a ç ã o a o d o s a n os d e 1960 recorre ra m: mutilaç ões verd a de iras e m cena,
es paço, ao t emp o, ao r e al). P a ra isso, ela instal a o e spe ctador assim co mo exec uções t e atralizadas dando m orte a anim ais
e m ce r t a receptividade. O r a , ela instala, ela não constrói, e é sacrificados (Hermann Nitsch) para o "p r a z e r " do p erfo rm er.
pre cisamente na m edida e m qu e tal r e c eptividade é uma ins - Tais ce n as no teatro rornp ern o contrato t ácito com o especta-
ta la ç ão e não uma construção qu e ela está condenada amiúde dor : o de assistir a um ato de representação inscrito e m uma
a perman e cer s u p e r fi c ia l, v is to que p assa pelos s e n t idos , logo temporalidade diferente daquel a d o c o t id ia n o em que o tempo
pelas se n s a ções , e que s e s it u a à flor da pele. E s s a é uma de é co m o que s uspe nso e, por a ssim dizer, reversível, que imp õ e
s uas diferen ç a s c o m o t eatro. Lá o n de o p erformador 'q u is c r ia r ao ator um retorno selnpre possível à sua posi ç ão d e p artida.
a lgo de n a ture z a d o a c onte cimento ( év énernentiel), el e só pôde O ra, atacando se u próprio c o r po, o ato r destrói as c o n d iç õ es
instal ar algo especular. da alteridade e faz s u rg ir o real l á onde o e spectador a creditava
Isso n o s co n d u z à seg u n d a ca rac terís ti ca da p erformanc e: o es tar a ilusão e a repre sent açã o . Mutilando -se, o p erformad or
en q ua d ra mento que ela subrnete à cena . A p alavra é imprópria . une - s e de n ovo ao real, e s e u a to, fora d as re g r as e dos c ódi-
Não h á ce na na p e rforman ce , m a s lu g ares. Na m edida , p ois, e m gos , não p ode mais s e r p erc ebid o como s ig n o , c o mo jogo de
qu e o lugar es tá prep arad o tendo e m vi sta uma aç ão, d á -se representação. O espaço do teatro viu -se aí dramaticamente
um e n q u a d r a m e n to espacial que s olicita o olhar do espectador. modificado . É que na performance n ão há jogo, nem r epre-
O e n q uad r a men to c r ia um e s paço, es paço d o es p ecu lar que se n t açã o, n ós j á o dissemos . Ora , se o e n q uad rame n to ao qual
r e cus a tornar- s e espe t a c u lar. a p erforman ce s u b m e te o espaço é impreciso, torna - s e t anto
Ao c r iar um espaço para s i, u m lu g ar pa ra s i, a performance m ais fá ci l transpor s eus limite s. Esses in te r d itos c o n s t it ue m
c ria ao rn e srn o t empo o esp aço d o o u t ro, o m eu, o do es pec t a - um d o s extremos da p erformance. S e a teatralidade do a con -
d or, e p aradoxalm ente e sta belece a b a s e d e toda teatralidade. tecim ento p ermanece sem p r e lá , o teatro , quanto a ele, es t á
El a p e rm it e que a alterid ad e d e um s uje ito a í se ins c r e v a . E la definitiv amente banido d ali ' .
cria um a cl ivagem es p a c ial cuj o s limite s, c u jas fr a n jas, c u j as
margens querem ser t ã o pouco marcadas quanto possível, tão
J. éãt re ch erche s u r la es p é c ifi té langage Po etiq u e ,
pouco co nstra ngedoras q uan to possível. De fato, ta l espaço, ela
4 C t. F é ral , Tb r a lit é , d u th é á t r al ,

Pari s . a u to m rie 1988 .


144 AL BM DOS LIMIT E S: P ER FORM A N CE E PE R I' O RMATI VI D ADE A I' E RF OR,v! A N C E OU A R E C U S A D O T E1\TRO
14 5

Tal transgressão reves ti a outrora a forma de um atenta do 1\I1as ess es corpos não são insensíveis, lon ge di sso. Ele s são
ao corpo do performer. Hoje, essas for mas de mutilaçã o um a medida d e todas as co is as e podem s er agredidos. O rl a n , per-
t an to exibicion is tas d e s ap a r e c e r a m. Elas fora m s ubst ituídas [orrner francesa s, definia a performance como "o mom ento em
po r u m a v io lê nc ia di ferida qu e as diversas tecnologias intro- q ue o corpo se põe em situação de ser agredido': Essa d efinição
duzem sem d istância sob o o lhar do espectador: guerras, p a re ce muito justa. A performance teatral foi , no seu s inícios,
tourada, e statelame n to de avião, destruição de irn óveis , a ldeias e co n t in u a a ser, errrb o ra de rri a rie ir-a diferente, um lugar em
arrasadas po r b orn b a rd e i o, corpos ru ort o s, d.esrn errib rad os, qu e o pcrforrriador se deixa rriarcar pelos obje tos, pela matéria,
q ue imados etc. p elos seres, pelas s ituações, pela sociedade, pelos acontecimen-
A tecnologia, e os rec u rsos à imagem q ue ela p erm it e , to s, pelas sensações, pelos espectadores, po rtanto por todas as
autoriza, assirn, a deita r o o lhar sobre o que ser ia, ern o u t ras fo r mas q ue a a lteridade pode revestir. Ta l a lteri dade, ele assume
circunstâncias, o bsce no. E la coloca face a face o espec tador e o seu peso, ele a toma sobre si, ele a ex perimen ta, e le a analisa,
o real, mas um rea l qu e só pode ser a preend ido p o r diversas a d es co n s trói e a d ispe nsa co mo for ma a r tís t ica . É assim q ue
mediações, por meio d e to d a uma a parelhagem (v ídeo, tel evis ão, el e se p õ e e m es tado de v ulnerabi lidade (Ro ber Raci ne e m s ua
câmera e tc.) e m que s u a realidade rriesrna se per de e m proveito Esca la W ill ia ms; Marina .Ab r arn ov i ó, nua à porta d a ga leria;
d e urna tecnolog ia da q ual o espectador capta todo o poder. Se rv ie Jansen ( 1981), atrás de s ua vidraça , q ue um espectador
Nessa transfe rênc ia d o real p a r a a máq u ina, a performance exasperado irá qu e b r ar, ferin do-o li g e ir am ente.
p erde u m a is d o que o jogo d a il u s ã o . E la perde u s ua relação N e ss a ação, o perfo r rne r mede se us lim-ite s e i n s cr e v e o
c o m o próprio corpo. Essa será a tercei ra c a r a c te rís t ic a que corpo nas c o is as. Tudo passa p el o filtro de seu cor po, d e s e u
es ru darernos. Ela versa sobre a prevalência do corp o . Se a impor- olhar, de sua rnedrda ( é o e x e m p lo de Orlan, deitado so b r e
tância do cor p o é sempre reafirmada pela performance tea t r al, as lajes de urn antigo claustro, que m ede o Museu São Pedro,
tal importância se perde, todavia, na performance tecn ológica, museu d os b en editinos que d a t a d o séc u lo XVII, e av alia seu
o c o r po do p erform er c edendo lugar a uma relação mais ce re - tamanho tomando seu próprio corp o como pad rã o de m edida ) .
bral e ntre o e u do p erform er e a m áquin a pela qual el e se me d e. To da p e r fonn an ce gira assi m e m tor no d o corpo, toman do-
Nas p erformance s t eatrai s, a fo rça des se c o r p o é gran de, - o c omo s ujei to o u corno o b jeto d e exp lo r ação; serv indo-se
pois e le é m ovido pelos afeto s, d e s ejos, l ib ido e pelas sens a- dele como de urna ferrament a , e insc reve n do o hu m an o n as
ções d o perfo r rn a dor, O r a , os corpos d o s perfo r madores estão co isas a té os limites do p o ss ível: É o caso p o r exemplo d o a rtis ta
pre s entes , i n t e iro s , uno s. T u do p assa por e les. E é sob re se u C h r is to em b a lan do e m P a ris a P onte Nova; é o de A lberto V idal
rno virn eri to unicamente que r e po usa a d inâm ica d a r ep r e sen- Be uys e ncerran do-se no zoológico e c o n v id a ndo o público a
t aç ã o. M a s esses corpo s n ão atuam, eles n ã o t êm dupl o, n em olhá -lo corno a um an im al bizarro, a mesmo título qu e os urs o s
parado x o . E les não são c orpos de ata r e s e m luta CO IU uma ou os pinguins e m suas j aulas; e ra o que Joseph Beuys j á faz ia
a lte ridade . E le s n ã o são t omado s p el o jogo d o n ã o - e u e do e m se us início s, fecha n do -se em um a j a u la du rante d ias c on1
não-não-eu do a to r d o q ual fa la Richa r d Schech n e r a propó sito co io tes; é tarnbém o de C h r is B u r den correndo o r isco de ser
do come d ia nte , ao .m e s rn o ternpo a tar e perso nageIu. Os co r- ele t roc u tado e le v an d o os e spec tadores benevo lentes nessa
pos d o p erformador são c orp o s de domínio de s i que filtra m v ia g e m ao p e ri g o.
o re a l. É p o r m eio dele s que a p e r fo r m a n c e se d á; ele s são os A lé m d o a nedótico, d a situa ç ão d ivert id a, além d o jogo c om
m oto r e s i n d is p e ns áve is d a a ç ã o. Pois t ais corpos em cena rea- o p erigo, d o d e s ej o d e implic a r um público semp re im p ass íve l
li z am, colocam a ções, d e s lo c a m coisas, emitem e ne rg ia, m as
jamais se im p licam ao nível das emoções . Eles filtram o rnu ndo 5 O rg a n izado ra d e um s i m pós io intern acional s o b re a perforrn anc e e m Lyon , e m
e projetam imag e n s . '979 e 19 8 1. C r ia d o ra . e m 19 79 , d a A s so cia tion Corn po rte me n t, Environn em ent,
Perfor rnan c e .
ALEM DOS LI MI T E S: PERI'ORMAN CE E P E R F O R M ATI VI D A D E A PERFORMA N CE O U A R ECU SA DO TEATRO 14 7
146

e se m p re voye u r passi vo . al ém mes m o d o des ej o d e in te r ro gar fabrica e não se deixa habitar por nen h um outro. Sempre só,
a t ravés d e s i o p ap el d a arte e d o es p ec t a d o r, a lé m do d e s ej o d e filtra o mundo através de si. É dele q ue pa rte toda palavra, to do
tran s gredir tabus a fim d e fa z er c o m que transgridam o p r óprio ges to. É a ele q ue e la re torna. E se n e ss e p erc urs o , nessa palavra
públi co que rriede assi m n o s d edo s s e u s próprio s inte rdit o s, a o u nesse fazer, ele encontra o ou t ro espectador e a alteridade
perfo n n a nce a p a rece co rno a a r te do e u , uma arte e m que s e d e se u olhar, se u procedimento se e s pec ulariza, se teatraliza
ex p ri me um a força rn u ito g rande d e e n u n c ia ç ão, um m im eu a p onto de q ue esse olhar importa o t e a t r a l lá o nde e le não
( moi je ) qu e reduz tudo a el e e ele m e smo filtra o rnu n d o " . Mi rn deveri a reg is tra r se não u m faze r. É o olhar d o es pectado r que
e u fa lo, e u vejo, e u dig o , e u faço , e u desloco, e u me ço, e u cons- faz n a s c e r a t e a tra li d a d e da perfo r man ce lá onde h a via a pe nas
t ru o , e u d e struo, e u produzo e e u produzo s e n t id o. Por isso o o espec u lar. A arte da p erfor m an c e d e veri a , p o rt anto , ler- s e
performer reduz tudo a e le. E le está, pois, no m ai s da s ve ze s só. e m prirn ei ro g ra u.
C o m e fe it o , o p erformador e stá, amiúde, sen ão se In p re , Ta l te n dênc ia à tea t ral ida de que se en c ont r a e m ce rtas p e r -
s o z in h o em cena. Ele fa la de tudo através dele , através de s e u s formanc es, junto com essa d esc onfiança d o p erform er a respeito
atas, através da instalação que ele fez, da situação que ele armou do teatro, ex p lica sem dú vida por qu e, na s performan ces ví deo,
ou da experimentação que ele tenta. Abraham Moles falava, a o c o r p o foi fago citado, abs orvido, devorado p ela máquin a.
esse propósito, de " ria r c is isrno ativo'" ; Há na p erformance esse M ai s próximo da body art dos ano s de 197 0, as p erfor-
chamado do olhar do outro para si e para si só. man ces uni camente corporais c e de ra m lugar às p erfonnanc e s
É aí que a performance teatral deriva para longe d o tea- m ai s tecnológicas . E s e a re la ç ão com o corpo subsiste apesar
tro. É q ue o performer não representa. Ele é. Ele é isso que de tudo, e la não tern mais a mesma coloração, ne m a rriesrna
ele aprese nta. Ele não é nunca uma personagem. Ele é sempre intensidade. É que a s apostas, elas mesmas, mudaram . Lá onde,
ele próprio, mas em situação. Ele fabrica signos brutos sem nos anos de 19 70, as ideologias permaneciam fortes, lá onde
mediações. Nós estamos no domínio do um . O perfonnador a arte estava engajada e lá onde o perigo para o p erformador
não tem duplo . Ele não é o lugar de nenhuma emoçã o. Ele se medi a como um atentado a o corpo ameaçado de mutil ação
pern1anece um olhar que observa, urri to car que apalpa , um e d e morte - uma das provas do engajamento do p erform er e
gesto que faz. Em outras palavras, ele é sensação e não emoção. da seri edade de sua a r t e e ra esse jogo que ele instituía com o
Ele joga (representa) c o rn seus sentidos e não com seu co r a ç ã o. perigo - o perigo com o qual se mede o perform er de hoj e não
E le recusa toda interioridade. Ele é na unicidade da m atéria, é mai s o perigo físico , mas o que s e poderia denominar um a
na imediatidade do fazer, na urgência da experiência, lá o n d e viol ên cia branda (como se fala d e terapias branda s ). Não é mais
o ator é na urgência de um estado. seu c o r p o fí sico que e s tá ameaçado. Ele não c orre o risco nem
O performer não tem estado (ou então ele não os projeta) . de mutilação, nem de morte. O perigo para ele é um desapare -
E le não tem interioridade. Ele é (está) todo em superfície. Ele c im e n to na matéria, uma dissolução no vazio da máquina. As
apostas disso s ã o meno s grave s fisicamente, porém seus e feitos
6 E m Jorg e G lusbe rg. A A rte da Pe rforman ce, 2 ed .• São P a ul o : Pe r sp ectiv a . 2009 · s ã o muito mais perigosos
E le n ot a tamb ém "A perfo r ma nce d o b o dy art situa -se n o u n iv e r so d a s fracas
d en s id ades : fr a ca d ensidade d e a tos, fraca d ensidade d e gestos . fr aca d e n s id a d e
O performador reconhece tal perigo e faz uso dele. El e o
d e realiza çã o . N isso. e le d e cep ci o n a p erpetuamente c o mo um a es péc ie d e regra denuncia e é, no entanto, seduzido por ele. Utiliza o seu corpo
d o jogo que é pre ci s o a ceita r ; o espec tado r. a q u e le que vai lá p ara ver. n ão es pera para produzi-lo. Seu corpo se tornou aí, ele mesmo, máquina
ce r tamen te a plen itude . m a s a n te s o j ardim d e p edregulhos redond o s qu e o ze n
budi st a co n te m p la. Ele d e ve se d ar ao trab alho. à ascese, de ap reender os m icro-
de produzir, manipulando as mídias e deixando -se manipular
aco n tec ime n tos em u m re lat ivo deserto tem p o r al o u o long o resu ltado em um a por elas . D e s s e encontro , o c orpo emerge co m o imagem e
perfor mance ri t ualizada." co mo ilus ã o , CO ITlO frag rne ritos e s u p erfí c ie; se m espess u ra e
A expressão moi je é in t rad uzíve l; ma n teve - se pa ra ass i na lar o jogo de relações
n o ego d o s ujei to. (N. da E .) .
se rn r isco.
148 AL ÉM D O S 1.1.\ 11'[ E S : P E R FO R M A N C E E PERFORMATI V[D ADE
2. Performance e T e a tralida de:
Met áfora do m undo e rn que vivemos, o p erformer perdeu seu
co r p o e rn proveito da rn áquiria, d e urna rn úqu iri a que o perse- O Sujeito Desmi stificado'
g ue, o o bseda e su bsti tui a ele. A rn áqu in a tornou -se o se u duplo,
máquina que lhe d e volve sua irnagern co rno estran heza. Nessa
dissolução de s i mesmo, ele encon trou, no entanto, o domínio de si.
Pois é e le quem manipula a m áquina e a faz e x is t ir ; a í está
seu paradoxo. Ele joga com a dissolução de s e u próprio se r j us-
tamente pela mesma razão que joga com a dissolução do rea l.
Evacuando os r e fe re n c ia is es paciais e temporais, ele s u bs t itu i
os referenciais po r urna estr u tura m id i át ica cm que seus se n t i-
dos são s o li c it a d o s e desconce r tados (caso de A las Cin co de la
Tarde). O próprio real é aboli do. Só subsiste para o espectado r
u m a impressão si nestésica ern q u e suas sensações são chamadas
e não suas emoções. Com efe ito, a rn áq u iria incita a u m inves-
tim e n to em níve l da p e r c e p ç ã o e n ão em nível do d e s ej o , d a
li b id o . As imagens se suc e d e m d e mas iad o rápido para q u e uma
teatralidade se ins tale. O espec u lar prevalece sobre o teatral. H á
n ess e arranjo d a s ima g e n s veic u ladas p ela t é c nica al guma co is a
d e v o lun t a r ista . O perfo r mer, m esmo sendo o m ediador indis -
Segu n do o s m e st res d o pen sarne n t o c h inês , duas tend ência s
pe nsável d ess a est r u t u ra, passa ao s egundo plano. É ultrapa ssado
co m part ilh a m h oj e o t e a tro , t endência s qu e s u b li n h a rei aqui ,
p elo poder de evo c a ção e d e a c ele ração fabul o s o s d a m áquina
retomando um a refle xão q ue A n ne tte Mi chelson fez acerca das
q ue el e t em en tre a s m ã o s. N ã o h á m ais limite s ao s e u poder,
artes d o es petác u lo e q ue me p a r e c e m u ito p e r tin ente a o m eu
se não aq ueles d a s ua i maginação. E le conseg ue cria r o real?
pro pós ito ( 1974) :
A perfor mance aparece ass im como o lugar em q ue 6
performer d igere o real e o refle te n o s do is sen ti d os d o term o
Há na renovação co ntempor ân ea dos modos de r e pres e n ta ç ã o ,
( re fle xã o ; reflexo). As referências temporais desapareceram pela dois movirnerrtos de base divergentes que modelarn e an irn a rn s uas
mesma razão que as referências espacia is. Os gestos reais s u bs- p rin cip ai s in o v a ç õ e s. O p rimeiro, a ncora do n o s p ro longamen tos
tituí ram os ges tos apr end id o s, d enuncian d o estes ú ltimo s (por ideal is tas de um pas s a d o cristão, é mit op o éti c o , p o r s uas as p i rações
exem p lo, Ba rb ie d e Lu cile Me rc ile). A per fo rmance instituiu s u a e clé ticas , por s uas fo r mas, e é co ns ta n te m e n te a t r avessa do p el o est ilo
p rópria tempo r a li dade, s uas p róprias ima g e n s , d e fin indo o que domi na n te e p oli m orfo que const it ui o ves tígio m a is tena z d o passado:
o expression ismo. Seus porta -vozes s ã o : para o te at ro , Artaud e Gro-
Lyotard denom ina " u m a esté tica da d ispe rsão".
towski; p ara o ci n crna, Murnau e Brakhage; para a dança, Wigman
Diante dessas imagens múlt iplas coloca -se a q uestão: onde e Graharn , O s eg u n d o , consequentemente profano no seu engaja -
se detém a imagem e onde começa o rea l? Onde termina o real men to na objet ificação, pro cede elo cubismo e elo construtivismo;
e onde começa a verdade da o b ra artíst ica? s uas a bor dagens são a nalíticas e se us po r ta -vozes são: M e ie r h olel e

T rad. [. Guinsburg
Publi c ad o p el a prim eira ve z em M o d er n D ra m a. v. 2 5. p . 170- 18 1. mar. 1982. E le
foi r ep rod u zid o a s e g u ir e m fr an c ês e m ). F éral , Je a n n e tt e Laillou Sa van a (e d .) ,
7 C f J. F éra l, La Pe r fonn anc e e t les média : C Uti l izat ion d e l'irn a ge , em C l. Sc h u rn-
Th é àtralit é, écr it ure c t m ise e n scé ne, Montréa l: Hi'vlll, 19 85 ; depois e m T i m othy
acher ( e d.), 40 <m s d e mise e ll sc êne: 1945 -1985 . Du n d ee: Lo c hee Publica tio ns , '985 .
Mur r a y (ed. ) . Mi m esi s, M a so chis m a n d M im e , Det ro it : U n ive rs ity of !vlic h ig a n
p. 2 6 3 - 27 6 .
Pre s s , ' 9 9 7. p . 289 -3 ° 0 .
ALÉM DOS LI M IT ES : PERFORMANCE E PERFORMAT IVIDADE P ERFORMAN CE E T E AT RA Ll D A DE: O SU J EITO D ESMI STI FI CA DO 151
ISO

Bre cht , pa ra o t eat ro ; Eiscnstcin e S n o w, para o c i ne m a e, p ara a dança. e indis p ens á v el de to do ato performativo, e, de outro, da mani-
C u n n in g ha nl e R a i n e r." pul a ç ã o d o espaço que o perform ador esvaz ia para d ecupá- Io
e habitá-l o e rn suas rneri o res o ndulaçõ es e reca ntos, e en fim d a
Se m querer repor em discussão ess a clas sificação e a parte rela ç ã o q u e a p erform a n c e instit u i e n t re o art ista e os especta-
in s u fici ente qu e el a reserva a h o rn eris d e teatro C0l110 Gor do n dore s , o es p ectado res e a obra de a r te, a ob ra de a rte e o a rt is ta .
Craig o u A p p ia, ou a práticas teatr ais tão diversificada s c om o a. Ma n ip ula ç ão do corpo em p rimeiro lugar. A per fo r ma nce
a s do te a t r o d e g u e rr ilh a de A u g u sto Boal, ou prática s teatrais qu e r ser uma r e ali zaç ã o f ís ica, po r iss o o perform er trab alh a
tão diversifi cadas quanto as experi ências teatrais d e André c o m seu c o rp o c o mo o pin to r co m s u a te la . E le o e xplora , o
Ben edetto, de Ariane Mnouchkine, do T eatro Nacional de manipula , o pinta, o c o b re, o d esc o b re, () im obili za, o d eslo ca,
E s t r as b u rgo, da San Francisco Mim e Troupe o u dos M abu o is ola , lh e fala co m o um o bjero qu e lh e é es t ran h o . Co r p o
M i ries e tc . Eu gostaria, entretanto , de re to má- Ia p or rn i n ha c a ma leão, c o r p o es t r a n h o so b re o qual afl oram os d e s ej o s e o s
conta , pois ela me parece dar c o n t a d o fen ôm en o da perfor- recalqu e s do s u j e i to. É a expe r iê nc ia de He r rna rm Nítsch, d e
man ce tal co m o ele s e man ifcsta n o s Estados Unidos e na Vito Acc on ci, de Eli zabeth C h itty. Recus a d e tod a ilusão, e d a
Europa desd e os anos de 1920. ilus ã o te atral e m particular, que p r o c e de d e uma r e p ress ão d o s
H erdada das práticas surrealistas dos anos de 1920, como valore s "baixos" do c o r po, d o r osto, da mími ca gestual, da v o z,
RoseLe e G o ld b e r g mostrou em seu livro Perform an ce>; a p er- que e scapariam à observaçã o normal. Daí o re c u rso às diferentes
forman ce artística conheceu urn grande surto nos anos de 1950, m íd ias (teleobjetiva, máquina fotográfica, câm e ra, tela-vídeo,
sobretudo a partir das experiências de Allan Kaprowe de Cage. televisão) como outros tantos microscópios destinados a aurneri -
Considerada uma forrna de arte no cruzamento de outras dife- tar o infinitamente pequeno e a focalizar a atenção do público
rentes práticas significantes tão diversificadas C0l110 a dança, em e s p a ç o s restritos arbitra riamente recortados pelo desejo do
a rn úsica, a pintura, a arquitetura, a escultura, a perforrnarice performador que os transforma em espaços imaginários, zona
parece corresponder paradoxalmente em todos os pontos a esse de passagem de seus fluxos e de seus fantasma s. Tais espaços
novo teatro que Artaud invocava: teatro da c r u eld a d e e da vio - físicos podem ser c ertas partes do próprio corpo do perfor-
lên cia, teatro do corpo e de sua pulsão, teatro do deslocamento rn er (ponto de pele, mão, c a b e ç a etc.), aumentados ao infinito,
e da "d is r upç ão", teatro não narrativo e não representacional. É mas também po dern ser c e r t o s espaços naturai s arbitraria -
essa experiência de UI11 novo gênero que eu gostaria de analisar mente limitados que o performador escolh e para e m p a c o t a r
aqui para revelar suas características fundamentais, assim como e reduzir assim as dimensões de um objeto manipulável (por
seus processos de funcionamento. Meu objetivo último é o de exemplo, as experiências de Christo nesse domínio. Christo
rnostrar o que tais práticas, nos Iirn ites do teatro, nos dizem da isola, empacotando-os em seu contexto natural, falésias ou imó -
teatralidade e de sua relação COI11 o ator e a cena. veis inteiros, sublinhando assim seu gigantismo ao negá-lo por
Entre as múltiplas características que rnarcarn a perfor- seu p roced irnento mesmo, tornando -os estranhos ao conjunto
mance, s a li e n t a r e i três que colocam, para além da diversidade natural de onde ele os ext ra i -}.
das práticas e dos 1110dos, fundamentos essenciais de toda É a mise -en-scene de um corpo parcelar, fragmentado e,
perforrnance, Trata-se, de UI11 lado, da manipulação à qual a no entanto, um corpo percebido e apresentado como lugar do
perforrnance submete o corpo do performer, e lem e n to fundador desejo, lugar de deslocame nto e de flutuações. Um corpo que
a perforrnarice considera como repr irrudo e que ela tenta liber-
2 An nette M íchelson. Yvonne Ra írier, Pa r te I: The Dance r and the Dance. Artfo rurn, tar, ainda que ao preço das maiores violências. Daí as cenas
)an . 1974, p . 57
3 RoseLee Goldberg , Performance , Li v e Art, '909 to the Present , New York: H arr y 4 Ver ilustrações em Lu cia no In g a - P ín , Pe rformances: Happeninos, A ctions, Evertts,
N . Ab rams, 1979 . A ctivities, l nstalla tions , Paclova: Mast rog iacorno, 1970. foto 4 8 .
ALlôM DOS UMIT E S: P ERFORMAN C E E P ERF ORMAT IVID A DE P ER F ORM A N C E E TEATRALIDADE: O SUJE ITO DESM IS T IF ICADO 153
15 2

vol untar iarnente provocantes em q u e Vito Acconci joga em folia - outras formas d e v o l t a à origem - m a s na morte. A
cena com os diverso s produtos de seu corpo. Ta is rnan ifesta- pe rforman ce c o m o fenômeno é trabalhada pela pulsão de
ções, trazidas mais ou menos violentame nte à superfície pelo morte . A ligação não é fortuit a, m a s se baseia em toda uma
perform er , são ofertadas aos olhares d o o utro, dos o utros, a fim p r á t ic a consciente, deliberadamente c o n s e n t id a ; prát ic a do
de submetê-los a uma ve r i fic a ç ã o coletiva. Urna vez efetuada corpo ferido, desmembrado, mutilado , recortado (ainda que
essa exp loração do c orp o , e mesmo do sujeito, u rna vez postos seja pela câmera: c a s o de D em o Model de El iz a b e t h C h itty)
à luz certos recalques, representadas certas objetividades, elas q ue provém de u m " Ies ion isrno" ass um ido).
ficam en tão petrificadas sob o olhar do espectador q ue s e apro - Cortar o corpo, não para negá -lo, mas para fazê - lo revi ver
pria deles como modos de saber, deixando assim o performado r ern cada uma de suas partes, cada uma delas co nvertida em
livre para novos atas e novas pe rfo n nances . u m todo . (P rocedi mento id ê n t ic o ao d e B u riue l, ao fazer com
Daí o c a r á te r in suportável de certas perfo rnlances, como qu e u rna de s uas personagens fos se representada, e m Um C ã o
a de He rma n n Nitsch, que su bme tem à violência não só o A ndaluz, corn u ma das m ã o s rnut la d as so b re a calçada ern
í

performer ( t rata -se, no se u caso, de uma v io lê ncia co nse n tida ), m ei o à c i rc u lação d e tra n s e unt e s ) . Em vez de se atrofiar, o
mas ainda o espectador, que é impor tu nado com imagens que corpo se en r iq u e c e assim com todos e sses objetos parciais e o
o v io larn c o v io le n t a m a u m só te rn po >. O es pectador tcrn a s ujei to a prende a d e s c ob r i r a riq ueza no seio da pe rfo r m a nce.
impressão de pa rticipar de u m r ito n o qual se co mbina m todas O ra, o p erf orm e r p r ivi leg ia e e ngrossa t ais o bjetos pa rciais ao
as transgressões p ossíveis: sex uais, fís icas, reais e cê nicas, r ito es t u da r se u fu nc io namento e se us mecan ismos e exp lo ra suas
q ue leva o p erform er a o s lirn it.e s do suj eito const ituído c omo partes baixas, oferecendo assirn ao o lhar do s e spe ctadore s a
e n t id a de e qu e t e nta e xpl o rar, a partir de s e u "s i m bóli c o", a experiên cia in vi tro e e m c â mer a lenta do que se p a s s a h ab i-
fa ce oc u l t a d o qu e o c onstitui com o s uj e ito unifi cado, isto tualm ente n a c ena.
é, um a "s e m ió tica", e s tes ch o ra que o ob s edam 6 • Mas n ão se b . Manipulação do corpo e m primeiro lu g a r e manipulaçã o
trata aq ui de modo a lg urn, como a fi r mava K r iste v a a p r o p ó - d o espaço em segu ida , e n tre os d ois aparece um a id enti d a d e d e
s i to d e Art a u d, d e u m a vo lt a ao co r po m a te rn o "esquizado" funci onamento qu e faz co m q ue o perforrner a t r a vesse esses
e m u do, rnas, ao c ontrário , d e m archa para f re n te r u rri o à lugare s se m j amai s s e im ob il iz ar d e finit iv am en t e. A í recor-
dissolução d o suj ei t o , não n a exp losão, n a d is p e r s ã o o u n a t ando espaços im a gin ári o s ou re a is (é o caso de R ed Tapes,
d e Vito Accon c i), ora ern um o ra e m o u t ro , ele n ã o se insta la
5 O s espe tác u los d e H ermann N i tsc h, a r t is ta de n ac ionalidade austríac a. inspiram -s e nunca n o seio d esse s espaços - ao m e smo ternpo físicos e ima -
e rn antigo s rit o s di onisí acos e c ris tãos adaptado s a um co n tex to m oderno, co ns i-
d erad o co mo c a p azes d e fo r necer a ilustração pra gmática da noção aristotéli ca de g inários - mas os p erc o rre, os exp lora e os mede, aí o perando
c a ta rse p elo vi és do medo. do terror ou da compaixão. Suas Org ias . Mistérios. Teatro deslocam ento s e ín fi rn as vari açõ es . E le n ão s e inv e ste nel e s ,
foram a p r ese n tad as em múltiplas r eprises nos a n o s de t970. Uma p erformance
ass i m co mo não se lirn it a a e les, j o gan d o co m o esp aço da
típica durava vári a s horas. começava por uma música muito forte. d epoi s H ermann
Nit s ch dava ordens para q ue a c erimônia s e in ic ia ss e . Conduziam então p or e n t re performanc e como um o bje to, trans formando - o em m á qu in a
o s a ss istentes um cord e ir o degolado. c rucificavam sua ca rc aça. e s vaziavam -no de "q ue age sobre os ó rgãos se nso r ia is"". A s si m como o co rpo, o
s u as tr ipa s que e r a m despej adas (co m o sa n g u e ) s o b re u ma mulh er o u um h omem
es paço torn a - s e existencial a ponto d e v ir a ser inexistente como
nus d ebai xo do animal. U ma tal prá ti c a tinha s u a origem na c onvi cção es posada p or
Hermann N itsch de que o s instintos agressivos da h umanidade haviam s id o repri- q uadro e como lugar. E le n ão rodei a , n ão ce rca a p e rforrn a ri c e ,
mido s p elas mídias . A té o ritua l de levar o s animai s à morte. tã o comum nos povos porém , tal c o mo o co r po, faz p arte estreitamen te d el a ao p onto
primitivo s. h avia d e sapare cido totalm ente d a experiência do h omem m oderno . Por
iss o os atas rituais de Herm ann N its c h representam um meio d e d ar livre expansã o
de n ã o poder mais distinguir- s e d ela. E le é a p e r fo r m a n c e . Daí
a e s sa energia repr irn ida no hornem , ao mesmo tempo que se rv e m como at a s de
pur ific a çã o e d e redenç ã o p el o viés d o sofr ime n to. O o r ig i nal d e st e text o e ncon tra-se 7 O term o lesionism e n ã o p ossui e q u iva le n te ern fran cês e indica um a p rá tica qu e
e m R . Gold b erg. Perfo rrn a nces, p . 10 6 . Apre s entamos aqui um a traduç ã o . t ende a r epre s ent ar o c o r po n ã o co mo e n ti da de. c o mo un ida d e . ma s di vi dido
6 Julia Kristeva , La R évolution d u lang ag e po étiqu e , Paris: Se u i l, '974 · em part es . e m fragmento s . In ga -Pin. op. c i t ., p . 5.
154 AL F.M D O S LIMITES: P ERFORMA N C E E PERFORMAT IVI D AD E PERFO RMANC E E TEATRA LI DA DE : o SU JE IT O D E S M ISTIFICADO 15 5

a afirmação de que toda performance não é feita (e não po d e p o st a em cena, posta em jogo por um j o go de repetições livre -
se r feita) senão em e para um espaço dado ao qual é indiss o- m ente pretendidas e assurn idas. E s ta pulsão de morte, q ue
luvelmen te li g ada. fragmenta o corpo do sujeito e o leva a o p e r a r um certo número
No seio desse espaço conve rti do em lug ar de u ma travessia d e objetos parciais, reaparece ao te rrn o da perfo rmance e m
cio s uje ito, o pe r forma do r pare ce d e s ú b ito pô r-se a v iver e m s u a fix a ç ã o n a tel a -v íd e o . É, com efeito, i nte ressan te observar
m archa le n t a . O te m po se al onga, se dis solve à m.e d id a que os que toda p erfo rm an c e v o lta a encontra r e m se u últ im o grau
ges tos "d ilatados, r epetitivo s, exaspe rados" (L ucia no Ing a -Pin) a tel a - víd e o e m qu e o s u jeito desmist ificado se fixa e m orr e e
p are c e m uitas vezes m a t a r o t empo (por exemplo, a lentidão n a q ua l a p erfonna n c e r e en c on t r a a represen tação à q ual ela
qu a se insupo rtável d e certas experiê ncias d e Mich ael Snow) . qu eri a a tod o c us to escapa r e que consig na ao m e srn o tempo a
Gestos multiplicados ao in finit o , in finit amen te recomeçad o s s ua r e ali za ç ã o e o se u fim .
(caso de Red Tapes d e Vi to Acco nci) e se mpre diferen te s , des- c. Por esse fa to m e smo , (l relação do a r tis ta co m sua pró-
dobra dos por u m a c ãrne ra que os re gi stra e os reenvia e nq ua n to pria p erf o rm an ce não é m ais a do ator co m seu pap el , a i n da
eles o peram s ob os n o ssos o lhos n a ce na (por exe m p lo , Elizabeth que e sse último fo s s e o se u pró p rio , corno p r etendia o Liv ing.
Ch itty) . É a diferen ç a to rn ada p erc ept ív el. N ã o há aí, p o r con- Recu sando -s e a se r pro tagoni s ta , o perfo rmer n ã o apre s enta a
seg u inte, rie rn p a s s ado , riern fu t u ro, m a s um p rese n te co n t ín u o si mesmo, ass im co rno n ão s e re prese n ta. E le é antes fon te d e
qu e é o da im ediatidade das coisas, a de um a ação e m fa zim ento. produçã o , d e deslo camento . Co n vert ido no lugar de pass agem
Ta is ges tos a p a rece n l ao mesm o tempo como produto acab a d o de flu xo s energético s (ges t u a is, voca is, libidinais etc. ) que o
e corno e m c u r s o d e realização, e m movimento e j á terminados atravessam sem jamais se imobilizar em um sentido ou e m uma
( p o r exem p lo, a utilização da c â m e r a, da m áquina fotográfica), representação d ada, se u jogo d e a t uação é o d e fazer os fluxo s
g est os q ue r e velam se u rne can isrno profundo e que o p erformer operarem, captar a s rede s . Esses gesto s qu e e le executa n ã o
não e fet ua sen ão para descobrir as partes b aixas, semelhante desembocam em n ada a n ão se r nos flux o s d e desejo que o s p õ em
n isso à câme ra d e Michael Snow que filma se u próprio trip é. E em ação. Is s o é prov a rriais um a vez de que uma p erformanc e
esse ges to , a perforrnanc e o mostra , o mostra d e novo a ponto não quer di zer nada, que ela não v is a nenhum s entido preciso e
d e saturar corn ele o terrrp o, o e s paç o e a imag em e, à s v ezes até único, mas que ela procura antes revelar lugares de passagem , d e
à náusea, a fim de que não subsista mais do que o c in e t is m o do "r itm os': diria Foreman (trajet órí a do ges to , do co r p o, da câ rn e ra,
g esto qu ando desapare c e o s e n t id o , todo sen tid o. do olhar etc. ) e, a ssi m fa z endo, d e sp ertar o c o r p o, o do p er-
A p erformance corno aus ên c ia d e se n t ido. A afirmaç ã o é f orm er a s sí m corn o o d o e s pec ta do r, d a aneste si a am e a ç adora
d ecerto fá cil de sustentar por quem quer que ve n ha d o t eatro que os pers egu e.
(d a í a su r p resa e o furor d o público e m fac e das primeiras "e n ce- Parece-me que n ó s t rabalh amo s todos no nível do material,
naçõe s" do Livin g Th e atre, ou d e Wilson ou d e F o r e m a n ) . E, no arranjando -o d e novo a fim de qu e a p erformance daí resultante
e n ta n to , se há urna experiê ncia q ue fa ç a se n ti do, ela é s egura- reflita m ai s exa t a me n te n ão um a p erc epção do mundo, mas os
m ente a da perfo rmance . A p erforrnance n ã o v is a um se n t id o , ritmos de um mundo ideal d e a t iv idad e, refeito, para c heg a r
mas e la faz s entido, n a medida e m que trabalha precisamente melhor ao tip o de p ercepção que n ó s desejamos.
ness e s lugares de articulação e xtremamente frouxa de onde Nós apres entamos então ao público estranhos objetos que
a c a b a por e m e r g ir o sujeito. Nesse sentido, ela o questiona de não podem ser apreciados a não ser que o público esteja prepa-
n ovo e n q u a n t o sujeito constituído e enquanto s u j e ito s o cial, rado para adot ar novo s h ábitos d e percepção - h ábitos que se
p a ra d e sarticulá-lo , pa ra de sm ist ifi c á -lo . cho ca m com os qu e lhe foram e nsi nados n a s p erformances cl ás -
A pe r fo r mance como mor te do s uje ito. Fala mos h á pouco s icas a fim d e ser recompe nsado pelos prazeres espe rados. No
de puls ã o d e m o rte insc r ita na p e r for rn ari ce , volu n tariame n te qu e c oncerne às p erforman c es clássicas, o públic o des c obrirá
156 A LÉ M D O S LI M IT ES : P E R FO RM A N C E E PERFORJl,lATI V1D AD E PERFORMA N C E E T EA TRA LIDAD E: O SU J E ITO DES,'I.I1STIF ICA DO 15 7

que, s e p ermitir que sua a t e n çã o s eja co n d u z id a por um d esejo - na descri ção. T o c am o s a í em um proble m a id êntico ao q u e o
- p elos- d o c e s , infantil e retrógrado, o artista terá colocado ess es teatro d e nã o repre s en ta ção con hece : como fal ar de le sem traÍ -
d oces nos lu g a res estratégicos da peça em q ue a atenção ameaça -lo? Como expô-lo? E n t re descri ções de en c e n a çõ e s q ue fora m
a t in g ir seu apogeu s. efetuadas e m outros lugares o u qu e n ã o o s ã o mais e o d iscurs o
Daí esta "d e s a t e n ç ã o selet iva" de q ue fa lava R . Schechne r crítico e parcelar d o p e squisador, a e x periênc ia tea t ral es tá co n -
em Essays o n Perforrna nce Theo ry (E ns aios sobre a Teo ria da d e n a d a a escapar in ce ss antemen rc de toda ten t ati v a d e stinada a
Performarrce) ". O r a, não mais d o qu e o especta do r, o p erforrner exp licá -la exatamente. E m face d e ss e problema co ns t itu t ivo d e
s e i m p lica na performance. E le mantém sem pre u m d ireito de todo espetáculo, a p erforrnance d eu -se a s i m e sm a s u a própri a
olhar. E le é o ol ho, s u b s ti t u t o da câ mera que filma, congela o u m e m ó r ia. Por intermédi o do aparelh o de víde o n o qual toda
ral enta, operando d eslizamentos, superposições, ampliações pe rformance v a i p a rar, e la se d o tou assim d e u m passado .De
e m um es p aç o e em urn corpo convertidos em fer rame ntas de tud o o que foi dito a té agora acerca da p erform a n c e . p are c e
s u a própr ia exp lo ração. realmente que as relações entre o teatro e a p erformance s ejam
Ern n o s s o traba lho, o q ue é aprese n tado n e m sempre é, di fícei s de estabelec er. E a to mar por referênci a as declaraçõ es
todavia, o q ue é "a t r a e n t e" ( no rno rne rito em q ue u m a cois a é de certos performers, as relações parecem m esmo ser necessa -
atrae n te, ela faz referência ao p a s sad o e a um "gosto" h e r d ado ) , r iam ente relaçôes de excl u s ã o. Fried escreve a esse propósito :
mas a n tes o que até agora n ão foi a in da orga n izado e m gesta lte n "O t eat r o e a tea tra lidade es tão h o j e em dia e m g u e r r a, não
reco n hecíveis ; t u do o q ue a té a g ora "esca po u à a te nção". E a so men te com a p intura modern ista, mas com a arte corno tal _
te ntação co n t ra a qual n ó s lutamos to d os, c re io, é d e n o s tor- n a medida e m qu e as diferen tes a rtes podem ser descri tas co mo
narmos prernatu rarnerite " in ter essa dos" n o que d e s c ob rirno s 's. modernista s, c o m a se ns ib il ida de m ode r nis t a como tal': Fr ied
Sit uação t a nto ma is di fí c il para o es p ectador qu anto a pe r- art icu la t e s e e m d u a s propos ições:
for rn a rice, pres a e m uma sér ie p e rp étua d e transfo r m ações, co m
O sucesso, rn es m o a so brevivência d as artes, passo u a
1.
frequê ncia m ínima s , escapa a t odo for rnalisrno, Sem fo rma fixa ,
d epen d e r, de maneira c r e s c e n te , de pôr ern cheque o teat ro;
cada perfo r mance é assirn p ara s i rnes rna se u próprio gêner o
2. A ar te se d eg e n e r a à med ida q ue se aproxima do t e at ro " .
e cada a r t is ta lh e traz, c o n fo n ne s ua fo r mação e se us d e s e -
jos, nu anç as qu e lh e são próprias : as experiências d e Trish a Como exp lic a r, senão j us tifica r, t a l afi r mação? Se adm ite-se,
Brown tende r ão p ara a d anç a, a s d e Mareh Monk p ara a música seg u in do De rrida, q ue o teat ro n ã o pode escapar da rep resen -
enq uan to a lgu rnas terão p rope nsão, a d esp eito d el a s p r ó p ria s, ta ção e que esta ú lt ima o a liena e o mina; se admite -se t a m b é m
para o teatro, co rno é o caso d e R ed Tapes, d e V ito Acco ricí, que o te a t r o não p o d e escapar to talme nte à n arratividade (todas
o u Down i n the R ec R o am , de M ic hael Sm it h , revelan do q u e é as exp e r iê ncias t e a t r ai s at ua is o provam, com exceção, as de
difícil falar d a p erfo rm anc e . É o que r e velam , ali á s , as div e rs a s Wilson o u d e Forernan ta lvez, m a s aí n ó s já estamos d o lado
pesqu isas sobre o t e m a , as qu ai s to ma m a fo r ma d e á lb u ns d a perfor m an c e ) , então parece evidente qu e t eatro e ar te são
de fotografias a o fe rece r os traços fixos d e p erforman c e s para inco m pat íveis . " N o teatro , toda form.a, tão logo nasci da, já é
sempre desaparec idas, ao p a s s o que o s dis curs o s c r íticos, que rrrorib urrd a'" >, escrevia Peter Brook, ern O Esp aço Va z io, Oll,
con t in ua m se n do r aros sob re o a ssunto, c ae m n o históri c o o u co m o afirm am o s h á po uco, a p e rfo r m an c e não é um fo rrna -
lismo. E la re cus a a forma, pois e ssa é imobilismo, e o p ta p el o
8 Ri ch ard Fo re rna n, Pe rformance : A Conve rsat io n , e m St ephen Ko ck (e d. ) , Artforum, d e s contínuo, o d e sliz a m e nto , p r ocurand o o que A lIan Kaprow
'9 72 . p . 24·
9 Ri chard Sc h ec h n er, Essuys o n Performan ce Th eory 1970 -76, Ne w Yo r k : D ra m a Book
Spec ia lis ts . ' 9 7 7, p . 24 . 11 M ich ael F r ie d , Art a nd O bjec thood e m Grcg ory Battco ck (e d . ), 0 1'. c it., p. 13 6 - 14 2.
10 R . F orem an , o p . c it ., p . 24 . 12 Pe te r Brook, L'Espace v ide: Ecrits s u r te th éát re , P a r is : Se u il, ' 9 7 7. p . 33 .
15H ALeM DOS LIMITES : PERI'ORMAN CE E PERFORMATI VIDAD E PERFORM ANC E E TE AT RA LI DA DE: O SU JE IT O D E SMI ST l F IC A D O 159

rcc larnava para os h appenings há trin ta arro s '>: "q ue a li n ha de Mais próx imas de nós, as experiências d o t eatro atual (tea-
divisão e n tre a arte e a vida permaneça tão fl u id a e tão in d is- tro experirnerital, teatro al ternativo e as primeiras experiências
ti n ta q u an to possível - q ue o tempo e o espaço p e r m an e ç am d o L iving o u, as mais recen tes, de Bob Wilson), a técnica de
variáve is e descon tínuos a fim de que , permanecendo aberto s co ns trução d o espaço cênico tenta tornar tangível e visíve l
e s usce tíveis de deixar espaço à m udança e ao improv iso, a s to do esse jogo do imaginário que coloca sujeitos (e não um
performances não ocorrarn senão uma vez". suje ito) na ce na. Ass im, to r narn -se aparen tes os processos de
Es tamos m u ito longe do q ue Artau d pre c on iza v a pa ra o construç ã o do fe nô me no teatra l e daqu ilo q ue o funda, isto
tea tro (o u d o que o Living ou Gro towsk i, na s ua estei ra , co m o é, tod o um jogo de d e s d ob r am e nto e de p e rmuta ç ã o mais o u
rno delo d a re novação do tea tro) : a c ena c o mo um lug a r "viv o", m en o s bem e nce nados, m ai s o u m en o s bern d istingu id o s, con -
a peça co mo experiência " ú n ic a" ? form e os e nce nado res e os o bjet ivos v isados: d es d ob r a m e n to do
O fato d e a pe rfo rrnarice rec usa r-se a p r o c eder d o teatro é ator e d a p e rs onagem ( P ira n dello t r atou muito be m do te m a ) ;
bem o sig no d e que um a a p roxim a ção e ntr e teatro e p erformance d esdobram ento d o a u to r ( na m edida e m que esse so b revive à
é n ão só p o s sível mas sem d ú v ida legltirna, uma ve z que não morte do texto) e d a p ersonag em; desdobramento d o a uto r c
se trata d e s u b li n h a r a q u i s uas distâncias senão c o m a q u ilo a do e nce n a d o r (caso d e Ari an e Mnou chkine ); d e sdob r a m e n to ,
qu e se está amea çado d e a ssemelhar-se. Tentaremo s , pois , não e n fim, do e n c e n a d o r e d o ator (por exe m p lo, S chech ne r e m
desta car aqui as semelhança s e n tr e teatro e perfonnance, p orém Cloth es - Roupas). O co nj u n to d essas permutaçõ e s co nst ró i
d e marcar d e preferência s ua c o m p le m e n t a r id a d e , s u b li n han d o diferentes espaços projetivo s para c o n fig u r ar diferente s p o s -
como o teatro pode ter o que aprender na escola da performance. turas do desejo, ao colocar sujeitos em processo.
C o m efeito, por seu funcionamento extremamente d esnudo, pela Sujeitos em processo: que se constrói em cena, proj eta-
exp lo r a çã o à qual a perforrnance submete o corpo, por sua arti - -s e em objetos (p ersonagens para o teatro cl á ssico , obj eto s
c u lação d o tempo e do espa ço, a p erformance ofere ce a câm e r a parciais para a performance) que pode inventar, mul tipli c a r,
lenta de uma certa teatralidade, a que está se n d o trabalh ada no eliminar e m caso de necessidade. E esses obj etos co nstr uídos,
teatro atual: e esse teatro explora s uas artes baixas, oferecendo ao produzidos p or s e u imaginário e pelas diferente s pos tu r a s de
p ú b lico um apanhado de s eu avesso , s e u reverso, sua face oc u lt a. desejo, são outros tantos objetos "a" dos quais el e u sa ou a b usa
O teatro, tal como a p erformance, trabalha com o imaginário segundo a s necessidades d e sua ec o n o m ia interior (é o c a s o d a
(o imaginári o t omado e m s e u sen t id o lacaniano) , quer dizer que utilização da câm e r a ou da tela-v íde o para um bom núme r o d e
ele u sa uma técnica de const r u ção do espaço para a qual o s ujeito p erformances ). No t eatro, esses obj etos "a" s ã o fix ad o s durante
se coloca ou para a qual s e co lo c a rn sujeitos. Construç ão do o tran scurso d a peça. Na performance, ele s são, a o co n trá rio,
esp a ço fís ico primeiro, p si cológico em seguida. Entre os dois, um moventes e revelam um imaginário não alienado a uma figura
estranho paralelo desenha -se tendendo a decalcar a decupagem de fixação que é a personagem no teatro clássico, ou e m outra
do espaço c ênico sobre o do sujeito e reciprocamente. A ssim, forma c ongelada do fenômen o teatral. Pois se trata realmente
e m uma época em que o ator s e vê na obrigação de fagocitar as do "s u jeito" no teatro atual (Foreman , Wilson) e na perfo r -
personagens que encarna a .fim de tornar-se um só corn elas (e mance, e não de personagenl. Com efeito, a base convenci on al
cabe pensar no teatro do século XIX, no teatro naturalista ou nos da "a r te" do ator, inspirada em Stanislávski, quer que o ator v iv a
primeiros papéis de Sarah Bernhardt), a cena afirma sua unici- s u a personagem pelo interior e torne não aparente em cen a a
dade e sua totalidade. Ela é, mas ela é una, e o ator, na medida duplicidade que o habita . É contra essa ilusão que Brecht se
em que é e sse sujeito unitário, p ertence a essa glob alidade . ergueu, reivindicando o distanciamento do ator e m fa ce de s e u
pap el e d o espect a d o r em fa ce da-c en a. Diante d e ssa problemá -
13 A .A. Bronson ; Pe g g y Gal e , Perf or mance by Artist s, Toronto: Ar! Métropole, 1980,
p . 13 3 · L. I n g a - P in , op. c ito ti ca, a re sposta d o p erform er é o r ig in a l na m edida e m que ela
16 0 AL t i\l D O S LI MI TES: P E R FO R,\,I ANCE E PER I'OIUvl ATIVIDADE P E RF O RM A N C E E T E ATR ALID A D E: O SU JE ITO D E S M ISTI FI C A D O 161

parece reso lver o dilema. renunciando totalmente à pe rsonage m d e ss e s objetos, tornado , para si e n t id a de única, a o mesmo
e encenando o próprio arti sta. artista que se coloca como sujei to tem p o margem e centro. Margem quer dizer aqui não o que é
a desejar e a performar, mas sujei to ari ô n irn o a apre s enta r a si excl u ído, m a s , ao contrário, n1argem como quadro no s entido
rnesrno na s ua atuação n a c e na. Po r co nsegu i n te, n ã o r el atando d erridari an o d o te r rn o e . por co nseq uência, o que é o rna is
nada e não imi tando nj ngu érn, a perfor m a nce escapa a toda imp ort a n te , o rnais ocultado, o mais recalcado, mas também o
ilusã o, a toda representação, sem passado nem fu t u ro, ela se dá m ai s ativo no s ujeito ("o parergo" - suplemento, diria D crr icla':')
transformando a cena em acontecimento, aco ntecimento do q ual e, portan t o , todo se u recurso de n ã o te a tra lid a d e .
o suje ito sairá trans form ado, à espe ra d e o u t r a p erforman c e para A p erfo rm a n c e aparece ass i m, d e a lgum rno d o , como o
p rossegu ir se u percurso. Tanto q uan to a pe rfor rnarice se recusa arm a z ém dos acessór ios do s i m bó lico, como o e ntreposto dos
assi rn a toda represe ntação, a toda na rra t ividade. ela recusa sig n ifica ntes, o todo fora do disc urso es tabelecido e no s basti-
igua lmente a o rganização simbólica q ue domina o fenômeno d ores da teatrali dade . O teat ro não p od e recorrer a isso como
tea tra l, e expõe, c o mo tai s , as c o n d ições d a t eatralidade . É d e sse tal , ma s e s ses acessó r ios co ns t it ue m impli ci ta m en t e a q u ilo
jogo in c e ss an t e , d e ss e s d e sl o c amento s co n tí n uos d e p o si ção d o sobre o qual se e d ifica o espe tác u lo cênico.
desejo que é fe ita a te a t r alid a d e , isto é, u m a p o si ç ã o d o s ujei to C o m e fe ito, ao contrário da pe rfo r mance, o teatro não pode
ern processo e m um espaço c o n stru t ivo imaginário. c o lo c a r, di z er, co nst r u i r, propo rc io nar p onto s de vista: p o n to
É prec isame n te e m torno d a p o s iç ã o do s uj e it o qu e a p er- de vista do e n ce n a d o r, d o a u to r sobre a a ção , d o a ta r so bre a
for rna nce e o teat r o pare c en1 excl u ir-se, e qu e o teatro talv e z cena, do es pect a d o r sob re o ator, H á tod a um a multiplic ida d e
te nh a a lg o a aprender da performance. C o m efeito, o te a t r o não d e pontos d e vista e de o lh a res, uma "espessu ra de s ig nos" (pa ra
pod e disp ensar o s uje ito (s ujeito perfeitamen te assu mido) e os citar Barthes) q ue coloca uma m ult ip licidade t ét ica " au sente
exer cíc ios aos quais Meierhold e depois Grotows ki submeteram d a p erfo rm an c e .
os a lu nos n ã o podiam s e nã o consolidar essa posição de suj eito A te atralidade apar e c e a ssim feita d e dois c o n j u n tos di te -
unit ário na ce n a teatral. A p erformance, ao con trár io, e m bo ra re nte s : um, que va lori z a a p erformance, são a s r e alid ad e s do
fa la ndo d e um s u jei to perfeítamente assumido. ram ifi ca fluxos i magi nário; o outro, qu e va loriza o tea tro, são as est rut u r as
e o bjetos s im bó licos sobre um a zona d e s estabilizada (c o r pos, simbólicas pre cis a s . As prirn e iras se o r ig i na m n o s uje ito e
espaço) , zona in fra ssimbólica. Esses o b j e to s s ó acessoriamente d eixam fal ar se u s flu x o s d e des ej o , as seg u n das i ns crevem o
se ap reseritarn e m trân sito p or um s uje ito ( a q u i o p erform e r), sujei to na lei e n o s có d igos cên ic o s, isto é , no si m bó lico. Do
um s u je it o que não s e pres ta, a n ã o s er de um modo muito jogo d e s s a s duas r ealidades nas c e a te atra lid ad e , um a teatrali-
s u perficial e par cialm ente à sua p r óp ria p erformance. R etalhado dade que ap a r e c e , por c ons eguinte, n eces s aria m e n t e li g ada ao
e m fe ixes s e m iót icos, e m pulsã o , ele é um puro catalisador. E le sujeito que d e s eja. Daí, sem dúvid a , a dificuld ade de d e fi ni -l a .
é aquil o que p e rrn ite aparecer àquilo que deve aparec er. Ele A teatralidade não é , e la é para alguém , quer di z er que e la é
p e rrni te de fato a tran sição, a passageln, o deslocamento. para o outro.
A pe r fo r m a nce a pa r ece assi m co rri o um processo primário A multipli c idade de est r u t u ras s im u ltâneas (de que fa la -
se rn t el e ologi a , se m p rocesso sec u n dár io, vi sto qu e a p erfo r- mos mais a cima e qu e ve mos e m trabalh o na p er for m an c e )
m an c e n ada t em a r epr e s entar para n inguém . Eis por qu e el a parece reduzir-s e , d e fato, a urria infrateatralidade sem a u tor,
d e sign a a m argem ( R . S c hec h n er diria th e se a m - a costura) , a
14 Ja cq u es Der r ida, La Vérité en p einture, Pa ris : Flarnrnar íon , 1978.
fr a nja d o te atro, o que não é nunca dito, mas que e stá n e c e s s a - Em francês, th étique destgria o que coloca alguma co is a no existente. Em
ri a m ente pre sente , e m b o r a o c u lt a do . E la d e smistifica o s u je ito t e r n o s filosóficos , afirma o ser : "o supremo juíz o t ético seria 'e u sou: no qual,
e m c e n a, s u je ito c uja e n t ida de é ao mesm o tempo exp lo d ida segundo Fi chte , 'n a d a s e a fi r ma do éú. m as deixa -s e v a z io o lu g a r do pred icado
para possível d et erminação do eu ao infi nito'": ver N . Abbagnano, Dicionário
e m o ut ros t anto s o bje tos p arci ai s e co n de nsad a e rn c a da urn de Fil osofia . 5. e d .. São Paulo: Ma rtins Fontes. 2 0 0 7. p . 9 58 ( N. da E.).
162 ALlôM DOS LI!\llTES: I' E K FO R M A N C E E P ERFORMATI VIDAD E P ERFORMA N CE E TE ATR ALI D AD E: O SUJ E IT O D ES MI STI FI C AD O 16 3

sern a tor e sern encenador. A pe rfo rrnance parece, corn efe ito, sujeito para sujeito, semelhante nisso ao espetáculo de Robe rt
a t ua r e m se u jogo para revelar, para e nce nar a q ui lo que ocorre Wi lson lhe Lie and the Times oflosepli Stalin (A Mentira e os
a n tes d a fi gura ç ã o d o s u jeito (mesmo se ela o faz a part i r de Te mpos de Jo s e f Stá lin) rela tado por R ichard Schechner em
um suje i to já co nst i t uí do), na mes ma m e di d a em q ue ela se Essays o n Perforrnan ce (Richa rd Schechner desenvolve aí a
intere s s a po r um a ação em trabal ho de prod ução mais do que noção de "desatenção seletiva" a propósito do referido espe -
p elo produto ac a bado. O ra, o que ocorre ern ce na são fl u x os, tá cul o , n a re p resentação le v a d a a cabo na B roo klyn A cade my
a grega dos, ramificações de sig nifica n tes a i n da n ã o ordenad os ofM us ic's Ope ra House, e m d e z e mb ro d e 1973) . Nessa ocas ião,
e m có d igo ( da í a m ult ipli c id a d e das m ídia s e d a s lingua gens o espaço - Le Perq, peça de cerca d e 50 x 25 m - fora prepa rado
s ign ifica n tes à s qu ai s a performa nce r e c o rre : mig alhas d e rep re- a fi m d e receber o p úblico não só dur ante os se is e n trea tos d e
se n tação, de n arra ç ã o , m igalhas d e se n t ido), n ã o o r de na d os q u inze m iriuto s cada que a ó pera compor tava, mas d u ran te a
a i n da e m es t r u t u ras q ue p errn itarn s ig n ifica r. A p erformance própria ó per a, cuj a dura ç ã o d e via a t in g ir doz e h ora s. A a t it u de
s u rge ass im c onl O um a rn áqu in a a funci on a r co rn significantes d o público s o fr e u altera ç õ e s no c u rs o d o e s pe tá c u lo. En q uan to
se r ia dos : n a cos de co r pos ( po r exe m p lo , o d e srnernbrarnento, a o espaço - L e P erq - p ermane c eu na maior parte vaz io (exccto
d e sarti cul a ç ã o , o le s ioni smo d e qu e falam o s mai s aci ma ) , mas n o s e n t rea t os ) durante os trê s prim eiros ato s da ópe ra, v i u-se
ta m bé m nacos d e sentido, d e representação, flu xos libidinais , que pouco a pouco e le se t ornou o c e n tr o de u rna intens a a tivi -
nacos d e objetos c o nec ta dos seg u n d o con catenaçõ e s multipo - dade, à medida que a noite avan ç ava. Uma filtragem o pe ra va-se
lare s (caso d e R ed Tap es e os es p aço s parcelares e m qu e e le s e no público, filtragem qu e n ã o deixava subsistir e m seus lugare s
desloca: nacos de imóvel, naco s de peças, nacos de paredes etc.) senão um número cada vez rnais reduzido de adeptos de Wil -
e o todo sern narratividade. son a partilhar ao mesmo tempo sua experiência da peça e a
T a l ausência d e narratividade (narratividade contínua, experiência d essa experi êncía" .
e n ten de- se) é urri a d a s ca rac te rí s t ic a s dominantes d a perfor - A performance aparece a ssim como uma forrna de arte cuj o
mance. E s e, por d es cuido, o p erform er c e de à tentação, n ão obj etivo primeiro é o d e d e sfa zer a s "c o m p e tên ci as" (esse n c ia l-
é nun c a d e mari e ira c o n t í n ua o u s e g u id a , rn a s a o co n t r á r io mente teatrais). Essas c o m p e tê nc ias, ela as reajusta, as r e arranj a
d e rn a rie i r a irânica, e rn segundo grau, c orno c it a ção o u para e m um desdobramento d essistematizado. N ão se p ode d eixar
r evelar aqui ainda se us rn e can isrno s profundos. de falar aqui de "d e s c o nst r uçã o", mas, em vez de se trata r d e um
Daí cert a fru st raçã o de p arte d o e sp e ctador em fac e da ge sto " li n g u ís t ic o- teó r ic o': trata -se aí de um ver da dei ro g e sto ,
pe r fo r mance e qu e a afasta d a exper iê n c ia da teatralid ade. É que um a ges t uali d a de d e sterritorializada. C o m o t al , a performanc e
da p erformance n ão h á nada a dizer, a dizer-se, a apre ender, a apre s enta um desafio ao teatro e a toda reflexão do teatro sob r e
projetar, a introjetar se n ã o flu xos, redes , sistemas. Tudo aí apa- si próprio. Tal reflexão, ela a reorienta, forçando-a a uma aber-
rece e desaparece c om o u rria galáxia "de objetos transicionais?" tura , e obrigando-a a urna exploração das margens do teatro. É
qu e r epres eritarn a pe n as os d efeitos de apresamento da repre - a esse título que urna excurs ão pelos lados da performance no s
sen t açã o . Para vivê-la, é preciso a o m esmo temp o e s t a r aí e fa zer pareceu interessante e necessária, tendo sido o no s so úl t i rn o
parte dela, permanecendo ao mesmo ternpo e stranho a isso. Ela desej o voltar ao teatro após um longo desvio pelos bastidores
nã o fala somente ao espírito, rn a s aos sentidos (por exemplo, da teatralidade.
a s experiências d e Angela Ricci Lucchi e Gianikian com res-
peito ao olfato) e fala de sujeito para sujeito. Ela não procura Tra d . t. G u in sb u rg
di z er ( c o rn o o teatro) , mas provocar relações sinesté sicas de

15 o .\v. Wiu n icott , l eu e t re a lit é, Pari s : G al li mard , '9 75 . 16 C f R . Schec h n e r, op. cit .. p . 14 7- 14 8 .
3. O Que R e s t a da P e rformance?

autópsia de uma arte re al m e nte vi v a'

É p o ssível que um dia, qu ando o fe nôme no d a p e r for m a n c e


tiver c u m p r ido o se u t emp o d e se rviço, o pro b le ma de s ua
espe cificidad e se t orne legítimo . Se rá t emp o então, n ã o de
fa zer o histó rico d e um g êne r o , nern d e p ô r e m p e rspe c tiv a os
aconte cimento s s egundo u m co ncei to enfim co mpleto, m a s de
escrever a genealogia de um n o me: s e g u n d o q uais filiações de
influ ência , p or quai s razões de c o m p ree n s ã o o u de in compreen -
são h istóric a , e m v ista d e qua is necessidades da co njuntura , e m
respo sta a qu ai s co n d ições d a e n u nciação ar t ís tica, a palavra
p e rformanc e terá ap arecido e m t al d ata e p a r a t al du r a çã o , e
d e signando um c onjunto d e práti c a s que, d e t oda m an eira ,
continuarão a s e lh e s u b t r air e m p arte? Esta será t al v e z um d ia
um a que stã o Ie g ttirna .>

Publicado s o b o tí tulo W hat is Left o f Performan ce A r t? A u to psy of a Functi o n .


Birth of a Ge rire, D iscourse: [ourn al fo r Theore tica l S tu d ies in Atedia and Cult ure,
Milwaukee , V. 14, n . 2 , p . 14 2- 162. 19 9 2 .
2 La Perfo r ma n ce h ic e t n u nc , Perform a nce, texte(s) & d o curn ents, A ctes du co llo q ue
Pe r fo r mancc e t m ult id is c ip lin ar it é : Po stmodernité, sob a d i r e çã o de C h a n t a l
Pontbrian d , M ontréal : Para chute , 1981 , p . IS .
166 ALÉM DOS LIMITES: PERFORMANCE E PERFORMATlV IDADE o Q UE R ESTA DA PER FORMAN C E> 16 7

É assim q ue, ern 1981, Thierry de D uve res umia ou, a n tes, A usênc ia il usória, pois ao o l ho aguçado do amador, ao
a n u nciava , o fu t uro d e to da in te rrogaç ã o sob re a p erform ance. xereta da "coisa" a rtíst ica, pa rec e ca da vez mais evidente que
"É possível que um dia . . .': "Se r á tempo então . . ." É espantoso tal desap are cime nto n ão pas s a de um engo do. De fato, perfor-
pe nsa r qu e "esse dia" q ue Thi err y de Ou ve anunciava não há man c e s c ontinua m a oco r rer, artista s co n tin uam a re ivind icar
tan to tempo, si t ua n do -o em u m porvir rela t ivame nte lo n g ín - o títul o d e performers, lo c ais a rt ís t icos persistem em programar
quo, já te n ha c hega do, mais de pressa, se m dúvida , que o a u to r, perfo rman c e s.
e le mesrno, o p r e vi ra . Essas práti cas ai n d a v iv as que nos e sfo rçarem o s e m rast r e a r
"É p o ss ív el qu e um dia , qu ando o fen ôm en o da p erfo r- ma is abaixo, p or mai s interessantes que elas sejam, não c h ega m,
man ce tiver c u m p r ido se u tempo de serviço, o problema de su a
espec ific id a de se t orne le gítimo", tal era a h ipót e se adiantad a
es pe tác u lo em acon teci me n tos. c r ia ndo às vezes p a ra o arrista e o espectador
co m prudên ci a por Thi erry d e Duve. A questão tornou -se d e
um r it ua l em qu e e ra m c ha mados a p ar ti ci p ar.
a t u a li d a de: por que a p e r forman c e? P or qu e a palavra? E po r Essa fo r ma d e perfo r mance d e s apa re c eu n o s dias d e hoje, não e ncon -
que a "coisa" ? t r ando m ai s s ua just ificação a r t íst ica, assim como desapa receram, no do mí nio
d o t e atro, as in flu ên c ia s c onj uga das d e C ro towsk i e de A r t aud , seja porque
T a n t as questõ e s h o j e e m dia ce r ta men te legí timas e m face a prát ic a t e atral se afasto u d o va lor red e nto r d o corpo pul si on al , seja p orq u e
d as quais poderíam os suscitar essas outras in terrogações: po r o s a r t is tas p c rc c be r ar n o s limit e s d isso co mo m od o d e e xpre ss ã o .
qu e a perforrnan ce não ex is te mais? Por que sempre a palavra b . A segu n da c a tego r ia d e p erform an c e e m v igor nos a nos d e 1970 é m a is
pró x im a d a tradi ç ã o d a s arte s p lá sti c a s e, po r t a n to, d e ce rto forma lis mo m in i -
q u a n d o a c o is a desapare c eu ? m al qu e o p ta po r ce rta d e s c onstruç ã o das co isas, d o s ges tos e d a s lingu a gens.
Dez anos apenas bastaram para q ue os d ado s muda ss em. Animada d e um a s u s pei ta acerc a d a n o ç ã o de s ig no. e la p õ e e m que st ã o a
Dez anos para q ue a performance desabroche e "morra': Dez a n os íns t r u m enr alidade da linguagem por m ei o de pro cedim ento s de repet iç ã o .
d e s a c el era ç ão e exp lo s ã o que levam aos limite s d o sen t id o, a os c o n fi ns d e
também para q ue o discurso crítico q ue se encont rava e n tão e m uma z o na em que n ã o s u bs is te m ai s s en ã o p ara o artista e o esp ect a d o r "o
seus p r irne ir o s ba lbucios nesse dorn íriio, e que se e m perihava em d esgaste , a presenç a física, o ge r me da voz ", di z Sca r p e tta , p . 139 .
u ma te or iz a ç ã o p r u d ente do fen ô m eno , e nfatizan do amiúde su a Des sas p erforman ces, não h á nada a di z e r excet o a v ertigem que provo -
ca m no e s pec t a dor. a en ergi a d e que s ão p ort adora s e q u e s e torna p ara el a
impotência na ten tativa de cercar o acon tecimen to, a bandon e só o b j e t o e s u j e ito d a p erforman c e . E s s a s p erform an c e s , d otad a s . s eg u n do
e sse campo de exploração. Durante esse tempo a performance R é g is Durand , d e "s ig nos flutu ant e s . co m va lê nc ias múltiplas" (o que Ri ch a rd
Schec h ne r d e nomin a multiplex sig n a ls) , renun c iam ao veto r todo- po de roso
desa parecia sem fragor do proscên io e das preoc upações d a
d o relato , p ara u s a r u m pro c edimento d e sob reimp ressão ern camadas (o q ue
maior ia do rrieio artístico, relegada às ga lerias, aos circ uitos Le e Breu er c hama tracking) e jogam com o j ogo d o tra ç o e d o a pagame n to,
periféricos, evacuada, rnerios v is ível, às vezes ause n te>. c o m o e fe ito do dupl o (o qu e H erbert Bl au c hama g hosting).
Segundo G uy Sca r p etta, e las reinterrog am , al ém disso. o "s ig n o te atral "
pelo simples fa to d e q u e re nunciaram ao m odo n arrativo tradici o nal e, portanto ,
a b a n d o nara m toda c o n t in ut d a d e, s a i n d o ass im d o co nj u n to qu e as inte gra.
3 Annette tvl ichelson e Thierry de Duve t e n t a r a m no iníci o do s anos de Livres d e todo la ço dis cursivo . o s s ig n os flou s que o s co m põem estão livre s p ara
19 8 0 e st abelecer uma t a xi onomia para diferente s tipos de perforrnance, e nt r a r e m div ers a s assem blages con fo r me a e nergia d e que são po r tadores .
di stin guind o : É a esse gêne ro de per fo r mances que pe r tence m p ráticas como as d e Lau -
a . Aquelas qu e ass ina la m urna volta d o e x is tencia lis mo. m ai s o u m enos r ie A n derson, E lizabe th C h it ty, M íc h el Lemieux. Tal forma d e pe r fo rmance,
ins p ira das no Tea t ro e Seu Dup lo. b a s e ad a s e m uma li b eração da s pulsões. ela tamb ém , d e s apa r e c eu em p arte h o j e e m di a . tend o a a r te a bando nado um
e m uma exp r essão d e um in c on sci ente d o c o r po, a o scil ar, co rno d e sejava formalism o um p ou c o s e co e h a vendo se volta do d ora v ant e p ara uma n o v a
A r taud, entre "a g r a tuid a d e fr en éti ca das pu ls ões" e o "rigor de um a s in ta x e': busca d o s e n t id o qu e s e encontra n a pintura .
Tal categoria , n a qua l p od emos in screver, embora a tí tu los diversos, c e r ta s c . A terc ei ra cate g o r ia, enfim, m enos num ero sa , s egu n do Thierry de Duv e
perform ances de Vi to A c conc í. de A lberto Vidal ou de H ermann Nitsch , (op . cit. , p . 23. 27), r eún e as p erform ances que indicam um a ve rdadeir a ass im i-
b em co mo a s d e M onty Can ts in em Quebec, seria teatral, aur áti ca, s ac ri fi - la ç ã o d o formalis mo e apon tam p a r a n o vo s e n ig mas. As últimas perfor mances
c ial, seg un do Thi err y d e Duve (op. c it., p. 23) . "Tra t a -se d e um a en c en a ç ã o de R a c h el Rose ntha l p e rt en c e m a t al catego r ia , assim como as ele Ma r ina
arcaizan te , sac ra lizante, que exclui t o d a interv e n ç ã o d a moderna tecno log ia Ab r arnovic: " E la s fazem intervir expITcitamente um processo de gravação e
na ce rra" Interro g a n d o a relação d o a r t is ta c om o s imbólico. joga n do com reprodução. No rnai s das vezes, acop larn o performer a um transco dificador
os afetos e os fan tas mas d o performer, essas p er form anc e s co nver t iam cad a qua lquer, in c o rp o r a nd o o a parelho e o performer e m u m m e Sl110 fee d back."
168 AL tM DO S LIMITES : P E RFOR tvlAN C E E PERFORMAT IVIDAD E o QUE RESTA D A P ERF O R M A N C E' 16 'J

toda via , a a p a g a r a impress ã o de qu e a p erfor rna rice n ão é um Se a pc rfo r m a ri c e rn irna bem "o rles m o ro n arn c n to de um
fenôme no " n a rnocla" ap ena s u m a sobrev ivê ncia d e uma prá tica lu g a r so cia l, c entral, c er r a d o , domi n ado , transparente", como
d e o utro terripo, talve z uma ar te ultrap a s s ad a e a té u rn a arte do notava em 1981 Birgit Pelzer -, é evidente por si que todo discurso
passado, como seria a ópera. sobre tal prática des centrada não é , ele mesmo, descentrado,
É a im pre ss ã o q ue o presente art igo pretend e p ôr e m discus-
são a o trabalh a r so b re a brech a qu e existe e n t re uma interrogação
j a liá s. Nós não poderíamos escapar aqui desse paradoxo.

( por que a pe r for rnarice i") e um paradoxo (a p e rform ance não


existe m ais, e m bo ra co n t i n ue ex is tin do) . A p o si ção é insusten- AUTÓ PS IA DE UMA FUNÇÃO
tável co mo se m p re foi p a r a todo d is curso sobre a perform ance,
po is h oj e, co mo o n te m, é difíc il fazer uma id ei a p rec isa d o Nasc ida d e um rn ovi rn e rr to d e co n tes tação dos va lo res es ta -
o bje to de a ná lis e que s e pretend e d efinir e qu e se d e s eja tratar. b el e cid o s qu e e ra o de to da um a época (re c us a d a n o ç ã o d e
É a in da mais difícil s it ua r-se e m u m lug ar qu e nos a u to rize a rep rese n tação, d e ensaio, d e m emóri a ; rec usa d e um a p r át ic a
fa la r, ain d a que ess e últim o fosse o d o a rt is ta ( necess ariamen te se m inter r o g a ç ã o e se rn ri s co tanto pa ra o ar t is ta co rn o para o
u n ívoco), o do críti c o ( n ecessa r ia me n te or ientad o ) o u o do espectador), a p e rfo rrn an ce a r t con hecc u se u ap ogeu n o s anos
espectad or ( ne cess a r ia men t e fragm entário) . d e 1970 . Vindos à p erformari c c d e horizontes muito dive r s o s
No fu n do, t odo disc urso sob re a perform anc e, co m mais (ar tes p lásti cas, mú si ca, arquitetura e tc.), os p erformad ore s
razão a in da so b re seu d esaparecimento , c o ntinua se n do u m havi am d e início in v e st id o COJn entusi a smo n essa nova fo r rna
discu rso em torno da performance, um disc u rso sobre o pró- d e arte que lh es oferecia um meio de e x p r ess ã o renovado.
p rio disc urs o crítico. Essa l inguagem é fei ta d e derrapagem, de Depois, ao long o dos anos, o s dados m udaram . O s dado s
r u ptu ra, d e a p roxi m a ção. Não te m interesse se não aq u ilo q ue id e ológicos s e transformara m e os artistas, vi n dos à perfor-
e la n o s diz do pró prio discu rso e daquele q ue o usa . Mais do mance a partir de o utras d iscipli nas , puderam pouco a pouco
que qualq u er outro, ela é r eve lad o r a de n o ssas t eori a s c r ít icas, reinte grar suas resp e ct ivas artes, deixando no campo d a p e r -
esté t ic a s n o to cante às arte s. for ma nce três c a t ego r ias d e praticantes: os videoastas, qu e
re cuperaram a performan c e p ara se us próprios fins , c o n ve r-
Essas p erforrn an c e s fo ram mais fr e que nte s n o s an o s d e 1970 e são h oje as
que a presentam a melh or sobrevi da a n te a evolução d a s p rát ic a s . M enos fo rm a- te n d o-a e m u m a arte aut ónoma in t ei r a m e n t e à pa rte, que tornou
listas d o que aq uelas q ue cornp ôcm o g r upo pre c ede n te , n ã o te n do ren u nciado d aí p or d iante s u as distânci as em relação à arte da p erformance ;
à na r ração, re c o rre ndo ocas iorial rn e nre ao m icro r el ato , servindo -se am iú de o s a r t is tas inter ou mult idis ciplinares qu e re ivin d icam muitas
da palavra em p ri rne iro g rau como veícu lo dos sentidos, tais performances,
colocando ao mes mo t e m p o o p erformcr n o centro d o processo cénico, não vezes o título de p erf ormers devido à multiplicidade d as artes
faze m di ss o se u únic o obj cto d e ex p lo ração. El a s r einte rro g am O mu n d o e e d a s tecno logias às quais s uas obras recorrem; e os performers
d escons t roem a o rd e m ex is te n te, m a s o exe rcí ci o a que se ent rega m n ã o se d e ixa
que e u d efiniria como "teatrais", cuja arte e p rocedimento per -
aboca n har pelo m e can ism o de s ua p ró pr ia d e sconst ruçã o , p ela ver tigem d e u m a
dissolução de palavras. de coi sas ou d o mundo. Uma vez operado o trabalho m an e c em pró~imos daqu eles d o s anos d e 19 7 0, mesmo se seus
de desconstrução, essas perforrnances intr-oduzem aí sentido, recusando -se a quest iona me n tos e s eus obj etivos não são rn ais os m esm o s .
deixar o lugar vazio. As pcrfor marices q ue Rachel Rosenthal faz hoje em dia
são as q ue mais se inscrevem n e ss a v ia. E m Q uebec, po deríanlos c itar a tít ulo
P o r que es s a s o b re v ivên c ia do fenôm eno da p erform anc e?
de exe m p lo as d e Nat h a lie D erom e o u d e Marti n e C hag no n. Que lugar ela ainda ocupa nos esq uemas de pensame n to e das
"E h! É e ngraç a do! A gora se p od e com p ra r ca m ise tas co m dese n hos d e práticas a r t ís t icas ? C o m o é possível qu e uma prática artística,
a ni mais em v ias de exti nção. E u, e u es to u co n te n te p orq u e os an i ma is e m
v ias de extinção são os que eu prefiro. Isso, e m p r i m e ir o lugar e, em s e g u n d o,
baseada e m um requestionamen to de va lo res , não desapareç a ,
eu digo a mim mesma que se h á cam isetas com an imai s debaixo, isso quer um a vez que todo s os próprio s pre~sup o sto s id e oló gicos qu e lh e
dizer que há alguém que sab e disso e se há a lg uém q ue sabe disso , há t al vez
a lguém que faz q ua lq uer co is a e, em terceiro lu g ar, a m i rn , seln p re m e dá
p raze r saber q ue h á um po uco de d i n heiro qu e va i p a r a o a r ma me nto." 4 La Pe rfo nnance o u l'in tégrale d es equivoques , Pcrfor manc c. tex te(s) & documents, p. 31.
170 ALÉM DOS LIMITES : PERFORMANCE E PERFORMATlVIDADE o QUE RE STA D A P ERI'ORMA N CE? l 7I

davam sen t ido d e s a pare ceram ? Tais são a lg umas d as questões performers se torna rarn eles rnesrrios mais circunspectos corn o
q ue se colocam p a ra n ó s. passar dos anos, seja porque o público, ao contrário, não poss u i
m ai s essa fac ul dade de espanto, de e n t us iasmo ou de rejeição
violenta que marcou sua reação a certas experimentações fra-
A Perjor m a nce Na sce u cassad as nos a nos de 1970.
de u ma Teoriz a ção do Fe nô men o A rtístico Nosso o l har se dobrou ao que se to r no u a no r rn a nesse
d om ín io . O n o v o , o dife re n te, o or ig i n a l não m a is s uscitam
Para com p ree n der a evolu ç ã o da p r átic a da performance e a a uto rnat ic arn e n te o i nteresse, riem mes mo a a tenção .
r elação que essa ú lt i ma mantém co m a teoria, é precis o ins- Se rá rea lrne ri te que nosso o lhar se e m bo tou o u q ue a p ró -
crevê- la na probl emátic a m ais a m pl a que to ca a que st ã o da pria novid a de se to rno u urna norma, se bem que o novo não
m odernidade . seja el e rnesrno co m p le tamente n o v o ? Wi lhel m R eich respo n-
"O modernismo é dominante, mas est á m orto': dizia Jürgen deu à qu e stã o , m o st r a ndo como n o s s a sociedade c o nseg ui u
Hab e rma s ir o n icarnente, tornarrd o p o sição contra e s sa ideia re cup e r ar toda dis sidên c ia em se u se io, to r nan do, p ois, in op e -
q ue p r etende que nossa é p o c a s eja o te stemunho do fim da rante , devi do ao própri o fa to, a r e voluç ão pro curad a .
rn ode rnidade. A modernidade e s ta r ia e m decadência porque A erne r g ê n ci a d a perfor mance co inc id i u, p o rtanto, com a
a ideolo g ia qu e a est r iba e s ta r i a el a própria bombardeada p ela g rande é poc a d o mo dern ismo triu nfante d o qu al el a e n dosso u
evol u ç ão de n o s s o s rn o d o s de pensamento, que r efutam o s ce r tos co rri p o r tarri errtos e ce r tos a tos d e fé .
f u n d a m e n to s sobre o s quais a modernidade havia construído Ora, dentre as ca rac t e rís t ic a s do rno d er no (que eu não
ela própria seu domínio: a recusa da noção de progresso, de retomarei todas aqui), há uma s o b re a qual eu gostaria de me
norma, de a -historicidade. debruçar porque ela toca mais e s p e cifi c a m e n te a performance:
A performance como prática artística, proveniente de um é a r elação qu e essa mant ém com a teoria .
procedimento e ssencialmente m oderno, participaria dessa O m odern o, desde s uas o r ige ns, façam o -las remontar ao
ampla rediscus são d o problema? E pod er-se-ia dizer, para começo d e s éc u lo xx , à é poca ro m â n t ic a ou até à Renas cença,
r etomar aqui a e xpressão de Hab ermas, segundo a qual '1\ mante v e r el açõ e s p ri vil e giad a s co m a te ori a , aí buscando s e m-
p erforma ce art é dorn inarite, mas está morta"? pre a recusa d o passad o , a j u st ific ação da mudança e a garanti a
C o lo c a r a questão é já respondê-la parcialmente. É verdade do progres s o vindouro.
que o fen ômeno da performance espalhou-se muito desde o fim Nu mer-o sos sã o o s rnovirnerito s artísti cos que foram pre -
dos anos de 19 70, porém por mais e s p a lh a d a que e st ej a , ela tem ce d id os, acorripan hado s o u s e guido s por te orias: a s d iv ers a s
atraído doravante tão pouca atenção que numerosos artistas e vanguardas, o surrealismo, o romantismo, o naturalismo
críticos anunciaram sua morte: a performance não existe mais, mesmo e t c. S e r á pre ciso lembrar a e ss e propósito a o n d a d o
diz- s e, e aquelas que se realizam procedem mais do teatro do te rrori smo teórico dos a nos de 19 70?
que da performance propriamente dita . Tal relação c o m a te oria esteve fortemente presente na per -
N o entanto, o número de performances que é possível a rro- forrn arice , ao menos e m seu s in íc ios. E la constituiu inclusive o
lar na Europa e na América do Norte, e o número de artistas que em b asamen to so b r e o qual se e d ific o u a prática. E la justificou os
a ela se consagram , revelam que essa arte, longe de desaparecer, o bjetivos da performance e exp li co u s u a s diferentes modalidades.
perdura e mesmo se institucionaliza. C e r t a m e n t e ela levanta V is ta s o b e sse ângulo, a performance não pode s e r s en ão
m enos questões que o u t r o r a, espanta e choca muito m enos m oderna.
que no passado (por exe m p lo, as pri meiras p erfo r m a n c e s de Com e fe ito, se u m dos s ignos "da m o d ern id ade em a r te
Vito Accon c i, Herma n n N itsch, C hr is B urden) , seja p o rque os é rea l men te a opos ição à função no r m a t iva das t rad iç õ e s
172 ALÉM DO S l.IMIT E S : PERFORMAN C E E PERFOIU.IATIVIDAlJE o QU E R ESTA DA P ERFORMANCE ? 17 3

es té ticas, a perfo rmarice é po r cer to a forma artís t ica que mais n ã o s ubvers iva, seja porque a experimen tação s im p le s m e n t e
teorizo u s eus objet.ivo s . Desde as p r imeiras experiências de d es a p a r e c eu corn o co riceito >, É evide nte q ue as práticas atu ais
Cage n o Bl a ck Mo u rrtai n Co ll ege e m 19 525 a té a s expe r iências da performance tend em a n o s c onvenc er d e que a r e al idade se
de R a ch el Rose rit hal, M eredith Mo nk no fi m do s a nos de 1970, situa e m algum a parte ent re esses d ois ext remos .
passan do por perJorrners montrealenses como Mon ty Can ts in, A p erfor m ance perdeu igual mente certas característ icas
Lo uise Merci lle, R ob e r Rac in e, JVl ichel Le rn ie uxvMar ie C ho u i- distintas qu e c o n st.itu iarn s ua o r ig in a li da de:
nard " etc ., a perfo n n a nce foi fe ita contra urna cer ta concepçã o
o trab alh o sob re a ternpo ra l íd ad e da r epre s en ta ç ã o e sobre
d a arte e d e s ua rel a ção com a sociedade:
a duração, qu e e ra es pecífic a da performan c e , inv e stiu a s
re f ut ação d a n o ção d e r e p r e s e n t a ç ã o p or um a p r e s ença o utras arte s (c i nem a, sob re t u d o );
" rea l" do p erforma d or (o que le v a à recusa de todo p a pel, o t r a balho so b re o corpo, q ue e r a o ce n t ro d o ato perfor ma-
de toda p ers on a g em , assi m corno à r ecusa de reap rese n tar ti vo , desl o c ou - s e para a i m a g em, para a tel a t elevis ada . E le
um a p erfonnan ce, p ortan t o d e e ns a ia r do m e smo rnodo n ão es tá mais n o cen tro d a performance, m e smo se aind a
q ue g rava r o aco n teci m e n to) ; co n t in u a a o c u par a í um lugar importante. E le se tornou
o pos ição ao va lor co me rciáve l da arte (daí a rec us a d e um el emento d a perfo r rnarice, e n t re o u t ros ;
e nt ra r n o s mus eus, d e d eix a r tra ç o s , ern o u t ras pa lavr as, o trabalho sobre o esp a ço ( in ves t i m e n to em lug are s diferen -
de t rans fo r ma r a o b ra de arte e m me r cad o r ia) ; tes, fora dos museus) vo ltou a cen t r a r-se nos lugares habituais
p r imado con c e d ido a o pro c e ss o m ais do q u e ao produto; d e represen tação (g a ler ias, s a la s d e espet áculos, salas poliva-
insc rição da arte n a v i da e recusa de u m a cl ivagem que le nte s ) . Deixou d e fi n iti va m e nte os lo cais o r iginais: zoológico
fi zesse da prática artís t ica u m a es fera a utôno ma sem inci- (Alber to V idal), jaula (Joseph B euys ) , piscina (Ch r is Bur-
dência no rea l; d en ) . Voltou a u m c o n fro n to tradicional com o público em
recusa, é claro, d e to da catarse, n ã o tendo o espectador, espaços eles m e sm o s t radicionais : mus eus , g a lerias.
mui tas vezes, n e n h u m a e m p a tia c o m o e spetáculo q ue lhe
Por outro la d o , a p erformance p e r d e u aquilo que consti-
é apres entado.
tu ía u m a de s uas força s e m seus i níc ios: a recusa d e considera r
A p erform an ce p erdeu tarnb érn s e u valor de expe r i- a o bra d e a r te co rrio mercadoria. A pe rfo rmance, a exernp lo
mentação (co m o o t eatro e xperim ental, ali ás), seja p o rque a do h ap p e n ing , d evia se r ún ica . E la n ã o devia d eixar traço s ,
experimentaç ã o se conve r te u n o m odo h abitual d e funci ona- r e cusando a ssim a d ota r - s e de uma mern óri a, r e começando
m ento d a a r te e se viu então dotada d e uma nova legitiInidade sempre o empreendimento d e sde a origem. Nec e s sariamen te
inscrita na intensidade d o presente, ela não tinha n em passado,
n e m futuro, renunci ando a todo laço que poderia assinalar
5 E x p e r iê n c ia s q ue Allan Kaprow a ssiste , então, em sua sala d e a u la.
6 Todos e sses p erformers o cu para m o proscên io mo n trealense n o s anos de 19 8 0 , filiações, anunciar u m a descendência.
crn b o ra a títulos diversos e co rn mai s ou menos su ce sso. Os rn a is co n hec idos de ntre O mercado de arte a c ab ou p or juntar-s e à p erform ance
e les são, se m nenhuma dúvida, Marie C h o u i n a rd , que du rante m uito tempo fez
perforrnanc es e xtremamente corporais, trabalh ando seu co rpo e a matéria ( M a r ie
criando v edetes presas, elas m e smas , nas malhas do s c i r c u it os
Chien Noir ) , l'vlichel Lern.ieux, cujas perfo r mances s e baseava m n a música e na comerciais: é o exemplo d e L a urie Anderson, Me redith Monk.
palavra (el e ap re s e n to u u l te r ior me n te espetác u lo s d em a si ado te cnolo g izado s e W en dy W oodson, urn a p e rforrner d a danç a , observava
menos performáticos) e Rober Raci ne , que reali zou ao mes mo te m p o perfor-
mances mu s icais. corpo rais e sonoras (L 'Echelle Williams) . Quan to aos out ros,
recentemente que o u t ro r a ela evit ava o rótulo de pe rfo rm a nce
Lo u i s e Mercille (Barbie, Thermes) e Mo nty C a n ts i n (Restriction s), q ue c it a m o s artist porque a n oção s e ligava entã o , amiúde, n os espíritos,
a q u i, p arecem ter tomado dis tâ nc ia em relação à perfo rma nce. O pro ce d i m e n to de
M o n ty Ca n ts in se in sc re vi a sob re tu do e m um a forma d e perforrnunce e xi st en ci a l. 7 Vale notar que a n o ção de e xperimentação d esapareceu igualmente d o domínio
e a d e Lou is e Me rc ille e ra mai s feminist a e e ngaja da. do teatro , bem co m o a d e teatro a lte r n a ti v o .
174 ALf.lv\ DOS LIMIT ES : PERFORM ANCE E P ER FORM ATI VID AD E o QUE RESTA DA PERFORMANCE? 17 5

c orn as pe rforrriari ces masoq uistas e violentas. Hoje e rn dia, e la o Na scim ento de um Gê ne ro
evi ta sc rnpre o terrno porq ue a perforrna nce se to rn o u " slick ,
co me rc ia l e ru ais te a t ral n o mau se n t id o d o ter m o'" . Se q uiséssemos traçar um esboço de exp licação para o des a p a re-
Ac resce n te rrro s, pa ra te rrn i nar ess a li st a que não prete n de ci mento de todos ess e s fenôrneno s, diríamos que a performance
ser de modo alg um exaustiva, que a p e r fo r ma nce perde u d o s anos d e 1970 tinha, sem dúvida, uma função ni tidamente
igualmente esta pr imazia q ue e la conced ia ao processo (à definida. Ela participava de um movimento de c o n test a ç ã o dos
criação ern faz i me n to), para se concentrar sobre o prod u to . va lores vinculados trad ici o nalrne nte à arte e pretendia ser a
O cu id a do co m a o b ra acabada, po l id a, está d e n o v o prese n te. espora de um rriovirnerito de r ej e i ç ã o d a obra artística como
O próp ri o a to d e produ ç ã o é v el a do a o s o lhos d o públi c o . Ela obj eto. Daí as rn últ iplas perfo r ma nces tomarem posição co n -
re in teg ro u o s b a s t idores , de ixa n d o e rn ce na u m a obra c uja tra a ob ra acabada, expos ta, co ris u rn í d a , co ntra a obra como
i mperfe ição se ace ita, mas e m q ue t od o traço d e b r ic o la g em pro duto . A performance insis t ia n o s p rocessos, n o trabalho em
te nde a d e s ap a r e c er. faz i me nto, no con ta to com o públ ic o. Não é de espantar que
De t od o s esses r ep a r o s , s u rge essenclalrne.nte q ue a p e r for- n e ss e req uestionamento tod a s as for mas t enha m s ido a d missí-
m a n c e d o s a n os d e 19 7 0 co r res po n de u a u m vas to m o v i rn en to ve is e to das as tendê nc ias te n ham po d ido se m ani fe sta r, d e sde
d e subversão q ue ve ic ulava , el e p ró p r io, um a id e ol o g ia c uja a a r te co nceit ua I n a t radição min im ali sta a té um a for m a d e
força se d e via à imp o rtâ n ci a das es tr u t u ras e das prá t icas q ue ela a r te puls io n al, mais teatra l, ex is tenci a lis ta , prática i ns pi ra d a
p roc u rava d e r rub ar. O ra, tal ide olo g ia d e s a p are c eu, carregan do e m Artau d o u em Gro towski.
co m ela a força d e s u b ve rs ã o que agitava a p erformance . D e fato , ser ia justo dizer que, n os a n os d e 19 70, m ais d o que
O d e s aparecimento des sa ideologia - e da teori a que a um gênero , a perfo rmance e r a s obretudo uma funç ão ? e , como
fu nd arn erita - exp li c a-se , sem dú vida , p el a e vo luç ão d e uma toda fu nção, ela p odia p erten c er a práticas e artes diferentes. E s ta
é poc a em que Jean -Françoi s Lyotard, G ia n n i Vat t i mo, E d g a r distin çã o que des ejamo s fa zer aqui e n t re função e gênero nos
M orin, G ill es Lipovetsky e tantos outro s m ostraram a des- permitiria exp licar n o que a p erformance de hoje difere daquela
con fia nç a qu e e la dedi c a doravante a os g r a n des co nj u nto s de o n te m e po r que e la p ode sob r e v ive r enquanto s e us objetivos
( ideo ló g icos o u teó r icos) . Ora , o d e s ap a re cim ento de ss a e as m oti va ç õe s q ue g u iam os artista s n ã o s ão mais o s m esmos .
id e ol ogi a a fe t o u a p erforman c e , na rnedid a em que e la per- C o m e fe it o , se a p erformance fo i, ante s d e tudo, uma fun -
de u ne s s a evoluç ã o a q u ilo que lh e dav a a o m e sm o t em p o se u ção - fu nção d e despertar, d e provo car, d e t omada de posiçã o
se n t id o e s ua just ificaçã o. co n tra a tradi ç ão, d e instituir relaç õ e s diferente s entre a o b ra e
C a b e r ia deduzir dessas constataçõ es que a perfo r rn ance o se u público - el a não tinha gênero o u forma e sp e cífic a , ainda
mudou d e natureza renun ciando à s reivindicações que con s ti- que uma multidão d e práticas tenham s id o catalogadas s ob tal
tu ír am s ua o r ig inali d a d e e que a haviam imp o sto no panorama d enomin a ç ã o.
artístico d a é poca? I s s o é eviden te por si. A p erforman c e h o je
não te m os rn e srn o s p arâm etro s q ue os de o u t ro ra, p o r q u e s uas
9 Em um artigo redigido em 19 8 0 (Une Nouvell e théãtralité : La perforrn ance, R e vuc
a postas n ã o são rnai s a s m e sma s , b em c omo as te ori a s q ue a s fra n ça ise d 'études a mér ica in es, n . 10 , out . 198 0 ) , Régis Durand observava que a
f u n d a men t a m. performance não é nem um gên ero, nem u m a arte, ta lvez u ma função, s u b li n h a n d o
então q ue se r ia p o ss íve l referenciar u m a funç ão performa nce e m quase todas as
artes . Haveria assim uma performance interna a uma arte, e uma performance
pura, isto é, d esembaraçada de toda hegemonia de gênero . Tal ideia da p erforrnance
8 Observ a ç ões feit a s p or o casi ã o d e uma m e s a redon d a sobre a perform an ce em co m o fun ção se n o s a fig u ra interessante, co n q u a n to p are ç a di fícil o pe ra r um a
23 o ut , 1987. n o H am p shi re Co llege. Arn he rst, Massac huse tts, e mencionadas por aprox imação ent re a p erfo r m a n c e i nter na a uma a rte (o teat ro. p or e xem p lo) e a
Je ani e Fc r te, Wo rn a n's Per form an c e Ar t , e m S ue-E lle n Case (e d .), Perforrning perfo r ma nce p u ra . Sem d ú vi d a . o rn orri ento e m q ue R égís D ura nd efe tuava esta
Fe rn in ísrns , Baltim ore: Th e John s H opkin s U n ive rs ity Press, ' 9 9 0 . p. 266-267. a nálise ( 1979. p ortanto n o pre ci s o in íci o d a p er form an ce ) ex p lica tal co men tá r io.
AL I";,"I D O S LIM IT ES; PE R F O R M A NCE E P ER FOIUvlATl VID AD E o Q U E R ESTA D A P ER FORMA N CE? 17 7
17 6

E ss a di v e rsid ade d a s p ráticas e d e fo r mas às quai s as p e r- A LG UNS E XE M PLO S DO S A NOS DE 199 0


form.a nce s re co rre ram n ã o pode, todav ia, es c onder o fato d e
q ue e s sas últ im a s tinham, to das el a s , uma s ó e JneS n la. fu nç~o : E u gos taria d e to ma r aqui trê s e x e m p los q ue abrem o d ecêni o
a de c ontestar a o r d e m a r t ís t ic a e e s téti c a que pre v a lec ia e ntao. d o s a nos d e 19 9 0 e qu e il u stram bem ce r t a s forma s d e qu e a
Não é , p o is , espa ntoso q ue a p erformance desaparecess e co rn o perfo rman c e at ua l p o d e se r evestir, fica ndo d e sde logo e n te n-
form a q uando a função que lh e foi a tr ib uída v e io a ser p r een - did o qu e to d a práti ca e m s i é ú n ica c q u e nen h uma entr e elas
c h ida . Inc u m b ê n c ia que a perfor m a n ce parece haver execut a d o p od e, sozin h a, servi r de te ste munh a do co n j u n to do gê ne ro. As
rn u ito b er n. du a s pri m e ira s pe r for ma nces tê m por a uto res vetera no s d a a rte
É c e r to que n o s di a s de h o j e a perfo rma n c e, o u a q ui lo que d a pe r for ma n ce, p ois se trata de R a chel Rose n t ha l, d e um la d o ,
d el a s ubsist e , n ã o p reen c he m ais essa m e s m a função . E la p a re ce e d e M arina Ab r a rn ov i ó/Lllnv, d e o u t ro. A últim a é a de u m a
in clu s iv e não p ree ncher ne n h u ma f u nção que con stituiria o jovem p erform er d e origem qu ebequ en s e, Mar t irr e C h a g n o n ,
d en o min a d o r CO IDum d a s prát icas atuais e d a s qu ais se po de r ia pro veni ente d o teatro.
d iz er que sejam e s p e é ífic as à própria p erformanc e. F a to que E sses trê s exem p los s u b lin ha m a t ít ul o s divers o s trê s fo rmas
p o d e ríam o s tradu zi r e m o u tros t e r m os a o di zer que um ~ r t is_t a d e p erformances e três relaç õ e s co m o se n t ido. Essas perfor-
que esco lhe hoj e a perform anc e co rn o m od o d e exp res ~ao nao mances oco r r erarn, todas , n e s s e s ú l t i mos a nos: a d e M a r i n a
profe r e fo r ços a rne n t e um dis curso a c e rc a de s u a re la çao com Abram o v i ó e m 1988 , a de R a chel R o sen th al na prim a vera d e
a arte , o qu e o u tro ra e le faz ia n ece s sarianlente. 199 1 e a de M artin e C h ag n o n n o o u tono d e 19 9 0 .
E sco lhe r a p erformance hoje, não é mais, portanto, e s colhe r
COlDO prioridade uma função ; é optar acima de t u do por uma A . O Percurso da Muralha da C h in a :
forma, um gênero ta lvez, q u e permita ao artis ta p r onuncia r um um caso l im ite q ue não mais tor na a questio na r a f unção
dis curs o , primeiro sob re o mundo e acessoriamente sob re a d a a r te .
arte. No p roced ime n to do p erf orm er, a s preocupações formalis-
t a s n ã o são m .ais p r imazi a s. O art ist a s e preocup a d e n o v o c o m Em 19 8 8 , Marina A b r a rn o ví ó e Ulay, conh e cidos n o mundo d a s
a m ens agem, c om a s ig n ificaç ã o . E quando ele faz intervir as artes desde o c o m e ç o dos anos d e 19 70, e m p re e n d ia m s ua últ im a
tecn ologi a s na c e n a (recorrendo ao vídeo sobretudo, mas tam - performance corn urn . Essa deveria m a r c a r s ua separação. Daí
b ém ao fil rrie , à foto e tc. ) , e s sas últimas es t ão lá apenas c o m o por diante, eles i r ia m um e outro s e g u ir cami nhos s e parad os e ,
s istemas d ife ren tes p ara aj u d a r a melhor const r u i r o se n t id o . para s a l ie n t a r e sse fato , decid iram r ealizar c o n j u n tamen te u m
E s s e rec urso às t e cnolo gi as n ã o ve icu la rn ai s e m si m e sm o uma projeto que lev avam a p eito há muito temp o e que cons is t ia e m
forte posiç ã o ideológica concernente ao valor artístico dess.as percorrer em toda a s u a ext e nsão a muralh a da C h i n a , p r o jeto
mídias. O lugar destas ú ltimas é doravante u m lug a r coriqu is - conceb ido d e sde 1980, no tempo de sua co laboração.
tado e não s u r p re e n de ma is. A performance deles consistia, pois , em um traj eto, uma t ra -
Aí está o deslizamen to ( sh ift) imp ortan te ocor rid o no jetó r ia de fato , que ia dos con fi ns da Á si a ao Pacífico . T r atava -s e
do mí n io d a pe rfor ma nce a par t ir d o s a nos d e 198 0 . A p erfor- de atravessar a C h i na e percorrer s ua muralha, única c onst ruç ã o
man ce n ã o é mais uma fu n ção . E la se tornou um gên ero e, c o m o humana perceptível do e spaço. Cad a u m dos d ois d e via partir d e
tal, el a p ôde por s u a v e z, como todo gênero, preencher vár ias uma extremidade da muralha e c a m in h a r ao e n con t ro d o o u tr o .
fu nçõ es ( d e d enúncia, ritual, di scurso sobre o mundo, s o b re Ulay partiu dos confins d o deserto de G o b i, Marin a da s
o e u ), t udo a q u ilo d e q u e n ã o se priv am o s múltipl o s artist a s cost a s d o Pacífic o. A m archa solitár ia devia durar trê s meses ,
qu e a e la s e e nt regam . ao t ermo d o s q uais e las d e vi am -s e e nco n t rar p ara se sep a r a r
p a r a todo o se m p re .
17 8
ALf.M D OS LIMITES: P ERFORMA N CE E PE RFO R MATIV l lJA DE o QUE R E ST A DA P E R FO RM A N C E ? 17 9

A per fo rnlance p r o pr i arne n te dita consis tia, por certo, na mostrado que a duração faz parte íntima da experiência estética,
p ró pr ia ca mi nhada sobre a muralha da C hina, caminhada q ue mas até onde se pode levar essa relação com o tempo e o espaço?
im p licava um desgaste f ís ico d o s d o is performers, ass im co mo O problema aqu i n ã o é tanto a natureza, ela mesma, do p rocedi-
um desloc amento c u ida dosamen te traçado, mas, para ser exato , mento, porém o fato de que uma tal experiência artística exclui
seria preciso sem d ú vi d a inclu ir também, como fazendo parte a possibilidade de que tenha um público, ainda que fosse u m
da p erforma n c e, n ã o só t odo o trab alh o prepa r atór io n ece ssá ri o es pec tado r único. E la s ubli nha q ue, no limite, a p erform an ce é
pa ra o ace r to fina l d e ss e pro j eto e a organização d e ss a longa feita essencial m.e n te, se não u n icarneri te, pa ra o próprio a rti sta.
v ia gerri - trab alh o q ue du rou vá rios a nos e req uereu tal e nto s de Se admitirmos tal afirmação, q ue n ã o n o s s urp reen de d e s -
negociações impo rta n tes a fim d e se obter to das as a u torizações medidame nte, v isto q ue a q uestão já se h a vi a pro p o sto ao te atro
necessá rias, de plan ej a r o traje to, d e organ izar a chegada e as n o d e correr dos a nos de 1970, s u rge e n tão urn a o u t r a questã o :
co n d ições d e ss a exp e r iê nc ia - m a s t a mb ém t od o o t rab alho q ue di ferenç a há e n tre essa p erformance e a de um explorador
s u bseque n te: produç ã o d e um film e , expos içã o, fo tos, criação q ue d e c ide re alizar uma fa çan ha: esca la r um pico ro chos o , p or
d e o bras d e a rte inspi r ad a s p el a vi a g em e tc. exemplo? Se rá que o in tu ito d e realiza r urna o b ra a r tí s t ic a é em s i
Se ria dem a siado long o r etomar a q u i to d as as etapas d e ss e su ficiente? Será que o o lho d a câmera, a fotomontagem e a expo -
labo r qu e s e tornou o b jeto d e um g rosso lbu rn" e m que são á s ição q ue se seguerTI b ast a m para tr ansformar a aven t u ra inicial
retra ç ado s o s dife rente s m o me n tos d e ss e p ériplo , m a s é inte - e m p erformance ? Com p reen der-se-á que a questão o culta por trás
re ssante s u b li n h ar que os traços restante s d e sta ave n t ura (fi lme, de tal interrogação é refe rente à n a tureza e à finalidade da arte.
á lb u ns, fot o s , e x p o s ição, comentá ri o, relato ) são os úni c o s A diferença e n t re essa p erformance e as dos anos de 19 70
m eios do público tornar c o n h e c i me n t o desta p erformance e, se deve ao fato de que a questão aqui colocada sobre a função
portanto, de "v ê- la". da arte emerge de nossa própria interrogação e não daquela
O interesse dessa p erformance é por ce r t o que ela c o n s t it u i do arti sta. Se o s artistas a tivessem, eles mesmos, programado
u m c aso extremo e m face d o qu al a ge n te se interroga sob re os e teori z ado, teríamos re encontrado o gênero de preocupaçõe s
li m-ite s da perform ance e s o b r e o s e u se n tido h oj e e m dia. Com qu e a p erformance dos a nos de 19 7 0 e 1980 veiculava de bom
e fe ito, m e smo se os a r t is t as insi stem que para el e s se tratava g r ad o . Mas, renunci ando a tal preocupação, transformando essa
ap enas de uma viagem, toda a e m b a la g e m artística que envol- aventura em uma simples viagem, Marina Abrarnovic e Ulay
ve u ess e longo périplo (e ncenaçã o , câmer a, álbum, exposição, s u b lin h a m bem a guinada que a p erformance deu nos dias de
filme) milita e m fa vor d a transformação d e sse eve n t o e m per- h oje. E la n ã o t em mais a fun ç ão de requestionar noss a relação
fo r m a nce. Essa levanta, e n t r e t a n to, ce r t as interrogaç õ es : com a a r te. E la não é m ai s s e n ão um gênero que veicula ideias
so b re a distância, a duração, a multiplicidade dos povos etc. Isso
1. A imensidade do trajeto a realizar e realizado (perto de ressalta que a distância tomada pela performance com respeito
4 mil km) , a ssim co rn o a duração da ex per iê n c ia (p e r to d e três à s que stões teórica s por nós a p o n t a d a s mai s acima, constitui
m e s e s ) não r ep õ em e m discuss ã o a própria n o ç ã o d e perfor- um a de s uas carac terís t icas a t u a is .
manc e? As exp e r iências t eatrais d o s a nos d e 19 7 0 , a s d e Bob
Wilson, a s d e Jean -Pierre Ronfard e m Quebec", j á nos haviam 2. U m a performance sem público pode ser considerada
uma p erformance, ficando entendido que o s espectadores oca -
10 Marina Abramovic; Ulay, Th e Lover s, Amsterdam: St e d e lij k Museu m , 19 89.
sio n a is e n co n tr a d os por n o ssos dois p erform ers n o curso desse
11 Em 19 81 , Jean -Pierre Ro nfard , do lhéâtre t xperimental d e Mont réal , c o nce b ia longo p éripl o , o foram a pe nas c ontra a v o n t a de, sem dúvida
c punha e rn ce na u rn a ob ra mo n u me n ta l intitul ad a Vic e t m o r t d u roi boi t eu x u m pouco s ur presos de ver esses-viajantes d e um o u t ro m u n do
( Mo n t rea l, V L B . 19 81) . Apre s ent ada n o com e ç o e m trê s repre s entaç õ e s , a obra foi
le va d a em s u a ín te g ra ern j un . 1981 e d u ro u qua s e doze hora s .
passar e m se u h o r izon te co t idiano?
18 0 ALÉM DOS LL"vllT ES: PERFOIU"IA N CE E PERFORMAT IV ID ADE o QU E RE STA DA PERFORMAN C E? 181

C o m e fe ito, o ú n ico o lhar di reta n o d e c orre r dessa viagem fo i B. Pa ngeia de R a c h e l R osenthal.


o d e um a c ârne r a , mas esse n ã o fo i n ern exa ust ivo , n em co mple to. San D iego, a b r il de 1991 : um te m a p olític o.
Ulay n ã o pôde v ive r a p erformanc e d e J\tIar ina qu e , por s ua vez,
n ã o p ô d e efe tu a r a de U lay. Necessar iame nte frag m e n tária, i m pli- Sobre um palco à it a li a n a , co locando, por tanto, face a face o
c a n d o urnu co ns t r ução a post erío ri d o s d ife ren tes â ngu los de públi c o e a a r t is ta e rn urn a relação f ro n tal tradicional, s u r g e
v isão, a expe riê n cia a ssi m transmitida n ã o co n to u c o m n enhum Rachel R o s enthal e m uma cade ira d e r odas . I nválida, e n co -
p ú b l ico pro p ria me n te dito, exce to os p ró prios pa r t ic ip a n tes que letada p or todos os lado s , co bert a d e tala s e segu rando um a
t ivera rn de aco rn p a ri h a r os d o is p erforrn ers n o trans curso de bengala, ela profere um dis cu rs o sob re o e nvel h eci men to, o
s ua v ia ge m - técnico d e c ârne r a , assistente, g u ia - m a s esses abandono d o c orp o , a impo tên c ia , a fraqu e z a, a morte. O "e u"
último s n ão e s c o lh e r a m se u pap el como público . S ó o o l ho d e qu e ela utili z a n o se u di s cu r s o reme te, d e ma ne ira ambíg ua,
uma c âme r a, pois, estava lá p a r a im ort a lizar a lgu ns ex tratos, e perturbadora, ao m e s m o terrip o a Rachel (q ue p a re c e não po de r
e sses ú lti mos n e c e ssa riam ente f ragrnertt ár io s, irnp oterite s para m ai s s e m e x er) e a Te rra , a Gaia .". D e rep ente R a ch el se inte r -
reconsti t u ir a duração, s ã o o único tra ç o que nos resta di sso. romp e , se levanta ela c a de i ra d e ro das e se d e s fa z brutalm ente
A í a in da a práti ca artística m ode rna n o s habituou a acei- de seu aparato d e inv álid a, c o n t in u a n d o ao m e sm o temp o a
tar o fato d e q u e uma obra a r t ís t ic a existe m e smo sem público falar. À m edida que o discurs o se d esenvolve, c o m proj e ç õ e s d e
( po r exe m p lo, a lan d art que dificilmente podia escapar dessa imagens de rnovlrneritos telúricos, c o m p r ee n de-se qu e se trata
regra), p orém , o qu e n os parece m.ais intere s s ante no exemplo de refazer a unidade p erdida e d e r e in te g r a r a um só temp o o
que damo s aqui, é que, malgrado a ausência de público, por Eu e a Terra, e também a mulher e m geral.
ocasião da performance, houve, não obstante, espectadores: Os movimentos mal coordenados do início convertem-se em
es p e c t a d o r es do filme, da exposição. Esses últimos puderam a uma dança e Rachel canta e baila a unidade a ser reencontrada
p ost eriori "ass istir " à viagem, reconstituindo-a a partir dos traços em uma perfonnance que cons egue ser concomitantemente um
apres entado s. Puderam, pois, efetuá-la como p ercurso mental. discurso engajado, autobiográfic o e feminista; o mais impressio -
Ta l o bse r v a ç ã o sublinha, no caso, que há um efeito a poste- nante, sem dúvida, é e sse modo que a artista encontra para dizer
rio ri da performance que é muito importante, valorizando uma "eu" falando ao rnesrno tempo d a Terra Mãe que trata de sa lva r.
característica do fenômeno performativo: é que ele age, amiúde, As palavras não são maneirosas, delas se desprende uma
c o m o traço, com o transbordamento. O essencial daquilo que se verdadeira força que provém do próprio poder da artista que
p a ssa para o e s p e c t a d o r não ocorre forço sarn erite'" no próprio espanta por sua energia e imp õ e s eu talento in contest ável '<.
lo cal da perfonnance, mas alhure s , depois . A história apresentada p or R ach el Rosenthal inspira-se , é e vi -
C u m p r ir ia estudar a performance como " p o lí t ic a de restos" dente, na grande teoria ap r e sen t a d a por James Lovelock? s o b re a
p ara mostrar que toda performance, mesmo hoje erri dia, é inte - Gaia, a Terra. Ela c onstitui uma per fo r m a n ce por v á r ia s razões:
ressa n te m ais pelas interrogações que s u s c it a, do que pelo não
dito que nela s e discerne, mais pelo que ela d eixa subir à super- 13 C f. a hipóte se so b re Ga ia, tal como aprese ntada p or I.E. Lo ve lo ck, 'lh e Ages ofGaia:
fície d e nos sas próprias incerte zas. A p erformance de M arina A B iog raphy ofOur Livirig Earth, 1 ed . New York: W .W. N o r to n , 19 8 8 ; j .E. Lo vel ock
( 1987 ), G a ia , a New L oo k a t Life o n E a r th, O xfo rd : O xfo rd U nive r si ty Pre ss, ' 9 79 .
Abrarno v í ó e d e Ulay é, neste sentido, e x e m p la r e permanece, 14 Cf. R . Rosenthal, Rosen t h a l St a te me n t C o n cer n ing the NE A G ra n t (Te r m os e
ainda, muito próxima, no seu espírito, das performances dos C o n d iç ões c o m R e s p e it o à A r t e - Performan ce e à O b scenid a de), e m Th e Drama
anos de 1980. A de Rachel Rosenthal é algo totalmente diferente. R e v iew, v. 35. n . I , p . ' 3 - 14 . Sp r in g ' 9 9'
15 Lo vel o c k d e sen volve u uma teo ria d a e vo lução d a Te rra q u e vai d e encontro à e xpost a
p or Darwin. El e a fir m a, em p arti c u lar, qu e o m otor d a evolução n ão é/ fo i a lu ta e a
12 Cf. Ma r iria A b r a ruo v ic e U lay, N ig h ts ea C ross in g, em cujo t r an scurs o . du ra nte \/0 s o b re vi vênci a d o m a is fo rte . porém ãco o p e raç ão e a coex is tência. P ro curou . pois ,
dia s n ã o consec u t ivo s ( 19 1:1 1- 19 8 6 ), e les fica ra m se n ta d os, face a face , em s ilê n c io prom o ver uma v isão d o d e se n vol vi m en to d a Terra fu ndada n a so lida r ie dad e. Ta is
e sem u m s ó gesto. de u m lado e d e o utro d e um a m e s a . c on s idera ções tê m, e v id e n te m e n te , cons e q uê nc ias p olít ic a s e ideológicas .
A LÉ M D O S LIMIT ES: P E R FO RM A N C E E P E R FO RM ATI VID AD E
o Q U E R E ST A D A P ERFO R M A N C E ? 183
l ~2

a . ela fo i a n u n c ia d a e p rog r a mad a co rn o tal pelo museu de as ten sões e n t re s e u e u e a his t ó ri a , e ntre a po lítica e a estét ic a,
re instituindo a s complexidades da e n u n c iação.
belas -artes de San Diego;
b. s u a estrutura e s to u ra da , s e u aspecto multidisciplinar (ela Lá o nde a performance dos anos d e 1970 recusava s im p les -
recor re à música, ao ví d eo, aos diapo sitivos) e a natureza da m e n te a r epresentação d e um real que ela procurava a te n der
intervenção da artista a colocam, incontestavelmente, do lado da e m s ua i me d iatidad e '", lá onde, paralelamente, ela t o r nava a
pe rfo r nla nce. Rachel é ao mesmo tempo narradora, dançarina, qu estiona r a transparên cia desse m e sm o re al (que ela a limen -
cantora, h umo r ista, polemista etc. C o n ta n d o uma his tó ria pes- tav a a ilus ã o d e alca nçar), interro g and o o jogo de atuação de
soal, na aparência, a artista profere de fato um d iscurso político, sim ulacros dos qua is ele é mu it a s vezes o obje to, a performa nce
tornarrdo pos ição con tra a destr uição de nossa M ã e Terr a . d o s anos d e 1990 re n u ncio u a tal j ogo da ilus ã o . E la escolheu
retorn a r a e s s e m e s m o real corno fa b r icação do polít ico e de
Há nessa coexistência p ermanente ent re o relato pessoal e m o strá -l o co mo n e c essariam ente ligad o a o indi v ídu o . A p e r-
o discurso q uase mís tico que o acompanha a lg uma coisa de um forman c e é , pois, um a a ç ã o engajada, e o recu rso a e la como
ritual ao q u al some n te o artis ta é convida do, m a s q ue não pode gênero t orna - s e um m ei o efica z d e atingir um o b je t ivo (en ga-
deixar o público in diferente. Rachel n ã o cede jama is to talme n te jamento socia l, polític o , ecológico ). Ela se to rn ou, p o r isso, u m
a esse misticis mo e as se q u ê n c ia s ma is "perforrn a t iva s" sucedem gên ero e n t re o u t ro s que n ão m ais propõ e problema.
a m iúde aos dis c u rs o s ma is engajados, faze n do d o co n j u nto, que Parad o xahn ente, d e s s e p ercurso, do s rn a is n arci sistas ,
d u ra mais d e um a h o ra , um espetácu lo e m que o a r t ista está n o e me r g e urn r etorno às antiga s mitologias . Corn o afirm a E dgar
ce n tro d a ce na e t o ma p o s iç ã o s obre o rnurrdo. Morin: "Encontramo-nos no necess ário desencantamento que
Esse s egundo exemplo ilustra admiravelmente bem uma traz muitas vezes o desencorajamento, o qual acarreta o recuo
d a s v ias que a performanc e tomou hoj e e m dia: a de uma forma cínico para dentro de si ou repõe em cena ou em s el a os a n t igos
espe ta c u la r que p õe e m ce na um artista e m ambiente midiático, mitos abandonados ."
rnuitas v ezes comple xo, e que veicula um a mensagenl explícita. Esse não é um dos menores paradoxos da perfonnance
Com e fe ito, n e ss a p erforrna n c e, Rachel Rosenthal n ão se ao qual tal arte, e d ific a d a contra todo conteúdo, v o lt a de n ovo
aprese nta e m c e na s irrr p lesrrierrte co mo cer tos p erformadores hoj e em dia sob a forma d e ritual, d e uma quase cerimônia'?
puderam fazê -l o n o pass ad o. Ela não trabalha no s e n ti d o de O discurso da performance reintegra então a palavra e o
m o s t rar o pro c e ss o d e fabri c a ção da o b ra de a r te , m a s p ara d es - se n t id o, o relato e a narração, conquanto de maneira não tradi -
co nstru ir a própria forrna a c u jo respeito ela se interro ga sob re cional. C o m o notava de um m odo muito justo Yvonne Rainer:
a natureza d a p e rformanc e . Tudo isso é algo j á firmado. O que é "A questão é corno contar urna história sem reduzir seus carac-
primo rdial p ara a artista é dizer qualquer coisa s o b re su a visão teres e situações à mera coerência, ao 'discurso naturalista'." 18
d e mundo e sobre nossa relação com as coisas, s o b re a destruição
d a Te rra e s o b re a possibilidade de recriar uma unidade p erdida. 16 Mu it o a ntes d as pe rfo r ma nces d o s ano s d e ' 9 7 0 , foram os happen in g s os pr imeiro s
A p e rforman ce d a a r t is ta v eic ula, p o rtanto , uma m ensagem a re p o r em d isc u ss ão o pro bl ema d a rel açã o com o real.
e um e ngajame n t o; ao fazê - lo, R ach el R o s enth al afi rma s u a 17 Segundo V. Tu rn er, o ritual é um dos meios mais elemen tares de introdu zir um
el e m e n to d e desordem no processo d a histó ria. É um dos primeiros m e io s ut ili -
p o s iç ã o de s uj e ito n a História, urna história da qual e la rec u s a z ad os p el as divers as c u l turas a fim d e m od ifi car o própri o sen ti do d a hi st ória . E.
a b s t rair -se e sobre a qual ela des eja t er p oder. H enry M . Sayre (7he Object ofPe rfo rmance: 7he American A vant-Garde since ' 97 0 ,
Ternos aí uma o u t ra carac te ríst ic a das performances a tu ais. C h icag o : The University of C h ica g o Press , 19 8 9 ) , adotando as disti nçõe s estabe -
le c id a s por Victor Tur ner e Rich ard Sc hec h n e r . m ostro u co m o a performanc e
Contrariame n te à imagem d e um s ujeito essenc ia lmen te p ul si o - dos a nos d e 1990 se s itu a en t re o ritu al e o re lat o , n ã o com o cria ção, porém co m o
nal que era o d a performance d o s a nos de 1970 , a dos anos de resu ltado d e um va s to e in nrcr ru p to d lá lo go co m o s outros te x to s .
í

1990 substitu i a im a g e m de um s uje ito q ue se recusa a eliminar 18 H en r y Say re, 7h e Object of Perforrn ance: 7he Arn er ican A van t-Ga rde since ' 97 0 ,
C hicago: The U n ive rs i ty of C h icago Press , 19 8 9 , p . 17 7.
184 A Lf. M D O S LI M IT E S: P E RF O R NI A N C E E P E Rf'U R M AT IV ID AD E o QUE R E ST A DA I' ERFORMAN C E ? 18 5

T r a t a -se d e u rn re to r no ao relato , u rn r el a to se m pre se m M artin e C hag no n ve m do teatr o e s u a p erfo r rnarice traz os


Iine arid ade , mas ern qu e a s rni cro ssequ ê ncias s e s uce de m co n s- . t ra ç o s d e s s a prove niência: prese nça mui to forte d o intérprete,
truindo , para a lé m d a fr agm entaçã o , urn a h istória, um tr aje to, sensibil id ade , jog o d e a tu a ç ã o, r elação co m a p al a v r a , co m o
urna s ign ificação . A exp e r iê n ci a d o indivídu o , s ua re lação CO m co r po, m a s tamb ém aus ê n cia d e m ei os te cnol ó gi c o s . No p alco,
o mund o e cons igo própri o , s eu cará ter ún ico e s ua or igi nali- a a r tis ta es tá so z in h a e m um cen á r io muito só b r io. E la fa la e
d ade es tão n o c e n t r o d a cen a . É o que ilust ra perfe it a me n te a é es ta palavra, sempre na pr irnei ra pes soa, q ue a p õ e e rn ce n a.
terc eira perfor mance qu e propomos corno exem p lo.
E u queri a u rna co is a da v ida , a de não deixa r nunc a fa ze r isso , a
C . Martin e C hagrio ri '>: O Fa z er , Montr e al , 19 9 0. d e n ã o m e deixa r s e m você .
E u 111e de ba to n o vazio. E u esto u lá o n de e u n ã o so u n ad a .
E u tenho sempre muita difi c uldade com a atualid ade, s o b re t u do
E m um a pequen a s a la , a a r t is t a instalou no p alco para o lado do
q ua n do es tou t r abalhando sob re um a p e r form ance e m a r te . Não! M as
p áti o um a pe q ue n a á r vo r e em dua s dim en s õ e s , p ara o lado é ve r dade . Iss o m e faz s e m p re p erguntar o que es to u faze n do ali! Por
do j a rd i m o v ídeo e no c entro u rn a corda que d e s ce do a lto, dos que fa ço isso? Eu n ão sou a única a dizê - lo. É e nco rajad o r.
c i n t r os. U m g r a n de círculo circunda a á rea d e atu ação .
A a rt is ta c hega e de r epente s e p õ e a fa lar. E la c o n t in u a rá o m ass a c re na Polytechn ique, isso nada nos e ns ino u de n o vo , nad a
a fazê- lo por quas e t oda duração d o espe tác u lo c o m cu nas que n ã o s e s o u besse a respe it o do ó d io, d o d e spre zo, d a hipo cri si a .
i nte r r u p ções du r ante as quais descreverá g r a nde s círculo s com Co m p ree n da m- m e b em . Não di go qu e é b an al. Não! Polyte chnique ,
isso fe z m a l, isso vai faze r m al por lo n go tempo. O que e u digo som e n te
os braços, i r á b alan çar-se n a corda o u correrá ao re dor d a área
é q ue o massacre d e 6 de dezembro é a sequência lógica da mesma
de atuação. histó ria. N ão é de o n tem que massacram a s m u lheres porque são mulhe -
As cenas se sucederão segu n do uma ordem d eliberada e res. É a sequê n cia ló gi ca d a mes ma H is tória com um h m ai ú s cul o e u m
c ontarão com humor a difi c u ldade das relações h umanas, dos i m inúsculo, conforme as c irc u n st âricias ."
c o n ta tos, das ligaçõ es, a t irn id ez em fa c e do outro, o ag uardo e
d epois a emancipação progressiva e a lib ertação. E s s e p'erc u rso A s frase s são n a p rime i ra p e s s o a. Os acontecime n tos são
p ess o al se r á po n t uado de reflexões mai s p olític a s, de to madas med iados pela n arr a d o r a p erform er que acu m ula as reflexões, a s
d e posição sobre acon tecimen tos ( mas sacre na École Polytech- o bservações, as t omada s d e p o siç ã o , a s d enún ci a s. T u do passa
niqu e d e Montreal), situaçõ es (a violên cia co n t r a as mu lheres, pelo Eu, o moi, o ego.
a s o lidão, o des apareci me nto das árvores, o arrn a rri e rit o ) , o u
interrogações d e nat ureza estét ica (questionamento d a artista O " p r e c is a m o s se r absol utame nte modernos" d a van-
sobre sua própria arte. Por que a p e r fo r m a n c e ? Por que a arte?) . g uar da é s u bst ituído a q u i p ela p ala vra d e o r dem " p r e c is a m o s
A artista desfi la as sequê nc ias, atacando o p ú b lico, inter- ser a bsolutamen te n ó s m e sm o s". A p e r fo rm a n c e torna-se um
pel ando - o , d e volvendo- lhe s ua p r ó p r ia im agem. O rir e stá aí, l ugar privilegiado da indiv id u a li z a ç ã o generalizada que c a r a c -
o humor t arnb érn, m as s obre urn fundo seln p re sé r io , em q u e teri z a nossa sociedade. A p erfo rmadora co loca assim o a ce n to
Ivlartin e C hag non analisa suas r e laçõ e s co rri o s o u t r o s e com o em s ua experiê ncia pessoal dotada de t oda a carga emo c io na l
mundo. É p or certo de s u a exper iê ncia que ela fa la, mas , por trás o u trora a usente d a s p erfo r m anc e s d o s a nos de 1970. O lado
dessa, proj eta -se o perfil do in d ivíd uo e m geral e do espectador pessoal n ã o é mais a penas político, torno u-se essencial. Surge
ern partic ular, o qual s e sente necessariamente concernido. u m a in st itu c ion ali z a ç ã o da exp ressão de s i.

19 Martin e C h a g n o n ve io para a pe rfo r mance a partir do te atro; ela apresentou Le No origi na l ingl ê s , o j o g o d e pa lav ras é feito e m " h is to r y " e "s t o r y ", d a í a
Fai re ( 19 90), En tre le dire et le faire (199 1) . funç ã o d a s let r a s " H " e " h" p a ra signi fic a r a prim ei r a. (N . d o T.)
186 A LEM D OS LIMIT E S: P E R FO RM A N C E E PE RFORMAT IVIDAD E O QUE RESTA DA PERFORMAN CE? 187

É interessante notar q ue nessa questão as mulh eres reco r, fun çã o n o d om íni o a r t ís t ico. O ra, co m o s an os de 199 0 , a teo-
re rarn e recor rern arn i úcie à perforrnance". É prec iso e s c r e ver ri a da forma d e sapare c eu e a fu n ç ão da perfo rm an ce tamb ém .
o co rpo, d izia H élene C ix o u s . Mai s que o corpo, a s p erform ers O q u e mudou d e sde os a nos de 1970 são as ra z õ e s que
escrevem hoje em dia o sujeito fa lante. d ete rminaram , c a u s ararn, co n dicio n a r a m a emergência desse
A importância concedida a ess e s microrrelatos da v ida q ue n OVO g ênero e m d ecorrên c ia da evo lu ç ã o das forrnas artísticas.
C hag no n desfi la d iante do e s p e c t a d o r, sua frequê ncia impõe Ma is uma v ez, o aspect o revoluci onário desta forma é admi-
u m n o v o modo de narração, uma outra narratividad e . Esta tido e até banalizado; a p erforrnaric e torna -se u m gên ero e n tre
le vou , por seu t urno, à emergê ncia de u m novo gê nero de p e r- o u t ros e e la pode, portanto , pôr-se a s ig n ifica r "de ou tro modo".
formances, do q ual o esp e tá c u lo de Martine Chagnon oferece As mudanças que a performance sofreu lig a m -s e à evolução
o exemplo, um gê nero qu e s e baseia mui to naturalmen te na d e uma é p o ca e m qu e não há mais ideologias for tes ( ideolog ias
tradi ç ã o do sta nd up comedians . políticas , econôm icas, estéticas) e projetos a rtísticos comu ns. A
A perforrner tornou -se um a Iorrna d e "comedia nte" que desaparição dessas vastas ideo log ias, ass im co mo a d es a fe iç ã o
co n ta s ua v ida como t odo e q ua lq ue r indivídu o p o d e r ia fazê- aos g randes sistemas d e sentido, foi compensada p el a emergência
- 10 redescobr in do assim os re la tos de v ida q ue os psicólogos,
21
, dos in divid ualismos, d o s nacionalismos qu e afi r mam a d ife ren ça
sociólogos e a n tropólogos ut ili za m como base d e sua exploração. dos s ujei tos, d o s g r u pos, d o s países, uns e m rel a çã o a o s o u tros. E
As m ic r o sse qu ên cí a s se e nfi le iram uni a s a pós as o ut ras a perfo rmance dos anos d e '990 presta-se admiravelm en te a tal
co nst itu in do u rri a narra ç ã o n ã o linear qu e n o s co nvida, por s u a v isão. Ela se presta a um a expressão do m oi, d e um e u que quer
v ez, a refaze r o percurso d e s ua fa b r ic a ção (ver, p or exem p lo, vive r n o p resen te integrand o e m su as preocup a ções imediatas
Th e Dinn er Party [O B anqu ete], d e [udy C h ic ago) . um fu tu ro que ele imagin a n ece ss ariamente e m c r ise.
Essas n1i crossequência s re rne t ern , a lém di s s o , a o u t ros To man do posição sob re a res publica , s o b re a q u a l tem
te xto s e d e sbo rd am o q u ad ro es t r ito da perform a n c e , es ta- cada vez m eno s dom íni o , o perfo rmer at u a l ilustra es te e n fra-
b el e c e n d o u rn di álo g o co m o u t ras perforrnarices. com o u tros q uec imen to do se r q ue Vatt imo co ns ide ra indisp en s áv el à
mic ro r r elato s , rem e te ndo ao p olític o , a os acon tecimentos fo ra positividade d a e ra m ode rn a.
d a ce na (co mo, p or ex empl o , o mass a c re d a Polytech n ique o u Faze n do isso, t o camo s em urn a d a s r a z õ e s d a sobrevivên c ia
a r e ferência a os problema s ecológ icos e m R a chel R o s e n thal ). da p e r fo r rri a n c e n o s anos d e 1990. É q ue, se m o sabe r, a p erfor-
Instala-se uma inte rte xtua lid a d e. A leitura se faz , p ortan to , sob mance prob lematizo u o ind iví d uo, quando , n o s seus in ícios, el a
a forma d e um a d e c od ifi c a ç ã o d e um p alim p s e s to . acreditava proble m a t izar o corpo e s u as puls õ e s. Fazendo is s o ,
Pa r ado x o nessa intertextu alid ade que se instal a na perfor- ela c hegava no momen to exato e m que soc iólogos como Dan iel
rnari c e , o p erforrn er a c eita p el a primeira vez se p ôr a "at ua r"". Bell e C r is top he r Las ch te ori zav am , p or s u a ve z , o surgimento
Se procurarmos, p ois , saber quais são o s fund amento s qu e d e um n o v o individualismo.
t ornam a p erformanc e a in da possível hoj e e m di a , q ua n do a U ma outra r a zã o para essas tr ans formaçõ es, r a zã o d e o rdern
rn a io r ia do s parâmetro s qu e pre v aleci am em se u s u rgimen to es tét ica dess a vez, se d e ve ao fat o d e q u e os pro cedimentos a o s
d e saparec eram, cumpre reco n hece r q u e a performan c e e r a quais a p erfor rnarice r e c orreu e rn se u começo, foram u ltrapas -
a n tes d e t udo u m a for ma , e c o m o forma ela oc u p ava um a sados, a bsorvid o s, marcando ao m esmo tempo s e us limites: o s
proc edimentos de explosã o , d e fr a g men t a çã o , de repetição que
20 Moira Roth, The Amazin g D ecade: H'omen and Performan ce Arl in America '970 -
1980 , Lo s Angeles : Ast ro Art z , 1983. cor respo n d iam a uma é poca que se c ontrapô s à unicidade e aos
21 G ray Spalding em Swimming l o Carnbodia 01/ M arty Pottenger , Sa n Di eg o , m a io 1991. d o gm a s q ue essa últ im a ve ic u lava. Esses pro c edimento s, a b u n-
22 E ss e retorn o a o j ogo d o a to r é ta nto m ai s in te ressa n te qu ant o , e m um te xt o p ol é - dantemente u tilizados, leva razn ;-por se u tu rno , a u m retorno a
mi c o v iv a me n te di s cut id o , lvl ic hae l F ri cd h a via esc r ito que "a arte d egenera à
m edida que s e aproxima d o te atro': u m a certa u n icidad e , m a s não tota li tária.
18 8 A LI: M DO S LIMIT ES : PERFORMAN CE E P E RFORM AT I VIDADE
4 . Da Estética da Sedução
De fa to, t o das a s aqu isiçõ e s d o s a nos d e 19 7 0 n ã o foram
refut a das , p o r ém exce di das. A perfo rmance a parece desde
à do Obsceno'
e n tão C0 l110 se a p rese n tasse ca r ac te rís t icas p ós -rn o d e r ri a g
meSl110 se e u e m prego aq u i o termo corn pr u dê nc ia , p ois adiro
à reflexão d e Ha b e rmas, o q ua l afi rma q ue o " pós- mo de r n is m o
n ã o e rn it e qualquer s in a l cla r o":".
A p erfor m a rice n ã o p ossui teo ria , um a vez qu e el a não pre-
cisa ma is de teoria, po r q ue n el a oco rre a teo ria co rite rnp o r âri e a
H o j e em dia, t odo indi v ídu o é u m in d ivíduo p r e o cupado com
se u co rpo , corn s ua relação p a r a co m o o u t r o , co rn a implo-
são d o co lc t ivo, c o m a eva po r a ç ã o das id eologias, com o fim
d a s s u bve rsões , co m o n a scim ento d o s n a ci onalismos, c o m os
prob le mas ec o lóg icos . O p erform er a pare ce, p o r ess e motivo,
co mo u m in divídu o qu e n ã o é diferente d o s o u t ro s quanto às
pre o c upa ç ôe s qu e ele afixa na sua prática artística. Ao fazê -lo,
ele é p ó s -moderno,
Dito is s o , val e ressaltar que a perforrna.n ce conserva urna
inqui etude: o que a gente esquece, o que a gente sufoca, o
que a gente expulsa? Qual é o preço a pagar por essas novas É verdadeiramente possível cercar a definição de performance?
evidências? Dar a volta ao seu redor para conseguir defini-la e caracterizá-la
em função de parâmetros que lhe seriam próprios? Falar dela
T rad. ]. G u in s b u rg de maneira geral? 2 Os múltiplos textos, a r t ig o s , livros , escritos
sobre o assunto começam sempre por um alerta, uma negação
"A performance não é nem isso, n e rn aquilo:'] Os críticos s e
interrogam sobre a abordagern que seria a mais apropriada:
s e m ió t ica , hermenêutica, psicanalítica, ontológica, e r ót ic a- r

A noção d e o bsce no foi e m presta da a q ui d e Geo rg es Bataill e qu e a d efiniu


a ssim : "A obscenidade si gnifica a perturbação qu e desordena um es ta do d o s
c orp os conforme a possess ã o d e s i, à p oss ess ã o d a individu alidad e durá v el e
afi r mada" ; ve r G . Ba ta ill e, L'Ero tisme, Cal. 10/ 18, U.G.E., , p. 22 .
2 Cf nosso te xt o: Pe rformance e t th é ât r a lit é : le s ujet d émyst ífi é, em 'Ih éâtralit é,
écrit u re et m ise en sc êne, M ontr é al: HMH, 19 8 5 , p . 125 - 140; mas também What
is Le ft of Pe rform anc e A rt ? A u topsy of a Fu nc tion, Birt h of a Ge rire, Discourse,
v. 14 n . 2 , p . 142-1 6 2 , M ilwaukee, 19 9 2 , ambos incluído s n esta com p ilação.
3 C f G u y Sc a rpe tta , Erotique d e la p erforrnance, em Perfo rm an ce, Mont réal: Pa ra -
c h u te , 19 8 0 , p. 13 8 : "A performanc e, tem-se escr ito, n ã o é n em u m gênero, nem
u m a a r te . D ever-se -ia antes d izer uma fu n ç ã o? ': Esse texto retoma ele próprio
um artigo d e R ég is D urand, Une n o u velle théâtralité : La perfor mance, em Revue
23 Neoconserva tive C u lt u re C r it ic is m in th e Uni ted Sta tes a nd West Germany: An française d ' études am éricaines, v. 5, n. lO , p. 199-206, oct, 1980.
In tell e c tu al Move rne n t in Two Po litica I C u lt u res, em R. Be r ns tein, Hab errnas and 4 C f. a interro g a ç ã o de Ré gi s D u ra nd ao fina l d e se u artigo La P er for m a n c e e t
Modernity, Ca mb ri dge.: M IT Press, 19 8 5, p . 90 . les limit es d e la th é âtralité, Pe rform ance, p . 5 4 .
190 ALÉ M D O S U:<'HT ES: P ER FORM A !': C E E P ER I' O RM ATI VID A D E DA ESTÉTI CA DA S E D UÇ A O À DO OBS C E N O 19 1

A p e rforman c e se defin e mais fa c il me n te pelo qu e da n ã o é, Centralize i, p o is, minha interrogação em torn o de três q uestões:
do q u e pelo que e la é r ealmen te e to do es t u do d e performances
1. N o qu e as p erfo r ma n ces de L auri e An de rso n e de K a r en
especí fic as, co mo o qu e varrros t entar a q u i, de ve d efin ir a cad a
F i n ley cons t it uem real men te p e r form an c e s ? Q ua is s ã o s u as
v e z s u a s fe r rarne n ta s de abordage m , sua própri a me todolog ia .
carac terísticas ? E p ode - se d izer qu e e las representem uma e
U m fato perrnan e c e cons ta nte e aí está to do o intere sse da
outra du a s te n dê n cias das p erforrnarices de h oje?
performance, é que ela questiona n o ssos p r óprios parâmetros
2 . No qu e essas perfo r rnan c e s , urna vez catego ri z a d as , pre en -
de a n á lise d o teatro e n o s o briga incess a nte m e n te a redefinir o s
che m s e m p re o mandato o u a função que for am c o nfe r idos à
limites n o seio d o s quais n o ss o estudo é vá lido. E la n o s interroga,
p erfo rman c e nos s e us in ícios ? S e uma evol ução o u m odificaç ã o
a lé m diss o , sob re no ss a pró pr ia relação d e es pec t a do r d a obra ,
p ôd e ser observada, e m qu e sen ti d o ela se des enha?
sob re n o s sa p o si ção d e o lh ar o bse r v a nte . Ela nos r ern ete s e m
3. No que e ssas performanc es podem nos ensinar sobre certos
cess a r à q uestão da natureza do o bj e to o lh a d o, sobre o que a í
asp ectos d o teatro?
é dito, o que aí é feito, o qu e aí se é d ado a ver, e assim fazendo
el a nos interroga s o bre noss o p r ópri o o lha r. E la nos questiona A s dua s performances que p udemos ver e s t ã o ve r d a d e i-
sobre o como mais a in da do que sob re o p or quê e n o s repropõe ramente ern antípodas um a da outra: se de um lado um a é
in cansavelme nte a que stão da finalidade visada pelo ar ti s ta. tec nologizada, h a r m on io sa , esté tica, espetac u lar e sed uz o o lho e o
E co rn o toda p erfo rrn ance n o s força "a refl et ir so b r e nossa o u v id o do esp e c ta d o r ; de outro, a segu n da é provoca n te, agressiva,
própri a posição d e críti co , d e esp ec ta d o r" >, é sob esse â n g u lo qu e violenta, crua e p roc ura chocar acima d e t udo. No pr irnei ro caso
a bordaremos dua s obras de artistas q ue começaram n o d om ín io es tamos em urn ambiente quente , ritmado , harmonio s o e m que a
da p e r form ance a ntes de evolu i r p ara o utros can 1pos artísticos: voz d o a r tista e m b a la e p enetr a com doçura o o u vido. N o o u tro,
Lau r ie A n derso n (Ho m e of th e B ra ve (A Pát r ia dos Bravo s]) e o am b ie n te é c r u, as cores vi o le n tas, o corpo exibido, a voz r ouc a
Kare n F in ley (Th e Const an t State of D esire: Fro m Mondo N ew e estriden te, a lingua g em d a gí r ia , extremamen te sexualizada.
York [O Cons tante Estado do Desejo: Do Mon do New Yo rk]) e O tratamento d a palavra é aí diferen te: em La u r ie Anderson
a c o m p a n h a n d o - as com nosso próprio dis curso c ríti co. estamos p róximos da afas ia, a s palavras são raras, as frases c urtas
e p o é t ic a s , as fa las se a p resentam r aramente n a p r imeira p e sso a ,
t rata -s e d e frases fe it a s, pronta s - ready-made d o d is curs o e são
D E UMA PE RFORMANCE A OUTRA reprisadas pela música. E m Karen F inley o tex to p re c ipita -se , as
palavras s e atropelam. O artista grita, vocifera de maneira estri-
Ve ndo s u c e ssivarn ent e a s performance s de Laurie Ande rson dente ao microfone, s uas fr ases veic ulam s ua cóle ra, seu desprezo,
e d e Ka re n F i n ley, parece desde o in íci o qu e o afas t a me n to s uas reivin d ic ações e n ã o têm n enhum apoio musical. Estamos
e n t re e las é tão g r a n de que é pre sun ç ã o querer a p rox im á- las, na p le tora.
p r e sun ç ã o t amb ém pode r p ens a r q ue se trat a d e um a m e sm a Ora, para q uem o lha essas dua s p e rfo r m anc e s, é evidente que
fo rma a rtística. Sem dúvi da, s e r ia possível efetuar a a náli se s e a prirneira p r o cura agradar e sed uzir", acost uman do o o lho e
se m iológica de um a o u o utra s e p a r a d a rri e nte, rnas essas a ná- o o uvido por m e io d e image ns estilizadas (dança, pictogramas)
li s e s , p or ú teis q ue sejam, da ria m apenas urn a visão bastante o u ritm o s ( m ús ica, ca nçã o, voz quente , frases murmurada s )
est re ita d e um a práti c a q ue as d e sborda larg am ente. e valen do-se d e um aparato tec nológ ico muito sofis t ica do,
P are c eu-me , portanto, mais intere s s ante co m pará - las p a r a
ver a extensão d o que as separa e o q ue elas nos d iz.ern, u m a e 6 L. A nd e rson afirma, p or o u t ro la d.,?, que "a sed ução é r e alm ente um a pa r te
o u t r a, das prática s atuai s da performance. d a p er forrn an c e p ara a mbos os h o m en s e mulh e re s", e m Le nora C h a m p a g n e
(e d. j Our fro m Un de r: Texts by W amen Perf orma n ce A rtists, Ne w Yo rk: Theater
5 René Pa yant, Le C h o c du pr és ent, Performance, M ont r éal: Para chute , 19 8 0 , p . 12 7. C o m m u n ic a t io n Gro u p , 1990, p . 48 .
ALlôM DOS LIM ITES : P ER FO RM A N C E E P ER FO R M ATI VI O AD E DA ESTIÕTI CA DA SEDUÇÃO À DO OBS CE NO 193
192

a segunda investe essen ciallTlente na nudez do c orp o e na algum d e co n testação, qualqu er q ue seja ele. Estamos n o un i-
provocação, apelando a uma tralha inteira de fe sta : co nfe te s , verso da s e d ução, a q ue le que t ão b em d efiniu Jean Baudrillard,
a u irl a n d a s , c o r e s vistosas, procurando provocar pela d estruiç ão o de uma d is s olu ç ã o d o s s ig nos, um j o go d e fac h a da, de ilus õ e s,
o
de imagens ligadas à infância ( bab á s transformadas e m esp o n - de fal sa a p a rê nc ia, e m qu e o r eal se abol e e m uma d esrealização
jas e s a t u r a d a s de ovos) ou r ecorrendo a e le rn e n to s desviados dos fenôme n o s larg am ente d e s ej ados e ass u m idos . Se m dúvida
de sua fun ç ão prime ira (ovos qu ebrados com os quais o a r t is ta trata - s e aí d e um a escol h a d e cididamente pós- mo de r n a , fe it a
lamb uza o corpo). Estamos n o domínio da estética d o feio q ue d e peças e de fragm entos, sem narratividade, scrn personagem,
aproxima aquela performance da de u m Vito A cconci ou de se m r epres en taç ã o, na qual o arti sta faz rn alabar isrn os c o m a s
um Hermann Ni tsch há vin t e anos, performances das quais fo i imagen s e os sig nos . O es p e c ta do r rec eb e di s so urna s érie d e
d ito en tão q ue elas rn arcav arri uma forma d e regressão na arte sensaçõ e s c s e d ei x a levar por u m a s ucessão rápida de imagens
e um do s vestígios rnais tenazes do passado". que s e su c edem u ma s às outras e qu e ele t em apenas o tempo
Se fosse preciso, pois, categorizar essas d uas performances, a de d e codifi c ar. O s e n t id o escapa, não resta senão o mome nto
p r im ei r a pertencer ia se m dúv id a às performances formalistas e p resente e intens o d e um artista no aug e de sua fonna , c u j a voz
e stéticas procedentes do cubism o e do construtiv ismo, a segunda e músi c a i rrr p ôern a a d e s ã o.
às performances corporais procedentes d o express ionismo. A performance d e Karen Finley, por outro la d o , pode
Paradoxalmente, e apesar da sedução inconte stável q ue o d e s a g r ad a r profundamente em sua feitura , mas ela está mais
espetáculo de Laur ie Andersen opera, p a r e c e u - m e ao assist i- la p róxima das perforrnances a n tigas qu e p õ e m em cena o co rpo".
que a p erformance d e K are n Fi n ley se aproximav a ma is d a s p er- O conteúdo é a p r in cípi o cáustico, as im a g ens n ã o p odem
fo r m a n ces do pass ado, e n q ua n to a d e Laurie A n derso n p are cia se não pro v o c ar u m ce r to distanciam en t o , e a té uma r e vuls ã o .
s urg i r d e um r e gi stro mais te cn ol ó g ic o, o do espetac u lar, e se O v oye u ris m o d o espectad o r es tá e m ação, assi rn como o exi -
a p r o x im av a d e um s how musical o u de UIn vid eoclipe c om um bicionismo do artista. M a s o prop ó sito p ermane c e , q ue é o
es tilo p a rti cular. D e fa to, n e s t e úl t imo c a s o , afig urou -se- m c d e urri a denú nc ia de certo r el a ci ori a rn e n to co m o co r po, de
qu e o e sp e ctador a ssistia m ais a um espe t á c u lo do que a uma uma d en ú n c ia socia l qu e o a rtis t a fa z com apelo à v iolência,
ve r dadeira performance. Por ce rto, o co ncerto de Laurie A rider - viol ên ci a verbal ou imagens provocan tes q ue não po dem d e ix a r
son e ra excele n te e d otado d e i m a g ens s o be rbas, apoiado e m o espectador i ndifere nte .
um d om ínio d e t e cn olo gia n otável , mas c uj o p ro pósito pa rece É prec iso acrescenta r a essa r el ação, n o corpo so bre o qual
d ifu s o. Que di z a pe r for mance? Q ual pos ição toma em rela- a p er fo rm a n c e aí se co nstr ui u, q ue a p e r form an c e de Finley é
ção à arte e à sociedade ? Ern co nt rapart ida, a performance d e um a p e r fo r rn a n c e solitária , um one-wornan s how que p a r e c e
Karen Finle y ve ic u la uma v iolen t a d enúncia a certas r ela ç õ es entrar n a c a tego r ia d o que C h r is top her Lasch d efiniu como
fa rn ilia is e sociais . sen do a "c u ltura d o narcis is rno">.
S e le v a rmo s e m con ta o fa to d e que a p e rfor m a n c e ti nha Assi m fazendo, ao tomar o corpo como matéria-prima (e
um a função d e co n testação a pree nche r em s uas origens, não n ã o a rn ús ic a o u a t e c n olo gi a co m o o faz Laurie A n derson),
m e pareceu d e s c ob r i r a rna rca de qua lquer contestação na a p e r fo r m a n c e de Karen Fin ley se aproxima da body art d e
p er forman c e d e L auri e A n de rse n. p orém um s how adrn i ravel-
B É, ce r ta me n te , presunçoso, qu erer c a r ac te r iza r as p erformanc e s atuais c o m-
m ente bern azeitado e t er riv e lm ente sed u tor. Tomado ass im. a
parand o -a s à q uelas d e o u t ro r a, m a s o e x ercíci o n ã o vi sa aqui ap enas v e r onde
p erforma n c e n ã o t em m a is fu nção, ela se t o rnou u m gênero que e stã o os limites da própri a performance . Eles parecem e st ar no "e s p e t a c ular"
c ada arti sta pree nche à s ua vontade, m a s que n ã o t em m a is valo r de um la d o . do qual versa Laurie Arglers on e , d o o u t ro . o " tea t r a l" d o qu a l s e
apro xim a K aren Fi n ley.
7 Cf, Annett e M ich e ls on . e m Yvon ne Rai n er, P art I: The D an c er a nd t h e Da nc e, 9 C h r is top he r La s ch , Th e C u lt ure of N a rc iss is rn: Arn erican L ife i n ,m Age of
A r t [o r urn , v. 12 , n . 5, jan. ' 9 74 . p. 57.. citado s u p ra, p . ' 5 2 . Diminishing Expecta t io ns, N c w York: W .W. Norton , 1978. '9 79.
19 4 ALf:M DOS LIMI T ES: P ER I' ORMA N C E E PERI'OIUvlATI VID AD E DA ESTf:TI CA D A S EDUÇÃO A DO OBS CENO 19 5

an tigamente . Sabe mos que ou tras p e r fo r m a n c e s de Ann ie aCOInpanhando -se d e nxtr u rn e rr to x de músi c a origi na is : v io-
í

Sp r i n k.l e '" irão a inda mais lo n g e nessa via, extravasando a í lão rernendado, gra vata transforrnada em s i ntetiza dor, qu e se
também a performance, cortejan do co m os limites da arte para transfornlam e rn s e u s parceiros d e cena.
tocar no que poderíamos por vezes chamar de soft porn .
Essa preparação de con tex to te n do sido feita , ten temos
estudar ago ra as du a s perfo r ma nces d o ponto de vista de seu A Pura R ess onân cia dos Vocábulos
relac ioriarrierrto com o corpo, a lin gu a g em, a tecno logia, Com
o espec tador, com a m an ipula ç ã o d o s signos. As pa lavras são raras , os relatos quase inexistentes, as frases são
pron unciadas soto vo cce de modo atonaI, as fonte s de emissões
da voz s ã o multipli cadas. A voz sai amplificada, tran sformada,
LAU R IE ANDE RSON: UMA ES TÉT IC A DO multissex uada. Os sujeitos d e e nu nc iado deslocam -se, fazem eco.
DESC O NTÍ NUO E D A S ED UÇÃ O
Sim La La La La (Yeah. La La La La)
Dos.Objetos q ue P ro d uze m S ign o A qui. E Lá . (I -lere. And t here)
O h Sim (Oh Yes)
Essa é a li n g u a g e m do a mo r. (This is the la n gu age of la ve )
A p erformance d e A n de rs o n a ssenta -se inteiram ente sob re um 00000. Oh yeah. (00000 . O h s im .)
relacio nam e n t o quas e erótico com a tecnologia" : músi c a , v íd eo , La La.
microcomputador, diapositivo. Recusando todo naturalismo, A qui es tá . Lá está. La La . ( He re it is . There it is. La La)
su a abordagem é r e solutamente estética, projetando s o b re a tela Essa é a linguag em d o a mor. (Th is is the langua ge of Lave)
d e senhos, representando e m g eral signos que dialo gam c o m as
p alavra s das canções: univ erso de d esenhos infantis, a lfa b eto O s vo c ábulos m al têm s ig n ificado. Es tão lá p el a s sonorida-
ideogramático mais pró ximo d o s elementos d e so n ho d o que do des que carregam , pelo se u timb re , p elas s uges tões q ue evocam,
re al que a p erforrnan c e pretenderia levar em ce na. D e sfilando m a s n ã o se e ncontra m a p r isio na das e m rierrh urn a si n taxe, em
a ssim pássaro, a v ião, casa, cava lo e tc. enquanto um a cl aridade nenhum rel ato , estão liv r es p a r a s uscitar im ag ens o u n ã o s uscitá-
mu it a s v e z es un iforme (azu l, a m a r ela, d ourada ) b anh a o a r t ista -las . A d iss olução dos so ns respo nde à d issolução d a s im ag e n s.
e a tela d e um m esmo h al o . O artista entra n a t ela, se projeta O estatu to d e to dos esses s ignos - v is uais e sonoros - pro -
sob re e la, se inte gra a e la ou se -d is t a n c ia dela d e aco rdo c o m je tados o u evoc a dos é part ic u la r n a m edid a em qu e p erd e ra m
os momentos . A músic a c o n s t itu i a trama esse ncial, so no ra, toda h o m o g eneidade e con ti n u idade ent re s i. Eles apare c e m ,
h armoniosa que liga todos o s elementos entre si e n q u a n t o dan- seg u n do a ex p re ssã o d e R égi s Durand, como "s ig n os flutu antes
çar i nos e cantore s acompanham a partitura do arti sta. d e valê ncias múltipla s , s uscetíveis d e e n t r ar e m divers a s com bi -
O hu rnor não e s tá aus ente d ess e quadro: p ers ona g ens um na çõ es d e acor do com a e nerg ia d a q ual e les são p o r ra d o r es? v.
tanto paródicos por s eus c o s t u mes permitem um p ercurso no
mundo (Japão, C h in a, M éxico ) enquanto Lauri e Anderson,
se r andrógino ne sse universo, dirige todo esse co n j u n to Um a O rganização Por S o bre im p ressão

10 Cf. Annie SprinkJe; Marie Beatty, 7he S /u ts a nd Goddesse s Video vvorkshop or É que s eu modo d e o rga n iz ação n ã o é o d o rel ato o u d e um a
How to Be a Sex Goddess in 101 Ea sy Steps, New York, F ilm Filrn, 1992. 52 min o n arrativ a qualque r qu e seja, por érn a n tes a d e um a orga nização
11 A nderson t em amiúde fa lad o da fa scinação que a tecnologia ex erce s o b re ela.
da s e ns u a lid a de das m áquinas . desse poder qu e ela con cede . Cf. Le R oman -
ti sme de la techno logie, Art Pr ess, n . 38, p. 2 4 -26. jun . 19 8 0 . 12 Ré gi s Durand. L a Performa n c e et le s limit e s . . .. o p. cit., p. 40.
19 6 A LÉ M D O S LI MIT E S: P ERF O R M A N C E E P ER FO RM AT rVI D AlJ E D A ESTE:TI CA D A SE DUÇ Ã O A DO O BSCE NO
19 7

por camadas sucessivas, sob rei mpressão (os algari smos que se s ignificado se esfu m o u. Es ta mos próximo s do "efeito c i ne ma" tal
s ubs t it u e rn u ns aos outros e se mu ltipl íc a rn ), por superposição co m o o d efi niu R eri é Paya n t » a part ir d e W B en j a m in.
(L. Anderson como e ixo do radar projetado sobre a ce na q ue A razão principal vem de que a sintaxe de conjunto, tão
se c r ia n a t ela), repetição (algarismos multipli cados : o depo is ri gorosa quanto seja, es c a p a a toda lógica racional: o s s ig n os
1 depois o depois 1) , por desl o carne ntos , t ransl a ção v. Eles se aparec em a n te s como um alfab eto que o artista propõe. Eles
apagam, se tra n sfo rrnarn ao olhar (a casa se transforma em constituem u rna linguagem c uj a s regras e as c o m b in a tó r ia s
pictograma que se transforma por sua vez em im p u lso). O somente são dele conhecidas. Es ta b el e ce -s e assim sobre a cena
espetáculo procede por inscrição e s upressão de traços, por uma dinâmica que projeta o espet áculo constantemente à frente.
escorregadelas f urt ivas. Não há choques v iolentos, nem r upt u-
ras sal vo a q ue d ivi d e as "c e n a s" ou os a tos e ntre eles .
Um a Economia dos Signos

Uma Poética do Fragmento Jean -François Lyo tard observava que o tea tro oscilava sempre
entre u rn s iru b ólico e um econô mico' 6 • Corri L. Anders o n es ta-
Esses s ig nos só rnarit êrn corn seu r e fe ren te um e lo rn uito té n u e e mos b e m no do rn íri io do ecori ôrnico, u rna econo m ia d o s s ig nos
fragme n tá r io. E les não es tão lá p r opriamente a fa la r p ara rele m - e m q ue o fluxo a le v a ac irna d o se n ti do e e m q u e esse últ imo
brar, m as p ara abrir cami nh o s múltiplos n o s qu ai s o imagin ário apa rece corno fora do tempo , le vad o n ã o pel o s vo c ábul o s, n em
do espec tad o r pode se aventurar. pelas imag ens, n em m esmo p ela própria a r tis ta, mas p ela con-
T entando r eaproxírn ar a p er for mance d o t eatro, c o m o junção global d e to d o s o s el em entos cénicos .
d es ej av a A r t a u d, R. Durand n otava que a performance marca D esse s e n t id o, o es pec t a do r é o único d ep o sitári o. É ele
o fim d e uma "dramaturgi a d o c onflito" e opta d eliberadamente q.uem o fabri c a , quem, o co ns t i t u i, a partir d aquil o qu e o espe-
p o r um o u t ro modo d e co m u n icação mais p r óxirno d o r i t u a l, tac u lo d e sp e rta n ele. E, pois, do traba lho dele q ue d e p ende n o
em q ue a in d etermina ç ã o tem se u luga r ass irn c o mo a v a riabi- fina l do percurso a significação - se h ouv e r u m a - qu e e le o porá
lidad e os s ig nos » . A p erfo r m a n c e d e L. A n d e rson ofe rece - n os ao a n damento da p e r fo r m adora .
a ilust r a ç ã o p erfeita. De fato, co mo tive mos ocas ião d e diz e r a n terior mente, a
Os s ignos que n o s são d a d o s ve r não são jamais un ívocos. perfo r mance em s i não tem se n tido, po is n ad a tem a di z e r. E m
Necessa riamen te fragme n tár ios, se m p r e a prese n ta dos fora d e cOlnpe nsação, e la faz se rit ido v,
co n texto, e les n ão r e env ia m ao real p elo fa to de n ã o serern p or- 15 C f. ~O c in e ma [ .. .) produziu no espectador um choque e não pode se r percebido
t adore s d e s ig n ifi cado . E les "fazem s ig n o': co mo di zi a Artaud, sena~ graças a um esfo rço acentuado de a tenção. A cada imagem projetada,
eles r elemb r a m, eles lanç am o i m ag i nário d o espec tador sob re recebida pelo espectador, s e substitu i rapidamente uma outra a qual o olho deve
se readaptar. O deslocamento . que cara cteriza o reencontro do espectador e da
u m a pista , m as não o d e íx a rn a í se ave n t u rar p o r muito tempo. obr~, o efeito deste s o b re aqu ela, e que provoca a ansi edade (a experiência da
Sua rapidez d e a parição e de s ucessã o sob re a tela recon d uz a us e nc ra d e s e n t id o . da d eso ri entação) quanto à co n t in u a çã o, ao desenrolar. ao
o espectador p ara outros lu gares , la nça-o desde logo sob re o u t ras desenlace . O espectador de cinema d e ve , poi s , de algum modo, agir: se reajustar,
se .t r a n s fo rm a r: se instalar n o mundo aberto pela obra. Ta nto em Heidegger
p istas que n ão a q u ela para a qual el e naturalrnerrte iria, se esti- q~anto em Benjarn ín, o c hoque-des locamen to q ue definiu a experiência estética
vesse inteiramente livre p ara segu ir o s atalhos ofere cidos ao seu nao desemboca ~ m ~ ma in teira fa m iliaridade. O m undo exposto pela obra já é
o lhar. O s si gnos aparecem a ssim c o mo "significantes" v is u a is c ujo marcado por oscilaç ão e ntre o es tran ho e O familiar '; op. c it., p . 13 6 . Cf. também
Note s sur la performance, Parach ute, n . 14, p . 13-15. pri n temps 1979 .
16 J. -E Lyotard , La Dent, la paume, Des Di sp ositifs pulsionnels, Pari s: U G E . , 19 73 .
p . 95 (c o I. 10118 ). -
13 I b icie rn , p. 50 . 17 C r. ). Féral , Performance et théâtralité . Th éátralit é, ecr it ure et mise en scé n e,
14 I b id e m , p . 51. IlMH : Montréal . 1985 . p . 12 5- 1 4 0 .
198 A LE M D O S U ,\.1IT E S : PER FO R MA N C E E P E R FO R M AT I VI D AD E DA E ST!ôTI CA D A SE DUÇ Ã O A D O O BS C E N O 199

A C o ns tr ução do S entido Perten ce ao Especta d o r perf orm er a o s dança rinos . S u a a tenção torna -se flu tua n te e o
esp etáculo s e constrói n e ss es deslocamento s p errnan e n t e s que a
o esp e ctador p ode apenas s e deixar leva r p or e s s a s u cessão estrut ura do esp e tá c u lo lhe impõe. Seu o lhar é sed uz ido , co m o
r áp ida e ininterrupta d e sen sações. E le retira daí um a impr essão o é seu o uvid o . Não há n enhuma p r escr iç ã o , n e nhum mod o
de libe rdad e ext re m a na medida em que não te m difi culdade de e m prego e a apli c a çã o de to d o di s cu rs o e r u d ito s e esgo t a .
d e apreender o espetác u lo em s ua g lo b a li d a d e . Tal vis ão po d e Sua p e r cep ç ão fic a a ssi m ma r c a da p ela p re n hez das ima -
a p e nas se r fragmentár ia, parcelar se m u nicidade e sem c entro. gens , p ela p ersi stên ci a d e algu mas d e nt re elas e p ela dissociação
Ele é a p risio na d o er n um quase r itual de r e cepção em que a o bra q u e s e o pe ra e n t re a s image n s pe rcebidas e se u s e n tido ime -
penetra n e le de m aneira insistente , p o r érn el e aí pennanece diato, evidente . T a l d is t â n c i a pe r m ite a e me rgência d a v is ã o
se m p re e stran ho. crítica . Na a u sê n c ia d e to da d iret iva o u d e uma na rra ção qu e
D e fato, não h á fami liari dade p ossível com o q ue lhe é dad o imporia um d esenv o lvim e nto do relato, é o es pec t a do r que
ve r : e le r econhec e o s fragmen tos , rn a s s u a percepção viaj a se m co n s t ró i a o b ra e m último rec u rso. Esta só exis te n el e .
cessar do fam iliar ao insóli to. Se as imagens são, todavia, s e m p re Artaud reivindic ava uma escr itu r a não v erbal que t iv ess e o
iden t ificáveis, a j ustaposição de algumas de n tre elas, su a s ucessão, rigor da s in taxe e o fluxo d a s puls õ es . Se r ia p resu nços o a fi r m ar
s ua s uperposição é tão rápida que o espec tador pode apen as se que as performances d e La u r ie Anderson resp orrdarn a essa
deixar levar pelo fl uxo. Sua percepção fica sem cessar desorien - definição quando sabemo s a importância que Artaud dava à
tada, daí o s enti mento de estran heza, de d istanciamento que se presença do ator e ao seu c o r po, eleme n tos que não estão no
apodera d el e . U m certo deseq u il íbrio a limen t a do p ela artista se ce ntro da performance d e Anderson. É preciso, e n tretan to, reco-
ins tala, d es equilíbri o que é fonte d e uma extrema liberdade, p oi s nhecer que a força d a performance que analisamos a q ui depen de,
é ness e interstício p ermitido que pode s urgir t odo o im agin ário. contudo , d a e mergência d e u m ve rdadeiro dis cur s o n ã o verbal
glo ba l em que to dos os elementos d a repres entaç ã o participam
d o conj unto e n ã o existem de m aneira a utônoma. A força e a
Os Meca nismos Colocados a N u sedução que opera Anderson dependem d ess a independência e
simu ltanei dade dos dis cur s o s que s ed uze m incontestavelmen te
C e r ta mente o mundo nos é dado a v er p or migalha s , p or s uges- n a m edid a em q u e deixam e sp a ço ao fluxo das p u lsões, à via -
tõ es, m a s o espectador p erc eb e n e s s a m e sm a ocasião a n u dez gem d o s entido, ao surgimento do imaginário. Sentimo-nos bem
dos m e c a n is m o s colocados e m ce na. E le percebe, p o is , tan to tranquilos e m uma esté tica do d e scontínuo e da dispersão, uma
a pro du ç ã o do mun d o evocado qu ant o o p rocesso d e s s a pro - estética da sedução tal como a definia Baudrillard. Talvez seja
dução. A p a s sagem d e uma t e cnologia a o u tra, de um modo esse u m d o s s ignos rne rio s contestáveis d o p ó s -m ode rnism o.
de c omunic a ção a o u t ro (s om, imagem, vídeo, di a p o s itiv o s)
ar t ic u la div e r s am ente o espaço e coloca n e c e s s ari a m e nte o
espec tado r n o exterior desse un iv e r s o . KAREN FINLEY:
O pro ce s s o n a r r ativ o (mesmo se não é li n e a r ) é ap reen d ido O FETI CH ISMO DO C O R P O
ass im como um e nco n t ro d e diferentes rnodo s de c ornurrica-
ções, como o e nco n tro d e fragmento s d e univ ers o s diferentes Um Corpo Teatra lizado
( m úsica, i mage m , dança, p or exe m p lo) .
P el a p ró p ria estr utura de compos ição de conjunto, o Por s u a vez , a per fo r ma nce d e Firjjey é b a s e ada so bre o e x ibi -
e fe it o de e n q u a d r a m e n to restritivo fica abolido. A atenção do cion ism o d o corpo. C orp o q ue e la d e snuda , q ue ela unta, q ue
e s p e c t a d o r viaja de um lug a r a o utro, da tela à pe rformer, da ela recobre de confete s, qu e e la veste, que ela manipula. Seios
200 AL ~"1 DOS LIl'IITE S: P ERF ORM AN CE E P E RF OR.'"I ATI VI DAD E DA ESTÉT ICA DA S E DUÇ ÃO À DO OBS CE N O
20 1

que ela se n te o p eso, que e la deixa à mostra. E o espectador se Denunciando a s est r u tu r as simbólicas que o aprisi on am , Fi n -
vê hipnotizado por tanto d ese rnb araço '", por uma t al au s ência ley faz surgir sobre a c ena um corpo outro, urn cor p o "virg e m "
de pudor. car regado desde o início de toda a "semiótica" que o constitui em
Transpondo rapidamente o período de desvela ção, aq uele profundidade. O corpo assim oferecido to ca o inconsciente de
no qua l o fantasma se alim enta, ela vai di r eto à revelação e p or todos : o do artista, o do espectador que aí s e projeta.
assim fa z ê -l o o d e s m iti fi c a . Mas ao mes mo t e m p o ela provoca T a l in c o n s c ie n t e , e la o represe nta . E la o es t u da ern seu
o c hoque d o o lh ar, aquele que s e asse n ta s o b r e u m corpo tor- cor p o, n o s afetos q ue e le provoca e o transg r ide, o denun cia.
na do m at ér ia: corpo objeto, corpo ferramenta, corp o vaz io, E la r ep r e s e n t a dessa forrna o recalcado. Faz com q ue ele s u b a
corpo oco, sem id e n t id a d e do s uj e it o , sem sensualidade, sem à s u perfície, deixa-o visível, denu ncia -o.
erotismo. C o r p o do qual s e r etém apena s a nu dez, nudez pro- Estamos bem no domín io d e uma arte expressio nista que se
vocante, pois e la parece gratuita . ~ran~fonna e rn rnensag~m, massagem . Lyotard assinalava que a
O corpo faz e ntão o s igno. Seu d e s n ud a m ento é por ele p erforrna ric e faz e mergrr o co rpo inconsciente, faz com q ue s u b a
rriesrno o sig no e esse corpo n u apa rece d e nun ciador d e todas as até a cam a da dos s ig nos': é isso q ue a perfo r mance de F in ley
censuras d a s q u a is a sociedade o responsabi liza. Co r po sexuad o, ilustra admira v elmen te .
corpo d e m u lh e r, afirm a do como t al , p or iss o c o r p o d e poder. Parad o x almente , n e s s a c o lo c a ção em cena d o co rpo, de Seu
Co ntra r ia men te à perform a nce de L. A n derson, o co r p o próprio c orpo, a ident idade da p erform er a caba p or d esapa re c e r.
de Fin ley se e n c o nt ra e n fe i t içado, i nce nsa do. E le é apre s e ntado O u m ai s exat a m e n te, s ua posi ç ã o d e s u je ito se e nco n t ra ao
co mo lug ar do d e s ejo, lugar d o fa n t as ma que a arti st a quer mesmo tempo r e a fir mad a e n egad a: r e afirm ad a pel a a ç ã o ap re -
li b e rar, m e smo ao preço de violências aind a m ais fort e s. sen t a d a e n egada pel a ext rem a pres en ç a d esse corpo m até ri a
Tudo s e passa n o i ns t a n te. O t empo s e aboliu. Não h á mais que acaba p or tudo in vadir s o b re a ce n a '". E nco n t ram o- nos em
nem p a s s ado , nem fu t u ro. A p e rfo rmadora es tá lá "p o r in teiro" um trabalh o de d e sconst ru ç ã o do s u jeito e n q uan to s uje ito co ns-
e isso p a s s a e m se u co r po - matéria, c o r po d e smistific a d o de tituído e d e r e c onstruç ã o do s u j e i to e m torn o d e se u própri o
o n de t od a ce ns u ra fo i a b o li da. co r p o , um c o r po t ornado outro n o final do ritu al a o qual e le
foi submetido. A p erfo rm er aparece aqui c o mo trabalh ada p ara
o consumo, o fluxo pulsi onal que a arrasta e que se a p r o x im a
A Linguage m do R ecalca d o da pulsão d e rri or te .

A p erfo rm anc e r e c ondu z aqui a a r t is t a aos limites d o s ujeito


c o nst it uíd o c o m o e n ti d a de e tenta e x p lo r á- lo a partir dos seu s Um a Narra çã o que Estru tura a R epresentaçã o
e le men tos s im bó licos, o que a co n s t i t u i c o m o suj e ito unifi-
cado, co mo s u je ito femi ni no. A impo r tância co locada sob re C o n t r a r ia mente à p e r fo rman ce d e A n derson, Fi n ley fa la. Seu
os atributo s fe m i n inos do cor po o põe r a d ical m e n te Finley e relato é d en ú n ci a , c rít ica v iru le n ta d e um a cer ta o r dem d e co i-
And e r s on . T a ntoa p rim eira a fi rma seu s exo, quanto a segu n d a sas, d~ certo s relac iona me ntos humanos, crí tica a se u pai, ao
t ende p ara s ua dis s oluç ão em urn a androgen ia e rn qu e e la é às amor incestuo so que e le t em por ela, a o horror d e se u suicídi o ,
v ezes h omem o u rnulher, homem e mulher. à inércia d e s ua mãe. E le é grito , recus a. E é ao redor d ele que
se c onstrói a p erforman c e.
18 N a fita de vídeo é interessante observar a câmera se deter sobre t odos esses
o lh ares d e jovens e n t re t idos , s e d uz idos p or esse cor po q u e s e ofere ce a ss im 19 Pens o , e m p art icular e m o ut ras perforrffan c e s de A. Sp r inkJe e , em es p ec ia l.
se m ve rgo n ha. A câ m e ra s u b lin ha co m muita inten sid ade o voye u ri s mo d o e m Th e S luts and God desses Vídeo W ork sh op o r H ow t o S e a Sex Goddess in
qual esse gê ne ro d e p erforman c e ve m aco m p a n ha do. 101 Ea sy S te p s.
DA EST f'.TIC A DA S E DUÇ Ã O À DO OBS CE NO 203
202 ALlÕlI.'! DOS LI M ITES : PERFOIUvlAN CE E PER FORI- IAT IVIDADE

A perfornlad ora ofe rece s u a e x pe r iê nc ia , sua v id a, a ser está p erfeitarneri te s atu rado , supe rs aturado d e co rpo e d e text o .
e x p o s t a, a se r o uvida , e o espectador não pode escapar disso. Sobressai d o co nj u nto uma ex t r e m a v io lê n c ia q ue impõ e po r s u a
A linearidade do relato e da palavra impõe urna ordem, u m vez uma violência ao es pec ta d o r incapaz de es capar dali.
desenvolvinlento, uma evolução. H á qualquer c o is a de t errorista no andam ento. A impos -
Não há distanciamento possível. A força de apropriação da si bilidade d e e s c a p a r u m a v e z a performanc e iniciada. Aqu i,
irnagern surge assim q ue o corpo é colocado ern c ena, man i- é o r itua l que se irnp ô e e, como todo r itua l, pode apenas ser
p u lado, exib ido, assim q ue também vem acompan hado de um segu ido em s ua integ r id ad e .
di sc urso veernerite ern que a voz se t o r n a e la mesrna corpo e
veícu lo de uma palavra g ritada, den unciadora, po uco har mo-
niosa no s limites das capacidades vocais da artista. Ali também, o Espectador Voyeur
a artista opera nos limi tes do "a u d ív e l".
A narração que se dese nrola, feita de mic rorrelatos, mas A lib e rdad e do espec tador é, p o is, menor aqui do q ue nas per-
cujo sujeito do en unc iado pe rmanece a a rtista fa la ndo na pri- fo r mances d e L. A nderson. O corpo d e K. Fi n ley cativa seus
mei ra pessoa, é a via em prestada po r K . F in ley pa ra exp r im ir fa n tas mas. A e m pat ia es tá lá. Nós n ã o es tarrios no d omínio das
s uas pu lsões, para perm itir trazê -Ias à s u perfície , se m a n ife star. aparências, d as ilusões. As co isas fa zem sen tido e seu sen t ido é cru .
É um dos mo dos esco lh idos p a r a a tualizar seus fan tas mas: d ize r M as al ém d es s a a desão impo sta, o e spec tado r p ode a penas
o r e c a lcad o , o inconscien te, o ce ns u r a do . se inte rrog a r sob re o sen ti d o d e todo esse a n damen t o. Se rá s u fi -
ciente que o artista transgrida as proibições para que sej am , de
imediato, transgredida s pelo e s pec t a d o r ? H av erá um interesse
U ma A rte do E u ve r d a de ir o e m deixar emergir d e ssa maneira o s fluxo s pul sío -
nais d o s u jeito ? Dev e toda denún cia n ecessari amente c hocar ?
E n o ârn a g o d e t o d o esse d isc urso, se e ncon t ra a art is ta - Karen Se for precis o julg ar pelo públic o presente d o qual a câ me ra
F in ley, que se t o rn a ela m esrria h e r oín a d e se us relato s . É dela ap re e n de u os o lhar e s, não é c e r to que s e u prazer s eja es tran ho
qu e tudo sob revé m . É dela qu e tu do p arte. I~ ela que es tá em a um ce r to voye u r is rno, s e q ue r s uspe ito.
jogo e que s e c o loca e m c ena. Ao fin al desse p ercurso c e r t os ponto s de c o n v e r gê nc ia
A pre n hez d a s im a gens aqu i, s ua p ersi stência, n ã o ocorre m e me r ge m a pesa r d e tud o.
do hipn o ti smo qu e o peram as image ns r apidam ente proj etadas 1. Po r ma is dife r ent e s que seja m essas dua s per fo rmances é
e de pois apagadas, co mo é o caso d a s d e Laur ie A n derso n, ela eviden te que a relaç ã o das dua s a r tist a s com s ua própri a p er-
ocor re a n tes d a forç a pro v o c ante d esse c o r p o terrrv elrrrente fo r m a nce n ã o é a d o atar com se u papel. A s perfo rrne rs n ã o
presente d a artis ta, incontor nável, t o rn ado m até ri a . Não há se rep r e s entam p or s i próprias, m e smo se elas atuam b em e m
nen h um espaço para a psicologia em um t al espe tácu lo, a pe n as ce na. E las são a n tes, e m um caso co m o n o o u t ro, fonte d e p ro-
zo n as d e fugas p a r a o espec tador. A a rtista se torna o porta-vo z duçã o , d e d e sl o cam ento. Elas repre sentam o local de p a ssa g em
d e um a r e cusa g lobal. e o gerad o r de fluxo s e n e r gé ti cos (ge stuais, v oca is , musi c ais ,
C o m cer t e za o espect ador é sed uzid o p ela força da transgres- libidinosos) que a s atravessam s e m jamais se imobilizar e m
são tanto mais que é das suas censuras que a artista a s dirige, às uma d ada r epresentação. Elas atuam para operar o s fluxos, p ara
suas proib ições. E essas censu ras, e la a s faz voar e m estilhaço s. es t a b elece r as redes, p a r a desl o c á -l a s , para so brepô- las.
Mas a lém dessa sedução de superfície, res ide u m a v iolê ncia m u ito 2 . Nos dois casos as pe r for rnances procuraram operar no nível
maior feita contra o es p e c ta d o r que n ã o pode fugir salvo aban- das percepções e das sensações dos espectadores e não no nível
donando a sala (ou d esligando seu magnetoscópio) . O conjun to
204 AL É l'-l D O S LI M ITES : P E RF O R M A N C E E I' ER FORM ATI VID AD E
5. Orlan e a
d e seus sentimentos, força ndo-os a ver e sentir diferen temente .
Parece que a comunicação se fa z pela rela ção sinestésica d e
D e ssacralização do Corpo
s u jeito a s ujeito. A recepção permanece, po is, epidérmica. As
perfor m a nces parecen1, pois, d esfazer as compe tências do espec-
tador para dispô- las novamente de maneira di ferent e segund o
as estruturas própr ias da obra ern curso e não em função de
parâ metros que existi riam antes, c o m o é o caso no teatro.
3 . Mesrno se as perforrnadoras es tão presas na performance,
elas n ã o erice rra rn aí n e m corpo ne m alrna. Is t o é, sern dúvid a,
mais verdadeiro p ara Laur ie Anderson d o q ue pa ra Kare n F in-
le y. E las aí permanecem como estran has, m a n t e n d o um dire ito
d e mi r a r, u m o lho exterio r, dentro e for a ao rn c srno tempo. E la s
não procura m , p or outro lado , so lic it a r a e m p at ia, nem a a de-
são, m e smo se ocorre que elas o s usc item c omo d emons t r a mos
nos dois exe m p los qu e tornarnos ,
4 . Nos dois casos, ain d a que d e mo do d ife r en t e, as pe r-
forrnanc e s p er m it ern aos a r tist as se interroga r como s ujeit o
constituído, rn a s não de resolver o e n ig m a , o s u jeito que r esta
d e s s a z o na de passagem em que a s coisas s o brevêm , um lugar Eu n ão quero parece r com a Vên us d e Botticell i.
Eu não quero p arecer com a E urop a d e G us tave M o r e au.'
feito de d eslocamentos, superposições, fluxos diversos , contra-
Eu n ão quero p arecer co m a Psiqu ê d e Géra r d .
diçõ es, fragmentos. E m erg e qu e a s p erforrnan ces são antes de E u não quero parece r com a Mo na L isa d e Le onardo Da V i nci . ..
tudo s u jeitos d e sej osos e pe rfonn antes. como tern si d o reivin dicado e con ti n ua a s er dito e m vá r ios jo rna is e
5. As p e rformances co ns t roern um d es equilíb rio perman e n te p ro gram a s de televisão a despe ito d e m inha s múltip las contradições e
no qual a s artis t a s se instalam e onde elas instalam o e spectador. co r reção ir r itu d a ."
6 . D ire m os enfim p ara t erminar que toda p e rforma n c e - e O rlan n ã o é o n o m e dela. Se u rosto n ã o é seu rosto. Lo go seu cor po
a de L aurie A n derson e d e Karen F in ley não faze m exceção - n ão será seu corpo. Paradoxo é seu co n te ú do; su bversão é s ua técnica.
m esmo retornada, p erman ec e um lugar v ivo, sem irn obilis mo e Suas feições e membros são inte rminavelm ente fo tog rafados e r epro -
sem fixi dez. E la n ã o pode jamai s ser reap resen tada t a l q u al, uma duzido s; na Fra nça, e la a parece e m re v is tas pop u la res e e In p ro g ramas
p a r te dela n ecessi tando d e uma e nerg ia e d e um co nsu mo sem p re d e en trevis tas . Cada ve z que é vis ta, ela p a r ece diferente, porqu e s uas
p erformances o cor rern n a sala d e o perações e e nvolvem ci rurgi a pl ástica.'
renovado s. A performanc e c o mo lugar de c onsumo e n ergét ic o,
esc a pan do d o s circuitos s im bólicos d e outras artes, o perando no
nível de u m a infrateat rali dad e sem a to r, sem a u tor e sem d iretor. Tais term o s , com os quai s a crí tica Barbara R o se inicia um
É assim que el a a p a rece cad a vez rnais . E la é o b r a de descons - a rt igo q ue consagra à evolução de O rlan, a bord a m realmen te
t r u ção, d e d enúncia , d e recus a dos s is t e m as de repr e s e n t a ção
es tab el ec idos e a s si m fa zendo , ela se coloca nos lim it es do teat r o . A citação completa a crescenta: "e le nem é me u pinto r favo r ito. Eu e scolhi
Europa po rque e la é parte d e uma pintura inacabada como a maio r ia das
p in t u ras o é':
Trad. Fany Kon 2 Orla n , I d o not want to look like Orlan o n becoming Orlan, Wom en s Art
Maga zin e, n . 64 . m a io -ju n.o 1995 P . 8 .
3 B. R o s e , "O r lan : Is it Ar t ? Orl an and the Tran sgre ssi v e A ct", A rt i n Ame rica,
v. 81, p . 83 -125, fev. 19 9 3.
20 6 A LÉM DOS Lll'. lITES: PER FORMANCE E P ER FO RM ATI VI D A D E ORLAN E A DESSA CRALIZAÇ ÃO DO C O R P O 2 07

° e nig m a q ue re pres enta a evo luçã o artísti ca da p e rfo r m ática como Hermann Nitsch, Günter Brus, Otto Mühl, RudolfSchwar-
O rl a n . E n ig m a p o r vá r ias r a zõ e s : ini cialmen te devid o à nat u- zkogle r e out ros represen ta ntes d as Akt ionen, o ativi smo vi en e nse,
r e z a d a atuação d e O rl a n , e m seguida, por causa do se n t ido q ue que e ncarnaram seguramente uma das forrnas mais vio lentas
a artista atribu i h o j e à s u a atuação. d essa arte do corpo maltrata do, m utilado, exposto, q ue exibiam de
E m 19 90, aos 43 anos, O rlan empreendia a prime ira de uma maneira ritualizada , às ve zes o rgí aca e freq uentemente sacrílega o
sé r ie d e n ove o perações c ir ú rg icas que v ir ia m a transfor m a r seu contrá r io d o social: a sexu a lidade, a morte, o sa n g ue, o esp e r ma.
c o r p o e se u r osto, n o d e correr do s anos vi ndouro s, d e acor d o Todavia, m esmo se O r la n r econhece a in fluên c ia do ativi smo
com u m mod e lo do qua l ela det in ha o coma ndo. S e rvin do - vienens e na s ua p rópria prática, o cam in ho q ue el a empreendeu
- s e do s qu adro s de divers os a r t is t a s ( B o u c h e r, L e o n a r d o d a há a lg u ns a nos n ã o a p res e n t a n em o rri esrri o esp ír ito, n em o s
V inci, BotticelJi, G é r ô m e e u m pi n tor anô nimo d a E s c o la mesmos parâmetros . Servindo-se do body art e d o ready-made,
de Fontainebleau) , a artista comp un ha u m a utorretrato pelo sua trajet ór ia parece cer tam e n te rnais radi cal n o tocante à m odi -
co m p u t a d o r formado por fragmen tos de r e t r a t o s de mulhe- ficação de uma condição natural do indivíduo, transgredindo um
res tornadas célebres pelos pintore s qu e as represe ntaram e dado b io lógico e perturbando voluntariamente a ordem existente
e n c a r r e g a v a vá rios cir urg iões d e transfo r ma r se u c o r p o real das co is a s , tocando no seu próprio rosto e no seu próprio corp o.
e m obra de arte . E m p re s t a n d o dos q uadros um nariz, u ma Além d iss o , jamais um artista tinha d ecidido rnudar de rosto e de
te st a , um q u eixo, olhos, a artis ta recompu n ha o conjunto n o identidade. Tampouco jamais um artista tinha e m b a r cado numa
computador à ma neira de urn pintor, fazendo emergir, desses ação sem possibilidade de retorno. Acrescente-se também que
fragmen t os espars os d e mulhere s so n h a d as , o retrato d e uma esse radi calismo é a m p liado corn todo um discurso te ó rico q ue
m u lher d e stinada a s e t ornar b em r e a l, uma nova mulh e r q u e o acompanh a e explica seus fundam ento s.
cria, à image m d e D eus , seu próprio ro sto e s e u próprio cor p o . As m oti v a ç õ e s d e O rlan são realmen te co m p lexas e de
natureza e irnp or t ân c ia di fe r entes , vis to que a ar t is ta ins iste d e
Eu inventei meu auto rret ra to usan d o um co m p u ta dor para combi- preferência no d iscurso social q u e e la tenta manter assim o u
nar e fazer um híbrido de re presentações de d eusas d a mitol ogia grega. n a to ma da de posição artíst ica e existenc ia l q ue s ua a t uação
Eu as escolhi n ão pel o s câ no nes d e beleza q ue elas d evem suposta me nte
expri me. Esses d o is disc ursos, obviame n te, não têITI n e m a
representar (v istas de lunge), m as por con ta d as hi st óri as associadas a
elas. Diana foi escolhida p o rque ela se rec usa a se submeter aos deuses m es ma im p ortâ n c ia , nem o mesmo impac to.
ou aos h omens, ela é at iva e m esmo ag ressiva, ela di rige um grupo; Mo na O dis cu rs o social, a n tes d e mais nada, revel a, p o r p a rte d a
Lisa foi esco lh ida como um fa ro l n a h ist ória d a a r te, uma referência artista, preoc upações q ue a tingem a imagem da m u lher na arte
ch ave, não porque ela é lind a de aco rdo com o cri tério contemporâneo e na sociedade assim c o m o na prática da cir urgia p lást ica e no
de be leza, vis to que p o r d ebaixo d essa mulher h á um h omem, q ue ago ra se n ti d o que essa ú ltim a o c u pa n a s n o s sas est r u t u ras m entais .
n ó s sabemos ser Leonardo d a Vin ci, um au tor re trato esco n d ido n a O p aralel o en tre o rn ár ti r religioso e o sofrimento co n tempo-
imagem de Mona Lisa (o que nos traz de volta à questão da identidade).
Depois de te r m is tu rado m in ha imagem co m essas o utras imagens, eu râ neo vivido p ela s m u lheres q ue se subrnetern a tratarrientos
tornei a trabalhar o co nj u nto co mo qual q u er pintor far ia, até que um de c irurgia p lástica é ób v io .'
retrato final emergiu e foi possível parar e assiriá- Io .:'
5 Pa ralelo , a liás , o bse rvad o p or B. Rose, op. cit., p . 84. El a lembra com igual
A atitu de é sem dúvi d a r adica l, s urpreenden te, p a r a não dizer precisão que a a u to ra b elga Fran c e Bore l fa la d essa s u b m issão das mulheres
à cirurgia pl á st ic a como um d o s rito s d e p ass a g em d e nossa sociedad e. Sem
desconcertante, e e la s urpreen de apesar d o s excessos aos quais a d e rir c o m p le tamen te a tal a fi r mação, pre cis am o s co n tu do re conh e ce r que
p uderam nos acostumar a rtistas da body a rt n o s a nos de 1960, ta is essa prática oc u po u um lu ga r n ã o d e spre zí v el no imagin ári o fem inin o . Su b-
meter-se a uma operação, seja qu a l fo r ã nat ureza , imp lica o desejo s ubjacen te
de melho r integrar-se à so c iedade , respondendo àquil o que s e c rê se rem s u as
4 O rlan, o p . cit., p. 8. n orm as de b el e za .
20S ALI~l\1 D O S LIM JTES : PERFORMAN CE E I'ERFORMATIV IDADE ORL AN E A DESSA CRALI Z A Ç ÃO DO C O R P O
209
E u te n ho s e m p r e co nsi de rado rueu co r po fern in i n o, rn eu co r p o Noss~,época ode~a carne . . . Análises psicológicas e religião co n co r-
d e a r tista fe m inino co rn o se n do o m ate r ial pr irn ár io para m eu traba- d arn q ~e: . o c orpo n~~ deve ser atacado': deve-s e aceitar a si mesmo .
lho c r ia t ivo . .M eu t rabalho tern se m p re questi onado o s tat us d o co r p o Essas sao Id e. ias prrrrut rvas, ancest rais e anacr ónicas . nós ucred Iit arn os
, ,
fe m i n ino, e m m e u trabalh o a t u a l, co ns ide ro is to e m te r mos d e p ressões que o ceu carra sobre nossa cabeça se nos i nt rorncterrno, com o co r p o ."
soc ia is; e n o pass a do e u identi fiqu ei a lg u mas d a s rn a n e i ras q u e o co r p o
de mul h e r tern si do in s crito na história ela ar te.
. Tal a~o sacrí le~~ d e modificação no seu próprio corpo,
E ela a c r e s c e n ta um pouco mais adiante "eu acredito que há 01 la n dec I~e. e ri u rici á-Ir, com toda cla r iv idência, indo m a is longe
rnuitas pressões nos corpos das mulheres a ssi m como no corpo n e~se dOmII1l ~ q.ue qualqu er o u tro a rtis ta q ue a tenha p recedid o.
físico dos trabalhos de arte". Alem d e ss e Iirn ite, não rest a senão a n iqu i lar o d o indivíduo e
É e vi d e n te que a prática de Orlan ultrapassa infini tamente a m orte, escol h a qu e outros criadores puderam assurnir COID O
essa tomada de posição "fe m in is ta" contra as pressões que a socie- limite d erra d e iro d e s eu percu rs o, mas qu e p erma n e c e além
dade ex e r ce sobre o co r p o da mulher, posição que só s u r te efeito, da pre o cupação de Orlan m esmo se alguns s e c o m p r a ze m e m
s e for p o ss ível dizer, num nível superficial. Discurso igualmente observar a que ponto ela arris c a s u a v ida e m c a d a operação 9 .
s u per fic ia l deve-se, contudo, reconhecer (a ck n o w ledge ) - como
c-
Ess a e t a p a, Orlan, entretanto, não a transpõe, atribuindo para s i
aquele p elo qual a artista deseja "d ess a c ra liz a r o ato cirúrgico': uma o u t ra fo. r rn a de rn or te - o u de ren a sc imen to ' d epen d e - d e
um ~ orpo difere nte dotado de urn a nova identidade.
M eu trabalho não pretende s er c o n t ra a c i r u rg ia pl á s ti ca, mas E u s ou um outro: e u sou o p onto mais ex tremo da cori -
contra as nonnas de beleza e os ditames da ideologia dorni nante que frontaç,ão. Como o artista australiano Stelarc, eu acredito que o
estão se tornando mais e mais embutidas no feminino . . . Assim como corpo e obsoleto. Ele não pode mais lidar com a situação. Nós
no masculino .. . Carne . . . Eu sou a primeira artista a usar cirurgia como sofrernos mutação." lO
um meio e desviar a cirurgia plástica de seu objetivo de melhoria e
"Nós sofremos mutação': diz Orlan justificando desse modo
rejuvenescimento.?
sua prática. E ss a s mutações que inscrevem o ser humano numa
Que Orlan decida submeter-se a uma operação de c ir u rg ia temporalidade que ultrapassa usualmente a de urna vida e nos
estética, que ela seja até rnesrn o a primeira artista a utilizar, lembram nossa origem animal, as operações performáticas
c o rn o o afirma, a cirurgia como material artístico, ou que bus- ~e .O rl a n apontam -nas com o dedo, fazendo desaparecer esse
que dessacralizar o ato cirúrgico, não constituem em si posições úl t irn o bastião do indivíduo: um eu pessoal ligado a um corpo
dignas de interesse. Elas transformam o ato cirúrgico, em com- pessoal tal c omo recebido pela natureza.
pensação, desde que a démarche da artista nos seja apresentada
como obra artística, acompanhada de toda uma reflexão teórica M eus trabalh os e ideias incorpo r ado s e m minha carne. El es fa zem
pergLlnta~ sobre o status do corpo em nossa s o c ie d a d e e s e u futuro
que elucida sua prática e suas intenções.
nas geraçoes futuras em termos de novas tecnologias e manipulação

6 O r la n, op. c it ., p. 6.
7 Ibidem, p. 9 . Ou a in da: "Co m o um a art ista pl ástic a , e u queri a interv ir n a fria 8 O r lan , o p . ci t., p . 8-9 .
e es tereot ipada imagem d a ci r u rgia pl ásti c a p a ra a lte rá- la com o utras form as, 9
"~ rl a n de cla ra que a a rte é um as s un to de v ida e m orte , e e la n ã o es tá
p ara d esafi á -la. E u transform ei o c e ná r io , o s cirurgi ões e minha e q ui pe es ta v am b n ncan do: c a d a vez que é o pe ra da , h á um co ns ide rável fato r d e ri sc o . .. O
vesti dos c o m roupas exec u ta d as por im por tantes desenhist as d e moda, por mim p roced lmen t.o, co n hec id o como raquidi an a, r equ er urna inj e çã o n a es p in ha,
e por j ovens est ilis tas ( Paco R abane, F ran ck So rb ie r, Isse y Mi yake , L an Vu, um c o r re n do o rISCO d e p ara li s ar o p a ci ente se a a g u lha n ã o ace rtar exata mente
es t il ista americano e su a equipe )' ; p . 8. B. R o se acresce n ta a esse r espeito que na m a r c a. Com cada inj e ç ã o e p o st e r io r in te r venç ã o c irú rgica , o perigo tende
o fato d e Orlan esc u lp ir seu co r po, lembra, de m aneira intenci on al , como os a au m e n ta r. O rlan p od e es ta r b rin c a ndo d e role ta russa , transformand o se u
mártires c r is tãos, esta b e le c e n d o um p a r al el o ent re os so fr im e n tos d esses últimos corpo n um traba lho a rtí st ico. De lgurna for m a , ela correr o ri s c o d e ficar
ü

e as cio res das mulhere s q ue se s ub m etem a ope rações pl ásticas , operações, os deformada , para lisada , e, a té m es m o , morrer." B. Rose, op. cit., p. 86 .
ritos de p a ssa g e m segu ndo a fem in is ta belga Fr an c e Bo rel , op. ci t ., p. 84. 10 O rla n , op. c it ., p . 9.
O RLA N E A D ESS lI.C R A l.I Z AÇ Ã O DO CO R PO 2 11
A L I'.M D O S LI MIT ES : P E RF ORM A N C E E I' E RF O R 1'.lATl VID AD E
2 10

genética qu e não d e rno r arâo a vi r. Meu corpo :e m s~ torn ad o um luga~: desi g naç õ e s e m co nso nâ nc ia c r is tã , ta is c o m o "rito de passa-
ele debate público , fa ze n d o uma pergunta q u e e c r u c ia l para n o ss a era . gem': " is to é rneu co r p o, isto é rni n ha coerência", "e u ofe reci meu
corpo à arte", ou em consonância carnal, tais como "a rte ca r n al':
Nesse processo, a própria noção de natureza se anula. Não há "t ro c a d e id entidade': "o pe r ações b em s u ce d id a s", "co r po\sta -
mais nem natu ral, nem eu, nem inlageIn d e si , nem identidade i u s", " ide n t id a de\ a lte r id a de" " .
própr ia . Esses co n ce it o s - d e r ra d eiro s baluartes do homem num.a Mas esse tabu que Orlan transgride prej udicando s e u corpo
sociedade que s e desumaniza incessantenlente - to r n a r a m-se qui- só existe na medida e rn que o tema permanece r egistrado na
meras visto que cada um pode transformá- los à vontade. mitologia cristã, que insiste na unidade d e um deus num único
"Meu t rabalho é urria luta contra o inato , o in e x oráv el , o corpo. Se ele c hegasse a mudar par âmetros para op tar po r u rna
programado, natureza , DNA e Deus [ ... J A lguém pode d izer mitologia ind iana ou g re g a , como Orlan o fez em performance s
que meu trabalho é b lasfe mo?" . , anteriores e, rn uito especialmente, em Imagens -Novas Imagens,
Se r D eus no lug ar d e Deus, criador n o lugar do cnado r : h á que faz ia referê nc ia aos de uses e d e u s a s h i n dus qu e m u dam
certamente a lgo d e verti g inoso n es t a emp re itada de O rlan, a lgo de aparência para empreender novas obras e novas pro ezas",
d e sac rílego e de b lasfe mo ern pre tende r assim nasce r somen te a partir desse momento sua ação se torna mais compreensível
d e si m esmo . Von tade d e p oder, dir ia Nietzsche. Há e m toda essa e m e n o s sacrílega.
at itude d e O rlan a lgo que evoca rem in is cênci a s cristãs e insc reve O que O rla n marca assim sobre seu corpo é se u d e s ej o da
suas perfo rmances e m ri tua is a n t icr istãos dos quais a artista tem d iferença, da a lteridade, s ua recusa em a derir a urna identida d e
plenamente consciência, el a que trabalhou durante v in te a nos e m d efin ida d e uma vez p or to das. Ela r e vel a d es s e modo o ave sso
iconografia religio sa judaico-cristã, encarregando - s e d e algum~~ d e s ua p ess oa, o universo de suas fa n t as ias - a rtísticas e outras -
retonladas das imagens d e madona b arro c a , r e encarnando -s e ]a inv ertendo a o r de m das coisas, faze n d o v ir à tona , d e m odo
numa primeira v e z s o b a designaç ã o d e Sa n ta -O r la n ". , v isível para o o bse rvado r, a q u ilo que n ormalmente p e rm an e c e
Que n ão s e ja s u fic ie n te s er contra para e s c ap ar d a m etafi- oc u lto n o in d iv íd uo. A imagem interna q ue o indivíduo t em
s ica, t rata - s e a té m e smo d e uma co n t rame tafís ica, o q ue é fá cil d e s i mes rno va i ao e nco nt ro aq u i da i rnag ern ex terna, se d e ixa
co nstat a r, o bse rvan do -se q ue O rlan n ã o se d e ix a e ngana r p el o ve r, observar, come n t a r, exis t in do p a r ad ox a lrn erite n o s ujeito
laç o que une indefe ctivelmente o c orp o a t odo o c a m p o d o ce r t a profundid ade e s u a dualidade e n tre o interior e o exte r io r,
sagrado e d o social. Prejudic ar o c o r po, o seu co; po, é ~SS i ~1 o v is ível e o invis ível, o p e n s a d o e o p ercebido , o corpo real e o
a d mit ir u m a to a n t issocial se m dúvid a , m a s t amb em a n tí rreli- co rpo me tafó r ico. O co nceito q ue d á v ida e j ust ificativa ao pro -
g io s o ( mes mo se fo r d e s crente ) porque d e su m ano. É o res pe ito jeto d a artis ta tomou forrna , e nca r nou-se, tornou-s e s u b itamen te
d o dado , do inato , d o próprio co r po, d a própria v ida que se m atéria . Q u e a a r tis t a p are ç a p erder s ua alma n es s a o peração e
e n con t ra assim ult r a j ado , aniquilado , transformado. Co ns ide- pareça um tan to d e sumaniz a d a n ã o consegui r ia surpreender,
rando "a v ida c omo um fe nômen o estético recu per ável?". O rlan a í está uma pro v a s u p le rneritar daquil o que e u c hamarei o efeito
t r ans gride , p ortant o , r e alm ente um tab u e m rio rne d a a r te: _ Orla n , ou seja, s ub mete r à dis cus s ã o valores q ue nos cercam
" Is to é me u corpo, isto é m eu sangue" d iz a mi tolo g ia cnsta. nessa pós-metafísica d a q u al parecemos fazer parte.
" Isto é m eu c o rp o , isto é minha arte" pode r ia respo n der Orlan, Essa re to mada d e que stionamento d a p r oblemát ic a d e
que a t r ib u i às s uas va r ia d as operaçõe s d e s ignaç õ e s s ugestivas; n o s s a época é rea lme n te o qu e t enta , à s u a m an ei r a , Orlan,

15 " C a r n a l A r t , Id e n t it y C ha n g e, Rite of P assage, This is my body, thi s is m y


11 Ibidem , p . 8.
softwa re , I g a be m y bod y to a r t , s uccessfu ll operati on (s ), Bo d y/ st atus, Id entit y \
12 Ibidem , p . 10.
A lter iy ", ibid em , p . 6 .
13 O rl a n , na ve r da de, é um n ome e m p res t a do.
14 "C o n s id e ri n g \ife a s a recupe rab le aes t he t íc phen om en on". ibid em . p . 7· 16 Ibid em , p. 6 .
A LfM DOS LI MIT ES: P E R F O R MA N C E E PERFORMATI V IOADE ü R LAN E /\ DESSACRALIZA ÇÃO D O C O R PO 2 13
2 12

para q uenl a ar te deve antes de t udo ~ e r r~sistente, fazer-~os e assustadora; admirável po r q u e o o bje t ivo bus cado pela a r t is ta
refletir, d errubar n ossas convicções e mscrrr- s e fora das leis e é, s e rn dúvida, sinc ero , e mb o r a extremado e irreversível - na
das no r mas a fim de propor um p rojeto de sociedade. verdade, toda atitude irreversível tentada em plena consciência
e sern retor no poss ível a u m e n t a a admira çã o - , mas assu stadora,
Para rn i rn, a arte que é interessante est á relacionada e pertenc e à res is - tamb ém, porque a g ente s e pergunta se é absolutamente neces-
tência. E la d eve p erturbar n ossas prer ni s sas , esmagar noss o s pe nsa - sário passar por tais extremos para defender um ponto de vista.
rn entos, s it u a r-s e fora das n or m as e d a lei . Ela deve sr::
co nt ra a a r te
E o espectador s e põe a pensar: são esses o s últimos reduto s da
b u rguesa; e la não d e ve confo rtar, n em _d a r- n o s ~ q u e p sa b e ln.o~ . ~l a
deve ass ur nir r iscos, co rno o r isco de nao se r ace rta, ao me nos i n icial-
arte oci den ta l d e h oj e ? A arte d e v e c hegar a tais extremos para
rn e nte . E la deve s er transgressora e e n volver u m p ro je to para a so c ie- continuar a te r u m s ignificado? Tal e mpreitada faz sen tido? Deve-
dade. E m esrno se essa decla ração pa r e cer rnuito ro m ânt ic a , eu d igo: a -s e , necessariamente, e n c o n t r a r para iss o uma justificativa e não
arte pode, a arte deve m udar o m undo, poi s é su a únic a justifi ca ção. " seria tentado r d es co n s id e r á -Ia de um a só vez simplesmente como
g ratui ta e u m t ant o patológica? Tais expe r iê ncias têm r e almente
Tal profissão d e fé, mu ito s a rtis tas pode ria m p arti lh á -la essa relação c o m o social que elas rei v indic a m ? Têm el as verda -
c o m O rla n . No e nta n t o , e la s urpreende, n ã o p or ser d e s u s a d a , d e ira m ente a lgo a diz e r ? Em b usca de autenticidade, o a rti sta
mas porque ela d ifici lme n te parece aplicar- se à a: t ista. De fato, d e ve cheg a r a tai s extre mos p ara se fazer e n ten der?
de q ual p roje to de sociedade p o d e - s e fa lar aqui, de ql~al real U m a d émarche q ue, com cer teza, n o s que sti o n a n o pla n o
transgressão, de q ual ris c o , co m q ual o bje t ivo, com qua~s ~ n~? s oc ial, ruas tam bé m, e p ri n c ip a l me n te, n o p la n o art ísti c o ,
A s que stõ e s a s erem colo cadas à p rática d e C?rl a~ sao .m u- le v a n d o a nos interrogarmo s sobre os limites da arte. Co mo
meras e as reações m uito diversas - sej a d e a d m ir a ção, sep de separar u m a p r á ti c a artística a u têntica de outra q ue não o é
rej e içã o - que ela su s c it a provam s u fic ie n te m e n t e .a q ue ponto se o artista for o ú n ico r esponsável por tal d ecisã o? Sabe- s e ,
suas perfo r m a nces nos interpelaIll , n o s a b a la m e nos in~omodam. d esde D u c h a m p , que ess a é realmente a s it uação, mas quando
N a ve r dade, p ara qu em assiste a um a operaç a o-perfor- s e e nco n t ra diante d e c ertas o b r as artístic a s (pic t óric as o u
mance da ar ti sta O r lari, tran smitida ao vivo por satéli te em P a r is performances de la n d art, d e ready-rnade ou d e body art ), o
e e n l Toro n to e m bo r a a ope raç ã o s eja realizad a e m Nov a York , e sp e ctador começa a duvidar da utilid ade d e cert a s a t it u des,
h á a lgo de a luc in a n te a ser v is to, d e ss e modo t oda a pro n: o ç ão d e s eu s ig n ifi c a d o e d e sua legitimidade.
q ue a mídia faz a c erca d e tal acontecim e nto, as t ecnol o g ia s de Se m q uerer inserir- s e num cons ervadori smo r eaci oná ri o
po n ta c olocada s à disposiç ão da artis t a , o número de ~ e ssoas q u e s e dissem ina e que s erviu d e desculpas para as divers a s
de todos os tip o s movimen tan do-se em volta d o acon teCimen to ce ns u ras con t ra Mapple t h o r p e , K aren F i n ley e t antas o u tras
na sala d e c iru r gia (ar tis tas, e nfermeiras, ci r u rgiões, t.écnic~s aqui e a li praticadas pelas di versas instituições , é s ensato , crei o
a u d iovis u a is, rel açõ es públi c as, assiste n tes) , e n o ext e nor (cri- eu, e n ecess ário, interrogar- se s o b re a questão dos li m ite s da
t icos, analista s, esp e c ia li st as d a s m íd ia s , to d os co n ectado s na a t it u d e de Orlan.
repro d ução e m ví deo da c irurgia), assim como a quan ti d a.de
de anál ises e d e in ter p retações às quais se e n tregam especta-
lis tas n o s qua t r o can tos d o m undo assisti ndo à perfor m a n c e e CO R PO E FI C ÇÕ ES
corneri t a n do o s ign ific a do.
Sem sombra d e dúvida, h á a lgo de esp a n toso n a e mpreitada É eviden te q u e at in g in do seu p ró prio corpo, O rlan abre u m a
que O rlan le v a adiante, alguma coisa ao mesmo tem po admirável caixa de Pandora q ue sopra freq uen temente u m ven to d e te m pes-
t ade nos campos os m a is variados: do sagrado e d o o ntológico,
17 l bidem , p . 7·
d o inconsciente e d o patológico, d o consc iente e do si m bólico, do
214 AL ÉM DOS LIMITES: PERFORMAN CE E PERFOR:VIATIVIDAO E ORl.AN E A D E SSA CRALI Z A ÇAO D O CO RPO
2 15

social e, fin alme nte , da a r te. Toda p er fo rmance fu ndamentad a n o ce nár io) - suas funções pudendas ou repreensíveis : morte ,
corp o suscitou sern p re reaç õ e s muito divers a s dev ido à p róp r ia sexo, sa ng ue, urina, fezes - q ue se irrs u rgern ainda hoje alguns
irn po r t ânc ia dos inve stim entos lib idinosos d o s quais o t ema a a r t is tas performáticos como Ka ren Fi n le y' v, Annie Sprinkle,
sobrecarrega ou d evido às proibi ç õ e s que a s ociedade a c umu la. co mo o faziam outrora Vito Acconci, G ina Pane ou Ivlichel
Assi m a acolh id a , p elo m en o s moderada , c ujas inú meras apre- Io u r n iac, rn ost ra ncto-rro s aquilo q ue a soc iedade cont in ua a
s en tações do body art foram o bj e to n o decorrer dos a nos de 1960, oc u l tar, transformando e m espe tác ulo aq ui lo que se e rg ue da
e x per iê n c ia s frequentem ente taxad as n o mínimo d e decaden tes , intimida d e p r o fund a d o indivíduo . Vol u n t a r ia me n te pro vo-
para n ã o dizer ne u róticas ( Wald b e r g ) , cansati vas n a m ai or par te ca n tes, exib ic ion is tas , esc a tológ icas , s á d ic a s ou rnaso qu istas,
dos casos , às vezes i nsign ificantes'", são a prova disso. seITlp r e n o lim it e cIo tolerável , tai s pe rfo rrnan ces rem etem
S em querer retornar a q u i todos o s argu m erito s a favor o u frequ e n terne n t e o a p resen t a do r e o espectad o r a si mesmo,
c o n t r a a body art e sua fun ção subversiva, p ouc o imp orta q u e a se us p r ó p rio s li m ites, s u as própri a s ce ns u ras. O indi víduo
a performance d e O rl an d e sperte esses fantasm a s e tor ne a se n te vert igens d ia n te d e to d as ess a s formas d e ex per iê n c ia
q u estionar nossa relação corn o c o r p o atualrn erite, e n q u a n t o que algum a s p erforman c e s arra stam a o s lirn ites do s u p o r táv e l:
n ós viv ern os e rn s o c ied a des qu e na s ua mai oria tran sfo rma - s o f r i me n to, v io lê nc ia e mutilaç ã o .
ram o corpo e m c u lto, liberando o co rpo sobrecarregado pelos É no nível d o e s p ec t a d o r q u e s e sit ua a ação e n ã o no
ferreci rnerrtos dos quais outrora el e e r a respo nsável devido à palco, a pe r fo r m a n c e não sendo na maioria das v ezes senão
sua a usência de espiri tual idade, devido tam b ém a e s t a di vi são um pretext o so b re o q ua l o e sp e ctador interroga sem cessar o
i rrevogável e po r rri u ito terripo d o rn i n a ri t e e n tre a al ma e o Sig n ifi c a d o e a pertinência.
co rpo, o espír ito e a maté r ia . É ao jogar assim com o corpo, toman do-o como m até r ia ,
Hoj e , valorizado, c u ltivado, rn o t ivado, trarisforrnad o e m uni nd o o indiv íd u o e s ua image m , o in d iví d uo introdu z ido
o bjeto do o lhar, o corpo sad io to r no u-se o objeto d e UITl novo na su a o bra e se torn and o u m com e la, qu e a re p res e n taçã o
c u lto social qua s e unive r sal n a s n o ss a s so ci edade s oc identa liza - s e s u p r i me em benefício d o pro c e s s o , d o real izar, c uja imp or-
das . Os efei tos d e ss e n o v o c u lto n ã o são totalm e nte libertadores tâ ncia torna- se dom ina n te. É e le q ue in te ressa e q ue se fix a .
porq ue, nessa o pe ração de revalorização do corpo, e s te último Alijado de toda di mensão psíquica o u es piritual, o corpo
pa rece ter perdido to d a forma d e espirit ualidade, transformado torna-s e aí s u p e r fíc ie sem p r o f und idad e , sern espessu r a. E le
em matér ia facil me nte manipulável, rea li dade sem profundi - aí está, sem espir itua li dade ne n h uma. Devolvido à rap i dez
dade, e xibindo-se i n teiramente ao ol har, transfonn ad o e m da ação, do estar aí, e le p e rd e to da transce n dência, Iirn it ado
s imples o bje to. ao aq u i e agora, se m pro bab ilidade d e s u peração o u d e pro -
É exatamente con tra essa im a g em d o corpo bri l hante e jeção e rn o u t ro lug a r. Parad oxal men te, tal m anipulaç ã o d o
p olida à p e r feição , i m p on d o - s e por sua vez como norma, con- corpo r e s t a b el e c e essa d ivisão mais q ue m ilena ren t re o corpo
tra a irnagern q ue continua a e sconder o r everso d o corpo (do e o espírito, o corpo e a a lma. O co rpo tra nsformo u -se em
máquina , se m individualidade, sem persona li dade, vol tado a
18 nA body art não s ig ni fica n ada. Se us ce lebra n tes, p or fa lta d e comp reensão d o ser simples o bjeto pr ivado de t o d a s u bje t ividade.
s entido oc u lt o da t e cnolo gi a , que une o qu e j á n ão es tá mai s se pa rado, n ã o Por ter ass im preten dido la str ar d emais o corpo d e sím bolos,
sou be ra m o p ta r po r um a p o si ç ã o interm edi ári a e s a d ia e n tre o s imbolis mo
a performance esvazio u -o d o s s ign ifica dos d o s q uais e le p o d ia
es t ú p ido . e a e spiritu al idade , deg radan te" o u a in da "a n o ç ã o d e d en ún ci a e
de co ntestação d o pode r na qua l insis tiram numerosos artistas corpo rais, ainda estar sob recarregado. Fazendo isto, ela o d e slig o u d o social
se vê reduzida a uma ve le idade certa mente h o n e st a , mas ingênua e in e fic a z. ao qual cont udo seu dis curso crítico e teórico não cessava de
assolada por um vício fundamen ta l"; v er Gaston Fernandez C a r re ra , La Fa ble
vraie: I.:Art con te rnp o ra in d ans le piege de Di eu , Bru x ell e s /MontréaI: La lett re -
- v o lé e/Sa in t - M a r t i n, 199 1, p . 120-12 2 . 19 Cf. nosso tex to " D a Es té tica da Sedução à d o Obsce no'; n e sta co m p ilação.
AL € M D O S LIMITES , I'ERFORMANCE E PEKFORM AT IVIDADE ORLA N E A U ESSACR AU ZA ÇÃO D O CO R PO 2 17
216

remetê -l a. E la o co rto u tam bérn do indivíduo que não aparece o interesse pela atit ude de Orlan, o que a diferen c ia da body
m a is se não COl110 " rn áqu i na desejante", indivíduo despersonali- art movida pela nostalgia de um corpo energético primitivo e
zado, co n c e ito e nca r nado d entro d e u rn corpo. O corpo o rgânico natural, é q ue não há no seu disc u rso evocação de um cor po
origi nário d es a p a r e ceu cede n do o lugar ao "corpo sem ó rgãos" originário, verdadeiro, de um corpo arcaico do qual a soc iedade
do q ua l Deleuze e G uattar i fa lara m. u rn corpo que se to r n o u o nOS teria afastado. de um corp o pri mitivo que se teria esquecido
s igno d a esqu izofren ia qu e es p reita nosso sis tema. c que a pe rfo rrn arice nos permitiria r een c o n tra r. O corpo d e
Portarito, longe d e t er s usc itado es ta co nsciê nc ia p olític a que fala O rla n é u m c o r p o novo . u m corpo do fut uro>' q ue
q ue ela a lmejava, lo nge de d e s t ru i r a i magem t rad ic ional d o a p a r e c e co mo r e s ult a d o de um d is c u rso, c o mo vi rt uali dade
c o r po qu e ela pro cu r ava s u bverter, a body a r t insti tuiu n o se u d e um rel ato , c o mo r ep r e s ent a ç ã o de um d e s ejo. É um co r po
lugar UJn c o r p o rn a t ér i a e nce rra n do rrova rrie nte o h o rn ern n a
c fic ç ã o , u m co rpo real certamen te poré m co rrio mern órra, um
s ua fin it u de, corpo t orn ado opaco. encla us u rado. se m t r a n s - portador de m arc a s: in ic ial m.en te a s da própria O rlan como
ce n dênc ia n enhuma. N ó s r een contrarn o s aí o r eino das "c o is a s su jeito d es ejoso, em seg u ida as da c u ltu r a n a qu al e la se inspira.
aut ório rnas" se m "va lo r divino" d o qu al fa lava Geo r ges Bataille
e que a b re o cam irr ho à a r te co rno "j n d ú.str ia" ?". Ta is marcas i.rnplícitas se acresce ritarn n aturalmen te a todas
A p erformance de Orlan n ão fo g e de tais limit e s . Ap e sar as marcas exp lícit as que n ó s s u b lin h a m os até ag ora e qu e fund a-
d o co nce ito inicial qu e prevê que o a r t is ta coreog r a fe suas o pe- m eritav arn o discurso teóric o d a a r t ist a : marcas do dis curso socia l
rações seg u n do UIl1 es q u e rn a es c r u p u losa me n te c ombinado, sobre o cor p o e censuras às quais a so c ied a d e submete este último,
decorando a sala de operação com fotos d e suas operações ante - marcas das técnicas atuais e de seus efeitos. Ele exibe implícito, à
riores, além de acessórios diversos, ela própria lendo extratos de imagem de um palimpsesto, a superposição de todas as memórias.
textos filosóficos ou liter ár ios" durante a op eração e vestindo Uma vez terminado, e le conta sua história na medida em
roupas especialmente concebidas por grandes costureiros ou que e xibe inscrito sobre ele a rnern ór ia de sua origem, as mar-
d e s enhistas d e moda p ara a o cas i ão " , o foco da atenção s e cas d e s e u passado. Um e vá r io s ao mesmo tempo, ele s e r á o
co ncen t r a nurn corp o im ó vel , p arcialrn erite anestesiado e colo- protótipo assustador d o h ornern atual.
cado sob re uma Ines a d e c i r u r g ia . T o da a ação que se s e g ue " U m c o r p o não p ode ser v ivid o senão c o m o virtualidade de
a o vi vo focali z a -se no s a n g u e , no cs calpelo, no c o r p o talhado narrativa't» observava Ivan Alm eida, sublinhando que o corpo
novame n te e t rans fo r mad o em obj e t o ". é c h a m a d o constante ao d iscurs o não porque e ste últim o o
re p r ese n te, mas p orque el e o interpreta, e que se rn d is curs o o
20 " O q ue i n augu ra assim a n e g a ç ã o d o valo r divin o d a s obras é o reinado d a s corpo não existiria porque ele seria ininteligível. Ess e desejo de
coisas a utônomas . N u ma palavra, o m u n do da in dús tr ia". Geo rges B ataill e, inteligibilidade do corpo, de seu corpo, Orlan o fe z se u, indo
Théorie de la re ligion , Paris: Gal l irn a rd , 19 73 . p . 118 .
21 E m p a rticul ar te xto s de Eugén ie Lem o in e -Lu c ci on i, Michel Ser res, A lp hon se
mais longe que o comum dos mortais, escolhendo até mesmo
A liais, A n to n in A r ta ud, E lizabe t h Be tue l F ie b ig . Raphael Cu ir o u ai n da t e xto s cada um de seus componentes n o final de um trajeto onde cada
s â n s c ritos. u m a d e s u as esc olhas e nco n t ra-se rac io n a lme n te justificada. Se
22 C o la b o ra ra m , dentre o u t ro s, c o m o s trajes, Paco Rabane, Franck Sorbier, l ss ey
todo corpo t e J11 n eces sidad e da palavra p ara p oder sim p les-
M iyake, La n Vu .
23 Obse rvamos, a liás, q ue n ur na d a s ope rações que pud emo s aco m pa n har em mente e x p r e s s a r-se, o de Orlan impõ e esta necessidade . E le
ví deo e m 1995 . a pós as g ravações v ia saté lite n o Cen t ro M c l.uha n d e Toronto,
não h a vi a quase nada a ver da próp ria o peração devi do não s ó à má quali dade dias maís ta rde p o rq u e ela não consegue le r os textos que tinha intenção d e
d a s gravaçõ es , mas t a m b é m pela m u ltidão de p essoas presen tes n a sala de ler e porque e la se sente como um c o r p o s o fr e d o r, o que va i e v iden te m e n te
ciru rg ia q ue d e s c on c ent r av am a ação. A l iás , Orlan acabará por inter ro m p e r a ao e nco n tro de toda sua teo r ia . _
ope ração d e v ido à s u a extrema fadiga e ta mbé m porq ue n uma tal atmosfera, 24 A liás o le m a da a rti sta é " Le m b re -s e do futuro", O rlan , 0 1' . cit., p . 7·
o c ir u rg ião t in h a certa d ificu ldade em conce nt rar-s e . Ma is interessante aind a , 25 Ivan Alme ida , Un C o r p s devenu ré cit, e m Claude Reichler (e d .) , Les C orps
Orlan observará a es s e respeito que ela transfere o fim da o p e ra ção para d e z et se fictions, Paris: Mirrui t, 1983.
21 8 A LJ'.M DO S LIMIT ES : PERfORMAN C E E PERfORMATIVIDADE O R LAN E A DESS A CH AU ;éA ÇÃO DO CORPO 219

acaba por es ta r e fe tivamente a n tes d e toda li n gu a g e m . E le tem de observação da "experimentação", torna quase imaterial a
n e c es s id ade de ser di t o , a nal isado, ex plicitado p ara existir, se m o peração trarisrnit ida por vídeo da q ual só subsistem fitas de
isso e le ree ncon t ra ria a b analidade do real. vídeo o u repro duções fotograficas v.
"O séc u lo xx tem, a cada d ia, cada vez m e n o s necessi da d e
da realidad e e cada vez mais necess ida de d a im a ge m", obs e r-
IM A G E N S E VIRTUALIDADE vava C arrera-". A p e r form anc e de O rla n cer ta m e n t e n ão foge
dessa co ns tat açã o. N a verdade, n a medida em qu e a o pe r a ç ã o
T r a t a n d o do ativi smo v ie ne nse , O sw a ld Wi erier men ci onava é apre s entada , cerca d a de t od a um a aparelh a gem te cn oló -
qu e os artistas se pre stavam a uma "d es t r u ição d a realidad e g ica, r e p ro d uzin do-a e multipli cando-a p oten cialm e nte a té os
pela a r te":". A r efle x ã o p oderia se m dúvid a a p licar-se a Orlan , co nfi ns do p la neta, a i mage m tran smitida acab a p or te r mais
111as n es se rnorne nto e rn qu e o at iv is m o se co n te n ta co rn um ato re alidade qu e a própria o pe ração, desacreditando a própria
de destruição blasfematório e exib ic io n ist a , Orlan prop õ e uma realiclade -s. Nós e n t ra m os n o universo das vi rtualidad es mais
r econ strução des sa rn e s rna realid ade, tU11 a r ealidade mítica, reais qu e o re al d o qual Jean Baudrillard falou.
fi ct íc í a c e r t arnerrte , m a s ap e sar di sso real. E fe t iva m e n te, o desap are cimento da realidade em favor da
Porém , tal recon strução de Orlan, contrariamente também r e p r o d u ç ã o pela imagem, torna tangível , nessa performance
nesse momento à body art, passa pelo recurso à tecnologia, uma de Orlan, o imperceptível n o próprio seio da arte, o fru strado
tecnologia hipostáti ca que permite realizar e sse corpo s o n h a d o . da criação. Ela realça, uma vez mais, tanto para a artista quanto
O novo corpo que será oferecido aos olhares nega por parte para o espectador, os conceitos que aí riascerarn e que nos
da artista toda inocência primitiva ao sujeito. O s u j e it o aí e stá, permitem lê -la. Em último caso, sem eles, a perforrnance não
onde seu desejo o leva e aonde a tecnologia o conduz. E se às existiria. O discurso crítico e analítico torna -se mensageiro da
vezes s e conleçar a p ensar que tal co r p o qu e Orlan construiu perforrnarice, explicitando-a e por isso mesmo oferecendo-lhe
(o u está construindo ) tem alguma c o is a de um robô o u de um uma legitimidade .
c o r p o morto, não s e pode es q u ece r pelo rnerios que isso que o "Para dizer a verdade, não re sta nada no que se furidarrie n -
espectador é instado a ver é uma ação que ainda não está c o n- taro Não nos resta mais senão a violência teórica': obser vava
cluída. O processo sobrepõe-se à representação, um processo Baudrillard com resignação em L'Echange symbolique et la mort
onde o conceito é, s ern cessar, posto na frente e onde ninguém (A Troca Simbólica e a Morre p v. A constatação parece verificar-
j a m a is se interroga sobre o resultado. - se para essas performances.
Na verdade, é interessante notar que, mais que o horror das É nessa relação, no questionamento por parte do espec-
imagens impostas ao espectador com um exibicionismo evi - tador, que se interroga sobre seu lugar e sua função (ele está
dente, o interesse principal da p erformance para o espectador legitimando somente pela sua presença e pelo s e u dis curso
reside no conceito principal que tem guiado a criação da obra
e no que diz em relação ao corpo e à identidade. 27 Se ria p r e ci s o t amb ém ci tar os frascos de sa n g ue liqu efeito s ve ndidos pela
art ist a . ass im com o as fotos , obj eto s sec u n d á r ios d e stinad o s a fi na nciar as
Paradoxalmente e apesar de seu aspecto muito realista - o o pe r ações e qu e se ins cre v ern num a v isão m ercantilista d a p erforman c e , a lgo
de uma operação cirúrgica - é a abstração que se destaca na que s e c e ns u ra fortem ente e m Orl an .
performance de Orlan , uma abstração teórica, um conceito que 28 Op. c it., p . 93.
29 Lembra m o s a e ss e r espeito que as g ravações e m v ídeo que t iv em o s a ocas iã o
está na sua origem. Esse último, acrescido das difíceis condições d e ve r e que dura v am a p roxi mada men te d ez h ora s (g ravadas pelo Cen t ro
Mc Lu h rm , e m T o r onto e m 19 9 5 ) eLam imp o ssív e is d e se re m vis tas na s ua
integralidade devido à du ração do a conteci mento, da má qualidade da gra-
26 Apud Robe rt F leck, LAc tionnisme viermois, Hors limites: Iar t et la vi e 195" -1994 . vação e pelo fato de q ue materia lmente havia po ucas coisas a ver.
catá logo. Centro Georges-Pornptdou , 9 novo 1994-23 jan . 1995. p . 205 . 30 ]. Baudr llard , L'E ch a ng e symbolique et la mort, Paris: Gal li ma rd, 1968. p . 13 .
í
220 A LI:M D O S LI M ITES : P E RFO RM A N CE E P E R FORM ATI VI D A D E O R L AN E A DESSACRALI ZAÇAO DO C O R PO 22 1

c rí tico uma exp e ri ê ncia d a qual ele co n tes ta o sent ido? ), sob re co mo uma fase na história dessa c o ri s c iê ri c ra">. A d is tinçã o é
s e u s p róprios tab us e censura s , s o b re o s e nt ido de t al e m p r e i- imp o r t an te se q u ise rrnos evi ta r cair nos d iscurs o s relig io s o s
tada, qu e pode r esidir o inte re ss e d e t ais práticas . m o r ali s t a s que por m uito t empo d e cidira m a s no rmas do bem
e do mal n a a rte .
Se ap licarmos lit e r al m e n t e a d e fin iç ã o d e M ircea E li a d e,
o SAGRADO NA A RTE to d a o b ra artística p a rt ic i p a d o sagrado n a m ed ida e m que ela
é r e almente um esforç o d e inteligibilidade diante d o mund o
O n de fi ca m o s n ó s e m relação ao s im bólico, à a lm a e a o sagr a do e de s i m eSIT103 3 • Não é s e n ã o re conhe c endo ess e as pec to f u n -
quand o no s ac h amos c o n f ro n ta dos a ta is e m p r e it a d as r O que d am ental n ã o ap enas d a a r te, mas d e todo e m p ree n d imento
advém desta du alidade d o hom em - c o rp o e esp ír ito - na qu al c u lt ura l, que é possível resti t u ir à o b r a art ís t ica uma d imensão
n ós m e rgulhamos se m cessar (sobretudo no teatro) ap e sar de que ultrap a ssa a s im ples exp ressão d e um a s u bjetiv id ade. C i ta-
todo s os di s cursos t e óricos mod ernos e p ó s -modernos que remo s ainda Mircea E l ia de:
t c n ra rn e l i m i n á-I a ? A questão p ode pare c er obscen a numa
é p oca cm qu e s e rec u s a nor m alrn e nte toda e s p ir it u a l idade , Os pr-im órdio s da c u ltura têm s ua o r ig ern e rn e xp ene n ci a s e
c renças r eligi o s a s. A lé m disso, rn esrri o a pós s ua secu la r ização r adic al ,
con t u do e la n o s parece fu n d a m en tal po rque é es s a relação co m
c riações c u ltura is c o mo as in st it u ições sociai s, a s técnicas , as idei a s
o sagrado , tomado n o s eu sentido m ai s ge ral, que justifica, no mo ra is , as a r te s e tc ., não po d e m ser corretame n tc co rn p ree n d idas se
fim do percurso, toda prática artística. n ão s e c o n hece su a matri z orig i n a l religiosa , matri z que elas c ri ticam
Sem se entregar a um misticismo redutor, q ue estaria muito tacitamente, que elas modific arn ou que elas recusam tornando - s e o
deslocado hoje, necessitamos reconhecer com todos os grandes que elas são atualrnentc: valores culturais sec u la r es .i-
pensadores - filósofos, sociólogos, etnólogos - que se incli-
naram para a história das religiões: Mircea Eliade, Georges Verdadeiras em toda body art, essas observações se aplicam
Dumézil, Marcel Détienne, Maurice M erleau -Ponty, Roger bem particularmente às performances de Orlan . De fato, tal
Caill o is e t antos outros, que a questão não pode ser evitada e matriz religiosa original de que fala Eliade, a s performances d e
que toda fo r m a artística deve s er interrogada em função des - Orlan trazem sua rnarca e a artista usa -a conscientemente (fras -
ses par ârn etros que a ultrapassam e na qual e s t á forçosamente cos de sangue, imagens de madona, sacrifício) e coloca-as em
inserida. ce n a , ainda que s ej a para denun ci á-las. Mesmo que se as consi-
Se a ar te reflete rea lrne nte, sob s uas múltiplas formas, a d ere pueris o u n ã o, elas evo c a m co n t u d o o sagrado pelo aspecto
necessidade de sublimar o real , s e ela r e sp onde no artista a s ac r ific áv el das experimentações às quais a artista s e submete,
uma necessidade de despojamento de si e a uma retomada em ainda que elas o façam de maneira ridícula e forçosamente
troca, e se, como faz notar Mircea Eliade, "a consciência do paródica. Sagradas ou profanas, elas são incontestavelmente o
mundo re al e significativo está intimamente ligada à descoberta si na l d e um a re sistência ide ológica que é frequentemente aquela
do s a grado", p orque "p ela exp eriência do s a gra d o , o esp ír it o de toda arte moderna.
human o [ .. . ] apreende a diferença entre o que s e revela co m o
s e n do real, poderoso, rico e significativo, e o que é desprovido 32 Ib idem .
dessas qualidades, ou seja, o fluxo caótico e perigoso das coisas, 33 "P a r a o h o m e m t o rna r -s e c o nscien te d e se u pró prio modo d e s e r e a ss u m ir

suas ap a rições fortuitas e vazias de sentido">, assim, sagrado o s u a presen ç a n o m u n do, isso repre s e n ta li m a exp e r iê n ci a reli gi o s a'; obse rvava
Mirc e a E liade, La N os talg ie d e les o rigi n es, Paris : Gall imard , 19 7 1, p . 32 . citaç ã o
aparece c omo "um elemento na est r u t u r a d a consciência, e n ã o co m o um eco d e s t a fras e de G. Ba ta ille: " N a med ida e m q ue e la é espí r it o, a
e
rea líd ade h um a n a é sa n t a , m a s e la profana n a me dida e m que e la é r e al ";
ve r op. c i t., p . 52 .
31 M . E lia de, Hi sto ire des croy ances et d es idées religi eu ses , Par is: Payo t, 19 7 6 , v. I, p. 7. 34 M . Eliad e , La N osta lg ie d e les origines. p . )2 .
22 2 A LI'. M DOS LIMIT ES: PE R FORMA N C E E P E R FO R :I<l AT I VI D A D E ORl. A N E A D E SS A C RALI Z A Ç Á O D O COR PO 223

A LEG IT IM AÇ Ã O PELO DIS CURSO sign ifi c avam os s ímb ol o s" s e bem "q u e p or m ui to temp o fo i
difícil escol h e r e n t re o c a r á te r se d u to r de um a tal simpli c idade
" U m a o b r a de arte não existe jamais sozinha, ela é sob retu do e a passividade que re p rese n t ava n o fu n d o o intere s se m a rca do
o sistema qu e a to r na possível" d iz ia C a r rer a », Substi tuindo para o jogo das transp o sições"J9.
assim, mu ito j ust i fica dame n te, a o bra nu m conj un to e in ter- S eri a d e sejável c i ta r e s s e b elíssimo texto d e Bataill e n a s u a
ro g a ndo -se so b re a s c o n d ições d e emerg ência d e toda o bra to ta lidade tan to ele parece descrever nossa sit uação diante
ar t ís t ica, Carre ra n o s forç a a s u pera r a a ná lise de urna ob ra dessas performances dos ano s de 1990 . Deve-se falar "de
específica - a q ui o t r ab alh o de O rla n - para q uestio nar nosso inconstância pueril " para o artista? De simplicidade o u de
própr io s is te m a que a c r ia. É p r e cis o ign o r a r a n a ture z a dessa passiv idade para o espectador?
performance sob o sirnples p retexto d e que t u d o é, de ago ra em Se toda arte é e x p e r irn errtaç ão-» e se o "d e s e rrv o lv i rne nro
dian te, p o s s ív el na a rte e an alis á -l a do m e sm o m od o q ue t oda g igan tesco dos m e io s de produção" tem, como o afirmava
ob ra a r tística d e n a tu r e z a me nos problemátic a? É p r e cis o, ao Bata ille, le v a d o à realização da própria consciência nas livres
co nt rário, interrogar-s e sobre um pro c e s s o art ís tico q ue p r e - exp losões da orde m In t irna- ', e ntão a atit ude d e O rlan tem a
judique o p r óprio co r po d o a r t is ta e s u a identidade rom pen d o ver r e altn en te com se u tempo.
com um tabu socia l? É pre ci s o re p rese n t a r o cet ic is mo e reje itar É p o r tod o s e s s e s mo t i vos q ue as perfo r m a nces d e Orlan
s imples men te o todo como um s in a l d e um a p r át ic a d e c ad ente no s i n teressam e n o s q ues t i o ri a rn : ao rnesrn o temp o pel o se u
e s e m intere s s e? A qu e stão perman ece a ber ta. co nteúdo, pela s ua na t u reza, p elo que elas di z em da r elaç ã o n o
R efe rind o -se a Roge r Vitrac qu e denunci a r a e m co n j u n to d e nos sa s o c ie da de, pel o s tabus que elas in fringem ,
El ntra n sigea n t ( O Intransigente) a fal ência do espírito m oderno pel o s limite s que el a s tran sgridem e a c o ncei t u a ç ã o qu e e las
e que talv e z n ão tiv e s s e t orria do inteiramente c onsci ên cia da s usci tarn . E rn o u t ros t e rm o s , e las n o s fa zem fa la r (esc r eve r,
d ecadên cia d efinitiva de que fa la ra>", G e o r g es B ataille c h a mava dis cutir) e esses dis cu r s o s div e r s o s n o s le v am a e x p lic i tar d e
a aten ç ã o , muito j u s t a men te e m " O Esp í r ito Mo d ern o e o Jo go n o v o n o s s o s pens am ento s . E m razão d e ss e simples fato, a a t i-
das T ran s p osiç õ es", que eram impulsos muito ativos m a s tam - tude da a rt is ta s e acha po r t a n to plen amente justificad a e se u
b ém muito c o n t u r b a d os qu e deram origem às obras artísticas o bj e t iv o a t in g id o .
que s e inspiraram nes sa decadência, se bem que "s o b sua forma
mais p erfeita , o esp írito m oderno [ .. . ] s e d e s envolvera a r e s - Trad. A imée A maro de Lolio
p eito d e um mal- ente ndíclo"v
A re sponsabilidade d e s s e mal -entendido não cabe t anto aos
te órico s - "c u j a r e sponsabilidade , di z Bataille, é muito menos
e n g aj a da do que ap arenta p orque d emonstraram s o b ret u do a
inc onsistên ci a d a v o n tade" - "q uan t o à s transp o si ç ões s im bóli -
c as [q ue ] fora m colocadas à f ren te e m todo s os domíni o s com a
c o ns is tê nc ia mais puer il" >". O r e sultado é um d e s c onhe cimento
"d o caráter esp e cífi co d a s emo ç ões violentas e impess o ai s que

39 Ib id e m .
35 Op. ci t., p. 71. E ele a cre s centava: "e part icu larmente o s is te m a qu e identifica 40 Deleuze e Guattari d efin em a p alavra "e x p e r im e n ta l" com o "o que desi gna
a ideia à realid ade, a a r te à vida': não um a to d e stin ad o a ser julgado e m term o s d e s ucesso o u d e fra cass o , m a s
36 G. Bataille, Docum ents , P aris : M e rc u re d e Fran c e , 19 6 8 , p. ' 9 7. s im p le s me n te u m at o c uj o res u lta do { d e sco n h e c id o' : E m LA nti-Oedip e, Pari s:
37 Ibid e m , p . 198 . M inuit , 19 72 , p . ' 3.
38 Ib id em . 41 G. Bataill e , o p. c it. , p .124.
6 . Distanciamento e M u lt im íd ia
ou Brecht Inv e rt id o

A n o ção bre chtiana d e dist an ciam ento ' torn ou - se um d ogma


n a s teoria s d a r ep r e s entaç ã o ligadas à form a ç ã o d o ator, urn
do s p olos da tríad e que se rve d e base à s divers a s esc o las d e
form a ç ã o te atrai s - os d ois o u t r o s p olos sendo oc u pados , p or
dife r ente s r a z õ e s , p o r Stan is lávs k i e Artau d . Q ue r a z õ e s p ode
en t ão h av er para vo ltar nos dia s d e h o je a esse feri órnen o q ue
é o d ístari ci a m erito, fenôm e no amplamen te es t u dado e c u ja
e vidênc ia impõ e , por ass im d ize r, a n e c e ss id ade teatral como
a lte r n a t iva à identifi c a ç ã o d o a to r à s u a p ers o nag em ?
Minha interroga ç ã o parte dess a própri a evidênc ia. A ce n a
teat r al atual tem p or p r in cípio implícito e n ã o t e orizado o
fe nô meno d o di stan ci a m ento . A d e sumaniz a ção d a s p ers o na -
gens d e Tade usz Kantor (A C lasse Mo rta) , a tipificação liga da
ao palhaço ou o r ie n tal das pe rso n a gens d e A riane M nouchkine
(O s Palha ço s , A Id ade de O uro, Ricard o III ) , a afe taçã o d a s
p ersonagens m ediáticas d e Ge o r g es Lavaudant (As Cefeid as),

Nós chamarem os "dista n ci ame n to " o procedimento cê nico que tende a tornar
es t ra n ho um fenômeno p articular d o palco o u d o coti di a no forçando o especta dor
a lima di st ânci a c rít ica e m rel a çã o ao q~ lh e é d ado ve r o u o uvir. Ta l d efinição te m
a vanta ge m de a m p lia r o con ce ito de "d istan ci a m e n to" coloca n do -o n a linhag e m
d as c o n ce pções idênticas às elaboradas pelo s forma listas russos.
226 ALÉM DO S LI M IT ES : PERFO RMANCE E PER FORMATlVIDAOE D ISTANCIAME NTO E M UI.TIMIOIA OU I3RE CHT IN V E RTID O 227

a m ecanização das p ersonagens de R. Wils o n (Ei nste in o n the distancianlento) c o rn a v iagem que es te úl t i m o fe z a Moscou ern
Beach [E i n st e in na P r a ia]) e a histeria m ec ani ci st a d a s p erso- 19 35- E le aí reproduz ia a o r igem do con ceito b recht iano de Ve rfre-
n a g en s d e Richard Fo re man (Pe ng u in Touq uet), po de r iam se r m d ungseffekt (efei to de distanciamento), n u m primeiro momen to
tod a s a na lis a d as corno efe ito d e di stan ciam en t o e nvo lve n d o d e finid o como Entfremdu no (alie nação), fazen do -o reportar a té o
esse v ai v ém in c e s s ante pa ra o ator e n t re o ex ib ido e o v iv id o uso qu e fize ra m dele Schklóvski e os form alis tas russos-.
que r e gistra a teatral idad e n o p alco. M arjorie H o o v er m o strou, p o r seu lado , como o conce ito de
Além di sso, um a o u t ra ce n a teatral - aquela qu e será e spe- ostra n i ên ie (a lienação), (de po is d e otd a liê n ie [d istanc ia me n to ]),
cificamente tratada aqui e c uj a história encontra s u a r en o vação defin id o por S chkl ó v ski, co ns t it u i a o r ig e m d o co nce i to d e
voltad a para as artes pl ásti c a s , tecnologias n ovas, a r tes multid ís, di stanciamento, e corno Bre cht te ria tid o co n hec i me n to di s s o
c ip li n a r es, isto é, co rn um a esc r it a c êni ca diferente - a u me n t o u no d e c orrer de suas v ia g e ns à Rús sia. T a l c o ncei to lh e t er ia
e tran sferiu o proce s so de d i s t a rrc i arne nto do c o r po do ator s ido c o m u n ic a d o, seg u n d o toda s a s probabilidade s , pelo s eu
( e sua relação c o m a personagem) para tudo qu e o ce r c a e o amigo Tretiakov que est ava c ie n te dos trabalhos que Sch kl óvski
ab s orve. É o exemplo d e Trisha Brown, Andy d e G r o a t, Laurie então empreendera a r esp eito de algun s textos d e Tolst ói. E s s a s
Anderson, Meredith M onk, Sob Ashley, e também do S Q U AT . p esqui sas tinham s ido publicadas em N ó v i Lef, revi sta da qual
Nos casos aci ma mencionados, não s e trata d e distancia- Tretiakov e r a então o editor.
rnento propriamente brechtiano, quando muito n eobre chtiano; Questionando a respeito da especificidade da o b r a artística,
para a maioria, Brecht não c o n s tit u i nem uma refer ência t eórica Schklóvski volta a indagá -la essencialmente sobre uma ideia
nem urna referência prática. Porém o fenômeno do distancia- que e le nomeia processo de singularização. "O procedimento da
mento é essencial à arte moderna e rnais ainda pós -moderna. arte é o processo da singularização dos objetos e o processo que
Corno explicar a partir daí essa preeminência do fenômeno c o n s is te em obscurecer a forrna, em aumentar a dificuldade e
do d istanciarnerito no teatro moderno e pós -moderno fora de a duração da percepção,"> observa ele em 191 7. A arte aparece
qualquer referência às preocupações brechtianas? E por con- aí c o mo u rn rrie io que p er mi te lutar c o n t r a a a u torn at.i zuç â o
sequência, como é necessário compreender o distanciamento da pe r c cp ç â o " e como um processo que permite ins crever o
brechtiano em relação à q u e le dos dias atuais?É essa interroga- mundo numa " v is ã o" e não num processo de " r e c o n h e c im e n t o':
ção que este artigo se propõe abordar, voltando sua aten ção para "O objetivo da arte é dar uma sensação do objeto como visão e
os pressupostos teórico s e filosóficos que permitiram p ensar (e não como reconhe cimento [ . .. J a àr te é um meio de compro -
passar à prática) essas duas manifestações do di stanciamento. va r a transformação do objeto, no que já s e transformou não
importa para a arte ."? Ou ainda: "Se nós exarn irrarrrros as leis
gerais da percepção, vemos que uma vez tornadas habituais,
EVOCAÇÃO HISTÓRICA
4 Essas afi rm a ç õ e s se rão reto m ada s por Re inh old Grirn rn , Ber n hard Re ich, m a s
Que o distanciamento não seja urn co nceito rigorosamente co n tes ta das p or Ian Knopf. v.v. Schkló vs ki ( 1893) foi escr itor e c rí tico literári o .
brechtiano, é o que os estudos de John Willett", retomados e Fu n do u a S o cieda de Para o Es t u d o da Língua Poética (a O po iaz ), pilar d o
fo r rna lís rno. E s cre veu c u rtos ens ai os p ol émi c o s : O M o vim ento do Cava le iro
desenvolvidos h á alguns anos por u m excelente artigo de Marjorie ( 19 23 ), A Literatura e o C ine m a ( 1923), M ateri ai s e E stil o e m "G ue r r a e Pa z"
Hoover sobre o tema, permitiram esclarecer ' . John Willett ligava a d e Tolstói ( 1928 ); N otas S obre a Pro sa dos C lá ss icos Russo s ( 1955 ). A Fav or
e Co n t ra, No tas Sobre D o stoi évski ( 1957) . Da Pro sa Literária (1959), T ol s t ó i
isso o uso que Brecht fez da palavra Verfremdurzg (estranhamento/ ( 1963), ass im como rom an c e s.
5 v.v. Sch k lóvs k i, L'A r t co m me pro céd é, e m Th éorie de la lit t érat ure, Pa r is :
2 John W ille tt , Th e Theatre of Bertolt Brech t , L o n do n: Me t h u e n , 1959 , p . 208 . Se u il, 19 6 5 , p. 83 .
3 Ma rjorie H o o v er, Bre ch t's Sov ie t Co n nec t ion: Tret ia k o v, em Brecht h e ute - 6 lbi d e rn , p . 94.
B rec h t To d ay; Ger m a ny, A the nau m, p . 39-56. Ja h rgang 311973-74. 7 lb idem. p . 83.
DI STA N CIAME NTO E MULTlMiDIA OU IlRECHT INV ERTIDO 229
228 Al.IÕM DOS LIMITES : PERFORMAN CE E PERFORMAT IVIDADE

as a ç õ e s tor narrr -se tar nb érn a utorn át icas.?" P r e c isando o que A s ing u larização descri ta p or Schklóvski refere-se antes d e
co nvi n ha e n t e n d e r po r s i n g u larização (ostra niênie), S c hklóvski tu d o ao texto poético. E la evide ncia alguns desses procedime n-
d e s envolve no seu a r t igo os div e r s o s pro c e dim entos utili z ados tos p o n t uais: u t ili zaç ã o d a s im agens, das m etá fora s ; s u bstitu ição
po r Tols tó i nos s e us romance s. d e o r d em se mâ n t ic a, m u d a nç a d o se n ti do. E la se i nte r roga
também s ob r e o d e senvolvimento da narraç ã o e a disp o si ç ã o
o pro c e s so de s i ngu la r izaçã o e m To lst ói cu ns is te e m que e le não dos epis ó di o s: e n c a ixe dos enun ciados; inserçã o dos discursos;
c h a m e o obj eto pelo s e u nom e , mas o d e s c r e va co mo se o vi ss e pela estruturas em níveis ; e nq uad r a m e n to, o r d e n ação, inclusão. E la
p ri meir a vez, e trate cada incide n te co mo se el e oco r resse p el a p r imeira sublinha um a e s t r a tég ia que Irving G o ffman d efiniu co mo o
vez; a lé m dis s o , e le e m p rega n a d e s cri ç ã o do objeto, n ã o o s n omes
princípio de fo regro u rid ing (fundamento) do s e n t id o.
ge ra l me n te d ado s às s uas p arte s , m a s o ut ras palavra s e m p res tadas da
desc r ição das p arte s cor res pon den tes em o utros objetos .> Por urn a r epresentaç ão po éti c a a po ia n do-s e o r a no s ig -
nificado, o r a no signific ante, ora n o s uj e ito d a e n u nc iação, o
Ou ainda: "Tolst óí se rve-s e co ns ta n te m e n te do m étodo princípio de singularizaç ão re al ça a peculiaridade do t e xto
d e singularização: p or e xempl o, em Kh olsto rn er ( H is tó r ia de modificando suas condições de e m iss ã o a fim d e transformar
um C avalo), a narrativa é dirigid a a o n orn e d e um cavalo e os em troca a p ercepção d o leitor, s e m p r e presente nas preocup a -
o b j e to s s ão singulari z ados pela percepç ã o at ribuída ao animal, ções de Sch kl óvski. E le restitui às palavras certa den sidade d e
e não pela nossa":". A s i n g u la r iz a ção ap are c e assirn COlTIO "e ssa sentido que nivela o uso do discurso cotidiano. Pelo fato em si,
maneira de ver os obj etos fora de seu c ontexto" !', op erando a atenção do leitor s e en contra até rnesmo renovada .
as mud anças nas redes semânticas estabelecidas pelo texto, Schklóvski alcança nesse momento, nas suas observações ,
tirando o objeto "d a série dos fatos da vida", retirando -o "de o que constituía então a preocupação fundamental do Círculo
s e u invólucro de associações habituais"". Linguístico de Praga": uma atenção renovada ao processo de
semiologia que caracteriza a obra artística e a pesquisa da espe -
A s sim o po e ta re aliza um a mudan ç a serná ri t lca, e le tira a n o ç ão cificidade da obra literária .
d a sé r ie se mâ n t ica o n de e la se e nco n t ra va e a c o loca, c o rn a ajuda de
Dessa breve análise, d estaca-se portanto que a relação entre
o u t r as p alavra s ( d e u rn t ropo), numa outra sé r ie sernâ n t ica: n ó s nos
apercebemos assim d a novidade , a co lo c a ç ã o do obj eto numa nova série o princípio de singularização e o princípio brechtiano do distan -
[ ... ] É um dos meios d e tornar o objeto perceptível, d e transformá -lo ciamento se impõe em razão da proximidade dos aspectos e dos
num elernento de obra d e arte . A c r iação de uma forma em etap as é objetivos. Ele destaca, sem qualquer dúvida, se não a incidência
diferente . O obj eto se duplic a e se triplica graças à s suas proj e ç õ es e direta da noção de singularização s o b r e a teoria brechtiana do
s uas o pos ições l ...] Esse pro c esso tem U1TIa va r ian te que consi ste em d ístanciarriento, ao menos sua enorme semelhan ça. Precisa-
d eter- s e num único d etal he da cena e a cen t uá- lo; isso conduz a uma
mente como os formalistas russos , Brecht procura modificar
d eforma ç ã o d a s proporç õ es habituais ."
o automatismo da percepção do espectador no teatro por um
O que permite a S c h klóvsk i c o n cl u i r "q ue e m quas e toda trabalho de s in g u la r iz a ç ã o dos diversos aspectos da representa -
p arte o n de h á imagem , há singularizaçã o " 14. ção. Nesse trabalho de valorização d e uma especificidade teatral,
o texto ocupa um lugar privilegiado . Que e s sa e specificidade
8 Ibidem , p . 8I.
marque necessariamente suas distâncias face a um rn írnetisrno
9 Ibidem , p . 8 4 . rigoroso em relação ao real não conseguiria surpreender. A obra
10 Ib id em, p . 85 . de arte pode, de agora em diante, manter-se distante em relação
11 Ibidem , p . 89.
12 v.v. Sc h kl óvs ki. La Co nst r uc t io n d e la n ouv elle e t d u roma no e m Théorie de
la Litt éra t ure , Pa r is : Seu il , 19 6 5, p . l R5.
13 lbidem , p. 184 e 185 . 15 V ic tor Erlich desenvo lve esse po nto em Formalismo R usso . 1955 . Cf. também
14 V. V. C h k lo v s k i, LArt com me p rocédé, op. cit., p . 9 0 . L. Ma tejka, Se m iot ics of Art , Cambridge: M IT, 1976.
23 0 A LÉ M DO S LI MIT ES : I' ER FO R MA N CE E P ERF ORMATI VIDADE DISTANC IAMENTO E MULTIMiDIA OU BREC HT INVERTIDO 23 1

ao real ". N essa evolução, Brecht rnarc a urna zona de passagem , os v í nc u los. D a interaç ão d es s es q uatro fatores nasce o q ue s e
um ponto de transição necessário. poderi a charnar o efeito d e di stanci amento.
Co mo o bse r v ava G ro to ws k i , o d istanciamento n ã o é u m
m étodo d e representação, qu an d o muito u m princípio . A n tes
oDISTANCIAM ENTO BRECHTIA TO de Grotowski , Barthes, por s ua vez, c hama ra a a t e n ção, e m 19 54,
COMO TEO RIA DA REPRESENTAÇÃO em co n s e q uência da vinda do B erliner a Paris, a que ponto o
distanciam ento brechtiano afastava - se de uma simples r e fl e-
O princíp io d e distanciamen to brech t ia no é freq ue nte men te xão sob re a melhor maneira de representar e de encar nar uma
a p rese ntado des taca n do -se d e u rna teo ria da represe ntaçã o. personagem '7. Benno Besson , qu e trabalhou por m u itos anos
Pode-se com esse in t ui to c ita r as d iv ers a s defin ições do distan - com Brccht, observava e rn 19 79:
c ia me n to c itadas po r B rec h t: " E m cada m om e nto impo rtan te,
Eu trabalhei bastan te tempo c om Brecht, o u seja, de 1949 a 1956, a té
o ar t is ta d e v e ain da, ao lad o do que ele faz, for m u lar e dei-
sua morte; e duran te todo o traba lho p rát ico, eu n ã o o o uvi empregar
xa r e n t rev er a lgo qu e ele não faz" ; "Os c h ineses m o stram não um a ú nica ve z a palavra "d is t a nc ia m e n to". É uma opção teó r ica que e le
a p e nas o corn por t a m e ri t o d o s h o rri eris , rn a s o co m po rta men to (Brecht) assumira nos anos de 1930, e da qual ele não se servira depois.
d o s a r t is tas"; "dis t i ng ue -se nitid am ente d uas p ers o nagens: Todas as teorias de Brech t são mui to perigosas se sepa rá - la s de sua
u rn m o stra, o o u t ro é m o strado". C o n t u do, o d is ta nc ia men to prática. e e las não serve m senão p a r a con trolar e esco n der a verdade
brec h tia n o n ão pode co n tar somente com o a tor e d eve se r d a rea lidade d e s ua p rá tica . .É d ete stá vel ve r intimidar as p ess o as com
pensado, para ser compreendido, em toda a complexidade d e co nceitos abstratos , e n o fund o is s o se tran sforma em in s t r u me n tos d e
bloquei o. E m v ez d e deixar às p es soa s s u a p erc epção d o s se n t idos e d o
um sistema onde o s parceiros são n umerosos e que, por s ua
emocional b em como a do intele cto , e las são bloqueada s com conce itos
cola b o ra ç ã o , garantem a efi c ácia da te o r ia : o ator, o espectador, in telect uais e a el as são p roi bi das qu al que r a p roxi mação sensível q ue
um projeto d e socied a de e n t re os quais um diretor-autor tece lhes p e r mitiria te r acesso a conceitos concretos."

16 A s poucas observações a b a ix o todavia realçam os pontos de d ivergências Não li m it ar o p r incíp io d o distanc iame n to às s im p les teo -
e n t re as duas posturas: rias d a represen tação é s u po r q ue o p r o ce ss o d e distanciam ento
a. Como já o observamos mais a cima. o processo d e singularização tal
como definido por S chklóvski é um c o n c e ito inicia lmente aplicado à lite ra tura. po de ser tam bém, e e u direi especia lme n te , p r odu z ido p el a
Po rtanto, não é vedado pensar que os fundamen tos teóricos do d istanciamento peça e pela ce na a ntes d e sê- lo pelo corpo d o atol' e p orque ele
brechtiano te n h a m inicia lmente tido como campo de aplicação o tex to teatra l. é in d issociável d e um p roj eto g loba l d a sociedade . Tal p roj eto
b . Se a no ção de singulari za ção pode ter inspirado Brecht, c o n vém não
minimizar o papel capital que desempenhou na elaboração do princípio d e envo lve e m o utro ter mo d o percurso um espec tador n o v o e
di stanciamen to. sua descoberta do teat ro c hi nês e mais especificame n te se u um m ate ri al te xtu al n o v o. Se um d o s termo s chegar a fa ltar, o
enco nt ro com o a tar Mei Lan Fang que pa recia ap resen tar no palco o p rocesso
di st a n c iam e nto n ã o p o d e aco n tecer'>.
de distancíame nto. Segundo Rei ch , Brec ht se famil iarizo u não a penas com a
teoria de Sc hklóvski ap licada à li tera tu r a . mas também com sua ap licação ao Q uais são as refe rênci a s d e um p rocesso d e dis ta nciamen to
teatro. Efet ív a rne n te, Nicolai Okh lópkov q ue dirigia en tão o Realisti c Theater no palco ?
mon tara o s Aristocratas de Pagódin em 1935 e Brecht te r ia assistido à p rod uç ão.
A teo ria do Verfrerndungseffekt te ri a s urgido pouco d e p o is de 1935. 17 Fran ce Observateur, 22 ju l. '954.
c . Finalme n te u m ú lt irno ponto importante : m e sm o se a n o ç ã o teorizada 18 C itad o no número especia l sobre Brecht e m Obliqu es, n . 20 -2 1 , '979 .
do Verfre m du ngseffekt só aparecesse b em tard iamente n o s tex tos d e Brech t, o 19 C f o e p is ó d io q ue relata Brech t no s e u jornal a propósi to da e s p ec t a d o r a
p ro c e ss o de d istancia me n to já estava nas prá t ic a s respec t ivas de B rech t e d e c h o r a n d o dian te do a tor c hi nês . Me i Lan Fa ng, enq uan to e le representava
P is c a t or bem an tes dessa data . como tes te mu n ham d iv ers o s artigos s o b re o uma ce n a de v io lênci a , pro va que o di st anci amento representad o n o p alco n ã o
a ssunto. A lém di sso, t a l filiação destaca igua lmente qu e o processo de singu- b a sta p ara pro vo car um a distãn cia c r ít ica n o e spectador se el e nã o enco n tra
lari z a ção é a própri a essê nc ia d e toda obra a r tis t ica. Acre scentemos também um públic o fo r m a do p ara decifrá -I o .- Um e fe ito ca tá rt ico n o te at ro e a iden -
que o s processos de distanciam ento, p or outro la d o , foram arnpl am ente tificação do espectador co m a p ers on a g e m p ode , p o rtanto, ocor re r m e sm o
e m p reg a d os pela corri éd ta, as for m a s d e teatro popular, o teatro a si áti co. d iante d e um a re p rese ntação distanci ada .
DI S TA N CIAM E N T O E MULT I M1 DIA OU B REC HT IN V E RT I D O 233
232 A LÉM DO S LI MI T E S : PERFORNIA N CE E P E R F O R M AT IV I D A D E

a r istotélica. Na verdade, o teatro brecht iano p errn artec e urn


a. O di sta n c ia m ento corrio ap ro p r iação d o r e al.
teatro de representação, de tradução do real que se assenta antes
A complexidade fundame n tal d a t eoria brech t iana do tea - d e m a is nada n a função represen tativa da linguagem. São as
tro, é que e le procede d e rri a n e i r a c i rc u la r p artind o de uma palav r a s qu e i rnp ortarn . E las são rela to , n a rra ç ã o, ação. Falar
aná lise política do real, representada e a nalisada po r interméd io é agir, tanto para a personagem apan hada n o emaranhado do
do t eatro para aí r e t o r n a r n u m a te n t a tiva de tra nsformação e n re do, como para o ator apan hado no emaranhado da peça.
desse r e a l at ravés de u m espectador-cidadão. Ness e trajeto, O r a , o e nredo está no centro da re p resentação, m e smo rorn -
o d istan cia m ento é um pro c e s s o , um p r i n cí p io - não u m pido , m e smo f r agmen t á r io , rn e srn o m arc a d o por r upt uras .
m étodo -, per m it in do a o a u tor a p a s s age m d o re a l ao palco e,
ao espectador, o retorno crítico a esse mesrno rea l' ". Nos do is
j O distanci am en to que está e m di sc u ss ã o em Bre c h t não é
a utorizado senão pelo texto . É o te xto qu e o le g it im a , o auto -
t errnos do processo, encont ran1 -se po r ta ndo assentadas a ex is- riza e o desencadeia. E le só p ossui sig n ificado e m r el a ç ã o à
tê n cia desse rea l e s ua r ep rese n tação pelo p alco. n a rra ç ã o. O ap are cimento do ator por trá s d a p ersonag em é
A te o ri a d o te a t ro e m Br ech t n ão d iscute de rno d o algum o p r imeiramente um e fei to d e dis curso, a e me r gê ncia d e um n o v o
p a p el mimético do palco e m r elação ao re a l. E la admi t e c o m o obj eto da e n u n c iação que s u b it a mente se e nca rrega d a p al a v r a ,
a prio ri fu nd arne rital q ue esse rea l existe realme nte fora do d esli gando- s e do en redo p ara m o s trá -l o - aí está um d o s papé is
p a lc o, que é poss ível r e pre s en tá - lo, exp licá -lo e m odific á -lo pela q ue assumem as canções n a s p e ç as de Bre cht.
me d iação do e s p ectador. O te a tro e n co n t ra sua necessidade e Tal a parição a tém-se unicamente à pal avra : o atar n ã o está
s ua just ifi c a ção fo r a dele. mais n o e n r e do mas porq ue ele fala q ue e sse enredo torn ou- se
Ora, t al r e p r e s e n t a ção do r eal, cxatamen te como e rn Aris- o bjeto de seu disc urso e q ue u m primeiro efeito de distanci a -
t óteles , é essenc ialme nte a s su rn id a pela s p al avra s que passam men to pode ser registrado. M a s , ao fa zer isso, o a tor permanece
a d efinir a fi c ç ã o e fazem- n a d esem bocar no real. Sã o p o is as na ficção , sua p artitu ra se ndo comandada pelo texto.
palav ras q ue trarão, q uanto ao e ssen cia l, a marca do processo Dois enunciados s e alternam e à s vezes se sob r e põe m: o d a
de d ísta ri ci ar ne nto , in screven d o ess a s in g u la r i d a de n o tex to. person ageln ocu p a n d o lugar n o enredo e o d o a tor oc u p a n do
T al process o n ão o b e d ece a nenhuma u n iv e r s al id a d e da for m a lu g a r no palco. Ora, o tex to tem como s u jeito d a e n u n c iação a
q ue a u tor iza r ia a a nal is ar un iform ern e n t e s u as n o rm a s; antes pers onag em ficcional, o ra s e trata de um a to r n a rrador c omen -
d e t u do , ele está ins crito n as práxi s e sp ecí fic as e d ife r e de uma tando a a ção e n q uan to instância s u p e r io r que d etém ce r t a p arte
p e ça para o u t r a , da í a d ificuldade ern desenhar se u conto r n o . de verdade . Duas v o zes se sob repõem, u m a polifonia s e in sta la.
A pesar d e s s e c u idado, ten t a re i m o strar aqui se us p ri n cí - O distanc iamento torna sensível a q u i os diferente s e n u n-
p io s d e fu nc io name nto ao inv é s d e analisar as modalid ade s de ciadores que estão sem p r e presente s n o palco. E le os colo c a
r ealização específi cas . no lugar, realça- os, m ostrando o fen ômeno d e sem iolog ia p el o
b . O dtstanc íarriento co mo a to d e palavra e c o mo fr agme n to. q ual o a t o r torna - s e p ersonagem, tornando o p a cos o s s ig nos
para o e sp ec t ado r.
O p ri ncíp io de d ista nc iamen to, elaborado co n tra a catars e T u do se re pre s enta p o r tan to a p artir d o enredo n u m a r el a -
aristotélica, n ã o p õ e em disc ussão os fu n d a me n tos d a mi mese çã o de afirma ção - co n testação da qual é r e s p ons á vel o a to r e m
relaç ã o à p ers ona g e m d a ficç ão, m as que é dit a d o pelo te xto e
20 D aí a importân cia da defini ção exata da noção de distanciamento como esse pela cen a.
"e fe ito de estranheza", de s in gu la r izaç ã o dos objetos e dos acontecimentos que os
N a o r dem da narração, tal distan ciam e n t o é inic ialmente
c o loca à di stân cia. C f. a an ális e d e Schklóvski referida m ais acima: "O processo
da arte é o proced im ento da s in g u la r izaçã o dos objetos e o procedimento que um a interrupção da linearidade d a narrat iva q ue a utoriza
co n s is te e m ob s cu rec er a forma , em aum en ta r a d ificuld a d e e a d uração da a m uda nça do t e m a da en unc iação. E le para a n a r r a t iv a e
p erc ep ç ã o ." ( L'A rt co m m e pro c édé, op. ci t. p . 83) observava el e em 191 7·
23 4 A LÉ M DO S LIMITES: P ERFORlvlAN C E E PERFORMATJ VIOAD E DJ ST A N CI A lvI E N T O E MU LT IM [D JA OU BREC HT I N V E RT lO O 235

frag menta a ficção, introduzindo espaços abertos, recusan d o di s cursiva . E sse se manife st a p or um deslocamento d o tema da
a prog ressão de uma narrativa que não obedeceria s e n ã o à e n u nc iaç ão, que ri o rncia a n o va fu nção d a a r te q ue o o r ie n ta
s ua p ró p r ia dinâ m ica i nterio r. E le i n t r odu z u ma causalidad e em direção a o social.
exterior à fic ção que lhe justifica o movimento. A narração é E le apare c e tarnb érn c o m o uma sensibilização do ato r e
submetida a um o b j e t ivo dia lético que lhe é e x ter io r. S u b it a - do p úblico a esse e fe ito d e derrapagem e n t re o rea l, a fic ção e
mente o tempo do e s p e t á c u lo s e põe no lugar daquele da ficção. a c e n a, a e s s e e fe ito de e nca ixe dos discurso s ; o real sendo de
A imediatez do clímax teatral aparece ao mesmo temp o q u e novo qu estionado pela cena e a cena recolocada em discussão
a ce na registra uma ruptura, uma q uebra na o rd em da rep re - por s u a necessár ia final idade fo ra do palco.
sen tação q ue permite a muda nça da ordem da narra ção para A c omplexidade fu ndamental do p r o c e s s o d e dis tanc ia-
a do espetáculo. mento é q ue ele realiza no q uadro dessa zona in termediár ia
O distanciarnento des igna tal ruptura, UITl processo de c o lo - ent re o real e o disc urso, nessa zona de t r o c a onde o r e al é antes
ca r e m prirn e i ro p lano. E le represe n t a a p a s s a g em q ue o pera de t udo disc u rso, a pree nd ido por inte r m é di o d a lirigu a g ern ,
a ce na e n t re a o rd ern do rea l e a d a cena, tra nsfo r man d o a m a s o nde inv e r s am ente a caracter ís t lca essencial d o di s curs o
ficção e m o b jeto d e dis cu r s o , i ntrod uz in do u m a dife ren ç a c uja é e nco ntra r a justifica ç ã o fo r a dele , no r eal. Ma is exatamente
pertinê ncia e eficácia são rnc d id as p el a análise soc ial. a inda, o d ist a n c iarn c n t o apa rece co mo o m omento o n de se
As for mas esté ticas são e las p ró pr ias a p an hadas nesse q ues- p a ss a d e u m a n damen to d o dis curs o como d etento r d e s ig ni-
tio riamento e m q ue o palco oscila e n tre o cabaré e a narrativ a fic a ç ã o sobre o real a um a n da men to d o dis cu r s o como veíc u lo
pura, e n t re o espe c u la r e o dis cursiv o >'. d e um a es té t ica e de uma teat ralidade".
O distanciam.ento tamb ém p ode ser produz ido por u m
c. O distanciamento c o m o domínio do real
e fei to d e ins erção: ins erç ão d o s e n u n c ia d os ( p a ró d ia, p alirnp -
sesto), e ncaixe d os d is c ursos (c it ações), r etóri cas d o es petácu lo Tal a n d a men to d o di stan ciam ento e fe t ua-se n o dom ín io :
(caba ré, fi lme, d iapos it ivos, im a g ens ). As form a s se e ncaixam d o r e al d omínio que as p al a v r a s p odem alcan ç ar ; d orn ín io d a s
u m a s nas o u tras, se revelam, se d e si gn am , se de nu nc iam . É de p al a v r a s qu e pode m a deri r a um a ver dade p e squis ada , crença
s ua justapos ição q ue emerge a s i ngu la r idade. U m d es enc o ntro num a ver dade fo ra d e ce na, do m ín io d e um d iscurso.
aparece, uma dial ética e n tre as fo r mas, uma d e s c entr aliz a ç ã o. As
palav r as, os aco ritecirnentos, se e ncon t r a m des s e m o d o sem p re E o que nós q ueremos ob ter, não é ta nto q ue seja o lhado de outro
context ualizados, eles não remete m a seu únic o s ign ificado. E les modo, é que se olhe de u m m o d o bem de terminado, d e u m modo
diferente, não tão d iferente quanto as d e m a is , mas de um modo justo,
partic ipam d o conj unto. Ao mes mo temp o todo e parte. "A parte
isto é, de acordo com as coisas. Nós n ã o que r em o s simp les me n te"
q ue d esigna o todo " - a expressão é de Lukács - "o esse ncia l conseguir o domí n io", na arte como na p olíti c a , m a s o d omínio das
es tan do p r e s ente em cada rn ornertto" A p arte , o f r agmen to se co is a s': observa Brech t em "C o n s id e r a ç õ e s Sobre as A r tes P l ást icas" ."
põe assim a des frut a r de urna a u toriom ia r elativa, e ncontran d o
seu sign ificado e s ua justificação somen te e m rela ç ã o ao todo. Brecht declara, co mo d o gm.a , que o mundo é d ominad o
O pro c e s s o d e distanc ia me n to a pa r ece, por tan to, e m peJo es pí r ito, po rtanto é p o s sível: L c o m p r een dê- lo; 2. r epr e -
Brec ht corno sen do i n icialmen te u m d is tancia me n to d e o rdem sentá -lo; 3 . exp lic á- lo; que essa apre ens ã o pas s e p elas palavras.

21 É em relaç ão à ins cri ç ão a t u a l da person agem na n a rra ç ã o e n a so ci edade 22 Exi ste um terceiro termo d a operação que Brecht não le v a e m c onsideração,
que s e define o discurso (gestu a l incluído ) da personagem c o m o re v el ador d e é o tema. O t e m a é deixad o por conta, fora d a fic çã o e fora do real ; u m a
se u mo do d e int e g r a ç ã o soc ia l e d e s ua inclu s ã o d e cl a s s e, m a s é e m relação fic ç ã o q ue s u b lin ha o p rocesso d a se rniolog ia d o a to r, m as n ã o o d e s m onta
à soc ieda de f u t ura q ue h á d e s lig am en to do a to r e d a p e r s onag e m , e q ue um to t alm ent e ; um re al qu e n ã o tem espaço para o tema .
n o v o tem a d e enun ciaç ã o desper ta. 23 Obliques, n . 20-2 1, 19 79 , p. 58.
236 A LÉ M DO S LIMI TES: PERFO RMAN CE E PERFORMATI VrOAD E D ISTANC IAME N TO E !v[ U LTI M I D IA OU BR E CH T IN V E RTI D O 23 7

Implica a existência de uma ve rdade fora do palco, que pola- O teatro atual, e rnais ainda, as artes multimídi a fi z e ra rn da
riza e justifica não somente o a ndarrie n to da ficção cénica, mas maior parte desses pro cedimentos, uma forma e stética q ue marca
ainda o conjunto do processo artístico. Supõe um ponto de vista d o r a va n te a modernidade da representação e não c onvida mais
considerável sobre a história, e a possibilidade de uma atitude o espectador a uma distância crítica tanto a fórmula tornou -se
de supremacia para pensá -la. Nós estamos na o r d e m da lei, a co r re n te . A c ena perdeu aí a narração e a s u p re m ac ia do texto
expressão é de BaudrilIard, ern oposição àquela da r egra >. ao m esmo tempo q ue se dissipou to d a materi alidade d e uma
Como tal, o d ís t a ri c ia rn e ri to brechtiano aparece rne nos personagem mesmo ficcional. O ator aprende aí a s e posicionar
co rno uma teor ia da inte r p re tação que corno uma teoria da em cena, a se arriscar, a se comunicar em sua relação corn o real.
rep resentação. E le pennanece encerrado n a clausura de uma Mai s interessante é o recurso específico às mídias. A s per-
re presentação da q ual Derrida most ro u o inevitável desvio. fo rmances multidisciplinares recorrem às mídias COI110 material
O que nos auto riza a dize r qu e , lo n g e d e romper totalme nte d e nosso universo cotidiano que r eproduzem nosso ambiente e
com a teo r ia aris t o télica d a cena , Brec ht é se u último gran de modelam nossa sensibi li dade tanto quanto nosso imaginário.
re presentan te. Po rq ue na a t uação das pe rfo rrnances m ulti mídia, bem como na
atu a ç ã o brech t iana , tud o parte e t udo volta ao real num q ues-
ti onam ent o que b usca analisar- lhe a situação. É portanto so bre
O DISTANCIA ME NTO N O TEATR O ATUAUs a a nálise d o rea l e s u a p e rcep ç ã o p elo art is ta e pelo espectador
q ue res u l ta o essencial d o t r a balho de distanciamento.
Com p leta me n t e diferente é a atitude da p erformance multimí- As m an ífesta ç ões co nc retas d e sse d .istan ci a rne nto são
dia ap e sar do s procedimentos de distanciamento i nte irarri erite numero s a s e v a r ia m s egundo as prática s e s pecíficas. Al gun s
s im ila r es ao distanciamento brechtiano. T a is p erforrn ances procedimentos contudo podem se r v erificados a q u i.
multimídi a , b em c o m o um a u tên t ic o teatro atual do qual nós O primei ro c o ns is te seja numa desaceleração e imo bilidade
qu erem o s fa lar, aqui p are cem t e r encontrado nas te cn ol ogias da im ag e m , seja num a m ul ti pli c a ç ã o detonada de seu co nteúdo.
d iversas (vídeo, tel e v is ã o, aparelhos fotográ fic o s, s intet izadores) M a s trata n do -se de um ou de outro procedimento, os dois
o mo do de reve r o di s t anciamento de man eira d ialética pró - rep ro duzem o r e al (esp aço, corpo, o bjeto) fo ra d e s uas relações
pria à nossa sensib ili da de, m antendo s eus p r i ncipa is t e rmo s: sociais, d e m odo frag rnenr ár lo, não contin uado, por d e fo r m a -
o r e al , o ato r (aq uele qu e a t ua), o n o v o espec tador, uma visão ção, s uper posição, enca ixe. Es tas deformações ap rese ntam o
da soc iedade iluminada pela hi stória. o bjeto sob u m as pecto po uco conhecido, po uco ide nt ific áv el a
Ent re os procedime n tos d e di stanc iame nto da obra nas tal po nto que o significado da imagem acaba po r desaparecer
p e ç a s d e B rech t pudemo s n otar a fragmentaç ã o d a n a r ração, a sob o c inetismo d a máqui na que emerge como um fa lan te à
r u p t u ra na o r d e m da r epresentação, o deslocamento d o tema da parte, por inteiro , a o m e s m o te m p o q ue aparece/transparece,
e n u nc iação, o d escentrar d o ponto d e v is t a d o acon tecimen to, a - at ravés d a s m odal idade s da im a g e m , o imaginário d o s suje itos
passagem do rea l à ficção e da fi cção ao r eal, a co ntextu a lização q ue p erform am e pe rcebem .
da p art e no t odo, cada par t e se n do e la pró pria deten tora da O seg u ndo p r o c e dim e nto consis te em reprod uzir no palco
históri a , a renúncia à lin e aridade d a narrativ a (cf. o exem plo do o rea l, s em trab alh o se nsível da imagem (cenas de violência,
SQUAT), a rejeição d a p ersonagem c o mo e n ti d a de, o rec urs o a j o rnal tel e vis ivo , gestos coti d ianos, conversações inúteis e v ã s ) .
o u tras fo r m a s do e s p ecular (fi lme, diap ositiv o s , c a baré) . E ss a r ep r oduç ã o do real t ent a ajustar-se r ig oro s a m e n te a se u
o b jeto oferece ndo não somente a imagem mim é t ica mas a inda,
24 I. Ba udr tllard , De la s éduc ti on , Pari s : Ga lil ée, 1979 .
p ri nc ipalmente, as estratégias de-percepção que essa imagem
25 A s referências princip ai s se fa zem ao t eatro S Q U A T. a o \Vo o ster G rou p, ao
esp e tác u lo multimídia de Monty C a n ts in. organiza . Mais que de uma referência qualquer ao próprio real,
238 A Lf::1>.I IJ OS L1l1iIlT E S: PERFORMANCE E PER FORMAT IV IDADE DI STANC IAMENTO E MULTIM[DIA OU BRECHT INVERTID O 239

a im age m to m a significado n o palco pela co n t ex tu a lizaçã o e É ern virt u de de as mídias autorizarem precisamente mais
re lacio nan do os o u t ros sistemas d e s ig n ific a do cê n ic os co m os qu e q ua lq uer outra forma especular tal aproximação ex terna,
q u a is e la se e n c o n t r a d e i medi ato, numa relaç ão di ai ética da quas e a bso lu ta, e n t re a cena e o real, q ue o real e ncon t ra-se a í
qu al ela s ubli n h a ao rn e srn o tem po o a fast a m e n to e a ruptura supri mido. D e tan t o reproduz ir o real com exat id ão , de se l he
e m re lação à s ua ló gica profurida'". aju star, el a s a c a b am por se colocar no se u lug a r, po r t r agá-lo ; o
A im agem importada a o palco através d a s mídi a s p ermite re al midi ati zado nada ma is é q ue u m s im u lacro, ilusão, po n to
a q u i ruptura e distân cia c rí t ic a perante a c e n a e introduz tal d e v is ta , rota de fuga.
d e sl o c am ento do terna de e n u n c iaçã o trazendo um ponto de W alter Benjamin a fir m av a q ue a t é cnica p ermite s uperar
v is ta diferente no palco e m sua relação com o real: o da câm e ra. a o p osição estéril e n t r e a for m a e o c o n t e ú do. Pare ce qu e se
As mídias: monitor d e vídeo, televisão, filme, introduzem assim esta opo si ç ã o é na v erdade s u p e ra d a, form a e con t e ú do d esa-
urn terna não polarizado, difuso, urn novo terna da enunciação pareceram os doi s n o pro c esso, o u ainda melh or, se fundiram.
que desarma o processo da representação em curso. Se a ameaça de um ponto de vista privilegiado p ermanece,
A re p r o d u ç ã o do real não é jamais inteira nem exaustiva. o do mestre da obra dessa est r u t u r a cibernética, tal am eaça é
Bem como os t ernas qu e a viverr ciarn, ela é portanto necessa- contornada pela integraçã o do a r t is t a ness e processo de dis -
ria rn e nte p arcelar, fragmentada. A parte que se refere sorne n te solução própria. Porque o que r epre s enta o artista é sua visão
a ela é um discurso sobre a totalidade, estando integrada a uma monádica, seu corpo, sua relação co m os obj etos, sua percepção
r e flex ã o de ordem discursiva e crítica sobre o real e a rel a ç ão do real assirn como seu e sforço pennanente e sempre fracas-
que os terrias rnarit êrn com ele. Nós vimos a parte que o parce- sado para ir ao encontro dele.
lamento ocupava na estética brechtiana. Nessa circularidade da irnagern e do real , torna-se impos-
A reprodução do real não se prende entretanto às estruturas sível um ato de domínio e de conhecÍInento diante do real.
so c ia is como em Brecht, aí elas estão em causa. A sociedade Todo ato de domínio que pode ser imediatamente frustrado na
co rn o e s t r u t u r a coerente analisável em termos rnarxistas e sua própria realização. O homem social tal como classificado
brechtianos não tem sua evidência para o artista. O real das per- em categorias sociais específicas. A sociedade ela própria não
formances multimídia é de preferência o do tema na s u a relação é mais que um efeito de ilusão, uma mudança de pontos de
co m o real, um real de que participa o social mas somente como vista onde ela acaba por se dissolver, um jogo de ilusões onde
um de seus componentes. só conta o indivíduo e onde a história universal não pode mai s
O processo não é contudo puramente formalista . Ele não é ser escrita.
unicamente dirigido contra os modos de representação artísticos Nesse ernpreerrd ím ento para ir ao encontro do real, s e a
habituais. Ele vai além de urna retomada de questionamento da máquina cibernética se desenvolve sem limites, ela acaba por
s in t ax e de representação. Ele não pretende instituir um discurso devorar seu objeto e por s e colocar em seu lugar. O simulacro
puramente estético sem incidência sobre o real. Ele aspira revelar vampiriza o real. Na ilusão do real, a máquina cibernética gera e
o s automatismos que aprisionam o espectador em relação ao real substitui o seu próprio gerador assim como seu próprio espaço
e leva-o também à necessidade de um espectador formado que e sua própria temporalidade, negando o real. O real dissipou -se
saiba decifrar nisso um discurso crítico de denúncia. totalmente nessa microscopia. Ele acabou por irnplod ir-",
O distanciamento brechtiano assentava-se sobre dois a
26 C f. o filme de )im )armus ch , integrante d o S QUA T , que é p rojetado n a primeira
pa r te da p eça Drearnla n d Bu rns o e fe ito d o real que se acha a o lado do p alco priori, de um lado a representação do real, de outro, a escolha da
(c f. n o ss a d es criç ã o d a peç a ap resen t a da n o c a r t az d o Fes t iva l d a s Amé ricas linguagem c omo instrumento privilegiado d e tal representação
su rgido ern Th e Drama R eview, ou to no 1986; ass im corno o artigo " Ex is te m
ao Me nos Trés Américas" pu b lic a d o sob o títu lo Th ere Are at Le a st Three 27 " D ra m a t u rg ia da p rópria imp losão", di z ia Sue E lIen C a s e no ar tigo From
Americas, New Theatre Ouarteriy, Cambr idge, v. 3 , n. 9. p. 82-88. fe v. 1987. Brecht t o Heiner Mu lle r, Perform ing Arts Iourna l, 19 , v. VII. n . I. 19 8 3 .
240 A LtM DOS LI MIT ES : PERFORMAN CE E PE RFORMAT IVIDADE D ISTANC IAME NTO E II.IULTIMiDIA OU BRECH T INV E RT I D O
24 1

num objetiv o de transformação s o c ia l. Os a priori qu e s e pode palco, no rea l, n o te rn a . E la s a sse n tararn a questão do co rn -
r e fe re n c ia r são de outro g ênero. Na verdade , a joga da essen c ial p ro rn i ss osoc ial da arte e manifestam aos nossos olhos um
do distancia mento q ue operam as performances multimíd ia do s rn e io s mai s a t uais e m ai s in teress a n tes de compreende r o
incide não sobre a própria representação, m a s sobre o es tatuto distanciamento h oj e .
d o real. Se as performances não visam a uma transformação E co n cl ui rei c o m estas p al av r as q ue p roferia Brecht nas s uas
d o próprio real, elas organiz am todavia e stratégi a s p erceptivas "co ns ideraçõ es s o b re as ar tes p lást icas":
que permitem decifrá -lo e e vita r a il usão disso. É n esse sen ti d o
que a a tuação das perfo rmances mu ltirnídia é p olítica. Os a rtis tas d e difere ntes épocas vee m o bviamente as co isas di fe -
O d istanciamento na perfo r mance vi sa se m d úvid a renteru ente . S u a v isão n ã o d epende u ni c amente d a p ers on alidad e d e
nenh uma ao estabelecimento de u m a d istância c rí t ic a em re la- cada u rn , m a s tarnb érn d o sa be r' qu e eles e seu tempo p o s suem so bre
ç ã o ao real. Tal distanciam ento representa , e é aí qu e n os parece as cois a s. É urna exigê nc ia d e n o ss o te rn po considerar as coisas na s ua
evo lu ç ão. corn o c ois a s que Se transforma rã o , q ue s ão in flu en ciada s p or
a ma io r "atualiclade" da arte m ultim íd ia, não um ato de dom í-
o ut r as coisas e outros proc edirn cn ro s .v
nio corno e rn Brecht, rn as u m a to d e s up ressão em relação ao
m undo e e m r elação ao real. Esse distan c ia m en t o reg is t ra uma -
A r eal idade ela qual falava Brecht impli cava a fé numa
perda d e influên cia que não é senão o correlato de u m a p erda
h istória universal qu e s e dirigia ao dest i no da hurnan id ad e e
do real. A h istó ria n ã o ex is te mais , a h isto ri c id a d e perde s u a
co locava e rn c en a u rn h o rn eru universal, e r a uma realidade
i mportância p orqu e e la não é mais poss ível de ser imaginada d e
a n tes de tudo social e o h o m e m aí aparec ia como u rn p rod uto
u m p onto d e v ista imperiali sta e unitári o p orque ela re n u n c ia a
d a cole t iv id a de; a reali dade d a qual fala a a r te p e r fo rm a t iv a é
um ponto d e v is ta p oderos o que lhe daria um s ig nificado. Nós
m a is a t u a l rrurn se ntido. Essa rea lidade não é mais a da socie -
es ta m os no domínio d aquil o q ue Vattimo definiu e m O fi m da
d a d e ; ela é in dividu a l e afeta o h omem so mente fora d e toda
moder n idade'" como a "fraca ideolog ia".
a li g a ç ã o ao g r u po; ela chega ao tema q ue tin ha esvaziado o
Bre c ht acreditava q u e existia u m sentido na his tó r ia, uma
teatro b rechtiano.
o r igem na cena, u m a verdade no dis curs o -s. O princípio do dis-
tanciamento não é senão o reflexo desses a pri o r i: a existência do
Trad, A imée A m aro d e L o lio
real e a p o ssibilid ade de apoderar-se d el e por u m ato de domínio.
A p e r fo rm ance ren unciou à averiguação d e tal origem, torna ndo
a q uestionar o estatuto do p róprio real , o se ntido da h is t ória,
trabalhando ao nível da o rg a n iza ç ã o d a s estratégias percep ti vas
do espectador. Ela se tornou a a rte d a criação de u rna a t mos fe r a
de ir realidadev', d a superfície, s u p rimin do os refe rentes dissimu-
la d o s , s ubstituindo a redundância da d e c od ifi c a ç ã o brec h t ia n a
do r e al, operando através da exasperação d o s signos ". Fazen do
isto, as a rtes mul ti m íd i a impuseram u rna relação difere n te no

28 G . Vatt irno, La Fin d e ia modernit é: nihil ism e et h erm éne utiqu e da ns i a culture
p ost modern e , Pari s : Se u il, 19 8 7.
29 G . Sca r p e tt a, B rec h t o u ie so id a t rno rt , Pari s : Grass et , 19 8 0 .
30 G . Sca r pe t t a, L'Irnp urité, Pari s : G rasse t, 1985 . p . 64 .
31 " Pa ra a tradi ç ã o m odern a . a re p re s e nt a ç ã o d e vi a s e r vo ltada ao fracasso p ela
ir r u pção do re al ; para a pós-mo der nidade, é o própri o e stat uto d o real que é
s u b me ti do à d e s c o nfi an ç a': Ib id em , p . 18 6. 32 B. Brech t, Ecrits sur ia lit t érat urc et l art 2, Paris: L'Arc h e , 19 7 0 .
Parte IV

A Cena Sob Investigação


1. O Texto Espetacular:
A Cena e Seu Texto'

o título dado acima é "A Cena e Seu Texto" e não "O Texto
e Sua Ce n a" Ao inverter, dessa forrna, a ordem habitual dos
dois termos "texto" e "cena': que são frequeriternente os com -
ponentes do processo teatral, nosso objetivo é sublinhar bem a
perspectiva de conjunto na qual desejamos inserir essa reflexão,
qual s eja, a de uma interrogação que se origina primeiramente
num espetáculo que se forja a partir da prática (tal como a de
Robert Lepage, Denis Marleau, Gilles Maheu ou Jean Asselin) ,
e qu e tenta mostrar a rel ação que o ator manr érn corn o texto
durante a r epresentação.
A caminhada que vai da cena ao texto não visa, sobretudo,
mostrar o grau de fidelidade de uma encenação com relação ao
texto de origem, questão a b u n d a n te m e n t e debatida e que t eve
s e u grande momento. Antes, procura operar a decupagem do
texto espetacular ao evitar a distinção ainda corrente entre el e -
mentos visuais e elementos textuais, distinção essa tradicional
e pouco fecunda, parece -nos . Tem em mira também interro-
gar, questionar, observar a interpretação do ator, seu corpo,

Es te te xto apa receu an te r io r mente e m Pa t ric e Pa v is (ed.), La D rarnatu rg ie de


l 'act ri ce, Brux ell e s : D egré s , 199 9 , p . I , 1- 21.
A L!ÔM D O S LI MIT ES : A CENA SOB INVESTIGAÇÃO O TE XTO ES PE TACU LA R: A CENA E SEU T EXT O 247
246

s u a d inâm ica n a r elaç ão co m o t e x t o através de um espet ácu lo a licerçado no texto c o rri o ponto de partida para a e n c e n a ç ã o
exib ido co mo tot a lid a d e, no qual o texto é um cornponente e m e que esta ria inserido n a tradição escrita ocidental, e um tea-
meio a out ros d o p r o c e ss o cê nico. Con c re tam en te, coloca mos a t ro b a s e a d o no performance text (que aqui traduzirem o s por
q uestão do des emp enh o do atar no centro daqui lo q ue se pe r- "texto perforrnativo"), indissociável da representação e que se
cebe de bo m g rado co mo sen do a dualidade do t e xto e d a ce n a. d esta ca r ia sobremaneira no que diz respe ito à tradição o ri e n ta l.
Esta reflexã o i nsere-se na linhagem d a s reflexões q ue E uge- Na li n g u a g e m corre nte, o texto refe re-se a deternli n ado
nio Barba e Nicola Savarese exp ressa ram no se u livro I..:Energie repertório q ue pre exi s t e à rep rese n taç ão. Na m ai o ri a das vezes,
q u i d a n se: J;Ar t secret de Ta cte u r (A E ner g ia Que Dan ça : A A r te é esc r ito e serve hab it ual me n te de po nto de pa rt id a para a e n ce-
Secre ta do A to r) ". T a l linh a consti t u i o essen c ia l d e s u as p esquisas n a ç ã o , o q u e não o dispe n s a ele te r urn a exis tê ncia extracê n ic a
no se io do I S TA e referênci a o b r iga tó r ia nesse gênero d e reflexão . pe r fe itame nte legítima e de c irc u lar e n quan to escrito a utô nomo.
Do is t exto s nos s e r v ir a m corno fio condutor: "D ra rn a tu rgie", de E le pre exis te , a ss im, à rep rese n tação o u serve- lhe d e s uporte
E u ge n io Barba, e " T ext e e t scê rie" (Texto e Cena) , d e F r a n co c o mo fo r m a es crit a . O te xto p erforrnativo, p or s e u lado, é um
R u ffi n i, doi s textos no s quais o principal interes s e é fornecer texto indissociável de s u a r epresentação cê n ica . E n ão existe
urna defi n ição diferente d o s c o n ceitos de texto e ce na ao d eslo- exce to na e para a representaç ã o . É essa últ irn a que , não apenas,
c a r nossos pontos d e referência habituais e desorganizando um lhe dá sua ancoragem cê n ic a , s u a coerên cia e s e n t ido, mas que
pouc o a ordem cênica que n os é familiar. lh e permite muito s im p le s me n te ex ist ir. É um componente da
Con fr o n t a re m o s essas definições para a prática cênica representação em mei o a outros e não existe senão materializado
usando c o m o ponto de apoio alguns resumos aos quais nos na cena. Sua existência autônoma sob forma independente da
referiremos: Les Sept branches de la Rivi êre Ota (Os Sete Afluen- representação é difícil de prever, pois trata-se de um texto esbu-
tes do Rio Ota), de Robert Lepage, Les Maitres anciens (Os racado, às vezes muito aberto, ·m ú ltip lo , esfacelado, que poderia
Velhos Mestres), encenado por Denis lvIarleau, L e Dortoir (O revelar-se incoerente c a s o se pretendesse publicá -lo enquanto
Dormitório) do Carbone 14 , encenado por Gilles Mah eu, e tal. Trata-se de urn texto que muitas vezes não tem autonomia
Ricardo II, do Mime Omnibus encenado por Je an Asselin. própria e c u j o sentido parcelado raramente c o n s t it u i uma tota-
lidade em si. Ele não adquire s e n ti d o a não s er quando inserido
na rede múltipla dos diferentes si stemas da cena.
TEXTO E TEXTO PERFORMATIVO Schechner d á -lhe a s e g u i n te definição:
( P E RF O R M A N C E TEXT)
o performan ce text é esse pro cesso g lob a l feit o da rede de comu -
nicações que constitui um ato es peta c u la r. E m certas culturas, em Bali
O Texto Performativo ou no Japão por exemplo, a noção de performan ce text é muito clara. O
drama n õ não existe s en ã o corno conj u n to de p alavras que se r ã o a seg u ir
No seu texto intitulado " L e Training dans une perspective interpretadas pelos a tares, tod a via, co m o conjunto d e p al avras i nextr i-
interculturelle"3 (A Formação de uma Perspectiva Intercul- c a velm e n te mí st u ra d as c om a música , os gestos, a dança, o s diferentes
tural), Richard Schechner retoma uma distinção feita nos modos do jogo teatral, co m o s figurin os. [ . . .] O s performance texts [.. .]
sã o mais redes de comportamento do que comunica ções verbais.:'
seus textos anteriores entre duas espécies de teatro: um teatro

Assim definido, o texto p erformativo exige não apenas a


2 Euge n io B arba ; N ico la Savarese, Lecto u re: B ouifo n n eries -C o ntra stes , n. 32 -33,
19 9 5. An te r ior mente publicado c o m o t ít u lo A n atomie d e Tacteur: un dictionnai re
atuação mas também todos os elementos da representação. É
d'anthropologie th éatrale ( A n a to m ia do A to r, Um Dicionário d e Antropologia
Teat ral), 19 8 5. Reed itado depois s o b o t ítulo LA rt secr et d e lacte",; 199 5 -
3 R . Schec h ne r, L'Energie qui dans e, p . 231 -23 2 . 4 Ibi dern , p . 23 1.
ALf: M DO S LIMITES, A CEN A SO B I N V EST I G AÇÃO O T EXTO ES P ETAC UL AR , A C E N A E SE U T EXTO 24 9
243

n essa rede fechada de relações em meio a todos os sistemas cêni- Oulipo S ho w. M erz O p éra , d e De n is M arle au, Le Dorto ir, Les
cos que ele s it ua, preso rrurn novelo fecha do de int er-rel a çõ e s A mes m ortes (A s Almas Mo rtas ), de G ill es Maheu, destacam-se
COIl1 o s demais componentes da ence nação. S ua tra n s c r iç ã o inconte stavelm ente na s e g u n d a.
escrita, qua ndo existe, não pode ass umir no m áx i rrio s e n ã o H á, s eguramente, forrnas diferentes de texto p e rformativo
o aspecto d e urna par t it u ra q ue leva ern co nta t oda s as irite r- de acordo com a natureza dos próprios tex tos e seu modo de
-relações c o m o s outros elenlento s da r epresentação, n e ste ins erção n a representação : texto s narrati vos que evoca m urn a
se nti do co m parável às par ti turas m usicais p a r a v á r ios i n s t r u - ap resentação múltipla mas qu e permanecem li neares (Os Sete
mentos e m q ue todas as notas são lida s si nllrltaneamente sob Afluentes do Rio Ota, A Trilogia dos D ragões, de Robert Lepage),
pautas difere n tes. O s si nais escritos, q uando existem, n e ss e caso o u , pelo c o n t r á r io , tex tos esburacados, mu itas vezes heterogê -
não são se não urna ex igê ncia para a real ização cê n ica n a q ual n e o s , q ue s urgern em. d iversos rno rne rrt o s da representação e
encontram s ua fina lidade legítima. cujo s e n t id o apoia-se não na ló gic a d e uma apresentação ou d e
Mesrno q ue o exe mp lo d e Schech ner seja e m pres tado do u rna dada for ma, m a s q ue se apoiam a n tes na co m bi natória d e
Orien te, é evidente q ue as fo rm a s d e teatro q ue ele d e s cre ve di vers o s eleme n tos cênicos a prese n tados (Time Rocker [Bala nça
tornaranl-se iau al m e nte co rre n tes no Ociden te. Pe nse-se nas do Tempo], de Wilson, OlI Les Ames Mortes, da C a r b o n e 14) 5.
~

primeiras encenações d e W i lson, n a s d e Kari t o r, G ro towski, To dos os textos performativos n ã o têm, porta nto, a mes ma
Barba, peças c uja d r a m aturgi a repo usa nu m a r e dé d e sistemas impor tânc ia n o espe tác ulo riern o m e smo es t a t u to. E n tre a
vis uais e so noros na qual o texto n ã o oc u pa n e c e ss aria In e n te a p resen tação lin e ar cons t r uída, no final das con t as, d e m odo
o primeiro luga r e e m que este último permanece e sburacado , razoavelmente muito cl á ssico , ainda qu e f rag me n t a d o , e o s
indi s s o ciável d o s d emai s s iste ma s s ig n i fi c a n tes . Pen s e - s e te xtos fragm entados ins e rindo imagens , m ic roaprese n taçõ es,
igualmente e m algum a s e ncenações d e Rob ert L epage ( Les diál o g o s, ritmo s e p ortado res d e sen t idos plurai s n a repr es enta -
A ig u iLles et Fopiurn - Ag u l h a s e O p io ) , E l izabe t h Lecompte ção, h á um vast o leque d e m o d alidades diversas d e inte gra ção,
(The Crucible - As Fe itice iras d e Salem), R e z a Abdo h (Tight, de imbri c a ç ã o do texto perfo rmativo n a represe ntação.
Right, W hite - A pe r tado, Cor reto, B ra nco). Essas fo r mas , que os De fa to, seria adequado diz e r que os dois te rmos d esta
anos d e 1960 e 19 7 0 pro moveram a m p la me n te, s ão h oj e a re g r a dis ti n ç ã o - "tex to" e "texto pe r fo r rnat ivo" - rep resen tam os
de t o d o um t e a tro institu cional o u a lte r nativo qu e se t o r n o u dois p ol o s entre os qua is oscilam a t ual me n te as e ncen ações
m u ito com u m ern d ive rsos g raus co n fo rme os p aís e s e , muito n o s e u u s o do texto e qu e o teatro, segu n do os e nce nadores, a s
partic u larmente, na G rã -Bre tan ha (Comp lici té, Foot Barris, épocas e a esté tica t e atral d o m omento , tem oscilado - e oscila
Forced En te r tainment) . semp re - d e u m extremo ao o u t ro".
As div ersas e nce nações d e urn rne srno e ncena do r empres - A distin ção e n t r e um t e atro baseado n o texto pré vi o que
t am eve n tualmen te ma is de um e eve n t ualmen te m ai s d e outro. lhe s erve d e matri z para a enc en a ção e um te atro e m que o
Caso queiramo s a p licar as d is ti nções menc ionadas ac ima aos text o s ignificativo é ap enas o t exto p erfo r m a ti v o represe n ta,
exe mplos q ue esco lhe m.os, pode r-se- ia d iz e r que a lg umas
encenações d e Rober t Lepage (E lse neu r), d e D enis Marleau 5 Aconte c e ta rnb érn d e a repres e nta ç ã o co m b in a r a c a da vez essas duas formas
(Les Maitres a nciens, Na th a n le sage - Nat han , o Sáb io) e Je an textuais - aprese n tação li n e a r e evocações fragme ntadas - q ue se entrecru zam,
Asse lin (Le Cycle des ro is - O C iclo d o s R eis ) , lembrad o s que se d iale t izarn , colorindo- se u m a s às o utras e que se comple tam com a
ima g em de um rizo m a que em erge d o e spetáculo (c f. Les A iguilles et l opium ,
acima, des tac a m-se n a p rim eira c ate g o ria , n a m edida em q ue de R. Lepage ) .
t oda s p o ssue m u m t exto que lhes se rve d e p onto d e p a r tida 6 Assim sen do, o te at ro dos anos de 1960 e 19 70 escolh eu co m o b ase fundamental
d a represent a ç ã o o te xt o pe rfo r mat ívo. O te a tro d os a nos de 19 9 0 o pe ra , po r
(Bernhardt, Lessi ng ou Shakespeare), ao contrário de o utras dos
se u lado, um re torn o e m di reção ao te xto preservando inteira m ente, algu m as
mesmos encenadores: Les Aigu illes et Topiurn, de R o b e r t Lepage, vezes, as forrnas te atrais em que o te xt o p erforma ti vo p e rmanec e importante.
A LEI" I DOS LIMIT ES: A CENA S O B INV EST IGAÇÃO O T E XTO ESP ETA CULAR: A C EN A E SEU TEXTO 2 51
250

dernasrado bem, intuitiv~llnente,a diferença entre "teatro tra- que indi ss o ciávei s. N esse sentido, to dos os textos le vado s à cena
d ic iona l" c " n o vo teatro'", observa Barba. destacanl - se rnu it o do texto es pe t ac u la r se m e n t r ar, p a r a tanto,
Desse modo, o lugar dado ao texto o u ao tex to performativo na categoria de textos p erforrnativos".
varia cm fu nção de períodos estéticos e percursos pessoais de cada
Texto espe tac u la r
um: Robert Wilson trabalhando Orlando não se entrega às m esmas
Te xto Texto p erform ativo
rest rições com relação ao texto corno aquelas que ele possa ter
q uan do trabalha Time Rocker: d o mesmo modo, Robert Lepage A aproximação não é injustificada caso se leve em conta o fato
m ontand o Les Aiguilles et Iop iurn, te m uma lib erd ad e maior diante de q ue não há fundamentalmente diferença radical para o esta tu to
d o texto d o que aq uela que lh e foi im p osta por E lseneur. Da mesm a do texto e n tr e a encenação de um tex to clássico, como a quela
maneira, G illes Maheu com Le Dortoir sen te -se sem dúvida mais que pode fazer Anne d 'Elb ée montando Fedra para a Comédie-
livre d o que q u ando aborda os textos de Heiner Mü lle r (Hamlet- -Fr a n ça is e ( 19 9 6 ) , e a encena ção que lhe fez Cécile Garcia-Fogel
-M ach in e o u R ivag e à Iabandon [Praia do Abandono 1); assim como no Th éâtre de la Bastille, em adaptação musical (1997). É ó bvio
Jea n Asselin m onta ndo A lice, e m que se sente menos restringido q ue, ai nda que se tratasse do mesmo texto como ponto de parti da,
do q ue o e ra qua n d o encenou La C hanson de Ma rio n [A Canção os res ultados ao final do percurso não tê m nada d e si m ilar não
d e M arion] ou Le Cy cle des ro is, com os qu ai s escolheu d ivergir so mente porq ue a a daptação q ue lhe d eu Garcia -Fogel o perou
posterior men te. De rno do interessante , a lg uns e ncenadores ta is cortes irnportan tes, rnas tamb ém porque a forma do te xto ence-
co mo Le page o u Wilso n u s am co m prazer o texto o u o texto nado n o s dois casos n ã o p ode m ais s e r lida senão e m relação a
p erformativo co n fo r me o caso. Ass im co mo Lepage em Les to dos os demais e le mentos d a represen t ação com os quai s d ialo -
A ig u illes d e Fopiurn , Léo na rd d e V inci p ertence, sem som b ra d e gam : inte rp retaçã o , luz, es paço, acessór ios, figurino , m aquiagem.
dúvida, à c at e g o r ia d o s te xto s p e r forrnativo s, e n q uan to E lse neu r Sob t al aspecto, a e ncenação d e A n ne d 'Elb ée, que fe z qua se um
res pe ita amplam ente H amlet de Sh a kes pea re. o ra tó r io e que foi fie l à integralidade d o texto d e Racine , e a d e
Cécile Garc ia -Fogel, que fez, po r se u lado , um texto e sb uracado,
perfonnativo, e o fe z ser co nduzido por um a música rap q ue lhe
O Texto E spetacu la r preservou sem embargo o espírito do p onto d e p a rtid a , as d uas
diferiam, certamente, por sua estét ica e s ua fin alid a d e, porém
Não o bstante , a fim d e evitar as ambiguidades e preservar a o r i- encontravam-se n o fim do percurso naq ui lo porq ue o t ex to resul-
g i na lidade das c a tegor ias d efin ida s p or Schechner, p a r e c e -n o s tava, n um e noutro caso, ind issociável d a rep resen tação.
o por t u no introduzi r urn a distinçã o le x ic o ló g ic a acres centan do O m esmo acon tece co m qualquer texto, s eja el e "cl ássico" ou
um t erceiro elemento à t axinomia aqui e v o cada: a d o texto espe- "per fo rrnativo', a p artir d o m omento e m que seja lev ado à cen a .
tacu la r. A palavra u s ad a c o m u me n t e n ã o se o põe n em à noção No exemp lo q ue d em o s de R icard o II , m ontad o p or Je an
de t e xto n ern à q uela d e texto p erformativ o , po rém engloba Asselin , tomemos o enfrentame n to e ntre os dois d u ques, o
ambas . Co m efei to , se o texto p e r fo r m a ti v o é um texto que d uque de Mowbray e o d uq ue de Boli ngbroke, n o mo me n to
n ã o p ode exis t ir n em ser co m preen d ido fo ra da part it ura d a
qual n ã o é sen ã o um d o s ,c o m p o n e n t e s , o texto es petac u la r é 8 Observ arno s qu e o co n c eito d e p erformance texto tal como uti lizado po r
Sche chn er e r etomado por Barba, apo ia -se n a noção d e "p e r fo r m a t ív ld a d e"
m ai s simplesmente o r e sultado d e uma u rdidu r a ce r r a da e n t re que evo ca aquilo que est á na própria base d o trabalho d o atar. Ilumina aquilo
o t exto e os d crnais e leme n tos d a repre s enta ç ã o , uma u rd idura que é eviden te p ara qualqu er a ta r, a sabe r, que todo s ig no teatral permite uma
na q ual os elementos es tão est reitamente im b r ic a d o s e quase le itura dupl a : uma leitura n o pl ano d o se n ti do e o u t ra n o pl an o d a p erforma-
ti vidad e , o u sej a, n o pla n o do d ispêndi o ex ig ido p el a a t uação. É a co ns t r ução
d est a relação e ntre os d oi s p la nos qu e co ns ti t u i a a r te do atar. É d ess e duplo
7 E . Barba, Drarnaru rgie, e m E . Barba ; N . Sa varese, a I' . ci t., p. 49· pl an o d e p ercep ç ã o q ue se or ig ina t amb ém o pra zer d o espectador.
252 ALÉM D OS LIMIT E S: A C E N A SOB I N V ESTI G A Ç Ã O o T EXTO ES PETACULA R : A CENA E SE U TEXTO 25 3

e m que ne n h uma palavra é pronunciada e, portanto , quando apre endidos c orn o s dema is e le rneritos d a representaç ã o n u m a
a voz - o texto - de Shakesp eare cala-se para deixar fa la r a densa urdidura d o s procedimentos cênicos;
inte rpretação dos atores. Nesse c a s o , e s t a m o s exclus ivarn e nte 3. Que o texto performativo não tem autoriom ia própria. El e
no texto espetacular. não existe senão corno partitura estreitamente ligada a todos
Por o u tro lado, o dis c u r s o in icia l de Boli ngbroke - aquele os d emais componentes do espetáculo.
em que acusa o duque d e Norfo lk, TI10mas de Mowbray, d e Parece-nos, ass im, que Barba, ao emprestar d e Schechner o
t r aiç ã o , e m q ue o e s t igrn a t iza po r ter desviado em p rove ito conceito d e texto performativo, o q ual trad uz p o r texto esp eta cu -
próprio u rna parcela das somas recebidas pelos exércitos - é lar , o con ce b e com uma extensão que não é aquela q ue Schechner
fie l ao espírito e ao texto de Shakespeare. Nesse momento, ele havia previsto. Portanto, adotaremos o conceito de texto espeta -
está m ais próximo do "texto" na terminologia que proc uramos cula r quando necessário, nas páginas que se segue m, dando -lhe
uti lizar aqui, visto q ue a performance gestual não importa, já as características atrás mencionadas e distinguin do -o do texto
q ue sobressaem un ic am e n t e as e s co lh as do at o r e do encenado r. perforrnativo, que p ermanece para um uso mais específico.
a mesmo s e dá co m Oulipo S h o w : o essencial da rep resen - Nesse se nt ido, a classificação que demos an teriormente aos
tação situa -se no pon to d e vista do "texto" - textos fiéis à s ua d ive rs o s exernp los evocados carece d e a lgumas p rec isões . Com
or ig e rn - , e nquanto as t r a n s iç õ e s en t re os d ive rsos extra tos efe ito, v is to que fa larnos essencia lm ente d e e nce nações, po r-
q ue co mpõe m o co n j u n to d o espetác u lo , o r it mo, a elocução, tanto de textos n a represe n tação, p o d emo s d ize r qu e to dos os
fic ar iam , po r se u la d o , rn a is por co n ta d o texto espe tac u lar. ex emplo s d ado s pe r tence m à cat ego r ia d e te xto s espetac u lares,
a que d izer, igualmente , d a e n c e nação que fez P eter Se lla rs m a s que a s referên ci a s a W ilson, Le page e M a he u, entre o utros,
d e O Me rca do r de Ve neza , p e ça que m ontou n o c r uzam e n to co m p erten cem mais propriam ente à categ o r ia d e texto s pe r for ma-
os even tos sobrevindos em Los Angel es p or ocasi ão d o espanca - ti v o s t al como d e fin ido s a n ter io r me n te.
m ento d e Rod ney K ing", que n ã o é s e não o texto d e Sh a kespeare, É precis o ver nessa p olaridade e n t re tex to e tex to performa-
n o e ntanto respeitado ao p é d a le tra , q ue n el a está absolu tamen te tivo n ã o um a relação d e excl usão - o teatro de t exto rec usan do
in d issociável d a const r ução cênica d o con j unto ? Eis a pro v a de o p e r fo rm ativo e o t ex to p erfo rmativ o n ele se inseri nd o d elibe-
que qual q u er texto, tal como defi n ido p o r Sch ech ner, uma vez radamente (o posição que os a nos d e 1960 promov era m co mo
levado à cena torn a-se por se u turno p erformativo. regra) - , mas ac ima d e tudo um a relação d e com p le menta ri-
É possível nos perg u nta r mos le gitim am ente a q u ilo que dade com d o s a g ens variáve is .
urna tal tax iriorn ia tra z p ara a co m p ree nsão d o fenômeno te a - As dosagens entre um e outro d e p e n d e m po r s ua vez, n esse
tral. De fato, ela pe r mite esclarecer: caso, de fa tores exteriores (as ideologias e as e s té t icas domi-
Que n ã o é a p rese nça o u não d e u m t exto servi n d o d e base
1. nantes) e d e fato r e s p e ss oais próprios d a co n d u ta c riadora d e
à encenação q ue determ ina se esta últim a exige o u n ã o um texto um e ncenador.
perforrnativo, que são as modal idades de integração d o texto Sem d ú vid a , é também essa o pção p el o tex t o p e r fo r m a t iv o
aos demais elementos da r ep re senta ç ã o que p ermitem d izer a q ue faz co m que num e ro s o s e ncenad ores ten h a m escolh ido tra-
qu al c a tegoria a ence nação se vinc u la; b alh a r a p arti r d e te xto s que n ã o são fe itos o r ig in a lmente para
2 . Q ue texto e texto p erf o rm a tivo enc enad o s são a m bos co n- o p alco (tex t os d e r omanc es , ex t r atos , po ema s ) e qu e p ermitem
side rados como textos espe tac u lares e que , e n q u a n to t ai s , s ão m ai or lib erdade à s ua imagin açã o : é o caso d e e ncena do res
como W ilson, Lepage ou Ma rleau.
Quanto à d osagem entre..texto e t ex t o performativo, nessa
R o d n e v King : tax is ta a fro-a me r ica no v io le n t a m e n te espa nca do p el a pol icia
d e Los A ngel e s e m 3 d e m arç o d e 19 9 1, d etid o sob a ac usaç ão de di r igi r e m escolha de um ou outro, trata-se mais do que um simples
a lta v el o cid ad e . ( N . d a T. )
25 4 A LÉ M DOS Ll lvIl T ES , A CENA SO B IN V ESTI G A Ç Ã O O TEXTO ESPETACU LAR, A CENA E SEU TEXTO 255

equilí b rio e n t r e co nj u n tos heterogê n eos e q uantit a t ivament e Ao Retomar a definição trazida por Barba, Fra n co Ruffin í
v a r iá ve is . A arte de um encenador vem da cornp lernen tar id ad., pro p õ e, a fim de fazer a questão avançar, uma distinção q ue
q ue ele co n seg ue e s tabelece r e ntre u m e o u t ro . O term o "com- pare ce interessan te e q ue divide o texto em d ois componentes:
p lementarid a de" é muito importante aqui - v is to que mo d i fic a a o " tex to do t ex to " e a "c e n a do texto': A p a lavra "texto': neste
relação h ierárqu ica tradi ci onal entr e o texto e a cena e esvazia as caso, de ven d o sem p re ser tomada n o senti do que lhe d eu, co mo
polê micas e s t éreis sob re o que dom ina e n tre ele me n tos te xtuais dito a n tes, Barba: o d e u m a "urdid u r a" d e elementos difere n tes.
o u elem e n to s visuais nurn a dada e nce n ação. O text o d o t e xt o , d iz F. Ruffini , é "o e l e me n to r ígid o ,
E xisti r ia, ass im , tanto fo r m as d e teatro quanto e q u ilíb r ios orientado , p r ogram ad o. É o co n fl ito e a fá b u la" :", e le teri a
diferentes e ntre tex to e texto pe rfo rmati vo, algumas e n cen a ções pri- como c a r a c teríst ic a o e n cad eame n to d o s evento s , um a ce r t a
vileg ian do o p rimeiro (Les Maitres an ciens, d e Marleau, Le Cycle des previsibilidade d e sejada p a r a o t exto d e o r ig e m, portanto, um a
rois, d e Asselin, todo o teatro de repertório) e outras privilegiando certa rigidez de ações . As rela ções de encadeamento de uma
o s egundo, mais próximo d o "novo teatro" tal como definido por peça seriam d eterminadas p r io r it a r i a m e n te pelo desenrolar
Barba (Tim e Rocker, de Wilson, Les A iguilles et Iop iurn, de Lepage, da intriga .
Th e C r ucible, de Le cornpte, L c D ortoir, d e Maheu) . T ai s relaçõ e s d e e n c a d e a me n to qu e o texto - o "texto d o
Essa distin ção que S chechner fe z e que Barba re tom o u, texto" - imp õe, t êm -n as e studado e m detalhe os l in gu ista s,
e n tre tex to e texto espetac u la r, p oderia se r, c o m e fe ito, po uc o se m iólo go s , filó sofos, críticos de teatro, ao mostrar como o
operatória e até perigosa caso se incluíssem - o que s e fa z h a b i - texto e scrito, o t exto falado, obrigam o ator e o espectador a
tualmente - conjuntos relativamente homogêneos e fáceis de uma escuta determinada.
ser determinados: o texto, dessa maneira, estaria ligado antes de O mesmo não se dá com a "c e n a do texto", que é repre-
tudo à intriga, à fábula, ao diálogo e às personagens, enquanto o sentado "pela personagem e por tudo aquilo que lhe concerne
texto espetacular englobaria todos os elementos performativos (réplicas, microssituações) na direção para além, à margem
da cena : a interpretação do ator, a s ações que ele coloca no da 'drreç ão' imposta pelo conflito e pela fáb ula?" . A "ce n a do
palco mas tarrib érn a decoração, a c e n o g r a fi a , a iluminação, os texto" teria como característica a simultaneidade e u rna certa
objetos, o s figurino s, a música, em resumo, todos o s elementos imprevisibilidade que dão livre curso ao encenador e ao ator.
visuais e sonoros - tal n ão é o caso, como mostra a análise que Este último seria "o elemento flexível, não orientado, não pro -
Barba e Ruffini fazem desses conceitos. gramável" do espetáculo.
Visto da ótica do espectador, isso significa dizer que o texto
fornecido ao espectador é "uma ancoragem semântica" que
ENCADEAMENTO E SIMULTANEIDADE frequentemente impõe um sentido à peça, no ponto em que o
texto espetacular, "também proveniente seja do texto seja da
A Cena do Texto e o Texto do Texto
cena, tem corno função favorecer, em sentido contrário, uma
desancoragem e o aparecimento de uma zona de fruição mais
Eugenio Barba recorda, em princípio, que a palavra "texto",
profunda ou pelo menos rnais personalízada'v-.
antes de designar o texto falado ou escrito, impresso ou
Dito de outro modo, a narração impõe elementos de
manuscrito, significa "urdidura". Nesse sentido, não existe
rigidez, previsibilidade, lógica narrativa no palco, ali onde a
espetáculo sem texto>, nem mesmo o texto performativo do
personagem, considerada como entidade múltipla, que pode
qual falava Schechner.
10 F. R u ffi n i, Texte e t s c e n e , e m E . Bãr ba; N. Sava rese, op. ci t. , p . 225 -226 .
11 Ib id ern , p . 226 .
9 R . Sc h e c h n e r, o p. ci t., p . 4 8 . 12 Ibidem .
2 56 ALÉ M D O S LIMITES : A CE N A SO B I N V ESTI G AÇ A O o T EXTO ESPETAC ULAR : A C E NA E SE U T E XTO 25 7

esca par da na rraçã o , introduz um e le me n to d e irrr p r e v is i hjjj , são d a q uantidade de in fonnaçõe s e n co n tra -se repro duzid a
da de e , p o rtanto, d e f u ga. na p r o p o r ç ã o d e imprevisibilidade, o u seja, é uma q uestão d e
Hav eria, portanto , dualidade na p ers onagem . Um a parte teoria d a s prob abil idades" v,
de se u fu ncio n a m e n t o emergiria d o "texto d o te xto" e a o u tr a O ra, o q ue é impre v is ív el nu m a e ncen ação? Para reto m a r,
da "cena d o texto" (os dois c o mpo n do o texto espe tac u lar) ; n esse sentido, a t e r m in olo gi a de Barba e Ruffin i, t rata-se n e ces -
u m a p a rte ser ia , a ssim, previsível e a out ra parte n ã o o ser ia . sariam ente d a quilo q u e r el e v a não do e nca de a men to, m as d a
É ne s s a im p rev is ib ilid a d e perte n c ente à p e rs o n age m que se s im u ltane id a d e, is t o é, d a quil o qu e re al ç a não do "tex t o d o
in s e r e o a t a r. E s s a imprevisibilidade per m it e , prec isame n te , texto': mas a n tes d a "cen a d o t e xto", porta n t o , d o e spe ta c u la r.
"a interpreta ç ã o " que tal a ta r fa z d e t al pe rsonage m. É a i n da É exatarrie nte is s o que provam os exe m p los escolh id os .
ess a impre visibilidade que medei a o espaço entre a narr a ção e Tomemos o exem plo d e Ricard o I I. Nessa encenação de Je a n
a ação na qu al se ins e re a v is ã o d o e n cenado r e a criatividad e Asseli n, a s p e r s on a g e n s d e R icardo u, Henry Bolingbro k e o u
do a ta r fren te a o papel que d eve e ncar nar. Thomas de M owbra y, são d i feren tes daquel a s das e n cen a ç õ es
A e sse propós ito, é interes s ante fa ze r um paralelo entre as qu e h abitualm ente se faz d e s s a s p e rs onage n s s hakespearianas.
ide ias qu e B arba e s t a b e le c e s o b re isso e aquel as d e A b raham O aspec to deliqu e s c e n t e do rei, se u c o m p o r ta m e n t o efem i-
Moles'>, q ue trabalhan d o s o bre a te oria d a in fo r m ação, d esen - nado, se u co lan te ros a e s ua t únic a q ue evideri c iarn o a s pecto
volve u a rela ç ã o que ex is te e rn qualquer m ens a gem e n t re o grau longilíneo d e s ua p es s oa e o p ouco p e s o ( no sentido li ter a l e
d e informaçã o v eiculada e a originalidade da mensagem. P ara simbólico do t ermo ) que oc u p a , s ão comentário s silenc iosos à
Moles, informação e originalidade estão diretamente ligadas. sua impotência na fun ção que exerce.
De que maneira detectar a originalidade de uma mensagem Colocado à frente do reinado pela h ereditariedade, a per-
ou aquela de urn a obra de arte? Pelo grau de imprevisibili- sonagem de Ricardo II mantém simultaneamente um discurso
dade , d e inesperado das estruturas. Ora, tal imprevisibilidade duplo: suas palavras s ã o a s de um rei, porém s e u comporta -
é percebida necessariamente no âmago de uma redurrd ân oi a'e. mento, o aspecto de se us tr ajes, s u a e n tona ção, as inflexõ es de
É a relação sutil entre redundância e originalidade que faz a sua voz, se us g estos, s e us d e sl o c a rnerrt os, s ã o o s d e um a do-
c o m p lexid a de e o valor d e uma obra estética, observou M oles. A lescente que ingressou prematu r amente n o Inundo d o p oder.
pe r c e pção est é t ica viria, nesse caso, da seleção seja de elementos Carregando uma coroa cuja leveza n ão s e e q u ip a r a s e não
"s ig n ifi c a tiv o s' : s ej a de elementos originais que surp r e e ndem. co m a pouca autorid ad e d o j o vem rei so b re s eus vas salos,
O r a, paradoxalmente, a informação é transmitida não p elos Ricardo II fará desaba r esse sign o de seu po der co m um gesto
elementos s ig n ifi c a t ivo s - corrio habitualmente se c rê - , m as d esastrado a ltam e n t e s im b ó li co.
pelos elementos originais que são portadores de informações A criatividade de Jean A sselin, atestada pela v is ã o que nos
adicionais e que provocam mais reações". comunica da personagem d e Ricardo II, igualmente se encontra
"O único procedimento que o raciocínio lógico nos o fe rece'; na interpretação que d á aos d ois j ovens duques: o duque d e
o b serva Moles, "é gozar antecipadamente a improbabilidade Norfolk, Thomas d e Mowbray, e o duqu e d e H ere ford e futu r o
desta s it uaçã o ":". Para 1'Vloles, "o valor [de uma mensagem] es tá Henry IV, Henry B o lingb r o ke .
ligado ao inesperado, à imprevisibilidade, ao original. A dimen - Se não existe, n ess e c aso, um desnível v erdadeiro na sua
postura e no s seus figurino s e n t r e os que es tão na c e n a e a
13 A. Mole s , 7héorie d e l'i nformation e t p er ception esth éti que, P aris: D e rio el , 19 73· maneira pela qual o texto de Shakespeare o s e v o ca, o s e u
14 C f. J. F éral , Th éàt r e e t p u bl ic: U ne q ues tio n d e ré cepti o n , c o n fe rênc ia. C h ilpa n - enfrentamento, em com p e ns a ç ã o , e a m ane ira com a qual
c in g o. M éxic o , m ar. 19 9 8 .
15 A . Mo le s . o p . c it., p . 3 8 .
16 Ib id em , p . 4 3. 17 Ibl cle rn , p. 37.
258 AL BM D O S LL"'IIT E S; A CENA SO B IN V E STI GAÇ Ã O O TEXTO ES PET ACULAR; A CENA E SEU TEXTO 259

ambos se d e s a fia m ao jogar a luva à face d o o u tro, ao a pan há - la das palavras, as surpresas do texto, os desbor-dame rit o e da per-
e ao se ericarare rn, fre n te a fre nte como d oi s j o vens t ouro s, t u d o sonagem e tudo aqu ilo q ue não fo i previsto pelo texto original).
s us te nt a um di s curs o m ai s fo r te d o qu e as própria s palavra s. D e fa to, esses dois aspectos ("tex to" e "texto performat ivo",
O co n fro n to an imal fa la d a a lt ivez d e ss es guerr eiros, d e sua "texto d o texto" e "cena d o texto") não são exclusivo s urn do
im petuosidade, mas fa la tam bém do aspecto a ni mal d e s ua r iva- o utro, mas bastan te cornplerrientares.
li dade, d o des bordamento d e energ ia e cóle ra q ue e nco n tra o Como o bservou Barba, a r el a ç ã o e ntre texto performat ivo
se u p onto m á xi m o n ess e ran gido son oro qu e vai se a m p lia n do, e texto p révio não aparece mais co mo contradição, mas como
s ig no d o co m bate interio r que se m ani fe sta nel es e n t re a s u a co m p le me n ta r idade, co mo o pos ição di al étic a . O prob le ma,
vontade d e o bedece r, s ej a a o se u rei, sej a ao seu p ai, e a inca- p ortanto, n ã o é mai s a esco lh a d e um ou o u tro p ol o , a defi nição
p a cidade n a qual es tão ime rsos d e r enunci ar v erdadeiramente d e um o u o u t ro t ipo d e espetác u lo. O p ro b lema é, ao cont rá-
ao se u ó d io . rio, o d o equ ilíb rio en t re o po n to do e ncadeamento e o polo da
O m e smo ocorre com o exe m p lo d ado por D enis M arle au sim u lta neidade. O f racasso n ã o é senão a perda do e q u ilí brio
e m O u lipo S haw: e n t re o s d ois p ol o s '".
E ac rescen ta : "Q u a n do s e faz d eri v a r o espetáculo de u m
o es ta tis mo d o s a ta res se s a t is faz com d izer o texto de C a lvino, te xto e s crito , a r r isca-se a p r odu zir a p erda de e q ui líb r io p elo
a dapt a do p o r Den is Ma rleau para as n e ces s idade s da p e ç a , s ua a usê n- predominio das rela ções lineares (a intri g a e n q ua n to e ncadea-
c ia d e rn o v írn e nto , d e deslocame n to, d e g e s to , segu ra m ente valor izam
m ento ) às custas da in t r iga conc ebida c o mo 'u r d id u r a', co mo
o " texto" - o " tex to d o texto" - , que é ass im interpretado diante d o
espec t a do r, rn as por o u t r o lado a ext re rna r apidez d a e loc u ç ã o, essa emaranharnento de a ções s im u lta n e a m e n te presente s ' vs.
rn esrna ri g ide z d as p ers onagens , esses e n o r mes ócu los a trás dos quais se Bem entendido, em algun s dos exempl o s que escolh e m os
esco n d e m e as transi ç õ es coletivas e c o re o g r á ficas de t odos o s atores ao não é possível falar-se d e desequilíbrio n o sentido exp o sto
m e sm o tempo che g am a apaga r o te xto e m proveito d o esp etacular - ("a por Barba. Seu interesse advém do fato de que os e n ce n a d o res
c e na do t e xto") - tornado e m o b je to d e atenç ão do público. Mais do evocados s o u b e ra m conceber as r el açõ e s do texto d e orig em
qu e ao con te ú d o das p alavras , o espectad o r n ã o está sensív e l sen ão à
e da cena numa montagem hábil e rn que as microssequên cia s
pe r fo r ma nce d o a tor prc cts arn e nte e m vi a s d e lutar com essa torrente
verbal assi m d e sp ej ada d e se us láb io s. O se n t ido - e este te xto tem ressaltam d o e n c a de am e n to e d a s im u lta n e id a de, el a s s ã o teci-
sen tido! - d o texto se esfu ma e m prove ito úni co d o "tex to p erfo rrn a ti vo" das de modo fe chado.
no qual se tor no u. A c ontribuição principal d esta di stinção co nce it u a I qu e
Barba reali za é que, aparentemente, ela s u bst it u i o problema
Pomos o dedo, nesse caso, no processo pelo qual um texto da oposição entre a palavra e o visual ao não centrá-lo nas
s e transforma em "t e x t o perforrnatívo", ou mais exatamente no questões da relação com a linguagem, o que fez , p or ex emplo ,
processo pelo qual um texto pode ser ao m esmo tempo "t e x to" um Derrida. O p onto de v is t a d e Barba é de um prátic o d e
e " text o p erforrnativo", ou para retomar a ternlinologia trazida teatro e é e m relaç ã o à prática c ênic a que el e s e d efine.
p or Ruffini , nosso dedo toca aquilo que fa z com que qualquer Ver o t exto como "u r d id u r a", co m o " m o n t a ge m", é es tar
texto seja a o m e sm o tempo "t ex t o do texto" e "cena do texto': mais perto da realidade c ênica do que s e p a r a r -se o texto , pela s
O interesse desses exemplos origina -se do fato de nos razões de análise, dos aspectos visuais e performativos do e spe -
permitirem mensurar aquilo que, no teatro, emana do encadea- táculo. É restituir ao trabalho d o encenador e ao d o ator toda
mento (a apresentação, a intriga, a lógica do texto, a coerência sua complexidade. Não é sen ão nesta c o m p lexid a de q ue o texto
d a s a çõ e s , a das p ersonagens ) e daquilo que emana da simulta- espetacular r ealm ente existe .
n ei d ad e (o ritm o , a e lo c ução, o gesto, o so m d a voz, o figurino,
18 E . Barba, Dramaturgie, op. cit. , p . 49 .
o espaço, m a s igualrn erite as escorr egad e las d e sen t ido, a p o e sia 19 Ib id e m .
2 60 ALJO.M DOS LIM IT ES: A C EN A SOB I N V EST IG A Ç ÃO o TEXTO ESPETA C U LAR: A C ENA E SEU T EX T O 26 1

o Texto Co mo Dramatu rg ia urna relação a u tónoma de urna trilha sonora, variações de luz,
modificações de ritmo e de intensidade q ue um ator realiza nos
A montage m, a urdidu r a q ue o encenador real iz a aj u dado pelo tem a s físicos determinados (o comportamento, a utilização de
ator e pelos d em ai s prát ic o s e técnicos de palco, n o q ue consis - obje tos, da maquiagem ou do fig urino). São também ações todas
tiria verdaclei rarnerite? De aco r do com Barba, N. Savarese e F. as relações, todas as interações e ntre as p ers o n a g ens ou entre as
Tavia n i , reveste-se d e três modal idades: personagens e as luzes, os sons, o espaço. São igua lme n te a ç ões
aq uelas q ue o per am di r e tam e nte n a a te n ç ã o do espec tador, na
a. Coloca r a s ações num co ntexto que as faça desv iar-se de sua cornpreerrsão, sobre s ua e rno t ivid a de, n a s ua c ines tesia. v
s ua significaçã o implícita . Pa ra is s o , imp õe - s e um traba lh o
d ra mat ú r g ico qu e d ê s u bi ta me n te ao t e xto um a ex istência Esse desvio d o qua l Barb a fal a n ã o visa co m p licar in u -
e ID três dim ensõ e s. A inda n e s s e caso, a p alavra "d ramat urgia" tilm e nte o texto ao mudar-lhe os se n t i dos s i m bólicos ou
d e v e ass u rn ir um se n t ido diverso d aquele que o u so acabo u p o r m etafóri c o s que interfe ririam na s ig n ific ação o r ig in a l, p orém
a t r ib u i r- lhe. vi s a antes d e tudo pratic ar uma política d e a fa st a m e n to, de
A e t imolo g ia da pal a vra dram aturgia, lembra F. Ruffini, é distarici a rn e nto para p ermiti r qu e s u r j a m s im u l t a nea me n te
d ra rna-eryo n , O conce i to li gado à palavra evoca um trab alh o d e diferentes se n ti d os p ara urn m esrno texto.
exe c u ç ã o das aç ões-". A s ações tais como definidas por Barba E m p o b r ece r o polo d a s im u lt a n e id a d e signifi ca limitar a
a b r a n g e m quase sempre a totalidade do fenômeno espeta cular: possibilidade de fazer emergir n o teatro significaçõ e s c o m p le -
os rnovirne ntos e as palavras dos atores, o universo sonoro e xas que nascem não de um encadeamento completo de ações ,
v is u a l, a intriga IDas também os vazios entre as cenas, a pro- mas do emaranhamento de várias ações dramáticas, cada qual
gressão de um r itrrio, de uma intensidade, a utilização feita de dotada d e uma "s ig n ific a ç ã o " sirnples-s. Para ilustrar tais pro -
obj etos, a s inter-relaç õe s e interaçõ e s e n t r e personagens. O tra- postas, tomemos o e x e m p lo da encenação de Denis Marleau
balh o d ramático, mais precisamente, visa a "s it u a r as ações num na qual a s interpretações corporais em coro para todos o s ato -
con tex to que a s faça des vi ar- s e de s u a significaçã o irnpl íc it a' ? ', res p erdem f r e q u e n t e m e n te sua rigidez e articul am aqui um a
é aquilo a que nos habitu aram as múltiplas reinterpreta ç õ e s de cabeç a , ali um pé, lá aind a uma b a cia, criando, para al ém dess e
t e xtos e fe t u a d a s pela mai or p arte dos encenadores n o s a n o s corpo coletivo em rnovirnerito, uma impressão d e h omoge-
d e 198 0, porém é t ambém aquilo que c o n s t it u i o fu n d a me nto de neidade lúdica do c o n j u n to, de distância pela rel açã o co m o
qu alquer trabalho estétic o e, rnu ito particularmente, do t ra b a - te xto sern qu e não se n e gue nunca a autenticidade d e c ad a
l ho do a t o r. É isso qu e n os lembra Barba: p ers onagenl tomada individu almente.
Com efeito, esses gestos (bamboleio, rotação, não à fr e n te
Concretamente, num espet á c u lo teatral, é a ção (i sto é, con- mas para trás) são um comentário derrisório e irônico que coloca
cer n e à dramaturgia), de um lado, aquilo que os atores faze m o "sér io" d o texto à distância. Fazem emergir o lado lúdico da
ou dizem, d e outro lado os sons, o s ruídos, as luzes , a s v a r ia- cen a, "a ce na do texto", diri a F. Ruffini, o dos atares e, s e g u r a-
ç õ e s do esp aço . São açõ es num nível superior de organi zação mente, o do encenador. Cada movimento, cada gesto c o lo cad o
o s e p is ó d io s da história o u as diversas fases de uma situação, fala do prazer que o ator tem de estar ali e de interpretar c o m
os espaços de tempo entre duas entonações do espetáculo, o texto, no texto e a despeito do texto, para além do texto. Fala
entre duas mudanças do espaço, ou ainda a evolução conforme da confrontação do ator e do texto, da fricção de um e outro, do

20 F. Ruffin i , Tex te e t sce ne op. c it., p . 225.


21 Ib id e m , p. 137. É n e s s e desvão q ue reside, alg umas ve zes, a originalidade da 22 E. Barba, Dramaturgie, op. c it. p . 48 .
qua l fala igualme nte Mo les. 23 Ib id e m , p . 50 .
262 A LJ:.M D O S LI M IT E S: A CENA S O B IN V E ST IG A Ç A O o T EXTO ESP ETAC ULAR: A C E N A E S EU T EXTO 2 63

trabalho d e um sobre o o u t ro e da co m p le m e n ta r id a d e de um o n e r v o sism o dos c av a los. Es tu d a d a e m det al h e , iss o co n s t it u i a


com r el a ção ao o u t ro. próp ri a partitura d o e n ce n a do r, conceito que Barba evoca com
jus teza p o r a n a log ia àqu ela do a to r.
b. Co n s t r u ir uma sín tese d e vá rias v is tas e não um a v ista A ta l p a r t itu r a j unta -s e , seguramen te, a do p ró p r io a to r, qu e
única . O s e g u n do pro c edimento d e urdidu ra visa, d e a cordo provo c a d a parte dele p r óprio uma ce r t a q ua lid a de d e prese nça
com Barba, co nstru ir urria sí ntese de várias "vis t a s" ao mostrar co r po ra l, uma cer t a e n e r g ia, uma gestual id ade , um a pos -
as várias faces de um e d ifí c io e não u m a v ista " re a l" ou úriica«. tura , urn a evocação da p erson agem e n r iq u eci d a co m tod a a
É isto que c onsegue co m êxito Jean Asse lin co m Ri cardo II. d ensid ad e inter i o r de qu e e le p ode s e in cumbir. A v isão qu e
A v isã o qu e e le n o s dá da p ersonagem o fe rece de repente a e ma na d a p eça, n o fi m d o p ercurs o , é preponderantement e
v is ã o de s u a s múltipl a s facetas, in d iv íd u o c omp le x o fe ito de o resultad o d e t od as as a ç ões que o a t o r ex ecuta. É a "s ín tes e
con tradição e ambiguid ade; Ricardo II emerge e n tã o como u m a de várias vistas': Tem por res ultado fornecer ao espectador uma
personagem fe ita de fr aquezas e d e força s, r ei e m a r io n ete ao visão múltipl a que não s e reduz a uma perspectiva ún ica.
mesmo ternpo. O dis curso que e le s ustenta o ancora em seu Poder-s e-ia acred it a r que se está longe do ideal clássico, qu e
papel de rei; em com pe ns aç ã o, se u modo de s e r, se u co m p o r- visa "to r n a r o texto a n t e r io r a tudo': E n t re ta n to , não é est e o caso.
tarn e ri t o , s u a apresentação teridern, ao co n trário, a le v á -l o n a A força de uma e n ce n a ç ã o r eside na maioria das vezes nessa
direção d o h o m e m , do adolescen te, d o migno n , o "fo fin h o" conj unção de c o m p lex id a d e e evidência q ue impõe a admira -
u m tanto ultrapassado p elos acontecimen tos, an tes p re o cup ado çã o nesses momentos de grande s ucesso, a arte d o encenador
com se us peque nos p razeres d o q ue co m as fu nções à f re n t e cons is t in do em encontrar a j usta d o s ag em par a n ã o se extraviar
de um r e ino. nas interpre t a ç õ e s q ue resu ltariam e m extrapolações fo rçadas
E o e sp ectador p e rcebe , ao m e smo temp o , e ss es diferentes d emais e p ouco convinc entes d a leitura que fa z da p e ça .
aspec tos d e uma rri es rna pe rso nalidade que parec e , d ess e rnodo,
d ota d a s u b itamen te de m ú lti p las face t as. Isto d á d ens id ade à c . E nergia que se transfo rma e m movimento. A terce ira
personagem e cr ia u m efeito de "e s t r a n h a m e n to" n o espectador, característica desse traba lho dramatú rgico, segu ndo R uffini ,
renova n do s ua visão habi t ual d o s re is, d e sp ertando se u in te- d iz respeito desta vez ao a tor. A d r am atu r gia é "como o filtro",
resse, s u a c u r ios id a de, a té seu j u lga men to c rít ico, p e rc ebendo o ca na l por m e io do qual u ma e nerg ia se t ransforma e m m o v i-
n um úni c o e mesmo o lhar t anto a visão d o a u tor qu anto a d o rnerito " . "São as ações q ue efetuam o t rab al ho,":" Tais ações q ue
e nce nador. visam um "c o m p o r t a m e n t o" são p recisamente a expressão da
A v isão q ue Jean Ass el in dá d e ss e Shakespeare, p o r mais energia na cena, as mo dalidades d e suas ma nifestações, d e s ua
car n avalesca que sej a, e n r iq uece a p e rso riage rn d e Ric a rd o II p ercep ç ã o pelo espec tador.
com t oda uma série d e e m oções, es ta d os, comp ortam ento s e Porém, d e que e n e rgia se est á fa lan do? O t e r m o é difícil
ações que vão p a r a a lém d a s r epre s enta ç õ e s h ab itu a is que se de defin i r. T rata-se da energia do ator? Daquela do processo
costuma fazer d el e. cênico? Barba voltou muitas v e ze s a tal noção , procurando
O q ue se chama a partitu ra do e ncenador é, p recisamente, o torná - la mais clara.
resu ltad o d e t odas essas micro ssequênc ia s nas qu ai s este último
escolhe t r a z er à lu z t al ou t al fr a s e , t al ou tal momento e m A noção de energia é extremamente simples [. . . ] No plano bio-
q ue s u b li n ha o co m por tamen to de uma p ersona g em, salien ta lógico, é um conjunto de tensõe s musculares e nervosas. A energia é
o pouco peso de um suse rano, o arrebatamento dos cavaleiros,
25 M no uch k ine fa la a es te prop ó s ito d a necess idad e d e s e e nco n t ra r um a form a .
S e u t rab a lh o e o d o a ta r v isa n do da r um a forma v is ível ao in vi s ível.
24 lbidem , p . 50 . 26 F. Ruffini , Texte et scé n e , o p . c it., p. 225
264 A Lf. M DOS LIMITE S: A C E N A SO B I N V ESTI GAÇ A O o TEXTO ESPETA CU LA R : A C EN A E SEU TEXTO 265

aquela da ativid ade [. . . ] A energia se manifesta por uma onda complexa Haveria, p o rt anto , p ara qualquer pra t ic a n te d e teatro, duas
e s im u ltâ nea d e varia çõ es tóni ca s. Porém, não é a energia qu e ca rac- realid ade s co rri as q ua is se acha co nfronta do : u m a realidade
teriza qualq uer ser vivo no cotidiano que nos interessa. Interes sa -nos m arcada por leis d e e nc a dea me n t o e suj eito a algum a s res -
antes d e tud o de que m aneira essa en e rg ia é modelada e expressa, Como
triç ões relativam ente rígidas , e o u t r a realidad e marcad a por
se torna eficaz nos sentidos e no es p ír ito do esp ectador [. . . J O teatro é a
ar te de tornar manifesto, d e expressar esse fluxo co n tín u o de mudanças princípios e simultaneidade n o s quais se manifesta a ludi cidade
q ue é nosso perisarne nto. que são to d os os nossos p ro cesso s interiores da i nterpretação. É d a fri c çã o d esses do is c onj untos, de s u a
e q ue fre que n tcrn c n tc vão para d ireçõ es d ive rgentes. A energia é uma coexistên cia (não se trata a bs o lu ta m e n te de supr imir um dos
var iação muscu lar e n er vo sa. É uma tensão. En tão, corno se trabalham termos da dialética), d e s ua o pos iç ão e compl ementaridad e que
as tensões? [. .. ] Todos os textos que, para nós, são m uito importantes simultaneaInente nas c e a en c en ação .
são text os que tratam da maneira d e co n str u ir o co m p o rtam en to cê nico,
Mais interessante ainda é qu e , exa tam ente n essa z o na d e
da rn a n e ír a de c riar essa relação e n tre nossa m an eira de pensar e nossa
maneira ele so m at iza r esse pe n sarne nto, de torná -lo corporal para que frente s é que s e situam a interpre taçã o do a tar e o seu talento.
possa se r eficaz para o espectador. '7 Sua arte consiste em fa zer dialogar e m maior grau e sses dois
conj u n tos - encadeam en to e simultaneidade, texto e c ena - em
A energia é, po rtan to, ao mesmo t e m p o o t rab alh o d o a to r cada uma d a s ações q ue e mpree nde.
n a s ações fís icas e o re sultado da "fricção, da r e sistê n c ia e n t re os A riqu e z a d e LlITIa e ncenação vem, paradoxa l men te, não
t e r m o s o post os e com p le menta res da d ial ét ica" qu e co n fr o n ta so men te da fric ç ã o e n tre essas du a s realidades, m a s da res is -
texto e ce na-". Pois tudo parte do texto. Barba o r e a firrn a : tênci a d e uma fren te à outra, d e s ua corri p lerneritar idade> . É da
percep ç ã o que o e sp e ctad o r t em ao m e smo temp o d e ss a f r icção
H á, a n tes , o texto . .. O ponto de partida é o texto . Os es tu dan tes e da j ust e z a das es col has efet u a das, das d o s a g ens e n t re te xto e
chega m co m um tex to e, em segu ida, eu lhes digo: faça m - me uma texto performativ o q ue nasce o se u praz er.
improvisação, n ão ações [. . . ] Então, peço aos es tu d antes que com po- O que tais o bse rvações qu e r em r e s s altar é qu e o praze r
n ham a imp ro visa ção como se fos se u m p oema em id eo gram as, p orém
d o espec tador raram e nte vern d o fa to únic o d e com p reende r.
corporais. Dessa for ma, p od e-se dizer q ue cada ideograma corresponde
a uma ação. O tex to foi t raduzido sob a fo rm a de um p o ema cor poral, Ann e U b e rs feld m o s t r ou m u ito b em co mo o praz e r q ue se
d e ações. Ess e é o p ro ce sso . . . M as o pon to d e partida foi o texto [. . .] apossa do e spectado r é s e m dúvida o d e r e c onhecer, m a s é
É, ass im, o texto que se r ve d e pont o de partida, m a s o texto nã o se ig ualm ente o de d e s cobrir. O s e s p ect a d o res que nó s s o m o s
con fig ura como um co nj u n to si mbólico n o p apel. Ele se to r n a p rocesso n ã o gos tam que se n o s indiq ue exp lici t a mente o s e n ti do q ue
vivo, e n esse caso n ão h á m a is separação e n t re a p al avra e a açâo . >? ta l a ção , t a l g e sto , t al personage m devam te r. Não gos tamos q ue
o trabalho d e a nálise e interpre t a ç ã o seja fei to e m nosso lug a r.
Se n do a s s i m, n a p ersp e ctiv a d e B arb a tudo está li g ado. A N osso praz er v e m, a n tes d e mais n ad a , d e u m a certa bus c a , d e
e nergia vem da f r icção entre e ncadeam ento e s im u ltaneid a d e, e um p ercurs o que a cena nos p e r rn ite r e a l izar, durante o qual
a dramatu rgi a d o e n cenado r, como t amb ém a do a ta r, co nsiste tra ç a as grandes linh a s m a s n ã o o faz p o r nós . A cena esboça,
pre cisamente e m s usci t a r essa fr icção plen amente ao ge rá- la. Eu p o rtanto , os caminho s e aponta a lgumas direções, p o r é m não
d e sta c a r ia e ssa ide ia d e fric ç ã o que pare c e c a pital n o p r o c e sso deixa q ue n o s aventure mos por e les sozin hos . É nesse percurso
c ê nic o e que d á c o n t a m uito bem do trabalho do ence nador e efe t u a do s o li t a r iame n te p el o espec tado r q ue resi de u m dos
daquele d o atar. pra z e r e s do t eatro .
27 C f. E . Barba, Faire du t héâ t re , c'e st pen ser d e fa ç on p arad o xal e, e m J. Féral
(ed .) , Mise en sc éne et jeu de Ia ct eu r, II : Le Co rps en sc éne, M ontré a llBruxelles: 30 F. Ruffini, Texte et sc êrie, o p. ci t. , p . 2 2 5. C f o que o bse r v a m os m ai s a trás
Jeu/Lan sman , 199 8 , p . 8 0 -81- s o b r e o texto q ue ofe re ce u m a ancorage m se mân tica, o "tex to p erforrn a t ívo"
28 F. R u ffi ni , T e xt e e t sc én e. o p . cit. , p . 2 25 . favo rece n do, ao co n trári o , um a d e san corag em e a a p a r iç ã o d e um a zo na d e
29 E. Barb a , Fa ir e du th é âtre . . . , op. ci t., p . 10 5- 10 6. fr uição m ai s perso n al iza d a . Ibidern , p . 22 6 .
26 6 A LIÕ M D O S LIM IT E S: A CEN A SO B I N V ESTIG A Ç ÃO O TEXTO ES PET ACULA R: A CENA E SEU TEXTO 267

"Fa z e r compreender um es pe t ác u lo ", diz Ferdinand o Isso é muito visível nas en c enações d e Jean Asse lín , De n is
T avia n i : lVlarleau ou G il les M aheu qu e c it a mos a n te r ior men te . T a l
trabalho de dilataçã o de certa s p a lavras, c e r t a s fra s e s , c ert os
n ã o é o rg a n iza r a s d escobe rtas mas desenhar, projetar a s ma rgens ao comportamento s, ce r tas s it uaçõe s , c e r to s sons, certo s r it mo s,
longo das quai s o es pec ta d o r n avegará atento e , desse modo, faze r rep resenta seguram ente urn dos aspectos ma is importantes,
desen v o lv er- se nes sas rna rge n s u m a vi da m i n uciosa, rnu lt lfor m-,
senão o mais fu n cla rn e rrtal, da i nterp retação do ator. Ta l tra -
i m p re vi sta , na q ua l o espectador po de rá mergu lhar o seu o lhar e faz er
b alh o visa concent rar a a te nção d o espectado r sobre alguns
s u as p r ó pr ia s d es c ob ertas>'.
as pectos qu e o e n c e n a d o r esco lhe u para privilegiar. Co n s is te
"e m g uiar o o l har do e spectado r": a m o nta g em "c o ns is te em
Eis aí o papel do ator e o do enceriadorv. Nesse pro c es so,
guiar o ol har do esp e c t a d o r para o t e c id o (texto) dramático
c o rno c r ia r esses efeitos de s irn u lt a ne id ade e ericadeamenn,
(perfo rrnance), d ito de outro modo, fazê -lo experimentar o
de sentido ?
texto performativo. O encenador concentra a atenção d o espec-
o ator q ue t rabalha n u m s is tema cod ificado cons trói a "mon tage m" t ador p o r m eio d a s ações d o s ato res , d a s palavras, d o te x t o ,
por m ei o de u m processo de a lteração fís ica d e seu c o m po r tame n to da s relaç õ e s , d a músi c a , do s so ns , d a s l u z e s , d a utili z a ç ã o d e
" n a t u r a l" e "e sp o n t â n e o". O e q uilí brio acha-se m od ifi cado e m odel ado, a cess ór ios?» .
torna- se precário : s u rge m ass im n o vas tens õ es n o co r p o que se e nco n tra O u seja, o a to r d e fato trabalh a n ão ape nas nas a ç õ e s m a s
desse modo dil atad o . Do rnesrno mo do e m que se ach a m d ila tados e "so bre o e fe ito que as ações d e'vern produzir no esp ec taclor' v",
c o d ifi c a d o s a lguns fe n ô m eno s fisio lógicos p art iculares .v
"G u iar o olhar d o esp ec t a d o r': "fazê - lo ex p e r im e n t a r o texto
p erfor mativo" ao manter pres ente no se u esp ír ito o "text o': e is
É O que B arb a d en omina "c o r p o dilatado" :
aí, d e fato , o papel d o a t o r e do e ncenad o r.
O a to r, por exemplo, o b té m efeitos d e si m u lt a neidade a part ir do
rnornento e m que rompe o esquerna abs trato d o m o vi m e nto t al como Tra d. N a n ci Ferna ndes
o espectador o previu. E le m o n t a (com põe = p õ e e m conj u n to) a su a
ação numa sí n tese distan ci ada d o co m p o r ta me n to co tid ia no: seg men ta
a aç ão, escolhe a lg u ns frag me ntos e os dilata: o a to r c o m p õe os r itrno s. >

31 C f. Les De ux visions: v is io n de l'a cteur, v is io n d u spectate ur, op. cit., p . 256 .


32 I: tamb ém assim que s e expressa Barba afirmando: "Em numerosos casos,
isso quer dizer para o e spectador que, q uanto mais se to r n a difícil para ele
in te r p re ta r ou avaliar imediatamente o senti do daquilo q ue se passa sob seus
o lhos o u diante d e se u espírito , m ai s forte é para ele a sensação de viver uma diferentes partes que a constituem. Precisamos saber isolar essas peças diferen-
ex pe riê n ci a :' Dramaturgie, op. cit., p. 50 . É esse o caso, ainda, de uma questão de te s, torn ando -as índependentes para dar-lhes uma nova depend ência" Ibidem,
g ra u . Pensemos n o s espetáculos do Furla deis Baus, n o s quais é extremamente p . 132. Barba recorda, aliás, que Schechner insistia que "a vida do cor po do at ar
difícil a valiar o sentido imediato d as a ções que são colocadas, de tentar uma é o resultado de um processo de eliminação que consiste em eliminar d etermi-
in te r pretaçã o qualqu er e m que O espec ta d o r registra as ações umas a pós as nadas ações ou fragmentos de ações executadas pelo a tar e destacá -las': A es te
o u t r as, cansado desse b orribardearnent o de im age n s sonoras que o agridem e pro cesso e le dá o nome de "r es ta u r açã o de comportamento': Ibidem, p. 145 .
que n ão lhe deixam mi n i mamente q ua lquer p o ss ib ilidade que seja para analisa r O q ue essas dife rente s visões d est a ca m é u m a m o di fica ção das con tinui dades
ou aderir. previsíveis, a in tro dução de u m a ruptura n o continuurn , u m a fragmentação da
33 Ibid em, p. 13 4 . unidade para o su rgimento de u m vácuo, a q uebra, a rup tura, u m a ruptura q ue
34 E. Barba, Drarnaturgi e, o p . cit., p . 50. Em apoio a essa ide ia , Ba rba recorda q ue se dirige à atenção d o espectador e que desper ta o seu interesse. Moles também
Walte r Be nj a m in o bservo u que "o a tor deve espa çar o s se u s gest o s co mo um insiste nesse processo d e reconhecimento da originalidade d a mensagem, uma
tipóg ra fo espaça as p a lavras; de ve fa zê -lo d e so rte que se u s gesto s possa m se r o r ig ina lidad e, cab e lembrar, furi dadn n a impre visibilidade .
c ita dos" Ibidem, p . 159 ; que R o b ert Bre sso n , p or se u turno , obse r vo u q ue p a ra 35 Ib id em, p . 134.
"co m po r" é pre ci s o sa b e r o lha r a realid ade que n o s rod ei a. d istingui n d o as 36 Ibidem .
2. Um Corpo no Espaço:
Percepção e Projeção

Tornar es t ra n ho o fosso e n tre o o lh a r e a es cuta .


R O B ERT W ILSON

M inh a regra co nsis te em qu ere r prop or um cen á r io


que se p areça co m uma evidê nc ia e a uma su rpresa
YA N NI S Kü KKüS '

A EMERGÊNCIA DE NOVOS ESPAÇOS

Estão nossos métodos de pesquisa, no campo dos estudos


teatrais, em sincronia com as concepções científicas do nosso
tempo? Mais particulannente, nossa concepção do espaço
teatral valeu -se de todas as lições possívei s dos estudos
empreendidos não apenas pelos historiadores, mas também
pelos fisiologistas, pelos neurologistas, pelos filósofos?
Sem querer responder aqui a questão tão vasta, eu observa-
ria, para corrreçar, que essa defasagem entre pesquisa científica
e pesquisa teatral, fácil de ser observada no campo dos estudos
teóricos de suporte ao espaço teatral, parece desaparecer no
campo da prática artística, em especial na dos cenógrafos. Com
efeito, de Isamu Noguchi a Yannis Kokkos, de Wilfrid Minks
a Guy-Claude François, de Jean-Pierre Chambas a Eduardo
Arroyo, de Gae Aulenti a Yannis Kiounellis , os cenógrafos,
consciente ou inconscientemente, parecem integrar muito
naturalmente as descobertas científicas do seu tempo, tão bem

C it a d o em J. Co ue lle , Co n s tr u i re un e sp ac e déjà h a b it é. leu, n. 69 , p . 33 -40 ,


dez . 19 9 3. E n t re t ie n avec Mic hel Go u let.
2 70 AI. J':M DO S LIMIT ES: A C EN A SO B I N V ESTI G A ÇÃO U ,"I C O R PO N O ESPAÇO : PERCE PÇ ÃO E PRO/EÇ ÃO 27 1

qu e o seu trabalho de criação cont r ib ui, de um lado, para refletir e nem falar c o m os a to r e s, a não se r pelo v iés de uma m ediação
( n o se n t in d o de reproduzir) a experiência que temos do espaço tecnol ógica: tel efon e , fax, m ensagem e le t rô n ic a , Internet>, 111as
no cotidiano, e por o u tro lado p ara modificar, pelo viés d e ta m b é m por desenhos e sinais através do vidro. Nenhuma nar-
sua arte, os m o dos de percepção q u e dele ternos. Ass im, e les ração c o n t ín u a estruturada se des enrolava nesse espaço, s e n ã o
aparecem ao D1eSnl0 tempo co mo h e r d e i r o s do seu ternpo ( no inÚlTIeraS micronarrativas espontâneas segui ndo os event uais
q ue s e ju ntarn a nós e testernurrham s ua é poca) , co m o tamb ém e ncontros e d iá logos co m o púb lico. Os ato res conten tava m -
e nq uan to p r o s p e c t o re s d o futuro (ao institui r n o v a s estratég ias -se e m viver no coti d iano da v ida que os espectadores q ue os
de percepção) . o lhavam Ie v a rn habitu a l men te nos seus apartamen tos, atrás d e
Um exemplo nos pe rmit irá ilust r ar essa in te nção. Gos tar ia p a r e d e s e corti nas. Os a tores tor n avarn vis ível a máscara de
de anal isar o gênero de espaço d o qual certo espet ácu lo, Urban n o ss a sociedade, desve lavam, COIDO afirmava m a si rnes rnos,
Dream Capsule (Cápsula d e So n ho U rbano), levado e D1 maio "o espaço urbano ín r i rn o"
de 2000, se servi u e o gênero d e p erc ep ç ã o que ele a u toriza. Lo nge d e seguir u m a narrativa (inexistente) o u um d iál o g o
Tornare i tal exemp lo C0 D10 trarnp oli m d e uma r efl exão qu e n o s (m u do), long e d e a d m ir ar um a estét ica, os especta do res - qu e
p er mitirá exa mi nar a q u ilo que os c ie n t is t as n o s dizem d e nos- seguiraD1 t al expe r iê nc ia aos milh are s - co n t e ntara m -se e m
sos m od o s de p erc epç ã o d o espaç o atu al , in serind o exa ta men te est a r p rese n tes, e rn estar a li , ex pe r i me n ta n d o a s se nsações,
es ta r eflexão n a história. emo ç ões diante d o es pet ác u lo que r e sultava do eve n to -.

N a primavera de 1999 , no Festival de T eatro das Am éricas Tal s u c e ss o nos interroga so b r e aquilo que parece estar nas
apre s entado em Montreal, no quadro de suas atividades um próprias antípodas d e um teatro de arte. E n t r e t a n t o, o público
espetác u lo intitulado U rb a n Dream C ap s u le , r ealizado p or encontrou prazer nele , um a ludicidade que ele nem s e m p r e
um grupo de artistas australianos. Tratava -s e de uma instala- enco n t r a n as expe r iê n c ias mai s "a r t ís t ic as': Um públi c o não
ção p erformática irnagiriada por Neil Thomas, o fundador da habituado ao t e atro foi cooptado , a r rast a do por e sse universo
com p a n h ia . E s te havia concebido uma instalação nas v it r in as que lh e foi prop o sto . O mesmo aco n teceu co m o público habi -
d e um grande magazine (La Baie) reformuladas como um tual d o fe stival.
ap artarnerito onde deveriam evoluir durante quatorze dias , C o n fr o n ta do com st im u li e sensações provenientes de todo
s e m qualquer interrupção , quatro atores entregando -se a s u a s o e spaço visual (lembremos que o s o m direto estava aus ente
a tividades cotidianas sob o olhar permanente do público. U m d ess e uriive rs o ):', o espec t a do r d ei x av a - s e arrastar pelo j ogo de
quarto d e dormir, UITI a sala, um a cozinha e um banheiro e ram
a p rese n tad o s, a s sim, de maneira frontal, o s a t o r es p a ssando d e 2 Cf. disponíve l em : < www .u rbarrd rc a rn .c o rn » ou < w ww.a lp h a li n k .c o m .
au/ - surreal > .
um e s p a ço para o u t ro conforme suas atividades e s e us desej o s.
3 O espet áculo, apresentado pela companhia em maio de 1999 em Montreal,
N ad a d e cor ti n as o u persianas para a ssegu rar-lhes intim idade: inseria -se numa s é r ie de instal ações ini ciadas pelo grupo no c o meç o d os anos
refe içõ es, du ch a s , s o n o , atividades d e la z er acontec iam sem de 1990 e que não c ess o u de continuar d esde então (G e n t, 1999; Londres, 1999;
Festival da Nova Zelândia, 20 0 0; Perth, 20 01 ; C h ic a g o , 20 01) . Precedeu, é
cessa r e m interaç ã o c o m milhares d e espect a d o res d e sfilando
claro, a ed ição francesa Loftstory difundida no M6 e m 2000-2001, que obteve
a toda h ora , d e d ia e de noite, para sab er onde e stariam o s grande sucesso popu lar, da mesma for ma q ue a maior pa rte dos rea lity shows
quatro arte- a stronautas. E stes últimos moravam num e spaç o das cadeias d e tel e v isã o a me r icanas e inglesas. A lg uns p a r al el o s poderiam ser
destacados e q ue aprox imam essas várias exper iências . A m a io r d ifere n ç a
colorido no qu al os o b j e tos e r a m mais irn po r tantes d o que as reside no fato de que, no nosso exemp lo , houv e ao longo de to da a experiên-
forrnas , o n de os d e slo c amento s tin ham mais se n t ido d o que cia uma interação com o púb lico, o qu e n ão é o caso dos reality sh o ws . Essa
a própria ação que deveria ser executada. A audição e stava int era ç ã o c o nst it uía p arte importan te d o es pe tá c u lo.
4 Porém h a vi a o so m da r u a . O espec ta dor p odi a o uv ir a s reflexõ e s d o s o u t r os
excluída desse universo. O espectador não podia nem escutar es pecta do r es e sua s tent ati vas d e co mu n ic a ção co m o s a r t is tas .
272 A LB M D O S LI M IT ES: A CENA SOB I N V ESTI G AÇ ÃO U M COR PO NO ESPAÇO, PERCEPÇÃO E P RO JE Ç A O
273

se n s a ções , d e percepções expe ri men tadas . A d im ens ã o c o gni- d eu essa exper iênc ia e o q ue pode r iam fazer os atares n a s u a
tiva que pe r ma n ec ia p r es en te re vela-se in ope rante p el o fat o de redorna?'
n ão e s cl a rece r rn ínirnarn e.nte o esp e tá c ulo. O e spectador era
a n tes c onfrontado co m uma ins t a la ç ã o espacia l q ue o incluía
e o excl uía ao m e smo te m p o. E le não tinh a q u e co mpree n der Espaço- Vo lu m e e Espaço-Fo rma
nada, m a s s im experimen t a r.
Nossa h ip ótese é que a raz ão d e tal s ucesso d e v e s er pro cu- À pri meira qu estão - q uais são as c a racterís ticas d ess e espaço ? _
rada na p rópria nature za de s s a e x pe r iênc ia qu e se ac resce n t a à é fác il r e sp o n d e r qu e o espaço ap resen ta do ao espec tador es tava
experiên ci a teatral naquilo que ela t em d e mais fund amental, di sp o sto em c a m a d a s diferenciadas de s e d im e n t a ç ã o .
uma e x periê n c ia bas eada, a n t e s d e mai s nada, n a relação do A primeira c am ad a d e percepçã o mantinha um a sen s ib ili-
espec t a do r co m o esp aço, um espaço qu e se a r t ic u la , no caso, zação nas p ró p rias dim ens õ es d a "ce n a': do espaço co m o q ual
e m três c a m p os d e interv en ção: esp a ç o d o palco, e s p aço do o espec tado r era co n fron tado qu and o d e s ua c hega da. Te n do
espec tad o r, esp a ço virtual, e e m trê s mod o s ( e s p aço - im a gem, ouvido fa la r d a exper iência, o espec t a d o r co n hecia b em s e u
espaço -forma, espaço -volume) . Tais e spaços não so me n t e nos princípio, n ã o os se us p arâm etros . Tratava-se p ara el e , p ortan to ,
remetem ao nosso e s t ilo de viver no sso es p aço c otidian o (esp aço de id entific ar o lugar r eal e m que e la se des enrolava, o es paço
vivido de m odo um tanto o b s o le to ) , mas no s c o n fro n tam c o m que a tornava tangível. Tratava - s e, no c aso, d e um lugar físi c o:
uma relaç ã o di stinta d e espaço (e com um es paço di stinto) , que largura das vit ri n e s", profundidade , a ltu ra d o s tetas, pres en ç a
se situa no nosso cotidiano atual, e s p a ç o do qual P aul Virilio do v id ro . O esp ec t a d o r calculava-lhe o volume, interrogando -s e
e sclarece alguns parâmetros (espaço -plano, s u p e r fície - lim ite ). sobre as dimensões (são elas adequadas para s e viver quatorze
Ness e exemplo, dois aspectos merecem especial atenção e dias e n cla u s u r a d o ?) . Esse primeiro cantata passava pelos sen-
levantam duas séries de questões: tidos antes mesmo que uma anális e interpretativa elaborada s e
a. Quais são as características desse espaço assim criado sobrepusesse a e s s e primeiro cantata.
por Neil Thomas e sua equipe num contexto tão at ípico? Que Um segundo e spaço de perc epção a d ic io n o u- se ao pre -
g ênero d e leitura faz o espe ctador? C o m o el e o percebe e como cedente: de diferente nature za, el e era repl eto: o passeio e a
o lê a partir de seus esqueInas perceptivos, cognitiv os, mne - ru a , o espaço exterior onde os e spectadore s, de p é atrás do s
m ônicos o u imaginários? O intere s se do e x ercício, n e sse caso, vidros , deambulavam observando o s quatro arte -astronauta s
re side e m que tal espaço c ênico s o m a- s e a o fu n c io n a m e n t o qu e s e apresentavam c o m o esp e t á c u lo . Tal esp a ç o, estando cla-
da cena teatral mais tradicional ao erripre star amplamente o ramente delimitado, via s e us limites mudarem em função da
espaço cotidiano para o e ssencial, um cotidiano que divide, d ensidade do s esp ec t a d o r e s . Conforme a hora do dia, a tem -
na sua grande maioria, com o público convidado a vir olhar. peratura, o espaço do espectador flutuava de forma semelhante
b. Por o u t r o lado, no que esse gênero d e e xp eriência pra- em importância.
tic ada p elos artistas - c enas banais sobre tema s var iados c om N e sse, primeiro nível, o esp ec tado r ' identificava o espaço -
o s quais cada uni d e n ó s e n t ra em c a n t a ta cotidiariarnerrte sem -volu me. E n e s s e e spaç o qu e os dem ai s nív eis d e leitura iam se
nem rnesrno prestar atenção - pôde des encade ar t ão grande enxertar.
interesse, a tal ponto que o s e spectadores n ão apenas passavam
5 Essa situa ç ã o le m b r a a s e x peri ên ci a s ao v ivo n a web (web c a m ao v ivo), m as
longo s p eríodos à s u a frente para olhar o s atares entr egando -se
também , como o di ssem os a n te r io r men te , to d a s as sér ies te le v is iv as qu e se
à s a tividades de n ossa vida co t id ia na ( t r a b a lha r n a cozin h a, desenvo lvera m ab u n dan teme n te h á a lgu ns a nos e qu e fas ci nam o p úbli c o :
passar r o u pa, fa z er os jogo s s o c ia is ) , m a s t amb é m vo ltando a Big Broth er, Loft S to ry, S u rvivor,
6 O palco é vasto (v in te metros - e q u iv a le n te a q ua t ro peça s co lo cad as e m filei ra
ele s em pa ra r c omo q ue movidos p el o d e s ej o d e ver onde s e n u m apart a men to ) .
2 74 ALiÔM D O S U1VlITES: A C EN A SO B I N V ESTI G A Ç Ã O UM COR PO NO ES PAÇO : PERCE PÇÃO E P ROJ EÇ ÃO 275

O u t ro espaço es tava presente igual e r epentinamente, o ap r o p r iação d o esp aço p el o sen tido, a v isão oc u pa um lu gar
do grande magaz iri e no qual s e encaixava a "ce n a", n o mínimo fund am ental, veiculando m ais informa çõ es d o q ue o resto dos
atí pico. C o n s ta n te m e n t e presente, ele existia na percepção do se n t icios". Ta l visão alterou-se, afinou- se a o longo d os séc u los. As
espectador como luga r de acolhida dessa c u r io s a experiência mutaçõ es s o b re v in d as não revel a m s im p lesmen te que a quan -
e o espe ctador mensurava igual m e n te a distância que separava tidade de informações re colhida s a partir do olhar mudou (a
as f unções hab itu ai s d e t al espaço - ap rese ntação d e o bje tos q uantidade seria, parece, mais importante hoje d o que outrora),
i rra rrirn ados fe itos p ara se r ern co nsu n1idos - e a ação q ue se porém revelam também a importância, a credib il idade e o lug a r
desenrolava d ian te d ele , a o coloca r e m cena seres vivos oc u- maior dado ao o lhar e à informação v is u a l q ue ele veicula na
pados em viver. Nesse caso, a p e rc e p ç ã o do espec tador passava construção do sentido. É isso que proporciona a peça Urban
pela mediação de um a a nál ise, medindo a d is t ân c ia en t re a D ream C ap su le. Nela, tudo passa pelo olhar: aç ão, gesto, mímica.
fu nção h a b itual de tal lug ar e o u s o lú d ic o q ue dele e r a fe ito. Toda a construção de sentido passa por um trabalho de p ercep-
E le percebia assim o es paço do m a g a z in e , as peças, sua dispo - ção da imagem e de seus componentes, uma im a g e m a seguir
s ição d e umas co m r ela ç ã o às o u tras. Se u t r a b alh o d ep endia d uplicada pela in teração que se instala com o espectador, os arte-
d a p e r c ep ç ã o d o espaço-f o r ma e d o espaço-im agem ao mesm o -astronau tas n ã o se contentam em fazer gestos, p o ré m reagem,
tem po. N e ssa seg u n d a fase, o es paço é p erc ebido , d íz e rn -ri o s os p o r se u lado , aos est ím u los dos espectadores. A penas o o lhar
c ie n tistas, como íc o n e dado a ve r. E le d efr onta o espec tador q ue ca rrega a ação, d ete rmi n a a intera ção , p e r mite à a ção ser acom -
lhe avalia o v o lume, as forma s , as t exturas e cores. É pe rceb ido p anhada . O único canal d e informação e co m u n icação p ass a pelo
com o bidimensional. Não é sen ão n esse caso precis o , e m que o lho d o espectador. To do um domínio d e p esquisa se interessa
o espectador e stá no esp a ço de atua ção, que t al bidime n s iona- atualmente por esta p regnância d o o lh a r n o teatro, o t e atro at ual
li d a d e s e a paga e que o esp ec tad o r e n t r a n o espa ç o -v olume . tendo se tor n a do o lugar d o o lhar mais a in da d o que o d a escu t a".
P o rtanto , de um lado , um esp aço fe chado - o d o s a tores - 2 . O q ue n o ss o exemplo evide ncia igualm ente é que o esp aço
totalme n te e nvid raçado, ab erto p ara o m u n do e que o lhava o v is ual é fe ito totalmente de um agregado de estím u los se nsoria is,
espec t a dor; d e o u t ro urn es paço a be r to - o d o s espectado res - , que solicita m n ã o a penas o o lhar m a s tam bém todas as outra s
porém c uja linha d o horizonte es tava fec hada pela p arede d o fac u ldades sensor ia is d o s ujeito (sensação d e proximidad e dos
palco. Todas a s condiç õ e s da s it uação t e atral es t avam lá: s itua- demais espec t a do res , tocar o v id ro, manipula ção d o telefone,
ç ão frontal, e n q uad ramen to d o p alco , fenômeno d e expos ição. e n vio d e e- rnails). A experiê ncia t e atral, n o caso, é com.o um
A dispo si ç ã o d o espaço s u perp u n ha t eatr o e o bje to comercia\, lug a r de polissensoria li dacle. O importante para o espec tador,
transfo rma v a os a tores e m o bjetos d o o lhar (e por extensão, p orta nto , n ã o é reconhecer lu g a re s reais o u fic tícios, m a s v ia-
e m objeto s de c onsumo ) . jar n as fo r mas, n a s es truturas d a maté r ia: n ess e caso, cores, a
Esses trê s n ív e is de p erc epç ã o do espaço (espaço -i magem, superfície, a tessitur a , a maciez, o tocar. O espectador se satisfaz
espaço -forma, espaço -volume) são evide ntes, po rém d ã o conta e m perceber a h o r izo n t a li d a d e, a ver t icalidade, fo rmas a be r tas,
da m ane ira pela qua l são apropriad a s h abitu a lm e n t e todas as fechadas, massas cromáticas. Tal polissensorialidade é primária
fo r mas d e espaço, e m p arti cula r as qu e se ac resce ntam ao
espaço d a sala. O ra, esse espaço é tamb é m fre q ue n temente o 7 É, p elo m enos , uma das hipóteses exp o s tas por E.T. Hall, que nota: "o n ervo
d o p a lc o à italian a. ó ti co possui cerca de dezoito vezes mais neurânios que o n ervo coclear, p ode-se
c oncluir daí que el e transmite pelo m enos dezoito vezes mais informações'; fato
O que evide nc ia m as prim eira s o bservações: q u e o le va a a fi r ma r que o s o lhos são mil vezes m ai s e ficazes do que o o u vi do.
E .T. H all , La D im en sion cac hée, p . 62-63 .
1. A importância da apropria ção sensorial na experiência 8 A e x p ress ã o é d e W ilson , velh o rrre st re na a r te de d esestr u t u rar o s di sc urso s
teatral - e de man eira gera\' na experiência artístic a . Nessa cê n icos un s em r e la ç ã o aos o u t ros. Ê preciso, d iz , " tornar es t r a n h o o hi at o
e n t re o o lh a r e a esc u ta':
2 76 A L t M D O S LIMITES : A CENA SO B INV E STI GAÇ ÃO
UM C O RP O N O ES PAÇO : P E RC E P Ç ÃO E PROJE ÇÃO 2 77

e acom pan h a d e rno d o in diss ociável a codificação das s ign i- caso, ao cr uzamento entre a s c iê n c ia s cognitivas e as c iê n c ia s
ficações q ue lh e são ern ge r a l e espontaneamente atr ibu ídas . da percepção, domínio que tenta fa z e r a p onte com maior ou
Q uan do um ar tis ta co mo Mnouchkine fa la d a n e c essidade d e me nor s ucesso e ntre as ciências e x a t a s e as ciências humanas
f r uição do o lh a r n o t e atro , é pre cis amente ta l p ol is s e n s o ri a - para rea lizar a passage m q ue va i do át o rn o ao pensamento,
l idade qu e ela evoca. O es p aço v is ua l não destaca, po rtanto, seguindo os circ uitos cerebrais e neurológicos q ue explicariam,
si m p lesmen te p el a v is ta, mas t amb ém pelo se n tido. e m pa r te, a experiê ncia estética.
No e n tan to, a p erc ep ç ão d o es pec t a d o r não se lim ita uni - O que pe r m ite a nalisar a experiê ncia de Neil Tho mas é
came n te aos s e n t idos . É um a combina ç ã o d e sensação, de q ue toda p e r c ep çã o d o espaço v isual é a n tes d e mais nada de
p ercepto e d e co nce it o . Implica, c ertam ente , a im ediate z d a ordem c ines tésica . E la pass a p ela a p r o p r iação d o s d e sl o came n -
p e r c epçã o d o s s ig n ifica n tes (matéria, t e xtura , cor, pro fund e za , to s , m ovim ento s , a ções daqu el es que partic ipam, confir mando
vec torial ida de, vertic alidade, h oriz ontalidade , for mas a be r tas, aq ui lo qu e os físi co s n o s e ns inaram: que o sen t imento do es paço
fec h a das, rn a s s a s c rorn át ica s) , m a s t amb ém o trat amento cog- n o s é d ado pelo d e sl o c am ento d o s cor pos uns e m r el a çõ es a o s
nitivo que p e rmite p ensá-las e an al is á-Ias ". outros e p or s ua inter-relaçã o , m ais do que pelas ima g ens que
a ret ina g rava 10 . Ta l apr opria çã o e nvolve o e squema co r po ral d o
sujeito, v is to que o espectador julga ess e es p aço, expe rimen ta-o,
Da Pe rcepção à C ogn ição prova - o rnesrno n o seu cor po.
Alguma s e n cen ações ex p loram d e m odo mais aprofund ado
Seria interessante poder remontar à fonte das percepções e des - que outras a importância dessa vivência do espaço (cf. La Fura
tacar o percurso que leva dos mecanismos neurofisiológicos d els Baus). Há portanto, para o espectador, uma verdadeira
que governam a apropriação do espaço até a leitura do e spaço exp e r iên ci a do espaço, s e j a po rqu e el e se encontra introdu -
na representação ( espaço simbólico). Uma tal traves sia ainda zido nele , c o m o é o c as o d e algumas experiências d e palcos
r e s ta a ser feita . Ela r eanimaria os partidários do " h o m e m neu - a m b ieri tais ''. s ej a porque t al espaço seja dado a v e r e a co n st r u i r
ronal': que tentam mostrar no que o s processos do pensamento s irn bolicarrien te, corno o que oco r re e m Urba n D ream Cap su le.
humano podem s e r analisados em tennos de m e c an is m o s Tal passagem pelo próprio corpo do s uj e ito fa z da exper iê n -
n eurofisiológicos. cia esp a c ial n o teatro um fen ômeno que remete para al ém dos
A que stão de s a b e r como passamos da p ercepção à c og- m ecanismo s perceptivos c o m u ns, para a s u bj e t iv idade d e cada
nição ou, m ais e xat a men te , como p as samos d e um m odo de um: s u bjet iv idade d o p ens amento , da m emó r ia, d o imaginário
p ercepçã o n ão ve r b a l do espaço para um a a nálise d is cursiva d e
tipo s emiológico, ou dizendo de outro modo, c omo passamos 10 De a cordo com F rederick K íes le r, arqu iteto a u stríaco q u e ten to u d e fini r o
de um esp aço r eal percebido p elos s entidos (ins e r id o n o prin - espaço cênico em termo s modernos a partir de 1926: "O es p a ço não exis te
e n q u a n to espaço se não para a pessoa q ue n el e se des loca. Para o a tar e não
cípio de p raze r o u desprazer) p ara u m espaço s im b o l icamen te para o espectador:' [5pa ce is space on ly for th e person who moves about in it .
m arcado e liga do a uma rede d e significaç õ e s que se d e sta c a e m For th e a ctor, not for th e sp ecta to r ], ve r Debacle of the Modern The a tre, 7he
m aior grau do p ensamento, continua d ifícil. Vam os c hegar, no Little R eview, n . i i , winter 1926 , p . 67. '
11 Nos anos de 19 7 0 , inúm eras experiências introduziam d essa form a o espec -
tador n um lug a r "a t íp ic o" e a experiê ncia desse último p rovinha tanto d e
9 Dessa forma , o espaço parece d esta car ta nto o re a l q uanto o imaginário. U m a se us des locamentos no s e io de u m dado e spaço quanto daq uilo que nele s e
a ná lise c o m p le ta de urn es paço deveria, a ss im , in te r e ss a r - s e não somente
desenro lava: v e r Promenade (p a rco u rs) d an s le n oir ( P a ss e io [percurso] n o
p el o aspecto vi s ual, m a s ta mb ém por todo s o s out ro s sistemas sensório -per- Es c u r o ) , espetácu lo feito por cegos e ap resentado n o Festival de Avignon em
ce p t ivo s, exterocept ivos e prop riocept ivos (o espaço tá til [háp tico], auditi vo ,
1994 · C f. também o teatro de Ta rnpere , n a Fi n lã nd ia, que é o único tea tro
o lfa t iv o , g u s ta t iv o, c inestés ic o, postural ), co m o ta m b é m pelo s s is te m as in te - no mun d o , qu e e u sa ib a, n o quã l o s espe c tado r es es tão se n ta d os e m pleno
roceptivo s (álgi cos , imagin ários , tím ico s ). to da co m b inaçã o de todas essa s
ar num p alco rotati vo . São, port anto , os espec ta do re s q ue se desl o cam p ara
s e ns ib il id a des que nas ce a perc ep ção de um es p aç o especifi co. s eg u i r as aç ões dos atares co loca d o s num n ív e l inferior e m terra firme .
27 8 A LÉM DOS LIM ITES : A C ENA SO B IN V ESTI G AÇ ÃO UM C O R P O NO ES PAÇO : PERCE PÇÃO E PR Of EÇ Ã O 279

e , mais a in da, subjetividade do corpo. C o m efeito, na medida repentinamen te dentro. E ao colocar a questão, po derrros a in d a
em que a percepção do espaço v is u a l implementa o e squema fa lar d e uma facha da n o e sp a ç o das cidades a t u a is ? Quest ão à
corporal do sujeito, remete à individualidade de cada um. qual Vi rilio res pon de pela negat iva, a c res cen t a n do que o u t r a s
Essa experiência acentua, portanto, que a percepção do m utaçõ es c arniriha rn p a r al el amente CO ITI e ss e des aparec imento
espaço, longe de ser um objetivo dado, que existiria ao redor do da fa chada e do v is-à -vis: d a o posição cen t ro/ per ife r ia bem c o m o
sujeito e do qual ele poderia mensurar as propriedades circun- da o pos iç ã o " i n t r a m u ro s"I"e x t r a m u ro s': que dariam uma axia-
dantes a partir de sua posição como sujeito é, antes de tudo, um lidade ao dispositivo u rban o e que parecem ter d esaparecido.
dado subjetivo q ue percebe o sujeito através da mediação de suas São novos m odo s d e percepção e d e c r iaçã o do espaço igual-
próprias percepções corporais, as quais, elas próprias, são ativadas m ente co locados e m j ogo pelo esp e tá c u lo Urban Dream C apsu le?
por alguns estímulos implementados pelos artesãos do espetáculo. Cas o se atente b em para isso , a e n ce n a çã o de Neil Thomas atinge
Não se trata somente, nesse caso, de referências ao domínio da precisamente essas características. O princípio de fachada, por
cognição que atrai, seguramente, a subjetividade de cada espec- e xe m p lo , que foi dominante na cenografia durante vários séculos,
tador, mas da referência à subjet ividade do próprio corpo. desapareceu em inúmeras e n ce n a ç õ es da atualidade, c e d e n d o
A força da instalação de nossos artistas australianos vem lugar a espaços que evocam t anto espaços exteriores quanto inte-
do fato de que conseguem combinar e dissociar para o espec- riores, cujos limites não estã o mais claramente definidos. As leis
tador, ao mesmo tempo, o espaço-volume, o espaço-forma e da p erspectiva t o rnaram - s e c a d u ca s ao mesmo tempo que os
o espaço-imagem, ao permitir plenamente ao espectador uma ângulos mortos desapareceram. Tudo é doravante visível, dado
experiência se nsorial e cognitiva d e c ujo perc urso ele estava a ver. O espaço concreto é colocado horizontalmente, d esv ela d o ,
a lienado e q ue foi deixado à s ua própria iniciativa. sem segredo nenl zona de so mbra, sem â ngu lo mo r to nem zona
de fuga. É o fim da perspectiva d o Quattrocento, diz V irilio.
Mais precisamente, o espectador é em geral colocado d e
A Superfície-Limite repente na Interface'>, quer dizer, tanto no espaço corno fora
dele. Tal interface concretiza-se na experiência australia na pela
Nossa relação com o espaço, não obstante, não se dá mais uni- vitrina separando e ligando ao mesmo tempo, pelo olhar, os
camente pelas formas evocadas acima: a relação alimenta-se atores e os espectadores. É nessa interação q ue repousam o
também conforme os modos que Paul Virilio expôs no seu: espetáculo e o prazer do espectador. Na medida em que, do
L'Espace critique (O Espaço Cr ít ic o ) ." outro lado da vitrina, os atores desempenham ações insignifi-
Virilio insiste n a importância que se dá atualmente à super- cantes em si mesmas, a atenção do espectador é centrada mais
fície-limite no nosso espaço cotidiano. Esta parece ser uma das acentuadamente na interação entre os seres e menos na signifi -
modalidades de acordo com a qual se percebe o espaço onde cação de seus gestos ou na interpretação que se lhes possa dar.
evolu ímos no nosso m undo contemporâneo. Ele observa, assim, A materialidade de seres e objetos perde-se nela. Estamos na
que nossa relação dominante com o espaço tornou-se a da inter- superfície, uma superfície que se deixa ver e, através da qual, nos
face . Tal relação é resultante da retornada em questão da " n o ç ã o vemos a nós, os espectadores. Virilio fala a esse propósito "da
de limite [que] se apossou das mutações que dizem respeito opacidade dos materiais de construção [que] se reduz a nada':
tanto à fachada corno ao vis-à-vis': A fachada, como realidade O próprio princípio dessa interação reorganiza o espaço
do espaço, parece ter desaparecido, como se nunca estivésse- clássico observador/observado nUI11 espaço único onde neces-
m os diante de um e s p aç o - Virilio fala aqui da cidade -, p oré m sariamente os dois lados do espelho estão e onde a interpretação

12 P. V iri lio, L'E spa ce critique. Paris: C h r is t ian Bo u rgo is, 1993 . 13 Ibidem , p. 12 .
280 AL ÉM D O S LIM ITES: A CEN A SO B IN VESTI G AÇ ÃO
U M C O R P O NO ESPAÇ O : P ERC E P ÇÃO E P ROJ EÇ Ã O 28 1

dos a tares duplica -se com a d o s espectadores, a p resentando-se a do espaço apagam-se unicamente e rn proveito desse v id ro, face
si meSl110S como espetácu lo, de modo consciente o u in consciente. plan a de d up lo sentido o nde as redes se in s e r e m de um lado e
O es petácu lo é, n es se sen t ido, r esulta nte não so m e n te d aquilo que do outro. Segundo Virilio e Re né Thorn, tal forma de percepção
se produz e m cada ce n a, como tarrrb érn - sob re tu do, seríamos é doravan te a d e um Inundo n o qua l realmente evoluímos.
t entado s a dizer - d a interação recíp ro ca e ntre o s ind ivíduo s -
a ta res o u esp ec ta dores - de u m a par te e o u t ra do p a lc o. Desse
modo, a q u ilo a que a ssi ste o espec tador, n essa ex periê ncia te at ral , o Esp aço- P la no
e nvolve a j us ta posição d e dua s fo r mas d e p ercepção d o espaço:
a. A prime ira o r igina -se d o re c onh e cimento d e u m es paço Tal mudan ç a n o s n o ss o s m odo s d e p e r c ep ç ã o d o espaço a t ual-
e u cl idiano - o u q ue se a prese n ta co mo t al à prime ir a v ista - na m ente , qu e n o s faz p erc ebê -l o co mo es paço-plano, o u a i n da
di spo si ç ã o clássi ca do espaço te atral. Tal esp a ç o é p e rc ebido n a tel a - es p a ço , cam in ha para le lamen te com urna d e sre al iz a ç ã o e
s ua forma, n o se u volu me e nas s u a s linhas d e fuga, assim co mo co m urn a virtuali zaç ã o d o r e al. Ora , tal virt ualização d o r e al
na s ua materialidade. tra z, por se u turn o , urna vi r t u a lização d o espaço, q ue p erde
b. A seg u n da e nvo lve a pe rcepção d e um seg u n do espaço qu e s ua m ate ri alid ade , d e ix ando -s e a p reen de r co mo es t r u t u ra
se so b re põe ao p rim eiro e q ue é c alcado n aquel e d a in t e rface rizomáti c a o n de circ u la o lúdic o e onde todo trabalho d o sen-
e d a tela. É o d o v idro q ue sepa ra e qu e un e a o mesmo tempo tido p erde s ua n e c e ssidade. D e ss e m odo , e m Urban Dream
o s atare s e os espectadore s. É nel e que se inserem a s r edes. No C apsu le , p ermite -se ao s e spectadores jogar c o m a r ealidade
vidro, o espaço se torna su p e r fíc ie , uma estrutura d e s u p o r t e, que observam caso desejem , pois podem seg u i r algumas das
um "m u r o- c o r t in a", diz Viril ia, "pelo qual a transparên cia e a atividades na internet. O espectador tem, com efeito, múltiplas
leveza de algumas matérias (vidro, plastificações diversas) subs - possibilidades eletrônicas para seguir os atares caso o s perca de
tituem o aparelhamento d e pedras das fachadas'v- . O espec t a d o r vista: o e spectador pode r eencontrá -los na tela, es c r eve r- lhes.
é c o n fr o n t a d o com urn a r e a l idad e que s e apres enta c o m o um Ao recusar, dessa forma , o princípio de fim d a a ção (ou do esp e-
jogo, c a d a açã o apagando aquel a que a precede num a instan - tá culo - visto que e sse dura quatorze di a s s e m inter rupção ) ,
t aneidade na qual impor t a apenas a interação pre sente. o espectador p ode viver a ex p e r iê n c ia tanto o n lin e quanto off
lín e. Ele s e apropri a tanto do aspecto d e e ve n to da açã o r e al
U ma vez mais , o que con t a p ara o espectado r n ã o é a n atu -
qu anto s u a virtualização. Ainda n e ss e caso, o s co nceit os d e
reza d a a ção posta n o outro lado d o v id r o (p assar roupa, lidar
Virilio são esclarecedo res:
n a c ozin ha), porém o sim p les fa to d e que essas ações oco r rem
e que s ão dadas a v er s o b o olhar intervencionista e lúdico o esp aço co nstr u ído p articipa d e um a top ol o gia ele trônica n a
do e spe ctador (que m odifica o s ingrediente s d e um a receit a qual o en quad rame n to d o p onto d ~ vista e a tr ama d a imagem di gital
d e cozi n ha, indica a existê ncia d e um vin co ). A n ature za d a re novam o p a rcelamen to urb an o. A vel ha oc ultação privado/público,
p erc epçã o d o espec tad o r n ão é rn ais , d esde e n tão, uni c am ente à d ifer en ci ação d a h abil itação e d a ci rc ulação, sucede um a superex-
a d e um d ado espaço, mas t a m b ém a d e urna t emp o r alidade. p osição n a qual cessa a distâ ncia d o "p róximo" e d o "lo ngínquo", da
m esm a fo rma que d esap arece na va rre dura ele trô nica d os m icroscópios,
As ações se d e s errrolarn e se ins e rem n o t empo, um tempo que a di stânci a d o "micro" e d o "rnacro" 15
é urn "p resen te p ennanente".
Estamos num es p aço no qual o fu n cionamen to p arece resul-
Tal v irtu aliz a ç ã o d o real com pree n de um espaço que se
t ar d e um espect ador diante d e s ua t el a : volu mes, fo rma s e limit es
t ornou uniformemente c hato,_o n de t oda s as co isas, o bjetos,

14 Ibidem , p. I) .
15 Ibidem , p. 14.
282 AL ÉM D O S LIMITES; A C E N A SO B I N V ESTI G AÇ ÃO UM C O R P O N O ESPAÇO ; P E RC E P Ç Ã O E PR OJ EÇAO 283

sujeitos, seja q u al for sua figura, acabam po r ter a mesma Gilles Deleuze, O es p a ço dominante do am anhã, um esp a ço em
im portância e a m e s m a realidade. Passamos do espaço-volume permanente ajustamen to e em reajustamenro para o espectador.
para o espaço- p lano. Es tá claro que do ravan te estamos n um e s p a ç o sensorial e
O rrres rn o aco ntece com as ações coloca das n a ce na: n ão cognitivo mui to d iferen te d a quele no q ua l se inseria o teat ro
exis te m ais um a ação mais imp ortante d o qu e o u t ra, m ais cen- d o s períodos a nteriores. É t al mudança n a s n o ss a s formas d e
tral , m ai s indispens áv el. O es paço acha - s e a p la n a do, vazio d e ap reensão d o es paço que o t rabalho so b re o co nce it o d e es paço,
s u a s u bs tâ ncia. N ã o s u bs is te se não uma r e alidade que d e ixa ao n o d e cur s o d o s últim o s t r in ta a nos, d e h istoriadore s, fis iologis-
espec ta dor um praze r "hedon is ta" que lh e c hega pelos se n ti- ta s, filósofos, an tropólogos, soc iólogos, n o s p ermite mens u r ar.
d o s. Como n o s lemb r a a re speito V ir ilio: O "tem po n ele se fa z
s u pe rfície" :", o te m p o "ex p õ e - s e" e fo rça o espec tador a a ban-
d onar s ua sede n ta r ie dade'? NOVOS MODOS DE PE RCEPÇÃO
O s ucesso d e Urban D ream Caps u le p are c e -no s d ec o rre r d e
t odas essas ra zõ e s ao m e smo tempo e, m ai s especifica me n te , Co m efei to, n o ss a s exp lorações no dom ínio do espaço te at r al
do fa to d e que s ã o a presen tados c o n j u n t a me n te ao es pec ta do r fora m enri q uec idas n o d e c o rre r d o s a nos c o m rru m e r o sas
dois e spa ços a n t agôn icos: d e s c oberta s ci entífic a s - fí sica s e n eurobiológica s s o b ret u do -,
De um lado, um esp a ç o o r ig in a d o de um a realidade que que n o s p ermitem esclar ece r no ssas form a s d e r ecepç ã o e p er-
se pre sta a u m a a p ro p r iaçã o tangível do espectado r, m eio do cepção d o es p aço, m odos que p ermanecem fundament ais na
v ié s dos se us s entidos . Ora, t al e spaço a p r ese n t a a t odos o ex per iê n cia es té t ica d a repre sentação. A s pesquisas d o s fis io -
inapres entável, o o culto, o invisível, o insignificante d e nosso logista s d e stacam, por exe m p lo, que nossa própria c oncepção
c o ti d iano para t odo s, tornando -o rapidamente s ig n ifica n te. Ao do esp aço mudou atrav é s dos séc u los e que o d omínio a r t ís tico
fa zê- lo, ap resen t a o re verso d e nossas vidas: ações ín ti mas, b anais, carrega a m arca d e t ai s transformações, quando não a s pre cede.
que n ã o são feitas p ara ser v istas o u apresentadas ao o u t ro, q u e É pre cis o le r, p or exe m p lo, as p áginas d e E.T. Hall sob re o
e m an a m geralmente d o ín t i m o e da relaç ão cons ig o próprio . O modo pelo qual as o b r as dos artista s destacam nossos I110dos d e
papel d e quem a s si ste ao espetá culo é igualmente acen t u a d o, p ercepçã o e as mudanças sofr idas ao lo n go dos séc u los, a parti r
mas tamb ém rapidamente le g it i m a d o . Esse e s p a ç o é a p res e n- d a R ena scença até o presente. Essas p erspectivas permitem expli-
t a d o s e gundo a s n orm a s clá ssi c a s do t eatro (espaço-image m, car d e m an eira iluminado ra a história das mudanças cên icas que
espaço- fo r ma, espaço-volu me) . afe taram o es paço teatral. E las m o stram, em particu la r, como todo
P or o u tro lado , t al espaço se e n riq uece p or u m segu n do o espaço teat ral carrega a m arc a d a evolução d e noss o s m odo s
espaço, um e s paço v ir t u a l, um espaço distinto que repre senta d e p e r ce p ção d o espaço, mo dos q ue evoluíram e que se afi nar am
alguns mom ento s d o cot id iano e repr oduz o espaço real. Nesse com O tempo n a m edida e m que nossa própr ia v isão - n o sen ti do
esp aço, os espec tadores também interv êm, e m bora difere n te- fisiológico d o term o (capacidade de ver) - mudou, m odific ando
m ente. Tal espaço é um espaço-su per fíc ie, um espaço-pla no sem n ã o a pe nas n o ss o s m odo s d e p e r cepção, como também n o ss o
imagem fix a, s em volu me e sem forma d eterrriinada. É um es paço modo d e ap reensão d o mundo (cog n iç ão).
inscrito n o tempo. Talvez sej a esse o espaço -tempo do qual falava A po ia n do-se n o s trabalhos d e p e squisadores como Gyorgy
Ke pes'", e sob retu do n o s d e G ibsori'", que inv entariou t r eze varie-
16 Ibidem , p . '5 .
1? Ibtdern , p . '5 . Aqui se ri a precis o um desenvolvimento com rel a ç ã o às ceno - 18 G . Kep e s (19 4 4). Th e Languag e of Vis io no C h ic ago : P. The obald , 19 51.
g rafi as n a s qu ai s n ã o h á m ai s d o q u e um a ilu min a ç ã o artifi ci al . ate mporal. 19 Kon r a d M arc- Woga u o põe a te oriã d e G ibso n à q uela d o m éd ic o H erm ann
"A o t emp o q ue passa d a c r o n o lo g ia e d a históri a . s u cede um te m p o qu e se von H el mh o lt z s o b o p re tex to d e q ue Gi bson re cus a -s e a rec onh e c er que a
expõe ins tan ta nea me n te ." percepção é cons truída a p a rt ir de s i n a is d ado s p el o s ó rgãos, " in co n s ci e n te
284 A Lf M DOS LIMIT ES: A C E N A SO B I NVESTI GAÇ Ã O UM C O R P O NO ESPAÇO : P E RC EP Ç Ã O E I'RO JEÇ ÃO 285

dades de perspectivas e i mpressões visuais associadas à percepção pesquisadores teorizarão e m seg u id a . Estabelec em um a dis-
da profundidade, E .T. Hall mostra como o artista medieval, ta l tinção entre luz ambiente, que amplifica o a r e qu e é re fle t ida
como nos revela a arte da época, ainda não t in ha aprendido a pelos objetos, e luz irradiada que são da alçada do domínio da
disting u ir o campo vis ual (image m real gravada p el a reti na) e física. Seus traba lhos são uma ilustração da importânci a que
o mundo visual co ns ti tuí do pelo conjunto daquilo que é perce- a lu z ambiente exerce n a visão. Os impressionistas d esviaram,
bido. E le não conhecia e ntão mais do q ue a proximadamente seis portanto, novamente, a atenção para o espaço.
formas d e pe rspec t ivas (perspectiva aérea, contin u idade linear, Mesmo q ue tais constatações, q ue Hall retoma por con ta
situação dos o bjetos n a par te s u perior d o campo v is ual, come- própria, não s ej a m unanimidade, para n ó s o importante é que
çando depo is a com pree n der as perspectivas q ue d ize m respeito elas estabelecem a h ip ó tes e de "q u e o h ome m h a b itou inúme-
à textura, à dimensão, ao espaçamen to linea r ). ros m u n dos percep tivos diferentes e q ue a ar te co ns titui urna
De acordo com H all , a Re nascença s ofre u um a r e voluç ã o d a s fo ntes d e esclarecimento das mais abundantes sobre a per-
ao in t ro d uzir as leis d a p erspe ctiva , p orém estas, ao p o stular cepção hum a ri a" > . E las m o st rarn e m qu e m e d id a os artistas
um po n to fix o , o b r igaram a tratar o esp aço tridim ensi on al em pude r am agir como pre cu r s o re s n ess a á re a.
dua s d ime nsões. A o fa z ê -lo , os a r tis t as a u me n taram o espaço, A reflexão é inte re ss an t e po r q ue n o s fo rç a a mo dificar o
i nt rod uz in do - lhe v ária s linh a s d e fuga . O espaço t ornou- s e â ng u lo sob o qual t emo s a tendênci a de a bordar o es paço n a s
m ais din â mic o e mais c o m p lexo d e se orgarii za r". obra s artístic a s e , muito par t ic u larmen te, n o te at ro v . Co m efeito,
M a is es pecific a m e n te, Hall m enciona o papel qu e a lgu ns long e d e n ã o se r m ais d o q ue a ilust r ação d e d es c oberta s c ie n -
a r t ist as a n t igo s (V in ci, Tintoretto, Rembrandt , Hob ema) ou tífi c a s que s e dão e m o ut ro cam p o ( nesse caso , a p erc epç ã o d o
m oderno s (Mon d ria n, Dufy, Bracque , Miro, Kandínski ) d esem- e spaç o ) , H all nos m o stra que , d e fato, as o b ras d e a r t e prec e -
p enharam , ele s próprios, n o es t a b ele c ime n t o d e um a nova d em- n a s às vezes, as a n u nc ia m e as tornam tang íve is . O s a r t istas
p erc ep ç ã o d o esp aço . Hall m o stra , d essa maneira, co mo a o b r a emergem delas co rno os pre curs o res d e urna n o v a o rdem visual.
d e Remb ran d t revela que esse a r tis t a t eria sab ido, muito a n tes M uito a n tes d o que os cientistas, os artistas consegui ram tornar
dos cie ntistas, distinguir visão fovea l, macular e p eriférica e, t an g ív e is e le gíve is nas s uas pi ntu r a s n ã o ape nas u rna nova
desse m odo , co nseg u ir evocar dis tintamente e m s uas o bras o ordem vis ual (por exemplo, Rembrandt) , corno também uma
cam po v isua l e o mundo vis u a l" . nova m aneira d e ver e de o l har o m un do. Eles nos ensinaram
Os impression istas, p o r se u turno , d e s c ob r em a lgu mas a "ve r " de outra maneira.
carac te rísticas d a p ercepção e d a v is ã o que G ibson e o u t ros

inferência" de dados correntes fo rnecidos pelas imagens da retina e a r m a ze - Ver de Outra Mane ira
nado s a partir de percepções passadas . O que Gibson recusa é reconhecer que
a perc ep ç ã o é dada pelos pro cessos ativo s que constro em a visão a p artir de
dados fragmen tários ó p t ic os e armazenados na mem ória, a p o ia dos p or s in a is Tal t ra nsfor mação que teriam operado as artes ao criar uma
v in d o s de o u t r os sent idos . O que ele re cusa, filosoficamente , é que a p ercepção n o v a o r de m v is ua l, n ã o poderia se r t amb ém a marca do tea -
repre senta o bj e tos. E le vê a s p ercepções c o m o s el eçõ es passivas - e p ortanto
c o m o parte de uma realidade fí si c a . Percept ual Space, em Maja Sv ila r; André
tro d a a tualidade e m u it o partic u larmen te d e algumas for mas
Mercier (ed. ) L'Espace... Spa ce , Berne: P e te r Lang, 19 7 8 , p. 188 -189 . es té t icas que e mergiram n a segunda m etade d o séc u lo xx, n a
20 Todavia, o que a Re nascença fe z foi apre nder a lig a r a figura humana ao espaço
de forma matemática e a regular s u a s dimensões em função das diferentes
di st ân cias . 22 E.T. Hall, op. c it., p . 110 -116.
21 Gi bso n d efine o campo vi sua l como se n d o "c o n st itu ído se m ce ssar p el as es t r u- 23 Essa reivind icação d everia igualm ente p ermitir darmo -n o s co n ta da mud an ç a
tura s lu m in o sa s mutantes g ra va d as p el a retina d a qual o h om em se se r ve para d e p erspe ctiva co nce r ne n te ao espaç ã q ue afe to u toda a n o ssa época, e de c uja
c o n s t r u ir s e u mundo v is u a l': A p u d E . T. Hall , op. c it., p. 88 . Ve r Th e Per ception mud anç a o esp a ço teatral , e m a is pre ci samente o es paço v is ua l n o s e io d esse
of t h eVisual World , Boston : H oughton Mifflin, 19 50 . es paço te atral , ca rrega tamb é m essa m arc a .
28 6 ALÉM DOS LIMITES : A CENA SO B I NV ESTI G AÇ ÃO U M COR PO NO ES PAÇO : P ERC E P Ç ÃO E PROJEÇÃO 287

med ida em que ce r to te a t r o - teatro d e im agens, tea t ro ambie n- significações, essas encenações procuram instalar o espectador
tal, teatro tec nológico - faz ia s ua a parição? É o qu e ten tam num estado, numa certa a tmosfera, mais do que incitá -lo a
p rovar certo núm e r o d e p e s quis a s e nce tadas d e sde h á a lg u ns d e c odi fic a r de maneira racional as represen tações v isua is q ue
a nos no Can a d á, n o ca m po d a s c iê ncias c o gnitiva s, como as de p ode r iam ser-lhe d ad a s a ver. Ao fazê- lo, tais e ncenações for-
C han ta l Héber t , Ir en e Pe rell i-Co n tos , Mari e - Christine Lesa ge, ça m o es pectado r a m odi fic ar a o r de m de s uas pe rcepções,
P ierre O ue lle t, Jocelyn e Lupien. Tais pesquisas mostram , com obrigam -n o a ficar à esc u t a de suas se ns a ções ini ciais an tes que
o a p o io d e a n á lises, qu e o t eatro de imagens instituiu e fe t iv a- as outra s se tornem o bjet os d e cog n iç ão (p ercep ç ão, conc eito ).
m ente uma nova se ns ib ilid a de n o espec tad o r -'. As e ncena çõ es pro cur aram o u t ro modo d e diálogo co m o
D e fa to, s e o bse rvarrrios a lg u m a s forma s teatrais d o s lt í . ú es pec tador, um diál o g o que p ass a p el o cor po, muito antes d e se
n10 S trinta a nos, d o s quai s Ro be r t Wil s on é uma d a s figura s d irigir ao espí r ito. Como lembrav a W ilso n n o começo d e s uas
ruais m a r c antes, p ode - s e o b servar que e ssas instituíram novas e nce n ações, na ocasião e rn que trabalhava com Jo seph A n d rews
fo r mas d e esc r it u r a cên ic a definitiv amente s e p a r a d as d a lógica e C hris to p her Knowles: o corpo o uve e percebe diretamente sem
p redo m inan te ligada à pregnância do t exto dramático ( R e za que o intele cto intervenha. Num erosas encena ções tentam h á
Abdoh , Tade u s z Kantor, Elizab eth Lecompte , Bob Wil son, trinta anos tal diálogo direto com o s se n ti d os, um diálogo que as
Robert Lepage) . A hipótese d essas p esquisas é que essas novas artes plá sticas, as p erformances e a v id eo a r te d esenvolveram com
esc r it u ras teriam, elas próprias, modificado radicalmente nos - muito maior acuidade. Elas sublinharam a polissensorial ídade"
sos modos d e p e rcepç ão-s. da cena co m o lugar d e estímulos senso r ia is diversos que o co r p o
Ao apelar a procedimentos s o b r e t u d o utilizados nas artes percebe. Ao fazê -lo, obrigaram a que oespectador rompess e d efi-
plásticas - p erforman ce art, instalação, videoarte - , recorrendo nitivamente com a antiga ordem' ? E ss a nova sensibilidade tem,
a todas as formas de tecnologias modernas (las er, informática, por seu turno, influído na representação, a m esma se tornando,
flash eletrônico, instalações de arte tecnoecológicas, fotos, vídeo, co m o no caso de Wilson ou Kantor, v o lu me, esp a ç o, música,
filme s, novas tecnologias digitais, holografias ) , usand o tam- antes mesmo de se r a portadora de uma dada s ig n ific a ção ou d e
b éITI texto s como materiais s o n o ros, mais ainda do qu e c o m o uma narrativa. A visão única, predominante, aquela que impu-
nha as leis da perspectiva, cedeu lugar a uma diversidade d e
24 Ve r os di versos te xto s em C ha n tal H é b ert; I. P erell i -C onto s (e d s.) , Th éâtre , pontos d e fuga na medida em que as leis da perspectiva foram
m u ltidiscipli narite et mu lti cu lturalisme, N ui t Blariche, 1997. p . 23 - 40 . Ver ta m- sendo, elas próprias, abandonadas na cena.
bém P. Ouellet (ed.) , A ction, passion, cognition , N u it Blanche , 1997. e mu ito
O esp aço v is u a l foi, d esse modo, transformado rrurn lugar
particu larmente Jocelyne Lupie n , La Poly sensorialit é dans les discours sym-
boliques plast iques, p . 24 7 -265. ri zom áti c o ( na a cep ção de Mi chel Serre s ) , o n de a s r ede s d e
25 De acordo com l'vlarie-Christine Lesage, por exemplo. o paradoxo de alguns sens a ç ões s e originam (c o m o em Urba n Dream Cap su le ), onde
espaços visuais da atualidade é que. sendo completamen te realizados com
O espectador deixa - s e im p reg nar p elos objetos s u b m e t id os a o
materiais duros - aço. madeira -. transformam -se numa tal vi rtualidade que
não subsiste. para o e spectador. mais do que a percepção d e espaços em se u olhar. T al modo d e percep ç ão, e m que o m enor detalh e se
perpétuas movi mentações e a projeção de imagens me moriais que lh es são torna importante, e m que o espa ço n ã o é m ai s n em o p ortador
próprias . Não estando ma is ligado à evocação de lima r e alid ade mirn ét ica, O
es paço vis ual escolhido por i números e ncenado res a lime n tados pelas a r tes
d e s e n t id o único de um texto, nem mimético d o real, origina - s e
pl á s ti c a s tornou - s e um espaço pu r o . es paço e m t ro mpe l o eil que some n te a de uma estrutura "d ifus a" na qual o espectador viaja d e uma
inte r p re ta ç ã o d o a to r (e d as te c n olo g ias ) a tiva (Reza Abdo h, o W o o s te r Group. s e n s a ç ã o para outra, modificando a percepção que tem d e um
Urban Drea rn Ca ps ule). O es paço tor n o u - se máquina d e sensações.
Para os cenógrafos . o d es a fio é consegui r man ter. com re lação ao es p e c t a -
espaço em mudan ça frequente s e não permanente (quando u sa
dor. lib erd a d e de percepção. permitindo- lhe navega r en t re o re c o n h e c im e n to as nov a s te cnologia s ) ( cf. La Fa!;.e cachée de la lun e [O L ad o
e a e xploração . deixar-se ir às suas percepções. porém c o m a possibilidade de
estar se m p re v inc u la do ao espetáculo . Ver l n s ta ll a t io n s scéniques : Le Cas du 26 Cf, J. Lupie n , La Pol ys ens orialité . .. em P. Ouellet (e d .), o p. c it.
Théâtre U BU e t du coll e ctif Recto Vers o. LAnnuaire th éâtral, n . 26 . n o vo1999 . 27 C. Hébert; I. Perelli- C ontos (e d s .) , o p . cit.
288 A LÉM D O S LlMIT ES : A CEN A SO B I NV ESTIG A Ç A O UM CORPO NO ESPAÇO : PERCEPÇÃO E PROJEÇÃO 289

Oculto da Lua], Zulu Time ou Les AiguiUes et Topi urn de Robert O espaço a ssume o papel de "es t r u t u ras d is s ip adora s?» lá
Lepage). O espaço obr iga o espectador a ajustar-se s e rn cessar, onde a narrativa, a n a r r a ç ã o, a interpretaç ã o d o s a tores são
a modificar suas perspec t ivas, a passar das sensações para as rec ondu zidas a uma materialidade e a u rna interpretaç ã o rn ais
percepções e depois às e s truturas cogn itivas", para desmontar un ív o c a . A teatralidade b rotaria dessa din âmi c a qu e não cess a
rapidamente as lig a ç õ es estabelecidas a fim de substituÍ -las po r d e passar da o r d e m p ara a deso rdem . No esp aço v is ua l, co ri-
outras que administram as variações do espaço e d o s obje tos du ziria o esp e c t a d o r p or caminhos cruzados, lá o n de o te xto (e
colocados diante d el e. O espectador se acha, portanto, reme tido a narração) o cond u ziria a um logocentrismo que permanece
ao s ubje t ivo. É isso q ue p rova, de forma m u ito convi nce n te, frequent emente abarrotado. É deste v a i- e -v e m e n tre a e strutura
I'vlarie-Christine Lesage e Cha ntal Hébert na s ua pesq u isa. linear da língua e da estrutura rizomática do olhar que e vo lu e m
Mais interessan te ai n da, elas s ubli n ham que os espaços encenaç ões co mo as de Kantor, Wilson, Sellars ou Lepage> .
visuais de a lgumas encenações (pense-se em W ilson, K a n tor, Entrarnos ple namente numa nova ordem v is u a l. O es p a ço
Lepage, Lecompte n o v am ente ) es tabeleceram estratégias p er- apresenta a s i m es m o c o m o espetác ulo. Passamos do esp a ç o do
cept ivas q ue necess itam d e um aj ustarnerito p erman ente p o r espe tácu lo para o espetác u lo do espaço. Urban Dream Capsule,
parte do espec tador, d e " renegociações coris ta nte s'" >, n a s q u a is portanto, re p resen taria não apenas o u n iv e r s o espac ial que n o s
a rel a ç ã o percepção-cogn ição é co ns tan temente reaj us ta da, d es- cerca, mas colocar ia n a s cenas nossos modos at uais de percep -
lo c ad a , exp lo d ida. N u nca re conhe cido, o espec tado r sabe que o ção do espaço, fa z endo desses a r tis tas os h e r d e ir o s do n o s s o
espaço que lhe é ap resen t a do tornou- se mal e áv el , sem p re pronto te mp o e os pi oneiro s do porvi r.
a se d eformar, a d e sapa re c er para r eaparecer d e o u t ro modo: a
e nce nação d o Wooster Group - Hous e Lights ( Luzes d e Casa, Trad. Nan ci Fernandes
Mon t real, FTA, 1999) - , a d e Urf a ust montada p or D enis M arleau
(Mon t real, 19 9 8) , ou a in da os o ne rnan sh ow d e R obe rt Lepage , mais d o que o que oco rre, co rno s uste n ta m inúm eros fís ic o s'; p . 15. Ele lembra ,
p o r fim, quatro g r a n d es axiomas própr io s da te ori a d o caos, q ue gove r n a m
são il ustrações d ess es espaços caleidoscóp icos e m que os li mites,
igualm ente o s fen ômeno s a r t ís ticos e os fen ôm en o s n atura is: a . um a din âmica
as cores, as for mas se d e sl o c am sem cessar, co nsegu indo fazer n ã o lin ear c a racte r iz a as formas complexas; b . h á um a si rne t r ia re corrente e n t re
do espaço u ma entidade qua se abstrata, dilu indo a realidade d a s os d iverso s ní v ei s d e escala , d e o u tro m od o c hamado d e inva riâ ncia d e esca la; c.
n o ta -s e a presença d e um a sensi b ili dade n a s co n d içôes in ic iai s q ue se d esi gna
coisas p a r a não deixar s u bsis t ir senão a fo rça d o s traços senso-
p el o termo "e fe ito b orb ol eta"; d. o feed back e m espi ral é o princíp io reg ul ador
riais ou memoriais q ue re metem a alguns mo delos mentais > . d o caos e a sse gura -lhe a estabilidade d e m odo pon tual e a leató r io, a entropia
exe rcen do urna pre ssão muito fo r te n a s es t r u tu r as es tabilizado ras ( p . 16 ) .
C . H ébert se r efe re, p o r se u la d o , aos t ra balhos d e Prig o g in e e de Ste ngers e
28 É e v ide n te que iss o que a q u i foi a p resen tado de m odo seq uencial se faz d e fa la d e "d eso rd e m o rg a n izadora': Ela lembra igualm e nte os escritos d e Q uéa u que
modo s im u lt â neo, a percepção se n do p or muitos fí s ic o s indiss o ciável da cog - fal ou "d e arte intermediária" p ara d esi gnar uma arte que n ã o quer m ai s imitar a
nição; ve r Francesco Vare la , Elnscrip tio n co rporelle d e l'esprit, Paris: Seuil, 1993. n ature za , m as que est á preo cup ada a n tes d e m ai s nada co m o que a g ita a alma
29 C . Hébert; I. Perelli-Contos (eds.) , op. cit., p . 30 . e "p roc u ra aquilo que v isa o m o vim ento e o que o tumultua': Tais conceitos n o s
30 Alguns quiseram e studar essas estruturas e m termo s de teori as d o caos, a cen- lembram q u e a e xperiênci a d o es pectador é, a n tes d e m ai s n ada . ci nestés ica.
tuando que a cena é o lugar d e uma desordem que se organiza . C f. C . H ébert, 31 A ex p ressão , emprestada d a te oria d o caos, é ai n da utili zad a po r C . H ébert,
De la mimesis à la mixis ou les jeux a n a lo g iq ues du théâtre a ctuei (Da Mimese o p. ci t. , que a apli ca a o teatro d e Lep a g e.
à Mixis ou o s Jogos Analógicos do Teatro Atual), em C. H ébert; l. Perelli-Contos 32 Ver o que di ssemo s sob re o tern a e m Théat ra lité, éc rit u re et m ise en sc éne, H MH ,
(eds.), op. cit., p . 23 -40 . N o mesmo liv ro , Roger Chamberland, LExpérience du 19 8 5, p . 137 : ''A teatralidade m o stra -se, assim, fei ta d e dois co nj u n tos diferentes:
chaos et la pragmatique du corps, p . 13 -23, observa que "A teoria do caos [. . . ] um que valoriza a perforrnanc e , são a s realidades do imag in ár io; a o u t r a que
atesta a emergê ncia espontânea da auto -organização de um si stema caót ic o q ue, valo r iz a o te a tro , sã o as estrutura s sim bó licas precisa s. As primeiras o r igin a m-se
d e sde que a par eça, tende a retornar ao princípio da entropia - o efeito da desor- n o s ujeito e d eixam fa la r seus fluxo s de d esej o , as segu n das inser e m o suje ito n a
dem - que lh e é c a r a c te rís t ic o'; p . 14 . E acrescenta: "Não se pode permanecer no lei e n o s có digo s, is to é, n o si m bó lico. D o j o g o dessa s duas realidades n asce a
n ível d a obse rvação e da d escri ç ã o d o sis te ma sem cair num o bjet iv is mo que teatrali dade, um a teatralid ade q ue aparece, p or tanto , necessariamente lig ada a
n ã o c onsidera se não um es ta do a cabado e finito d o si s te ma, sen do, po r tan to, o u m sujeito d esejante. Daí. sem dúvida, a d ific uldade d e d e fin i -Ia . A te at r al id a d e
caos urn a ciência d o s pro c esso s m a is d o que d o s estado s , uma ciência d o d e vi r n ã o o é e m si, ela é p a ra a lguém , ou seja. ela é p a ra o outro."
3 . O Teatro de Robert L e page :
Fragmentos Id e n t it á ri os'

E ncon t rar um â ngu lo de a bor dage m que Ja n ã o t enha s ido


tratado p ara falar d o trab alho d e R obert Lepage é um a t are fa
difíc il. A p roveita re i tamb ém a ocasião q u e m e é d ada p ara refl e -
tir s obre urna qu e stão qu e m e é c a ra h á a lgu m temp o e qu e
que stiona as r a z õ e s d o s ucesso d a o bra d e Lepage , des tacan do-
-lh e o u t ros fa to res p o ss ív eis a lém d o s que são h abi tu almente
propo st o s , seja a esté tica d e s uas o b ras, seja o t al ento inco n-
testáv el q ue as impre gn a . Gos taria d e s uge r ir q ue u m a das
razões d o s ucesso fertorne n al d a o b r a de Lepage - s ucesso
junto a c ulturas tã o diferente s qu anto o podem ser as c u lt uras

Vers ã o r evista d e com u ni c ação a p rese n tada e m Lon d r es n a pr im av era d e


200 6 , p or ocas ião d o colóqui o R obert Le p age, o rgan izado p e lo G r u po d e
Pesquis a s e E stud o s sob r e o C a n a d á F rancó fo no no R ein o U n ido. O co lóquio
ocorreu n a C a nada House, como também n o Birbe ck CoIle ge n a Un ive rs idade
de Londres. Devo agradecer a Emil ie Olivier e Edwige Pe t r ot p el a s p e squi s a s
p relim inares e pelas d iscu ssões que leva ram à redação d e ss e artigo. O m e smo
apareceu e m Le Théâtre auj ourd' h ui : h ísto ír e , s u j e ts, fab le s , em C h r is t ine
Hamon-Sirejol, et aI. (d ir.), Th éâtre/Public, GenneviIliers lac tes du co Ilo q u e
su r le théâtre contemporain: E n t r e t ie ns Ia cque s -Cartter, Lyon , 2003], n . 188,
p. 2 3-2 9, mars 2 0 0 8 . Versão ingl e sa pre vi sta par a 2009 n a Co nternporary
Th eatre R e v iew , Lon do n . A p are c eu igu al m ente e m The Dra m a t ic of Robert
Lepag e : F rag me n ts of Identity, S ijo [our n a l of Aesthetics an d H ist ory , v. 17,
p . 4 3 -6 2 , Mar ch 200 8.
292 AL f.M D O S LIMITE S: A CENA SO B I N V E STI G A Ç Ã O o T E AT RO DE ROBERT LEPAGE: FRAGME NTOS I D EN T IT A RI O S 2 93

rio r te - urn e rtca n a , e u ropei a e as iática - re fe r e - s e ao fato d e que por valores morais e de c o rnp or tarne ntos c o d ific a d o s que se
talvez os espec t a dores, qualqu er q ue seja s u a origem c u lt u- transmitiam de geração a geração no seio d e c a d a uma das
ral, r e enc ontram n el a inc ons cientemente o m odelo de n o ssas esferas sociais e estru turavam esse mesmo social. Os indiví-
co ns t r uções identitária s d a atu alid ade e os v a lo res q ue a elas duos co nheciam seu lugar na g rande organização do mundo,
es tão ligad o s . Ta l que stã o p oderia d eix ar s u po r qu e se trata aceitavam -no habit ualm ente sem refletir, s em questioná -lo. As
essencia lrne n te d a intercultu ralidad e nas obras d e Lepage. Esse trad içõ e s se perpetuava m pere n izando, ass im, u m a ordem q ue
asp e c to es tá, se m dú vid a algum a , no ce n t r o da o b r a le pag iana, ir á m inar n u mero sos séc u los v indo uros.
po r é m n ã o co ns ti t u i o o bjet o d o m eu prop ó si to. Tra ta-se, com No séc u lo XVIII , especialmen te so b o impu lso de Rousse a u ,
efei to, d e rnost ra r d e qu e m an e ir a a obra d e Lep a g e refle te a a ideia de pertence r a um univ e r s o regido po r leis e valores
fa b ricação d e n o s s a s iden t idades e n q ua nto "s u j e it os" nu ma morais impostos do exterior (pela rel igião, pelo re i ou pela
sociedade em qu e o sentido do co le t ivo e d a é tica , omitidos soc ie d a d e ) viu - se colocada e m questão e deu lugar ao p ensa-
du r ante rn u ito t e rnp o, r e c om e ç a p ouc o a p ou c o a se afirmar. mento de que os seres huma nos s ã o dotado s de um sentido
Trata - s e , ass im, d e t razer a r efle x ã o p ara um n ív el exis tencial, mo ral inter ior, d e u rn a intu ição "q u a s e natural" daqu ilo q ue é o
qu a s e o n tológico, que di z res pei to à s e tapas d a co nsti t u ição bem e d a q uil o q ue pode ser o m a l. R ous s eau afirma qu e a moral
d o s indi víduo s qu e somos e n q ua n to s ujeitos . Os t r ab a lho s do e os co rnpo r ta me n tos deco rre n te s d el a pro c e d ern d e um a "voz
fil ó sofo C harles Taylo r, esp ec ia l men t e L es So u rces du m oi: La interi o r ", n o caso do i n d ivíd u o , e d e u m certo apo de r amen to,
Fo rm a tion d e l'id entit é modern e ( Fo n tes d o E u : A Fo r mação p el o s ujeito, d e s ua p r ó p ria lib erdade d e pensamen to, d e escolha
da Identidade Moderna ) , d e 19 98 , eLe Malaise d e la m odernité e d e ação. D ito d e o utro modo , "an tes d o fim d o séc u lo XVII I,
( O Mal - E star da Modernidade) , de 2002, nos se rvi rão de fio n ingué m p ens a ria que as diferen ç a s e n t re os seres hum a n o s
co n d u to r. Com efeito , o p erisarri e n t o de Tayl or en c ontra um tinham t anto d e s ign ificação rnoral".'
t erreno fértil de a t u a liza ç ã o na fo r m a pela qual Lepag e c o n- D ep ois d e R ous s e au e da profunda mud an ç a d e p a r a -
ce be seus p ersonagens e os faz evo lu i r. E ss a a ná lise t amb ém digm a qu e ele estab elece u no seio d o p ens am ento d a é poca,
será articulada em torno do s grande s princípio s que d efinem são os fi lósofos r omâ nti c o s , pro s s e gue Taylor - H e rd er mais
a identidade : a identidade vista c o mo busca d e a u te n t icidade, a es pec ifica me n te - qu e e m p u rraram p ara m ai s longe a idei a d a
necessidade de um hori zonte "c o m u m de significações" p arti - identidade co mo princípio de unicidade, d e s i nce r id a de, d e
lhado p or t odos e, por fim, a c r iação artística como p arad igma o r iginalidade do s uj e ito . P ara H erder, c a da p e ssoa possui em
d e bus ca da a u t e n t ic idade . si m e sm a s ua p ró p r ia m edida d a s coisas e se u próprio m odo
d e assu m ir s u a p o s iç ã o como s e r hu m ano . Sob t al p erspe cti va ,
n a qual cada in d iví d uo é conside rado s i ngu lar e t endo algu m a
O ID EAL D E A UTENTICIDAD E OU O NAS CI M E N TO co isa p ara exp ress a r, cada um p ode se r v is to com o orig inal
DA NOÇÃO MOD ERN A DE IDENTIDAD E com a cond ição, é cla ro, d e est a r se n do s in cero cons igo p r ó p r io .
A noção d e iden ti dade toma e n tão a forma d e uma bus ca d e
A noção d e identidade, tal c o mo a compreendemos h oj e - au te n ticidade . Ora , t al a u te n tic id a de que se d efine c o mo u m
e n q u a n to c ria ç ã o , p esquisa e c o rnp r e e ri s ão de s i mesmo corn o p e rfeito a cordo consigo rnesrno e c o m o s v a lores rnor'ais intrín -
s e r único - , c o n s t it u iu-s e no Sé culo das Luzes . Segundo T a ylor, secos es t a bele c e-se c o rrio um ideal n o vo.
a n t e s do séc u lo XVIII o s indivíduos e r a m definidos geralmente
Ser sincero para comigo mesmo sig nifica ser fiel à minha própria
por seu e statuto s o c ia l, se u lugar na hierarquia, s e u papel n o seio origin a lid ade [. . . ] é aquilo que sou o ... úrr i c o a poder dizer e a descobrir.
d a s est r u t u ras sociais e fa m ili a res . F req u e n teme n te co ns iderada
co mo imutá v el , s ua p o siç ã o n a soc ie d a d e e ra a c ompa nh ada 2 C ha rl es T aylo r. Le Ma lai se d e la m odern it é, Paris : Ce rf, 2 0 0 2, p. 37·
294 ALfM DOS LIMITES : A CENA SO B I N V ESTI G A Ç ÃO O TEATRO D E ROBERT LEPAGE: FRAGMENTOS IDE NTITÃRIOS 295

A o fa zê-l o , eu m e defino de um só golpe. Realizo u m a potenci alidade que De modo intere ssante, a busca d e a u te n t ic idade n ão s e faz
é propriamente minha. Tal é o fundamento do ideal moderno da au ten ti_
de forma egocêntrica o u umbi lical, mas passa pela mediação
ci dade, tanto quanto os objetivos de desenvolvimento de s i mesmo o u da
reali zaçã o de si rnesrno nos quais ele é mais frequ entemente formulado.' da história, uma história que se vive nas d imens ões do cosmos,
para a lém da diversidade das culturas. Não é mais a s o c ie d a d e a
Tal concepção mo der na d e ideal mora l, f u ndamen tad o resp ons ável pelo futuro das personagens. Estas últimos são res -
n a d esco b erta e na co nstrução da a u te n ticida de d e si p róp rio, ponsáv eis i ntegralmente p o r s ua consti tuição e nqua nto sujeitos.
es tá pre s ente e DI toda a o b ra d e L epag e. O rien ta-a m e smo, Em Vi nci, é Ph ilippe q ue está em busca da integr idade e q ue
se r ve - l he de po n to d e a ncorage m filosófica e explica tal - "no fim de sua viagem [ . .. ] contempla a h umi ldade d a peq u e n a
vez se u impa c t o sob re o públic o . As pe rso nage ns de Lep age cidadezinha de Vinci: a simplicidade, a acessibilidade generosa,
represen tam, inconsc ien te me n te é claro, o p róp r io modelo de ele as terá feito s u as ao longo de todo o se u p ér ip'lo" >, Em O
nossos func ionamentos e n q ua n to s uje itos sociais e mora is na Projeto Andersen, é Frédéric Lapointe quem e stá em busca de s i
at u a li da de e pe r m it e rn ao s espec ta do res que somos q ue nos m esmo e q ue vai procurar na França u m a legitimação a n tes de
re c onh eç amo s, seja e m cada um d entre el e s o u seja e m todo s ao des c obrir q ue ela está nele e q ue to d o s os seres que o ro de iam
m e smo t empo . Corn efei to, através d a m ai or parte d a s criaçõ es (o dire t o r da Óp e ra Garnier, A nde rsen ele próprio) ta mbém
de Lep a g e - qu er se t r a te de sagas o u espe tác u los solos - , a tiveram u rn a par te d e so m bra q ue devera m reco n hece r - e
questão d a ide n ti dade é co ns ta n te, um a identidade fre quente- ace ita r - p ara se assum ir. Ta is p e r s onag ens, to das art is tas , fazem
mente co nceb ida c omo re speito p or s u a própria originalidade. efeti vamente d a s in ce r idade e d a criação de si mesmo o o bjet ivo
É e ssa busca d e identidade e d e a u te n ti c id a de que se d e senha último de s u a existência .
com o fio c o n d u to r da a ção n a maior parte , s e n ã o e m t odas as
o b r as (ve r o exemplo d e La Fac e cachée d e la lune ou d e O Projeto
A n de rsen) . Â n g u lo sob o qu al se p ode a bo rda r a s criaçõ e s de o P ro cesso Identit ário Co mo A ncoragem Mo ra l
Lepage, m ostra e ste últim o co mo um homem profundamente
a n c o ra d o na sua ép o ca, que s e ce n t r o u n o ponto esse n c ial Taylor c o loca c o m o primeiro fu n dame n to da r eflex ão sob re a
daquilo qu e e strutura o s indivíduo s e a sociedade da atualidade. identidade a s u a n ecessá ria ancoragem m oral: " Não podemo s
O princípio (a busca) de autenticidade como ideal moral é nos abster d e uma orientaç ã o p ara o b em v is to qu e não p ode -
lido claram ente a partir de La Trilog ie d es dragon s (A Trilogia mos ficar indiferentes à n o ssa s it u a ção co m r elação a esse b em
d o s Dragõ e s ) e n ã o escap o u a Lorra ine Camerl a in, que j á o b se r- e v is to que es ta s ituação represen ta a lgu ma coisa que sem pre
v av a em 1987= " T r ata-se d e um texto [ . . . ] es petacu la r que propõe de ve mudar e se tran s fo rmar." 6 T rata -se p ara e le, n o cas o , d e
urna c erta fil o sofia. Sem didatismo e sem pro vocação , a obra uma moralidade interior qu a s e inata, n ã o imp o sta, e presente
propõe a bus c a d e um ideal cuj a s raízes estão e m si rn e srno." em cada um d e n ó s , sob repon do -se às vezes às intuiçõe s uni -
A s duas g ran d es e nca r n a ç õ es d a bus ca de a u ten ti c id a de n esta vers ais d o b em . N a p e rsp ectiv a t ayl or iana , a identidade é, ass im,
obra são Pierrre e Yukali, que e nco n t r a m a r ealizaç ão d o seu an tes d e m ais n ada , o r ie n tação m o r al. Dessa a firm a ç ã o d e c or-
s e r profundo na t erceira parte, no fim de urna evolução que diz rem v á r ias consequência s o u princípios igualmente ess e ncia is,
respeito, seg u r a men te, a todas as personagens, mas que se afirma tanto uns quanto outros , p ara a definição da identidade, da s ua
mais cl aramente naquelas cuja juv entude encarna o futuro.

5 Diane Pavl ovic, Du d é coll age à lenvol, Ca h ie rs d e th éâtre l eu , n . 4 2 , 1 trime st re ,


3 Ibid em ; g ri fo no ss o . 198 7, p . 88. -
4 L. C a r me la in , Le Lang a ge c ré a te u r, Cahiers de théâ t re l eu , Qu ébec . n . 45 , 4
6 C. T a yl or, L es Sources d u moi: La Forrna t ion de I'ide n t ite m odern e. M ontré al :
trimestre, 198 7, p. 96. Boréal, 199 8, p . 7 1.
296 ALÉM DO S LIMITES : A CENA SOB I N V ESTI G A Ç Ã O O T EATRO D E ROBERT LEPAG E: FRAGMENTOS IDENTITÁRIOS
297

natureza e de se u s rn e c a n i s rn o s que nos p errn itern es cl a recer demonstram, tanto n o s esp e tác u los so lo s (Vinci, La Fa ce cach ée
novamente a o b ra d e L epage. de la lun e, L e P rojet A n de rse n) quant o n a s sagas. E las vêm a ser
A primeira g r a n de implicação da identidade , v is ta co m o ao fa zê -lo. " Desc o b r imos o que de vemos se r ao vi r mos a sê- lo
paradigm a d o id e al mora l d e a u te n t ic ida de, sig n ifica qu e cad a no n o ss o m odo d e v ida': diz Taylo r, É e x a t amen te ao fazê- lo
um d eve "descobr ir a q u ilo qu e s ig n ifica se r ele m e srn o ">. Co m~ ao sê-lo, que a s p ersona g ens d e s c obrerTI o se u ser pro fund o. '
o di z Taylor: Em Vin ci, Philippe é o próprio arquétip o d o indivíduo e m
busca de sua identidade profunda; o mesm o oco r r e co m Phi -
A teo r ia segundo a qua l cada um d e n t re nós te m um modo o r ig inal lippe e André e m L a Face cachée. Quanto a F reder ico, e m L e
de ser hum an o implica que c a da um de ntre n ó s d e ve d e s c o b rir aqu ilo Projet A ndersen , ele procu ra uma legitima ç ã o e, d e s s a forma ,
que é se r p a r a s i rn esm o . P or ém , n ã o se p o de faze r essa d es coberta ao procura a s i n, eS1l10 na vi agem que faz à França.
n o s reportarm o s a mo delos pre e xistente s , é ó b vio. Não se p ode fa zê-lo
As p ers onagens s e "desco b r e m a o vir a ser" e , e m bor a tal
se não re com eç a n d o de n o vo. D esco b rimo s a q u ilo que devernos ser ao
to r na r iss o o nosso m o d o d e v id a, ao dar- lhe fo r ma p el o nosso discurso descoberta n ã o lh es traga a feli cidade, traz com ela um s entimento
e por n o ss o s atos co m rel a ç ã o à q u ilo q ue é o r ig inal e m n ó s. " de re alização d e s i m esmo que se ap o d e r a d o s especta d o res. E n tão
eles são capazes até de r e conhe ce r a s ua própria história p or trás
C o m o a c ontece fr eq uentemente na o b r a d e Lepage , as p er- daquela das p ersonagens - nem heróis, n e m anti -heróis .
s o n a g e ns vi ajam pelo mu ndo, no se n t id o p róprio ou no s entid o Portanto, o percurs o das personagens é freq uenternente
figurado, p ara melhor viajar em s i 'm e s m a s e para melhor se quase que iniciático (s em que se afirme enquanto tal) e determina
ree n cont ra rerri ; pa ra d e s c o b rir s ua iden tidade m a is a inda do um p ro c e s s o de rTIe ta m o r fo s e , de transformação de si mesmo.
que para afirmá- la. Em Le Proj et Andersen, a peç a termina n es s a aceitação d e si
Por tan to, a iden t idade n ã o é nunc a d ada r epen tinamente; é m esmo (aceitaçã o d e sdr amatizada : " b o m, se é assim que d e ve
p rocesso, carni rihar; busc a e construção. E la é talhada n o tempo. ser"), q ue p as sa p el a mediação d e uma cadela - Fanny -, q ue fará
É m ovente "p o r q u e nossas vidas s e movem . Reencontra-se, nesse aquilo que Frederico se recusar a fazer ( ter fi lhos).
caso, u rria outra carac teríst ica essencial d a existência h uman a.
Aqu ilo que somos n ã o pode nunc a esgotar o prob lema de nossa
condição, por que estamos se rn p re e m m u dança e e m vir a ser">, Me moria e Na r ra tiva: R el a çã o C o m o Tempo
Estamos m u ito próximos d o pe nsame nto d e Judith Butle r,
que define o sujeito e o gênero que o constit ui como "p e r fo r rn a- C? se~undo fundamento do pensamento d e Taylor é a impor-
tivo" e, a ssim, como o resultado de ações postas pelo indivíd u o t ârrcia do t e m p o nessa co nst rução da identidade. Se o eu é
que r epre s enta m co nst a n te mente s ua ide n tidade e s ua cate- n ecessa r ia m en t e um devir, e n tão n ã o se p ode reco nhece r aq u ilo
go rização sexual':'. É isso que as p ersona gens lep a g ian a s nos que é estável e m s i mesmo senão n o trans c orr e r d o s acon tec i-
men tos . "E n q u a n t o ser que crê e vem a ser;' pode -se ler em Les
7 I b idem , p. 69. Sources du moi, "e u não posso conhecer- me s e n ã o pela história
8 E ac rescen ta: "A id e ia d e que a r e v el a çã o se enc ontra n a exp ressão é o que
pro curo fa zer o uvi r ao fa la r d o 'e x p r ess io n is m o' da m odern a ide ia d e in d iví-
duo:' L e Malaise d e la m odernit é, p . 69 . ~exo d o indivíduo é se m dúvida um dado bio ló gic o, o gen der, p el o contrári o ,
9 Les So urces d u m o i, p. 70-7 I. e O resultado de uma construção s im bólica, pro vém do "per fo r rria tiv o" A
10 C o n trar ia m e n te a Simon e de Be auvo ir, que afirma va que n ão se n as ce mulher. Identlda~e p ara .e la emerge como um com pone n te fluid o que é d esempe nhado
to r namo- nos m ul her, Judith Butler afi r ma que a iden ti dade é não um desti no, e ~ed~fi mdo co tid ia nam e n te pelo próprio s ujeito em cada u ma d e s uas a ções.
m a s s im o r e s ult ad o d e ações p erform at iv as colocadas pelo s ujeito (e pela Nao e, . por tan to, um d ado fixo, d efin ido d e uma vez p ara semp re; está e m
soc iedade) . Rem eten d o à re spo n sa b il idad e dess e v ir a ser tan to à socied ade evoluçao, e m criação. Redefine-se e rrrcada u m a das ações do in dividuo. Ver
q ua n to ao indivídu o , u s ando a di stinç ão própria da lín gua anglo -s axõ n ica o dese nvo lv ime n to que faze mos so bre esse tem a n a n o ssa concl usão d e M ise
e n t re sex e gen de r, Butler d es lo ca p ara o s ujeito o s u p o r te de se u d es tin o . Se o en scene e t je u de l a ct eu r, v. J: Voix d e fe rn rnes . Qu é b e c: Am ériqu e, 2007.
298 A LtM D O S LIMITES: A C E N A SO B I N V ESTI G A Ç ÃO o T EATRO DE ROBERT LE PAGE: FR AGM ENTOS IDENT ITÃRIOS 299

d e meus progressos e d e me us retrocessos, de rn eus êxi tos e de aquilo que nos tornamos , através d a narrativa da maneira pela
me us fracassos . O conhecimento de si mesmo compor ta n eces- qual chegamos a is s o ,"?
sariame nte u m a profu n didade tempo ral, inclu i a nar rativa ?» Se a identidade é em s i só um processo, é t a m b é m um pro-
Dessa fo r ma, o in divíd uo desenvolve a s u a vida no tempo cesso narrativo que s e constrói pela sucessão de micronarrações
corrio u m a nar r ativ a , na r rativa q ue cornporta Inicrona r rações que inserem exatamente u m a trajetória de afirmação identitária.
fe itas d e m omento s p rese n tes , im ediato s , de aco n teci men to s Essa não se faz sob o mo delo de uma progressão que cond uz
im portantes o u não, a nó d inos o u n ã o , que se irnbr icarn uns nos necessar iamente a um o bjetivo, ou a um dest ino que ve ria o
o utros e q ue cons ti t uem a trama dessa identidade. São eles a se u cumprimento ú ltimo na cena, corno na tragéd ia g rega o u
narrativa de nossas v idas, narrativa que es trutura o presente id en- no drama rornântico. Ela se faz tanto de progressos como de
titário de cada um pela co n s ciê n c ia q ue d á d o passado tanto m ais re trocessos, tanto de êxi tos como de fracassos. É nesse sentido
que não p erm ite projeção no futuro. É exatamen te isso que com - que os contos de Lepage são absolutamente pós-modernos. E les
preende Frede r ico Lapointe n o fim de Le Projet Andersen q uan do co locam na cena personagens que correspondem perfe itamen te
d e cide , afirial, q ue s ua rel ação com Marie é mais im portan te do à v isão q ue n o s s a época faz d a realização de si mesmo.
q ue s ua re cus a in fant il , do que deco r re sua últim a propo si ção: "Consegu imos comp reender e rn parte o que caracte r iza verda -
"Da r u m se n t ido à m i n ha ação pre s ente exige um a co m - d ei ram ente os estados m orai s qu e p r o curamo s d esenvolv er p o r
pre ens ã o narrativ a d e minha vid a , um se nt ido d aquil o e m q ue es forço próp r io ao t entar a lcançá- los, e pelo s d es afio s que , a liás,
me tornei, que s o me n te uma n arrativa p o d e propo rcio nar'v- se seguem.">' O ace n to colocado p or Taylor n o s d esafio s p are ce,
Tal narrativa no interior da o b r a d e Lepage é s empre d upla:
13 Ibidem, p. 7 2. A importância d a narrativa/das nar rativas em Le page merece -
é a do autor Lepage , mas tamb ém a das p ersonagens que se riam p or si só s um desenvolvimento: narrativas que est r u t uram os d ifere n tes
e x põem. A ssim sen d o, L e Projet Andersen é um longo "c o n to fios da narração num jogo de encaixe em que tudo aqui lo q ue n o s é mostrado
origina- se de uma história que é contada ao espec tador. Com efeito, Le Projet
moderno " n o qual se e ncaixam o u t r as narrativa s; L es A ig u illes Andersen é antes d e tudo uma vasta narrativa: a de F rederico contando sua
et l'opium ins ere igualm ente as n arrativ a s uma s nas o u t r as: as ex p e r iê n c ia de autor reside nte no Pa lai s Garnier. No se io dessa m a c ron a r r a-
d o autor, mas tamb ém a q ue las d a s pers ona g ens. Tal m odo d e tiva , as narrat ivas sec undárias e ncaixam -se umas nas o u tras: a d e D ryade q ue
son hava descobrir Pa ri s e a d e An dersen. U m te rc e ir o n íve l d e n a r r a ti v a s é
fIc cionali zaç ão é um proce s s o distintivo d a es té t ic a d e Lepage. com pos to p or todo s os acon te ci me n tos individuai s d as p ersonagens presentes
A narrativa a s sume , p ara o s perso nagens (e para o a u tor, d as quai s segu imos a v id a p or e p isó d ios: a h ist ória d e Fa n ny, a jovem cadela ; a
L epage ) , a form a d e um a viagem no t empo - a da História d a psicóloga; a d e Di d ier e d e seus tra fica n tes; a d e M a ri a; a d e A r na ud; di r et o r
da Opera Garnie r; a d e Rachid, h ome m da limp e za n o peep sh o w; a da filha
(C o c teau, Anders en , v iagem à lua, viagem a o u t r a c u lt u r a ), do d iretor que r ecl a m a da h is tór ia da Sombra e tc. A identi dade se cons trói ,
mas t ambém aquela que se o r igina do univ ers o pes soal (v ia- assim, n a memória que se assenta, ela mesma, na subjetividade d o indivíduo.
gem à infânc ia, ao incons ciente , à memória) -, essencial para O ra, a memória é construção de le m b ra n ças e se lê , portanto, como mic ronar-
rativas que se encaixam, nar rativas q ue, em última instância, fu n dam também
a compreensão e p ara a c onstruç ão d e s i mesmo, t otalmente nossa ident idade e nos permitem ser. Com efeito, Sc hacter de monstrou exa-
insepará veis , vê-se, d e um trabalho n a memória . " Na m edida em ta mente como as lembranças são construções . E le explica, a esse propósito:
" N ã o podemos separar n o ssa s le m bra n ças d o s acontecime ntos atuais de nossa
q ue retrocedemo s p ara tomar a d e vida distância, determinamos
v ida [.. . ] Aq uilo que vivemos no p assad o determina o q ue ex t raímos de nossos
e n co ntros co tidianos na vi da; as le mbra n ça s são "gravações d o m odo pelo q ual
11 Les So urces d u m o i, p . 75 . vivemos os aco n teci me n tos , n ã o rép licas de aco nteci men tos e m si m esmo s.
12 "E n a medida em que p ro jeto minha v ida p a ra a fre n te e aprovo mi n ha o rienta- As experiê ncias são co d ificadas p el a s re des cer e b rais c ujas conexões já foram
ção dada a ela o u q uando lh e imprimi u m a n o va , p rojeto u m a narração futura, m ol d ada s p el o s e nco n t ros a n ter io res co m o m u n do. Esse sa be r preexistente
v isa n d o [. . . ] uma orientação que empenhe to d a minha vida futura :' Ib íde rn, influencia fo r temen te a m a n e íra pela qual codificamos e armazenamos as novas
p . 73. Es sas reflexões poderiam se r a ilustração perfeita da maior p arte dos per - lembranças, contribuindo assim para a natureza , a te x t u r a e a q ualidade de
sonage ns lepagi ano s : e m Les Se p t branch es d e la ri v í ére O ta (Os Se te Afluentes nossas lembranças futura s': Daniel Sehac te r, A la R ech erch e d e la m émoi re/L e
d o Ri o Ota ); Pi erre e Yu kali e m La Trilog ie d es d rago ns (A Trilo gi a d o Dragão); Pa ssé, lesprit, le ce rvea u , Bruxelles: D e Bo eck Université. 19 99 , p . 2 0 .
Philippe em V in ci ; Robert em Les Aiguilles et Iopiurn , 14 Les So u rces d u moi, p. 73.
30 0 AL ÉM D O S LIMIT ES: A CEN A SO B I NV ESTI G AÇÃO O T E AT RO DE RO BERT LEPAG E: FRAG ME NTOS IDENTITÁRIOS 3 UI

n o caso, imp orta nte . Co m efeito, essas traj etór ia s n ã o se faz e m sua par te de sua sombra (temática na qual insiste Le Projet
nem na for ma d a in trospe c ç ã o nem n aquel a da a nálise c rít ica Andersen), sem o seu duplo v. As criações d e Lepage destacam,
ou d istanciada. Elas se fa zem, a n tes de m ai s n ada , n a ação. Ess a sem cessar, t al d e s d o b r a m e n t o da personalidade, essa figura
viage m d e reco n hec imen to d e s i m esmo é v iv ida n o coti d ia n o, d a dupla re pres ent a ç ã o da identidade (por exemp lo, Philippe
sem drama e se m e mo tivid a de, e d epende d a p o s iç ã o geográ fica e A nd ré, as du a s faces do mesmo indivíduo, ou Frederico
d o s uje ito, daqueles que o cercam, d o s acon tec imen tos que s ob re- Lap ointe e Arnau d, o d i re to r da Opera Garn ier, q ue podemos
VêITI. Co mo o diz, ainda, Taylor: "Eu d efino que m so u ao d efinir encarar corno a figu r a d ual do criador e de se u manipu lador) .
d e o n de e u fa lo, n a g ene alogia, no e s paço social, n a geogra fia O r e curs o a o vídeo exprime, ta lvez, d e maneira mais par-
dos estatu tos e n a s fun çõ e s d a socie dade, nas minh a s relações ti cular, esse jogo de desdobramen to . Q uando e le é ao vivo,
ín ti rna s co m aqueles q ue a mo e, t arnb érn , d e fo r ma capital, no q uan do a interve nção do vídeo é direta e q uando filma as perso -
espaço de o r ie n tação m o r al d entro d o qual v iVO:'15 n agens já e m ação na cena, ela as desdobra, observa-as, torna -se
O qu e é, e n tão , a identidade? E la p r e c is a que o s u j eit o se u espel ho, c o rno n o espetác u lo Elseneur, por exem plo, o u
faça um rec u o, que duplique o se u o lh a r p ara obs er v ar-se, ain d a e m Le Projet A n de rsen (é n u ma p r oj e ç ã o n a tela do r o s t o
p ara apropriar- s e d o s có d ig o s, t r a nsfo r má - los, jogar c o m eles, de Frederico c o me n do que a p e ç a acaba). "O v ídeo intervém
ampli ar os s e n t id o s deles , e n t r a r e m a cordo ou em conflito frequ entemente como resultado d e um j o g o d e espelhos s im-
com os mesmos . A zona de c o n flito é e ss encial; e ssa é inerente bólicos múltiplos c e rcan do o dispositivo e c u jos re flexos e m
à busca d a autenticidade d e s i mesmo, nos diz Taylor. É isso cas ca t a permitem o trân sito d e um reflexo até uma s u pe r fíc ie
que se observa em L e Projet Andersen , por ex e m p lo, quando final oferecida ao olhar do esp e ctador. ?" É a presença do outro
Frederico encontra a psicóloga ou ainda em La Fa ce cachée, e de si própr io, do outro em si mesmo que a dramaturgla d e
através da conferência abortada de Philippe em Moscou. Lepage caracteriza aqui, ainda uma vez mais.
Existe uma margem, um fosso entre o eu e o código, que é uma Aliás, o fato de que Lepage interpreta a s i próprio em todas
zo n a de exploração própria para cada indivíduo. A identidade, as personagens ( Vin ci, L es A ig u illes et lopiurn, La Face cachée,
o eu, situa-se exatamente entre o eu rotineiro e o eu autêntico, Le Projet Andersen) , p ermite a e ssa dualidade co n s ti t u t iva d o
entre o e u submetido às im p o s iç õ es de um percurso sociocultu- sujeito metamorfosear-se na multiplicidade. A diversidade
ral adquirido e aquele que sonha com uma liberdade totalmen te . das personagens remete finalmente às diversas facetas d e um
subjetiva. Tal paradoxo é colocado na cena por Lepage em Le mesmo indivíduo com suas inúmeras ambiguidades e com os
Projet Andersen (encontro com a psique), porém o mesmo já se paradoxos da natureza h urnaria'>.
encontra presente na Trilogie d es dragons, por exemplo, quando
o artista joga com os clichês culturais. A peça "t ir a partido aqui 17 "O ator que evolui no p rocesso da carre ira existe como contador e como
s ilhueta d e so m bra. es ta às vezes a ú nica visível [ . . . ] Ele (o a tor) tem q ue
de frases feitas, de sua clareza e de sua evidência para escavar de
co mpor co m ta l dup lo maior que ele, mais d ramático, que refle te ta n to a
outro modo [grifo meu] as verdades que elas cont êm':". som bra qua nto e le próprio às vezes se co ntempla:' Ludovic Fouquet, Robert
Tal multiplicidade de figuras do eu, Lepage as usa - e abusa L ep ag e: l'horizon en images, Q uébec: L'Instan t rn êrne, 2005. p. 7 5 .
18 Ib íd ern , p. 170.
delas - trazendo à luz ao mesmo tempo a extrema simplicidade 19 Consta tação que já h a vi a fei to Oiane Pavlovic a p ropó s ito de Vinci: "Q u an d o ele
(aparente) das personagens e sua enganosa complexidade. As se assemelhar, p or fim, às diversas p ers ona g ens d a p e ç a d a m es m a fo r ma que as
personagens são ao mesmo tempo u m a e múltiplas, elas pró- fa c etas de um mesmo indiv íduo (o jovem intelectual . o 'velho safa do"; o 'g uia
britànico' [... ] e a 'G íocon da d e p a c otilha com fa lta d e liberda d e; tornaram -se os
prios e outras. O expectador não poderia concebê -las sem m últiplo s as p ectos d a personalidade d e Philippe ), ele d ará u ma imagem tã o mais
fo r te d as co n t radições q ue modelam cada indiví duo quanto, ai nda outra vez, esse
15 Ibidern , p . 56 . objetivo segue a forma do espet áculo : conviria pensar, quanto a e ssas d iversas
16 Oiane Pavlovic, Le Sable et les étoiles ( A A reia e a s Estrelas ) . C a h ie rs d e th éátre personagens, co m toda lógica, que um único comediante as interpretass e a todas:'
leu. n. 45 . op. cit., p . 126. Oiane Pavlovic, Ou Oécollage à lenvo í" Cahiers de th éâtre leu , n . 42, p. 90 -91.
3 02 AL ÉM DO S LIMITES: A CENA S O B I N V E ST I G A Ç A O o TEATRO D E RO BERT LEPA G E: FRA GM ENTOS ID E N TITARIO S 3 03

A Necessidade de Mudança: múltiplas que povoam suas peças, solos e sagas, representam
Do Intcrp essoal Para o Intercu ltural fig u ras comuns de nosso ambiente. Sem serem arquétipos,
m o str a m figuras do co ti d iano : pais, fi lhos , esposos, amantes,
Ass im, a identidade, a busca a u tên t ic a d e s i m e srn o vista co m o p es s o a s que trabalham, d ito de outra forma , personagens que
id e a l m oral, é um processo, um a const r ução que se es tabelece e mergem do universo fam iliar, do amor o u do trabalho. Ora, é
e qu e evo lu i n o t empo. Esse p r ime iro princípio é seguido por no interi or dess as redes in terpessoais qu e se tecem e se desfa-
um segu n do igualm ente cap ita l: a identidade de um indivíduo zem soh n o ss o s o lhos (M a r ie e Frederico e m Le Projet Andersen ,
tem u m caráte r di al ó gico fu n da men t a l. Não s e é um e u a não p or exe m p lo) as id en tidade s , co mo o reco r da Taylor, e que se
ser em me io a o u tros "eus", expl ica- nos Taylo r. N ã o se pode model a m as p ers ona g ens d a s p e ça s d e Lepage.
nun c a , por isso rnesrno, co n tor nar um eu sem fa zer re ferência Ta l necess idade de r elações in te r pessoais está ligada, ao
aos d ern a is qu e o ce rcam. Ma is a in da, é pre ciso um es p a ço m esm o t empo , à necess idade o n to lóg ica de d iá lo go e troca,
corn urn que s irva d e um t erren o a p r o p r ia d o para a troca . " N ó s mas t amb ém àquela , t amb ém f u n d a men t a lm e n te e s s en c ial n a
no s de fi n im os se m p re , de fato , num diálogo, às vezes por o p o - co n s t r u ção identitá ria, do reconhecimento. "A c o m p reensão da
s ição, c o m as identidades que 'os outros que contam' querem identidade tal como e m e r g e do ideal da autenticidade m odi -
reconhecer e rn n ós ,">' ficou -se ao acentuar a irnportância do recorrhecirnerito. ? » N a
A identidade n ão se compreende e não se lê, portanto, senão so c ie d a d e de outrora, a do Antigo Regime, o reconhecimento
em relação c o m o outro, senão numa rede de relações de trans- ia para aqueles que tinham nascido possuindo-o. Na atualidade ,
missão mas, sobretudo, de interlocução. Existe, segundo Taylor, numa sociedade que se quer democrática e igualitária, na qual
redes de interlocução e de troca privilegiadas: na nossa civiliza- cada um tem o direito de ser quem é, o reconhecimento não
ção ocidental moderna, as relações íntimas e privadas - as da está mais ligado ao estatuto social e depende inteiramente do
família, do trabalho, mas, sobretudo, as do amor - oferecem um olhar que os outros colocam sobre si. O paradoxo da identi-
espaço particularmente propício e fecundo para a descoberta dade moderna quer que essa autenticidade do sujeito - na qual
e a exploração de si mesmo". É , portanto, no diálogo com os repousa a identidade - ernane do interior do sujeito, apesar da
outros, o íntimo, o próximo, na maneira que se t e m de viver necessidade, para se forjar e se ass umir, de um reconhecimento
com ele que nossa identidade se desenvolve e se constrói. É por parte dos "o u t r o s que contam para nós':
isso que colocam na cena - com simplicidade e naturalmente - Face a essa dependência do outro, há sempre o risco de
os espetáculos solos de Lepagev. Tais espetáculos conseguem um desafio, visto que é sempre possível que o reconhecim ento
dar conta dessa importância da vida cotidiana. As personagens não advenha. É especialmente o c a s o de Philippe, em Vinci,
o jovem artista que a sociedade ainda não reconheceu e que
20 Ib id ern, p. 4l.
não se sente em casa em lugar algum. Ou ainda o de Frede-
21 "É preci so c ompre e nd er que est a im po r tân cia da v id a co t id ia na . co mo o bjeto rico Lapointe em L e Projet Andersen, contratado como autor
d e va lo r, n ão foi p artilhada pelas ge r ações anteriores a o s Lurni êres. A mudança no Palais Garnier para urna produção de ópera prestigiosa,
co ns t it u t iva d a m odernidade co ns is te numa inversão dessas hierarquias
(n obre za, casta d e c a vale iro s e tc .), em d eslocamento a partir de uma á rea
que descobre porém que não é senão uma peça na enonne
p articular de atividades s u p e r io r es, em vez da boa vida, que se s itu a d ora vante engrenagem da coprodução cultural em que seu talento não é
'no interior' da própria vida. A vida inteiramente humana define-se agora p elo o q ue realmente conta. Não reconhecido, ele se dará conta do
trab alho e pela produção , de um lado. pelo casamento e pela v id a fam íli a de
o u tro lado". C.s T ayl or. Les So u rces d u m oi , p . 275 . desafio dessa experiência profissional, ao mesmo tempo que o
22 Não é m ai s anódin o . a bsolu tam e n te, que a p artir d o sécu lo XVIII te nham se desafio d e s u a v id a am orosa s e confirma. A opressão d o não
desenvolvido ob ras artísticas p róxi mas à vi da cotid ia na. que n ão cessaram de
se afirmar n o século XIX com O n atura lism o, m as também no séc ulo xx através,
p o r exemplo. de ce rta d ramat u rg ia d o coti d ia no a p art ir dos anos de 19 70 . 23 Le Malaise d e la modernité, p. 55.
304 AL f.M D O S LIMIT E S: A CENA S O B IN V E STI G A Ç ÃO O TEATRO D E ROBERT LEPAGE: FRAGMENTOS IDENT ITÁRIOS 305

reconhec im e n to n a s c e , como diz Taylor, d o s prejulgamen to s sua igualdade. [ . .. ] O reco n hec i m en to d a s di fe ren ças . assim co mo a
de uns e outros. Os p rejulgame n tos e n t ravam o diálogo, a troca liberdade de e scolha, exig e um ho r izo n te de s ig ni fic ação, m ai s , um
horizonte partilhado" .
essencial p ara a criação das iden ti dades porque são, a ntes de
mais nada, u rn n ã o r e c o n h e c im e nto da di fe r e n ç a dos i n d iví-
Tal horizonte p artilhado arti cula -se em torno de questões
d uos e de s u as c u lt uras .
essenc ia is, como as que se vincularn à apropriação da história,
d a n a tu r e za , d a soc iedade. E nglo ba a n e c e s s id a d e de torrrar
consc iê ncia do se u lug a r nu m p roje to coletivo, num a memória
A IN SERÇ Ã O N U M HORIZONTE DE SE NT IDO
co m u m . O in divid ual não po de advir senão co m relação ao
COLET IVO
cole t ivo no q ua l ele teve nascimento, seu microcosmo não é
apreendido senão sob a lu z d o mac rocosmo que o integra.
Falamos do id eal d e a u tentic ida de e d e s uas imp l ic a ç õ es e m
Contudo, isso n ã o sign ifica, a bsolu tame n te, qu e se deva
t ermo s m oral, c o m po r t a me n t a l, identitário. Esse ide al foi
aderir sem crítica às n o rmas cole t ivas já estabel e cida s. M u ito ao
des crito com o o primeiro princípio da afirmação id entitária.
contrári o , a op o si ç ã o e o conflito são igualmente constitutivos
Tayl or acres c e n ta- lhe um seg u n d o: a n ecessidade de o r ie n t a r
da identidade . A ide n t id a d e , dial ó gica, é t ambém dial é ti ca: n ã o
o pro c e sso identitário para um hori zonte de significação par-
progride s e n ão p ela troca e p elo conflito, pelo confronto c o m
tilhada p or todos.
os paradoxos, pela mistura e complementariedade das noções
A que stão do sentido da vida é fundamental, "s ej a porque
e realidades contrárias. Dessa forma, para ser autêntico, verda -
aprendemos a perdê-lo, seja porque dar um sentido a nossas
deiramente sincero consigo mesmo, "não podemos atingi -lo
vidas é o objeto de urna busca"?'. Ora, em nossas sociedades
completamente senão ao reconhecer que esse sentimento nos
ocidentais, definidas em torno de noções de originalidade,
une a um todo mais vasto">".
liberdade de escolha e igualdade perante a diferença, a questão
Lepage está totalmente de acordo com tal pensamento
"A abertura para o macrocosmo não é senão uma maneir~
do sentido fica à deriva.
Cada um desenha sua geografia, sua cartografia, s eu espaço
de apreender o rnicrocosrno'tv, observa ele. Refletindo sobre
interior. Porém, para evitar os desvios individualistas do ideal
a noção de identidade individual, ele não cessa de inseri-la
de autenticidade, é necessário apoiar-se nas raízes coletivas,
no coletivo: as histórias individuais estão situadas no contexto
numa memória comum, numa cultura - num espaço rnoral
coletivo da grande História; a cultura individual permanece '
comum. Deve haver urna zona de partilhamento com o outro,
indissociável de urna cultura universal; os questionamentos
um lugar de linguagem comum com o outro -, sem o que
de cada um reequacionam aqueles que a humanidade inteira
nenhuma troca ou diálogo constitutivo pode advir. A auten-
se coloca sobre a vida, a morte, o medo, o amor.
ticidade está fundamentada no reconhecimento da igualdade
Ele mescla facilmente presente e passado, próximo e longín-
de valor das diferenças. Ora,
quo, individual e coletivo. E longe de opô -los, o que seria uma
s e o s h omens são iguais, não o s ão porque sejam diferente s , mas por-
visão muito sirnplista da vida e das coisas, ele os faz esbarrar
que, para além da diferença, e xistem propriedades comuns ou com- continuamente; ele os engasta. A história de cada personagem
plementares que são legítimas. São os seres dotados de ra zão, capazes articula -se àquela das outras e à grande história. No plano da
de amar, de se recordar, de dialogar. Para nos entendermos quanto ao dramaturgia, é frequente a superposição de temas universais
reconhecimento r ecíproco das diferenças [ .. . ] devemos partilhar nor-
m a s e m função d a s quais a s identidade s em questão podem m ensurar
25 Le Malaise de la m oder n it é, p . 60. -
26 Ib íd e m , p. 96 .
24 Les Sources du moi, o p . cit., p . 34 . 27 L. Fo uquet , op. c it ., p. 2 79 .
306 AL lOM DOS LI M IT ES : A C E N A S O B I N V EST IG A Ç Ã O O TEATRO D E ROBERT LE PAGE : FRAG MENT OS ID EN TITÁRIOS 307

OU internaciona is a a nedotas mai s q uebequenses, d e imagens o co n t r ár i o ." > Significa di zer q u e L epage faz d e s e u d e sejo de
retiradas d e uma história d a hum an idade (a guerra, H irosh im a) integr idade o vetor moral de seu trab a lho. Is s o e xplica a irnpor-
co m o u t ras mais individu ai s n a s q ua is Lepage c h eg a a ex p r im ir tân cia qu e ass u me e n tã o a fig u ra do a r t is t a (C o c te a u o u Davis
o qu anto a id e nt idade é f u ndam entalme n te d ial ógica , dupla. em L es A ig u illes et I opiurn, Phili p pe e m V in ci , Pierre e You k a li
Ess a filosofia da co m p leme ntarie dade ecoa, a liás , to d a a filoso - em La Tri log ie ), fig ura fundam en ta l na med id a e m qu e to das
fia asi ática, a d o y in e d o ya ng, qu e baliz a a obra lepag iana (L a as p e rs onag ens p r o cu r am enco ntrar n a arte o voo n e c e ss ário
T ri logie d es d rago n s , L es S ept b ran ch cs d e la riví ére ata ). Para par a s ua liberaç ão e p a ra s ua r e vel a çã o id e n titá r ia, un e -s e n e ste
Lepage, a com p lemen ta rie da de é um princípi o fund a me n t al p onto a Taylor, p ara q uem a a rte c omo fon te m oral p r e ci s a d e
que c o loca o horn ern e m r elação com o cos mos e co m a s fo r- um h o riz onte d e s e n t id o.
ças d o u n iv e rs o ?". Esse é outro rrio d o d e inserir o s ujeit o num O a r t is ta íntegro , respeitoso pela é t ica que o a n tecedeu , é o
h o ri z onte d e s ig n ificaç ão moral. agente da d e fi n iç ã o o r ig in a l d e si próprio, que ele exprime em
meio à s formas estéticas que esco lh e para s u a adequação com a
busca do sujeito. Tal visão do artista, herdada da era romântica,
A A RTE COMO FONTE MO RAL dá nascimento à imagem do artis ta criador d e valores culturais> ,
Da im a g em d o a rtis ta, Taylor escreve:
A identidade s ig n ifica d e s c oberta, cam in h a r, bus c a e co ns tr u-
ç ã o do s e n t id o, h o riz onte ide a l d aquilo q ue se coloca c o mo o Eu me d esc ubro graças ao meu trabalho enquanto artista, através
daq uilo q ue crio. A descoberta d o me u eu passa por u rna c riação, pela
bem por s i mesmo e p ara a c o letivid a de na qual o s ujeit o es tá
fabricação d e a lg um a coisa o riginal e nova. Inv ento urna nova li ngua -
inserido. Descobrimos o que s o mos ao v ir m os a ser, "a o d ar
ge m a rtística [ .. . ] E por meio dela , somen te p o r meio dela e u m e t o rn o
forma ao nosso disc urso e ao s nossos atos com relação àqu ilo o se r que e u car regava e m rn irn. v
que é original e m n ós ' > >. T al a fi r maç ã o s u g e re a importância
dad a à formul a ç ã o p ara a exp r essão d e s i própri o , d a qual a Seguramen te, o a to de criação, e n q uan to uma n o vidade ,
c r iação artística p are c e ser o p aradigma. "O art is ta é promo- é t amb ém um pro c ess o dial étic o que a identi dade, d a qual é
v ido d e alguma form a à categ o r ia d e m odelo d o ser humano, inseparável, j á que o r e cusa, rejeita, d e s c onstrói. Ele se ch o ca
e n q u a n to agent e da definição original d e s i m esmo"> . O artista fr equentemente co m as n orma s mas, parado xalment e , quando
fa z d a autenticidade s ua fonte de fé , que ele coloca co m o ideal. passa pelo con fli to, pela recusa (recusa d o con d icioname n to, d o
Deve - s e t al v isão ao romantismo, d o qual Lepage n ã o está d is- co mportamento restaurado), pelo que stionamento d o s con he-
tante. A propó sito d e Vinci, o a r t is ta q uebequense comen t a: ci mentos a dquir idos , ele não o pode faze r fora d e um h orizonte
"A integridade é um dos t emas de V in ci [. .. ] A inte gridade é a co letivo d e sen t ido. É e m t al p onto fu n dam e n t a l que Rob ert
tendência a desc obrir quem s e é , para decidir sob re sua moral. Lepage e C harl es Taylo r conver gem .
Tenho a impress ã o d e q ue um bom núme r o d e a r tistas faze m "A arte é u m con flito", en u ncia Leonard a Philippe e m Vinci.
"Se não h á con flito, não h á arte [ . . . ] não h á artistas. A arte é
28 Em Trilogie d es drag on s, Lepage fa z a artista japonesa Youkali d izer, ao comentar um p a r ado x o , u m a co ntradlç ão,">
o trabalho de criaç ão d e Pierre: " Yo u p u t t h e u n ive rse in a s m all r o orn" [Você
coloca o universo num quartinho] . A réplica de Youkalí, interpreta Lorraine
Camberlain, " il ust r a bem como a o b r a de Pierre, metáfora da própria peça,
estabelece uma relaçã o cria dora entre o g ran de e o p equeno , e n t re o se r e o 31 R . L epage , E n t revue, C a hiers de th éâ tre l eu , n . 42, p . 118.
mundo [ ... ] e n t re o n aci onal e o in te r nacion al ': Lorraine C a rn e r la in , I.:Invita tion 32 A a r te n ã o p ode se r mais im it açã o da n atu re za ; d e ve tornar- se c r iação ú n ica .
a u vo yage , C a h ie rs d e th éâ tre l eu , n . 45. p . 89 . lin g u a ge m s u bje tiva e p esso al.
29 L e M al aise de la m odernit é, p . 69 . 33 Le Ivla laise d e la m odernite.p, 70 .
30 I b id e m . 34 So la nge L évesq ue, La M esure d e l'art , C a h ie rs d e th éâtre l eu , n. 42, p. 105 ·
308 A L~M D OS LIMITES : A CENA SO B IN V E STI G AÇ Ã O

4 . A Travessia das Linguagens :


A busca identitária é um processo longo que se ins e r e no
tempo e q ue é feito através de uma v ia g e m inter ior do in d iv íd u o Valere N o v a rin a e C la u d e Régy !
e m bus c a da a u te n t icidade . Ao fazê- lo, essa b usca id e n ti t ária se
faz ética. Constr uir sua identidade é também ter um horizo n te
de sentido par ti lhado pelos outros. Pois essa identidade é Um
di álo g o , um a t r oca , i n terpessoa l e i n terc u lt ural. A viagem, a
figura do estrangeiro, o desfilar de pe rso nagens no te m p o e
n o es paço são o u tras tantas tentat ivas de Lepage para fa ze r
e me rgir esse diálogo, para expr imir- lhe a n e ce ssidade . A viagem
é uma bus c a inic iát ica q ue co nvid a a d e s cob ri r - s e a si m esmo
g r aças a o o u tro . A cria ç ã o a rt ís tica é o p aradigm a dessa b usca
e o artista, na s u a consciência d e s i e do rnun d o , na necess á r ia
integridade que s u a definiç ã o e x ig e, torna- s e a próp ria figura
d a autenticidade enquanto ideal moral. Suas o b ras, s ua arte
s ão o lugar e o m eio da troca, do diálogo. É ness a rel ação com
a identidade , c om o reconhecimento e a autenticidade que as
peças de Lepage s ã o particularmente atuais e e stão e m sintonia
Aqu ilo d e q ue não se p ode f a lar. é o q ue deve ser dito.'
com nosso tempo,

Desde os anos de 1960, tornou-se banal dizer que o texto de


T ra d. Nan ci Fernandes
teatro mudou radicalmente de estatuto. Rapsódico, de acordo
com Sarrazac, o texto da atualidade não é mais aquilo que foi
outrora. Sua forma mudou, seguramente, como não o deixou de
fazer através dos séculos, porém, mais ainda, seu estatuto c ê n ic o
modificou-se. No que esse " n o v o" estatuto difere daquele que o
texto ocupava no passado? Que novas relações o mesmo insti-
tuiu no palco entre o encenador e o ator? No que as forrnas que
ele s e reveste condicionam as estéticas cênicas atuais? Respon-
der a todas essas perguntas não é uma tarefa fácil, não somente
em razão da diversidade de escrituras contemporâneas, mas
também por causa da multiplicidade de estéticas cênicas. Entre
a cena e o texto não há nem determinismo absoluto nem neces -
sidade obrigatória que imporiam ao encenador que monta sse
um texto de modo específico ou ao autor de escrever num e st il o

A versão inglesa desse artigo apareceu sob o título Moving Across Languages or
Widening the Gap, em D o n ia M o u n se f; J. Fé ral (e d s .), Yale French Studies: 7he
Tra nspa rency of th e Text: Co ntemporary W riti ng fo r th e Stage , n . 112, p. 50-68.
o utono 2007.
2 Todas as citações de Nova rin a s ã o tiradas de V. Novari na , Le Th éâtre de s
paroles, Paris: P OL . 1989 . p . 169.
3 Úl AL f. M DOS LI MIT ES: A C EN A SO B IN V ESTIG A Ç ÃO A TRA VE SSIA DA S LI N GUAG EN S: VA LfO RE N OVA R I N A E C LA U D E R f. G Y 3 11

partic ular para u rn dado palco. A riqueza da prática teatral da o ESPETÂCULO DO A Ta R NO T R ABALH 0 3
atualidade reside precisamente e m tal diversidade e abertura.
Reside também na c o nvicçã o partilhada por todos - auto r, "Atar, nunca fui senão isso. N ão .o autor, mas o ata r de meus
a rt ista, pesquisador ou e spectador - de q ue tudo é possível textos, aquele que os soprava em silêncio, que os falava sern urna
nesse enco ntro entre as duas escrit uras - dramatúrg ica e palavra">, diz Valere Novarina no início da atuação para quem
cê n ica. E n treta nto, a a ná lise de u m ( texto) b em como a da q uiser compreen de r seu t rabal ho de esc rit ura. Para ele, com o
o u t ra ( cen a ) n ã o d e ve dispens a r -s e d e uma v erdadei r a reflex ão tamb é m para R égy - porém d e o u tro modo - , mais do q ue p ro -
sobre o d omínio do "o ut ro" - ce na (para o texto ) o u texto (para lo n gam e nto d a escritu ra, a cena é a p róp r ia escritu ra. A p assagem
a cena) - , po is é dessa reflex ã o c r uza da - d o e ncenador sob re do escr ito p ara a cena já está lá , sob re a folha. De modo inverso,
o tex t o e d o a u tor sob re a representação teatra l - q ue surge o a ce na não é senão escrit u ra, escritura verbal segu r a men te, mas
est ilo d a e nce nação n o caso d e um , o u o est ilo d a esc r it ura no tam bém escr it u ra cor po ral d e um ata r p ortador de palavra. É
caso do o u t ro . n ess e vai e vem e n tre o es c r ito e o fluxo das p alavras que reside
Dois exempl o s n o s ajud a r ã o a es cl a rece r tai s o lh a r es todo o te atro d e Novarina , ao m esmo tempo densidade da maté-
c r u z a d os . De um lado, a vi s ão qu e d edica C la u d e Régy ao ri a e s urg im e n to do sop r o; a palavra é travessia de Iinguagens>,
texto d e t eatro - e, mais em g eral, à própria es c r itu r a - , visão A palavra "d iz" o homem; ela o pronuncia como diz a Dama
que determina o es t ilo muito particular d e suas encenações; Autocéphale da Opérette irnaginaire".
de outro lado, a visão que Novarina dedica à cena - e , mais Sem dúvida é difícil mensurar a densidade de tais propos-
em geral, ao ato d e dizer com o qual se confronta o atar - e tas. Mais do que um questionamento de natureza estética, a
que explica seu modo de escritura. Ao fazer dialogar esses busca de Novarina - como a de Régy - tenta ir à origem das
dois criadores cujos percursos estéticos estão nas antípodas coisas e interroga a origem física da palavra, s u a s relações orgâ-
um do outro, tentaremos mostrar d e que modo a sua refle - nicas com a matéria, c o m a respiração e com o corpo. "L iv r a r-s e
xão sobre a escritura converge não apenas para as questões do s e n t id o para que est ej a mais abaixo de quem fala (.. . ] para
fundamentais que na atualidad e percorrem a cena teatral, fazer falar o m orto, o hom soterrado no hornem'", diz Nova-
como também para aquelas que se referem à palavra, palavra rina como que em eco às propostas de R égy". No centro dessa
soprada ou palavra morta, destinada a dizer, tanto no caso de exploração reside o atar, um atar barqueiro da obra, um atar
uma quanto da outra, o que está para além das palavras. Régy atravessado pela palavra de um escritor que diz escrever c o m o
emerge dessa situação corno v e r d a d e ir o escritor, ao sondar um atar, mas do qual constatamos que pensa como encenador.
as próprias condições da escritura; Novarina emerge como Tal palavra que s e encontra em questão em toda a obra de
um verdadeiro diretor de atares que procura as condições da Novarina e que está no centro de sua estética - palavra e scrita
emergência de uma palavra verdadeira, entre corpo e sopro. na página ou soprada no espaço - é antes de mais nada corpo
Dessa aproximação v o lu n t a r ia m e n t e paradoxal emergem duas
3 Didascál ia d e Le Drame d e la v ie , Paris: POL, 19 9 9 [1984], p . 135 .
visões poderosas de criadores animados pela mesma busca:
4 V. Novari na, op. c it ., p . 85
a de encontrar na cena um antes do di zer ou do escrever e 5 Ibidem, p . 135.
de remontar aos limites do apreensível, do sondável, do per- 6 D iz Novari na: "a travessar a seq uência d a (s) lingua gens [.. . ] re inventar a ca d eia
d a carne com as p al a vra s': o p . ci t., p . 13 5.
formável. Tarefa difícil que exige um trabalho rigoros o por 7 Ib idem, p . 35 .
parte do ator, ator transformado e m barqueiro, barqueiro de 8 Ver es pecialmen te o q ue d iz C la u de Rég y L'Ordre des morts, Besa nçon : Les
s ilên c ios cuja fun ção é paradoxalmente a de di zer. Soli ta ires inte m p est ifs, 19 9 9 , p. 60 : "O teatro ociden ta l, d e sde s ua origem, está
[. .. ] na ordem do s m ortos [ ... ] erteatro está também , s e se pode dizer, na
o rd e m da desordem . Isso não se daria se n ã o devido à sua ligação inalien ável
c o m o mu ndo dos mo rtos :'
3 12 AL t:M DO S LIMITES : A CE N A S O B I NVESTI G AÇ ÃO A TRAVESS IA D A S LINGUAGENS : VALÉ RE NOVARIN A E C LA U D E RÉ G Y 3 13

de escr it u ras . CO Dl e fei to, no caso d e Novar ina a esc ri tura n ão excluindo-se qualquer representação e qualque r se n t id o , permite
é senão uma modalidade de atuaç ão, te m sentido só ern fu nçã o aproximar a diferença daquilo que não se diz, de roçar o silêncio
dela e d e sta carne do a t or q ue a c a r reg a. A palavra só é COn- e o vazio. A afirmação soa estranha quando se considera até
cebível e m re lação com s ua d imensão cênica. Não é, por tan t o , que ponto a palavra tem uma virtude operante em Novarina,
a u m leit o r eventual q ue ela se di r ige, tan to rnais q ue não se até que ponto sua proliferação, seu fluxo satura, satura t u do e
destina a u m a tor d ete rmin a d o . E la vai mu it o a l érn e interpela enche todos os poros deixados vazios, tanto no plano d a es c u ta
o ator n ã o e n q uan to portador d e u rna a ç ã o cênica rrias s im na quanto naquele da atuação. Eis o paradoxo da visão que Novarina
s ua função de por tador de voz, de barquei ro de palavras. É para exprime sobre a escritura, nisso residindo tamb ém sua força.
tal me tamorfose do comediante em a tor d o impossível q ue se De um lado, portanto, a escritura como potência do dizer,
oc upaDl os d ife r e n t e s textos d e Nova r ina q ue acompan ham p r o fe r irn erito, sopro, ritmo, fo rça, rapidez. Todo o pensamento
s ua obra. Textos teó ricos para ler p a r a lel a m e n t e aos s e u s textos de Novarina está impregnado dessa convicção profunda. O pro-
drarnat úrgic o s, p a r e c e nl constitu ir -se como u m rnarrual>, como feri mento da palavra aparenta-se a um verdade iro instinto de
se o desejo d o escri tor fosse n ã o a pe nas o r ien tar o comedian te sobrevivência. Ela se to r n a q uase an imal, Novarina gostando de
sobre o rn o do pelo q ual este ltirn o d e ve r ia diz e r seus textos,
ú
provocar ass im, no ator, tal d ispêndio de energia indisp ensável
porém, rn ais precisamente, sobre a m an e ira pela qual deve r ia fei to de r apidez e aceleração q ue convoca os limites do co r p o ,
enfrentar fisicamente a r ela ç ã o COIU a s palavras e, para além, a t r a n s fo r m a n d o o comediante ern atleta do impossível:
relação com a escrit ura. D ito de o u t ro m odo , rna is do q ue uma
sim p les liç ã o d e " leitu ra" d e su a obra, ou d e a t uação, a tarefa de A m a io r parte d o texto deve ser la n ç ada de um só fôl e go , sem
N ovarin a tem a ver com os próprios arc a n os da palav ra, uma se re tornar o se u fô le go, ao u s á -l o p lenamen te . Despender tudo . Não
p alavra na qual o ator permanece o b arqueiro indisp e n sável, atentar p ara suas peq ue nas re serv a s, n ã o te r m e d o de se es tafar. Parece
incontornável e quã o imperfeito! que é desse jeito q ue s e encontra o ri tmo, a s diferen tes res pirações, ao
se jogar, em q ueda Iiv re. :"
Se é e vi den te que N o v a rina esc reve bem como u m a ta r, é
menos eviden te que os conselhos que prodig a li z a ao a to r se
Ultrapassar se us li m ite s , ir para a lém d a s f ro n tei ras do
façam n ota r na prátic a como o olhar d e um e ncenado r, neces -
p o s s ív el, inventar o ut ra coisa, o u tro s sent idos. "Pu lrnoriern! ",
si tando, como n o caso d e R égy, d e uma verdadeira visão da
" Resp irem !", ordena Novarina aos seus a tores:
relação q ue pode - q ue até deve - existir e ntre corpo, espaço e
palavra cên icos. Com e fe ito, o te atro d e N o v a ri n a c o loca e m cen a
Rcspi rern , pullnonem! Pulmo nar não quer di zer d e slo c a r o ar,
u rna visão q u e n ã o somente ab range a at uação d o ator mas que esguelar-se , inchar, mas ao contrário ter urna verdadeira economia
questio n a n o v ame n te t odo o fen ôrnerio da represe n tação: pap el re spira tó ria , usar todo o a r q ue se r es p ir a , d espeja ndo tud o antes d e
d as p ersonagens, relação com a r epre sentação , com a narrati va, re tomá-lo, ir ao fim da res p iração, a té a constrição da asfixia fina l d o
com o g esto. Mesmo que o essen cial d e s uas reflexões sobre o ponto, do ponto d a frase, d a fo rça b r uta q ue te m o s ao lo n g o da corrida."
teatro se refir am ao estatuto d a palavra e à arte de dizer, tal a r te Extenuar o corpo para qu e ele escape d a representação,
não pode ser compreendida se não se p e rc ebe o lugar rnu lto para que s imples rneri te seja e para q ue pe rforme a palavra.
par ticu lar q ue a escritura ocupa n o c entro d a cosmogo nia d e
N o varin a. No caso d e Novarina, a esc r itu ra está na origem das 10 V. Nova r ina , op. cit. , p . 1 0 . A esc r it a tamb ém é respiração. Sem e la nenhum
co isas, é voz, sop ro, re ss onância (no esp aço e n o corpo antes d e movimento pode advir: " P o is a respiração do a ta r provoca no s eu corp o
fenômenos físicos , orgânicos , ce rebrai s que despert am emo ç ões , vertigens,
estar no o uvido) . Mais ainda, e la é o que p ermite d iz e r "o hom" m anifesta ções in suspeit adas", di z C la u de Buchvald, que e nce n ou o b r as d e
Nova r ina, e m U ne Voi x de pl ein ai r;-Europe, n . 8 8 0 -8 81, a g o .l s et. 2002, p. 8 1, .
9 Ve r es p ec ia lme n te Le Th éâtre des parol es. que se as semelha a te xto s tã o impo r- Es pecia l Nova ri na.
t a nles quanto L ettre a ux a ct eu rs o u Le Th éàtre d es o reilles, Pari s : POI. , 19 89 . 11 V. Nova r ina, o p. c it., p . 9 .
314 AI.É~l DOS LIMITES : A C E N A SOB INVESTIGA ÇÃO A TRAVE SSIA DAS LI N G UAGENS : VA L E R E N O VA R I N A E C LAU D E RÉGY 3 15

Esta mos n u ma per fo r mat ivid a de a b s o l u t a d a língua que p ers on a g em , é d a d e c o m p o si ç ã o da pessoa, da decomposição
esvazia o co r p o à fo r ça de e nchê- lo. Há urna grande justa- d o h om e m q ue se faz no t ab la d o.Y '?
pos ição desej a d a do s co n t rá r ios n o c aso d e Nov ar ina. O atar T u do isso necess ita d e um a at uação sem es tados de a l ma,
n ovariniano é torn ado por esse co r p o a co r po do atar Co m sem p sic ol o gia, s e rn p ers ona g em . Não se necess itam persona-
o text o, p or ess e d e safio p ermanente do s o p ro que o obriga gens, porém " perso nagens rítmica s': "ro u page ns h a bitad a s'" " o u
a empurrar para mais longe seus limites físi cos e verbais", "p o s tu ras d e ó r g ã os': diz Novarina. Não h á p ersonagens , mas
por e ss a n ecessidade de c u r v a r - se aos r itrnos, às torrentes de figuras , di zi a Sarrazac da dramaturgi a atual, figuras que falarn ".
p alavra s proferidas , que escorregam, derrapam, que se des- Assim s e n do, nada de con t a r, n ada de representar: "Não c o r ta r
v ia m , multipli c ando a s pistas do s e n ti d o se m e m p resta r- l h e tudo, r ecortar tudo e m fa t ias intel ig en te s , e m fa t ias in tel ig íveis-
n enhum , mas qu e o deixam esgota d o ao fim d a c o r r ida. Há corno o qu er a dicçã o h ab itual fra n c es a d a a t ua lidade n a qual o
todo um e x cesso, situações limites , performances . Além disso, trabalh o d o a ta r consi ste e m reco r tar seu texto e m s a la me, e m
trabalhar o texto novariniano - cheio de n eologismos , d esafios ac entuar a lg u mas palavras, carreg á -l a s de inten çôes?? Para isso, o
de s o ns, e n u m e r a ções, listas infinitas que s ã o outros tantos ator deve desinvestir s e u próprio c orpo, s e u próp rio p ensamento ;
desafi os físicos, rítmico s e respiratórios - impli ca, no caso do renunciar a i rn itar o hornern, a r epres entar, a rep ro d u z ir.
a t a r, o gosto pelo risco, pela u ltrapassagem dos limites, pela
v ir t u o s id a d e, mas tamb ém pela generosidade e pela abertura, Há muito da reproduç ã o do hom em p o r tod o lu g ar! No t e at r o , o
física e rn e ri t a l'>. Respirar o texto, fazê -lo respirar. . . Tornar-se hornern deve s e r n ovamente incompre ensível , in c o erente e a be r to:
um fugitiv o. O homem não é o hOmeITI, o h orriern n ão deve mais se r
o atar pneumático tanto quanto o autor'<. A escritura se faz
vi sto: interdi ç ã o de r epres entá -l o [ ... ] O teatro tende sem p r e p ara o
bucal, anal, visceral. É fluxo contínuo de sons nos convidando rosto human o d esfeito ; é um lugar para s e des fa zer o h omem e para
para o desvio dos sentidos e do pensamento. "A palavra não é s e insubordinar p erante a imagem human a , para se d e srepre s entar
nada mai s do que a modul ação sonora de um c e n t r o vazio, do [. . . ] O te at ro é um lug ar d e retiro. Di ante ele noss o s o lhos, a b re -se um
qu e a danç a de um tubo de ar carrtado?". Disso decorre e sta
c o n s t a t a ç ã o quase corno um veredi cto: "O atar não executa, 16 Esse tra b alh o n a p erforrn an c e , no d e s a fio , n a ult r a p as sa g e m de s i rrr esrn o
ele se e xecuta, não interpreta, luas se penetra, não raciocina e ncon t ra-se tarnb érn no caso d o a u to r-ence nado r O liv ie r Py. A m emóri a , o
corpo, a respiraçã o , a colocação n a bo c a d a língu a p o étic a , a p ersi stênci a d o
mas faz todo s e u corpo ressoar [ . . . ] Não é da composição da c o r p o , são também e m p ur ra dos p a ra a lé m dos se us limites. Es p ecia l is ta em
p e ç a s - ri o s , c m repre senta ç õ es long a s , co n tí n u as, qu e duram horas e a té jor-
nadas in te iras (L a Serva n te [A Se rviçal], 24 h .; CApoca lypse joyeuse [O Al e gre
12 Nisso co mpreendi do os da m e m ór ia . O atar es tá to m a d o pela c rença de n ã o Apocalipse], 10 h .) , Py pede aos atares uma orgia d e energia e u m investimento
p ode r ir a té o limi te d o te xto , pelo m ed o e pelo d es ejo ao m esm o te m p o d e físico e espiritual fo ra d o comum. Se e le esc reve epopeias, isso também se dá
i r p ara a lém d e se us lim it e s r e spirató ri o s . para cond uzir se us a ta res ao cen tro d e um a viagem, d e urna trave ssi a : a d e u m a
13 Buchvald esc reve: " É um trabalho t ã o físico quanto o d e r espirar u m texto, língua já trabalhada para ser o uvida o u lida co mo um poema. É igual m ente a
como o d e nada r sem fô lego o u d es cer em es tado d e apneia n a s pro fu n d e za s. lí ngua d e um espaço-tempo esti rado, n ã o cotidiano: n u m a d u ra ç ã o excessiva,
Q uan do se d iz um te xto co m t al e ne rg ia respi ratória [ . .. ] entra-se numa ação em h o r á ri o s inusitados no teatro (meio d a n o ite, de manhãzinha) . Enfim, isso
que maltra ta o cor po m a s que t amb ém o ca r rega e o exalta." O p . cit., p . 82. se dá também p ara uma t ravessia d a percepção, já q ue os có d igos es ta belec idos
O bse rva igu almente , el a que se ocu po u de EOp ére tte im ag ina ire: "O cor po, vão ao e ncont ro d aquel es t radici on alm ente a d q u i r idos n o te a tr o .
pa ra p ode r fa la r, é pre cis o que es teja a berto p el a b o ca , pelo s o uv idos , p or 17 V. Novari na, o p. c it ., p . 45 .
tod o s os o r i fícios, s e não h á um bloquei o d a r espira ç ã o qu e o p erp a ssa. É 18 A s p ers on a gen s d e Novar ina são ritm ad as p or s u as e n t radas e sa ídas, p or s uas
preci so, p or o u t ro lado, que h aja abertura d o c o r po p ara o espaço, a ta l pon to p al a vra s , suas e n u me rações, m as tamb ém p ela respira ç ã o , pel o co r po e p el a
que o espaço, por seu lado , desped a c e o co r po:' Op. c it., p . 80 . voz d o a ta r. E les r ep r esentam à s ua m a n e ira a q u ilo que Sa r r azac descreve
14 "Eu escrevo pelos o uvidos': d iz Nova r ina, o p. ci t. , p . 9 . O u a in da : um atar "d e ve como: "figura hum a n a d es p ed a ç ad a [ . .. ) boca o u â n us, 'em vez d e d ize r ' [ . . . ]
in spira r - e x p ir ar p ara ter cond ições d e se ab rasar pelas coisas com palavras às vezes atravessado por acessos de li n g u a g em". V. Novari na, op. cit., p . 86 .
o postas [ ... ] falar seu drama. lO aquele que pensa da forma como respira". V. Essas personagens na da contam, porem contentam-se e m mostrar o texto
Novarina , op. c it ., p . 160. como escritura, como material.
15 Ibidem, p . 129 19 V Novarina , op. c it., p. 10 .
3 16 ALIÔM D O S LIMITES: A CENA S O B INV E STI GAÇÃO A TRAVESS IA DAS LI N G U A G E N S: VA LERE N O VA R IN A E C LA U D E R ÉGY 3 17

in ter io r vaz io , d ilacerado -di lacerante. Vai -se ao tea tro para assis t ir à cena s upera se u corpo e s ua presença, p a ss a por sombra. O atol'
derrocada hurna na .:" av a n ç a SeITI riorrie" >.
P a ra Nova r ina, a função d o teat ro é m ai s profunda do q ue
Co mo evit a r a r epre s entação d o h om em? COIllO evita r aquela d o "repro d uzi r", d o "represen ta r ", do "imita r". Deve
r econhec ê -l o? Novarina p reco niza d e ixar os sons, os r itrnos, os m o strar aq ui lo que n ã o se p ode ve r, que não se po de d ize r,
fluxos da palavra o pe ra re m e convida o atol' a d i r ig ir-se direta- "aquilo que v o c ê é", aquil o que n ã o pode s e r. Eis aí s u a g ran deza
mente a os sentidos". Os co n s elh os não d iferem sen s ivel m.e n te e s e u ver dade i r o d e stino, do qu e d e corre e sta fra s e um p ouc o
d aqueles que os anos d e 1960 contribuíram p a ra v u lgar izar. " Isso s ib ili na d e N o v arina: " O teatro é interessante q uan do se v ê o
se dirige para a lém das camadas com u ns d o cé rebro, is s o colo ca co r p o n ormal d e quem (q uan do e m tensão , parado, a lerta) se
e m fu nc io na me n to ou t ros h e rn isfér io s afo r a os d ois g lo b o s d e sfaz e o o u t ro corpo esca p a, esper t o b rin c alh ã o , que re ndo
re c onh e cido s . U ma pro v a químic a , uma experiên cia q uím ic a :'» divertir- s e com iSSO: ' >5
Mais pro fund amente , é a própri a fun ç ão d a p alavra como a to de Mu ito s o u tros e n ce n a do res - d entre os q uais R égy, segu-
co m u n icaçã o qu e Novarina c o loca e m questão. E le exp lic a : "O s rarrierite - e n d o ss a r ia m s e m problema essa n e c e s sidade d o
a n i rnais tamb ém se cornu riica m muito: fa zem iss o p erfeit amente es q uec ime n to d e s i no c aso d o a to l'. O v a zio nece ssário do a t o r,
s e m fa lar. Fala r é uma co is a di stinta d o que t e r q u e tra n s miti r -se que aqui está em q ues tão, é uma despossessão, implica um a cer ta
m utuam ente humore s o u ve rter ideias [ ... ] fa lar é uma resp ir aç ão des truiçã o d e s i. O próprio N o v a r in a , e nquanto escr it o r, não
e u m a atu ação. F a lar nega as palavras. Falar é um d r ama." >' escapa a ess e e st a d o d e d espossessão. Ele descre ve s ua própria
Con10 fazer advir o drama da palavra na ce na? Co m o faze r postu ra na escrit ura como q ue e screvendo fora de si mesmo:
para que ape nas a palavra v e rdadeira s ej a entendida? É preciso
Queda d o s istema de reprodução, q ueda do s is te m a d e a ção,
ir para a lém das palavras, d iz Nova r ina, e para isso o a to r deve
escrevo sem mim, como uma dança s e m dança, escre vo renunciado,
abster- se de s i mesrno, deve despossuir-s e a s i mesmo, esv a z ia r- d esfe ito. D e sfeito de minha língua, desfeito de m eu p ensamento . Se m
-se para ser a palav ra . Ap enas essa trajetória lhe p ermite ir al ém p ens amento , sern palavra , sem lembrança, s e m o pi nião, sem ver e s e m
de sua ide n ti d a d e , es q ue c e r- se para dar l ugar à respira ção. e n ten de r. Esc revo pelos o uvid o s. Es c revo ao contrário . E n te n d o tudo; "
O e m p r ee n d iIn e n t o não é n em a r tau d iano nem místico,
apesar das aparências , mesmo q ue prec ise de u m a v erdadeira Essa despossess ão, ess a "derrocad a" é u m a etapa indispen -
a scese p or parte d o a to l'. C o m efeito, t rata-se para e ste ú ltimo sável para escapar à re p resen tação e p ermitir ao ato l' ser, muito
d e tentar " fa zer- se tran sparente, deixar-se dissolver n a s palavras simples mente, a fim d e mel hor po der t r a n smiti r a palavrav .
no ex ato instante e m que e las são e n u n c ia d as, d eixar- se m orrer
o a ta r que a t u a v e rdadei ra m e n te, que interpreta no fund o , que se
a cad a e x p ir açã o' : d o que decorre e s t a constataçã o: "é a ausência interpreta d o fundo [ . .. ] leva n o seu ro sto [ . .. ] sua m á sca r a mortuária,
do atol' que não queb ra s ua presença [ . . . ] O a to l' qu e e n t r a em
24 Ibidem, p . 12 1 -1 2 2 . É isso q ue p ensa ig u al m ente Claude Régy e é dessa fo r ma
20 "Ent revis ta com Valere Novari n a", realizada p or Yannick Mercoyrol, Franz que e le di r ige seus a te res . O ato r não é le v ado a inter pre ta r m a s a es tar n o
Io h anss o n , P rograma da p e ç a. A p rese ntação de L'Orig ille rouge. Th éát re Natio- p a lc o en q uanto pess o a , o bserva Valérie D reví lle, q ue tra b al h ou n a ocas ião
n al d e Stras bou rg, 12-20 d e z. 2000, p . 12. co m Régy. " N ã o p o d emo s n o s cons ide rar a to res n e ss e p a lc o ; po uco a p ouc o
21 O t e xto es b u r ac a do de L'Op érette imagin ai re trata , po rta n to, d o conj u n t o d o d es c o b rim o s se r, antes, pessoas", o bserva n o fil m e Le Pa sse ur (O Barqu ei r o ) .
se r. A primeira p a rte d o segu n do a to termin a co m um d elírio de sons e sa ngue, Ré g y e Novari na n ão sã o muito di ferente s de numero s o s e nce n a d o res que
d e se n t ido v iv ifica do. pro curam esse se r -s i- mes mo d o a tor. Élisabet h Coro n el; Ar naud de M e z am at ,
22 V. Novar ina, o p. c it., p . 77. Novar i na per ma nece p r ude n te e cét ico: 'A q u e le s Claude R égy, le passeur, F rança: A baca r is F ilm s; S E P T - A RT E, 19 9 7, 15 2 :
que pensa m q ue se po de t r a d u zi r q ua lq uer co isa de u m co rpo para o u t ro e 25 Ibidem. p. 24
que urna cabeça pode comandar qualquer coisa num corpo alinham -se com o 26 Ib id e m . p . 7 2 . Do que advém o título-de um de seu s textos : "Le Th éât re des
desconhecimento do corpo, com a repressão do corpo': observa. Ibidem , p . 23· orei lles"
23 Ibidem , p . 163 . 27 Ibidem, p . 125 .
3 18 A LÉ M DOS LI MI T E S, A CENA SO B IN V ESTl G A Ç Ã O A T RAVES S IA DAS LI N G U A G E N S , VA LtRE NOVA R INA E C LAUDE RÉGY 3 19

b ran ca, desfeita, v a z ia L.. . ] e le mostra, b ranco, se u rosto c a r reg a n d o nova ri ana é u m a e scr i t ura es b u r a c a d a - tanto quanto a de
s u a morte, d esfigurad o ." ' " Rég y é u ma escr i t u ra d o afa s ta men to - para c ava r a distância
com relação à r epresentação, p ara tocar o não-dizível. Ambos
Não e s t a rn o s rnais no universo d o sensível senão naquele da rei vindicam a ora li d a d e co rri o f und a m e n to do texto cên ico e
edificação de u rna poética. A busca de Novarina visa um para o corp o do ator, sua respiração, s u a v o z , corno únicos meios
a lém do ser e da aparência do ator. Ele não convoca s e n ã o o p a ra carregar tal palavra: "Q u e o ator venha a encher meu texto
vazio, pelo menos fazer o vazio. De fato, o que Novarina perse- esburacado, dançar dentro dele?», reclama Novar iria>.
g ue infa tig a v e h n en te n o caso d o a tor é q ue este últim o se solte e Duas irnage ns importam nesse caso : a d a dança e a do
ace ite a derrocada (no se n t ido d e es tar d e r r ota d o ) , d ito de o u tra buraco. O a tol', não para d e repetir Novarina, é u m dançarino,
maneira, q ue cons inta no fa to de q ue as coisas são ditas por m eio dança, c o lo c a palavras em movirnerito. Ora, o movimento não
dele, quase que a despe ito dele, apesar da força que ele controla , pode ser lid o senão no presente do ato d e movimentar-se e se
ordena e centraliza. Evitar a cen tralidade, a cent ralização do sen - conci lia com a presença do dançarino em pleno esforço. "Dança-
tido, d a s ideias. Há no caso d e Novarina a co nvicção de q ue existe -se q ualquer born pensamento, qualquer p e n s a m e n t o ve rdade iro
uma concordância ent re a cen trali dade d o r itmo (da respiração ) deve poder ser dançado. Pois o f undo d o m u n do é r itm a d o " >
e a do perisarnento, d e o n de o d e s ej o de dirní nu ir "a emissão d o R e e n c o n t rar a dança no d izer mas também no escrever. A pró -
ritmo profundo" da resp'iraç âo w. pria escrit ura de Novarina tem a ver com a dança e é essa d a n ç a
É difí c il co nseguir fic a r e m esta do de "d e s p o s s e s s ão" d a s que deve reviver, resti tuir, reencontrar o ata r v is to que a p alav r a
cois as, das p alavras , da p alavr a! Para ajudar o a to r, a n âo - aç ão >, e o dizer e x t r aem s u a fonte da p r ópria c a v idade do se r. Trata - s e,
uma n ã o -a ç ã o que per m ite a est e último m ergulha r p ara a lém do di z o a u t or, d e: "e n c o n t rar posturas musculares e respiratórias
sen tido. O nada fa z er ou fa zer o rn íriirno possível, des aprender. n a s quai s se e s creve [ .. . ] N ão é [ .. . ] o c o r p o do a utor q ue pre -
Exa tam e n te c o mo R é g y, Novarina tenta e m p u r r a r o a t o r p ara c isa m ais r e en c ontra r - s e [ ... ] r eclamar a exis tência d e alguma
s uas últim a s t r incheiras . Que r d e svi á -lo, fazê- lo ren u n cia r à q u ilo coisa q ue quer danç a r e a qual não é o corpo humano que se
que já aprende u, esvaziá - lo p ara que esc reva, a p al avra p odendo acred ita p o s suir" > . "A lgu ma co isa que quer dançar", como se
e nchê- lo n o v amente e q ue o gesto p o ss a s u rgir d e m a neira j usta , d o "mais a baixo" uma voz se fizesse o uvir, a v oz do "mo r to': "o
is t o é, d e aco r do c o m a palavra , brotada d o rnesrri o espaço inte- h om sote r rado n o h o rriern">. M u i to m a is d o que uma po ética,
rior, d a rrie srna c a r ne. É d e s sa form a qu e o ato r p ode ultr apassar a tarefa d e N ovarina diz r e spe ito às p r ópria s fonte s da c r iação.
o t exto p ara atingir a escrit ura son o ra e para a lém, "fazer fa lar o O utra imagem, a d o b uraco : essa imagem do burac o é urria
m o rto" p ara q ue esteja " mais a baixo d e q uem fala">'. m e t áfora d e que p artilh am t anto o dis curs o d e R égy qu anto o
Tal r enún cia do preex istente , do j á c o nst r uíd o é, d e acor d o
co m N o v arina ( e d e aco r do c om R égy, ve re mos a d ian te ), a
" De rr u b a r o s ídolos mortos, queimar o s feti ches fei tos po r nós mesmos, nós
úni c a via pela qual se p ode t o c ar o imp o s s ív el, o in a c e s sív el,
p odemos [. .. ) tudo aqu ilo que pet rificamos - e q ue se tornou coisa do pensa -
a q u ilo que o ord i ná r io e o cotidiano b a nir am d e n o ss o s corpos mento - talvez cruzado novamente '; observa . Entrevista com Valere Novarina,
e d e no s s o s es p i r ito s > . Is s o exp lica em p arte que a escr i t u ra r ealizada po r Yan nick Mercoyrol, Franz Io h an ss o n , op. cit., p . II.
33 V. Novarina, op. cit., p . 19
34 Por seu lado, Régy observa: " O ato d e esc rever se d e st a c a menos como u m
28 Ib id e m , p . 24 -25. O ator morto é , a liás, uma das personagens de L'Opérette agenci ame nto do real do que como sua descoberta. É um processo pelo qual
imagina ire . nos colocamos entre os objetos e o nome dos objetos, a v igilãncia desse inter-
29 Ibidem , p . 123. valo de silêncio, de to rnar os objetos visíveis - como se fosse pela primeira
30 Ib id e m , p . 135 . ve z - e de possuir então seus nomes." C. Régy, op. c ít ., p. 12 1.
31 l bi d e m , p . 35. 35 V. N ova r na, op. cit. , p . 13 8 .
í

32 Em tai s tarefa s , o a to r toma con s ciên cia de se us próprios có d ig os, d e s ua 36 lbidem , p . 2 1.


próp ria repre sent a ção e co m eça a transformá -los Oll at é a d e spossu ir- se deles. 37 Ibidem, p . 35
32 0 ALBM D O S LIMI T E S : A C E N A SO U I N V ESTI G A Ç ÃO A T R A VESS IA DA S LI N G U AGE N S: VA LE RE NOVAR INA E CLAUDE R f.GY 32 1

d e N o varina. Régy, por exemplo, diz aos se us atares para " fa ze r da apresenta ç ã o , fa d ig a d e represen tar cada ve z maior e q u e c o loca n u m
as pala v r a s c a í re m c o mo uma p edra num p o ço, e sc u t a r o ec o est ado d e co ngelamen to to tal , des t r uição d o s lugares, u lt r aje público
à língua fr an cesa , d e struída e rebai x ada. Esse re baix amen to d a lí ng ua
para p erceber a profundeza do buraco, a abertura, o abismo
qu e a tu a lrne n re a tem feito d e s m o ron arY
n o qual o h omem e o ator es tã o">". Abordar o s buracos, cair
n o s bu r a c o s para nel e s se p erder e neles m orrer e renascer.
Sarrazac ressalta, a prop ó sito d o drama co n te mporâ neo,
R ed e s c obrir na qu eda outra co isa s o b r e nós m esmo s. É tam-
"u m a s it u ação de crise d a lí n g u a d orni nante":" a fim d e e lim in a r
b ém paradoxalmente a fun ção do silêncio, el emento m uito
a m e c âni c a ern prol d a ri qu ez a . Os autores a do r a m mistu rar o s
irnp o rta n te igualme n te na s encenações de Régy e nos textos
estilos e g êneros num a p e ç a c o m p ost a de fragmento s , observa
de N ovarina . C urio samente, a e s critura novariana é nu trida do
ele, porém procuram igualm ente hibridizar a língu a , lutar co n -
n ão -dito, nisso muito mais próxi mo da visão de Régy d o q u e
tra a uniformidade lingu ística, colo ca r as línguas em tens õ es:
p od e parecer à prirneira vista. Com efeito, como na música, o s
aqu el as q ue dominam ou q ue são dominadas, as línguas sec re -
ritm o s novarianos são sernp re n u t r id o s de paradas, p ontua-
tas, as ou tras como os dialetos , jargões, citações e m línguas
ções silenciosas e d o não - d ito . O au tor faz d iss o o p r incíp io da
estrangei ras, línguas especializadas etc. Novar ina parti cipa ao
atuação no mesmo patamar que o da língua: "s e você n ã o quer
se u modo, segurarnente , d essa te ndência in iciada nos ano s de
fa lar m ecan icarrie nte , você deve senlpre m ante r na tua palav ra
19 6 0 que a filosofia, especialmen te a der r idariana , d o s últimos
a lg uma coisa de voc ê">, obse rva para o a to r, re to mando, co m o
tri n t a a nos co nt r ib uiu abundan temente pa ra d ifundir. " E u
em eco, a ide ia d o afas ta me n to d e que fa la R égy-".
d es c r evo", e sc reve N o v arin a , "a luta n a líng u a d e um e o efei to
O drama novariano se insere e n tre a questão "de o n de vem o
pulverizante d a lingu ag em de apen as um que pode n e g ar t u do,
q ue fa lamos': que Adam c olo c a em Le Drame d e la v ie (O Drama
pode reduzir o mundo a p ó : nega r até a q u el e q ue fa la"44. Poré m,
d a Vida), e a afirmaç ã o que a rrem a ta L e R epas (A R efeição):
se r ia tanto e n te n der m a l Novari na limita r o a lcance d e seus
"Aq u ilo de q ue n ã o se p o d e fa lar é a q u ilo que se d e ve d izer:' A
esc r itos quanto n o s fixarmos nisso . Lu tar co ntra a lín gu a apre n -
palavra é a única m a n eira - e m a t éria - para narrar o h omem.
dida, a líng u a verdadeira, a língua oficial, a da id e ol o g ia , es tá,
E la é ato, ação. É somente nisso talvez que ela faz sent ido -', Ines-
segurame nte, n o centro d e seu t r ab alho d e criador. E le próprio
gotável , tal palavra é, no entanto, i nsuficiente. Do q ue d e co rre
define a s ua tarefa d e escritura corno "reinve nção das línguas"
esta constatação desafiadora:
e sua proposta d e "refazer todo o cami n ho d a ap rendi zage m
Decadência da repres entação, derrocada teatral. C a d a vez mais
d a língua m a t e r ia l, reaprender s e u lingu ismo. Lapso, c o v a r d ia ,
fa d ig a de representar, de d izer o que quer que s ej a pela língua . Fadiga barbaris rno":". Por ém , não é nesse combate constante contra a
unicidade d a s ignificação q ue re s ide a força maior d e seu teatro,
38 No filme Le Pa sseu r. pelo menos at ualmente. E la reside a n tes de tudo n e ss a a bertu ra
39 V. Novarina, op. cit., p. 164- d a língua que ele t e nta institu ir a seu m odo n o p ró prio ce r n e
40 lê q ue toda pala vra verdadeira d e ve g ua rd a r um d ado mi st erio so, o culto. Daí a
ex is tê n ci a do E -mue t, um a d as personagens de L'Op érette imaginaire e n a qual
d a s p al av ra s , urn a a bertura q ue se reenco n tra no coração do
ela u s a e - m u d o s , suspensão d a r espi ração, si lê nc io do ritmo na escritura. Em h omem , n o co r ação da escri tu ra e n o coração da ce na.
D e van t la parole (Diante d a Palavra ) , e la s it ua "e x a ta m e n te no meio, quatro
se q uê n c ias subi tamen te brancas , á to nas, e m contratempo s, quat r o preces em
Há a lguma coisa d e presen te, de a use nte e furtivo em n ó s . C o rn o
bran co" (s. p.). Parale lam en te , escreverá te x tos de Je a n - Paul Kaufma nn : "Ao
ídolo da co m un icação, oponho os s ílêncios de Je a n - Pa ul Kaufma nn e sua
se carregássemos a marca do desconhecido [ ... ] H á um o u tro em mim,
prec e muda da prisão:' l b íd e m , p . 162. Todavia, se bem que possa haver p lagas
d e s ilê nc io em Novarin a, sã o menos o terreno propíci o para a esc u ta co ra l d o 42 V. N o v a r ina , op. c it. , p . 4 7 -48 .
q u e um d o s el em ento s essen c iai s de qua lquer j o go rí t m ico. 43 Ibide m , p . 13 6 .
41 " Eu es crevo li vro s n o s qu a is a a ção é fa la r", excla ma Novar ina e m Le Dra me 44 V. Nova r in a , I.:Hom me h ors de lu i, Eu rope , op. c it., p . 16 5. Espe c ia l Novarina.
d e ta ngu e fra nçai se . 45 V. No v a r in a , o p. c it ., p . 34.
322 A L ÉM DOS Lllv llTES : A CENA SOB INVEST IGAÇÃO A TRAVESS IA DA S LINGUAGE N S: VA Ltô R E NOVARINA E C LAU DE R ÉGY 3 23

que n ã o é você, qu e n ã o é ninguém. Q ua n do fa la mos, ex is te na n o ssa qu e a única co isa que co nta q ua ndo se faz uma magern , quan do se
í

pa lavr a u m ex íl io, um a sepa ração d e nó s m e sm o s [ .. . ] Fa la r é uma eScreve u m texto ou q uando se lhe ret ranscreve, é que o que se vê ou
c isão de s i m esmo, um d om , uma p a r t id a . A p al a vra p a rte d e mim o qu e se o uve n o s remele ao incr ia do, pe rce be o incriaclo. Aq ui lo qu e
no se n t ido e m q ue e la rne a ban dona. H á e m n ó s , m u ito no fu n d o, a mostramos não ter n q ualquer interesse [ . . . ] No fazer c1ever- s e -ia ma ni-
consciê ncia d e u m a p resença d istinta , d e um ou tro para a lém de n ó s festar o " n ã o fazer ': dever-se -ia s e n t ir ao mes mo tempo a impotência
mesrnos, aco lh ido e fa ltante, d o qua l poss uímos a g ua r da sec re t a , do do fazer: ".
q ua l m an te rn o s a fa lta e a rna r-ca.:"
A ideia é podero s a e lembra a q u ele p ensamento d e Nova -
É tal abertura, t al v oz da so m b r a , tal duplo, t al vazio q ue rin a , co lo c a d o como e píg ra fe n o no sso títul o : "Aq u ilo de que
N ova r in a persegue in c an savelmente. Niss o está a o ri g in a lid a d e n ã o se p ode fa l ar, é o qu e d eve s e r d it o : ' D o que d e corre a
de sua o b r a, s u a g ra n deza e s u a mi s éri a . É t amb ém n es se ponto co nvicção que R ég y t em de que a escritura é o m ei o escol h ido
preciso qu e a s atitud e s d e R é g y e d e Novarin a c o n ve r gem de pelo escr ito r para fa zer o uvi r o morto, o s m ortos , es s es m ortos
rnod o assustador. que todo autor tenta trazer à luz, fazer nas c er, mas qu e, todavia,
continuam na região do indeterminado, do não -dito. A escri -
tura s e r ia , portanto, uma e scr it u r a daquilo que não é, pois para
ORDEM DAS PALAVRAS/ORDEM DOS MORTOS além daquilo que se diz , uma outra palavra deve se fazer ouvir,
uma palavra no vazio poder-se -ia dizer - e é esse vazio que o
"O teatro ocidental, desde sua or igem, está [ . . . ] na ordem dos atar, guiado pelo encenador, deve procurar exprimir.
mortos [ . . . ] o t e a t r o está também, se se pode dizer, na ordem Mostrar para a lém da palavra, ou mostrá- la aquém, o lugar
da desordem. Isso não se daria senão por sua lig a ç ã o in alie n ável em que as coisas não são ditas, em q ue elas não afloram no plano
c o m o mundo dos rnortos":", diz Claude R égy, explicando assim da consciência mas em que são percebidas de modo obscuro
o título de um dos seus primeiros livros, e se une a Novarina na através da atuação do atar. Tal é o objetivo do teatro. P ara enten-
sua convicção. Tais mortos que aqui estão em pauta, no c a so de der o que o pensamento de Régy tem como força, sem dúvida
Régy, não rernetern a n enhum luto nem a nenhuma perda, mas é preciso restituí-lo ao c e n t r o de uma reflexão que procura, no
a uma vida ausente da qual R égy está convencido de que está seu caso, remontar à origern da escritura - como também no
para além das palavras e das imagens, uma vida que o escritor e caso de Novarina - e levar em consideração sob esse mesmo
o artista te ntarn renovar s o b o mesmo enfoquc, uma vida ante- asp ecto a escritura do escritor e aquela do encenador. De fato,
rior à palavra, uma vida que a ordem das palavras, das imagens, no caso de Régy, longe de opor texto e interpretação, não existe
do dito, seria incapaz d e restituir, de fazer emergir, de trazer à qualquer contradição entre o texto e sua passagem para a cena
s u p e r fície . De fato , para Régy, a escritura, qualquer que seja, como também, mais ainda, há convergência entre a palavra do
fala do indete rminado. A escritura tem a ver com o próprio ato comediante e os gestos que este último coloca no espaço.
de criação, criação não das origens, mas do in criado, daquilo
que ainda não é, daqui lo que se busca dizer mas que não se diz. No momento em que c o m eça m o s a nos mover n o es paço, parece-
" P r o c u r e i pensar", diz ele: -rne que não é preciso para o ator nem se movimentar n em falar sem
antes procurar reencontrar a fonte da palavra e do gesto, então pensei
que se poderia até supor que há um pon to no ser (do qual não posso
definir a situação) no qual sem dúvida nasce a palavra , no qual nasce
46 Ibid em, 134-1 3 5. a escritura, e no qual provavelmente a sensibilidad e d o gesto toma
47 A maio r p art e d a s c itações qu e se seg u e m são empre st ada s d e L'O rdre d es forma. Para que nunca n o s m ovimentemos e falemo s s e m que o g e s t o
rnor ts e a s p á gi n a s ind ica das ent re pa rêntesis. Essa id ei a d e R é g y te m como
eco refle x ã o d e Nova r ina qu e re c ord am o s n a prirn eira p arte : é p reciso "fazer
fa lar o m orto , o h o m sote r ra do n o h o rnem" : o p. c it ., p. 60 ,35 · 48 C. Régy, o p . ci t., p . 6 4 .
324 ALBM D OS LIMITES : A CE NA SO B I N V E ST IG A Ç A O A TR AVESSIA D A S LI N G UA GE N S: VA LÉRE NOVA R [NA E C LAU DE R BG Y 325

e a pa lav ra se i n ic iem n a s ua fo nte cornurn e para que se m o v a m ao na caso d e Novari na, se bem que de forma diferente, eles mos -
mesrno te mpo, é preciso ra le ntar.v' t ra m a palavra, apossando -se dela, fazendo do dizer a única
açã o d o d r ama.
Exis te, p o r t a n to, um esp aço n o ser hum an o que seria ao Para isso , n o cas o de R égy, assim como no d e Novarina, o a tar
rn esrno tempo o cent ro co m u m d o gesto, d a p al a v r a e da es cri- deve esq uecer d e s i mesmo ( não da personagem encarnada) n o
t ura . Trabalhar um (o ges to) permite ass i m, n e c e ssariamente, esp aç o d a p alav ra. Portador d e u m a palavra antes de tudo, d e u m
at i ngir o o u t ro ( a p al avr a ) e, ass irn faze n d o, fa zer de n o v o o dis curso vindo d o alé m, ele trabalha a lín gua a fim d e n ão fec har
gesto do escritor. R é g y t ern v o n t a de d e r een contrar n o atar o o se n tid o d as p alav r a s e das frases, d e m ant er o se n ti do ab e r t o e,
estado d o escr ito r, mas o es ta do do esc r itor a n tes que ele deite assim, d e p ermitir a circulaçã o d o sen t ido. Como a linguagem é
a s ua frase no p ap el, a n tes m e smo do ges to d a e scr it u r a ; reen- "cheia d e aproximaçã o , a m b ig u idade, mal-ente ndido, d eli cadeza ,
co n trar, p o r t a n t o, o irnp u ls o que o briga a esc rever, corno se um ambival ência': cumpre ao atar m anter essa abertura, este espaço
mesm o sop ro habita sse o esc r ito e o lido. Essa q ues t ã o alimenta entre as palavras e os p ensamentos p ois é n e ss e d es v ão que a
toda a reflexão d o e ncenad or sobre a atuaç ã o e o trabalho vocal "poes ia s e aloja">. E ssa ideia d e desvã o n a língua, n o próprio seio
e co rporal d o a tar. do palco, é fundamental para quem q uer com p reen der a estéti ca
Régy o d iz t amb ém d e o u t ro m odo. Inte rpretar é t entar de Régy. E la s e s o m a à ide ia do bura c o e m Novar iria» .
acresce n tar a "parte imate rial d o cor po">", é pro curar urn cor p o O que R égy procur a atingir para a lé m d a s p alavra s é "o
po r tado r d e p ensam ento". Se, n o cas o d e N ovarina, a palavra é som que a linguagem faz" e , a in d a m ai s p rofundam ente, "a
c o r p o , no caso de Régy a coisa está aparentemente invertida: o organização do movimento da palavra na linguagem" >' a fim d e
c o r p o é pensamento. Régy está convencido de que corpo, voz e que a linguagem possa atingir o espectador na mesma região
e s c r itu r a fazem parte de urn todo e que é inconcebível separá- em que a música toca. Fazer da língua urna músi ca, a única
- lo s . A voz provém do corpo. Ela é corpo. Ela é esse momento música na cena, e fazer de tal maneira que a música toque o
e m que certos efeitos do corpo - especialmente as vibrações das espectador nas m esmas zonas corporais co m o o fa z a própri a
co r d as voc a is - tor n a m-se palavras. A ideia em si não é nova; música, eis o objetivo confesso de R égy».
o que o é em princípio é que, para R égy, a atuação repousa na Para fazê -lo, Régy opta pelo ralentamento ext r e m o, u ma
esc r it ura. A escritura de aritern ão é , portanto, interpretação, das modalidades Irnportantes do s e u trabalho nos texto s . Essa
e n cenação . Igualmente, para o atar a matéria a ser trabalhada lentidão extrema permite, acredita ele, r e m o n t a r à s próprias
é, ante s de m ais nada, a própria e scritura. É di sso que tudo fontes da escritura: "p a r a fazer ouvir a escr it u ra e o que a língua
parte, porém é daí também que tudo a fl o r a. Com efeito, sob revela, pareceu-me que não s e r ia pre ciso falar r ápido [ . .. ] a
est e aspecto, Régy é herdeiro de Blanchot e de todos os autores rapidez não é criadora de nada, salvo da rapidez [ .. . ] É durante
que questionaram nos anos de 1970 a relação da língua e da as paradas que a verdadeira plenitude da e scritura se ouve
representaç ão. Para R égy, a língua deve ser trabalhada em si ca so não s e a tenha ocultado desde o c o rn eço" >", observa ele,
mesma, se m se d eter na personagem ou na s u a psicologia, na
52 Ib ide m , p . 67.
açã o dramática ou na sua progressão na narrativa. No caso dos 53 "Q u e o a ta r ve n ha encher meu te x to esb uracado, d a n çar den tro" d iz Novar ina,
atares , não há nenhuma necessidade d e procurar encarnar ou o p. cit., p . 19 . R ég y afi r ma co mo réplica: "fazer cair as p al a v r a s co mo u m a
im it a r nenhuma coisa nem ninguém . N enhuma "representa- pe d ra nu m p o ço. esc u tar o eco para perceber a p r o fun d e za d o b uraco, a
abe r t ura . o a b is mo no qual o h omem e o a tar estão".
ção" é necessária. Basta que eles se remetam à escritura. Como 54 C. R ég y, op. c it ., p . 92.
55 Es tamos nu m a sines tes ia a q ua l Ba ude lai re foi um d o s p r imeiro s a q ue re r
49 Ib idem, p . 66 . in stituir no ato da c r ia ç ã o, que sesá persegu ida pelos simbo lis ta s e espec ia l-
50 Ib ide rn, p. 92. me nt e por Maet e rlirick, que Régy retoma e m a lgumas montagens.
51 Ibide m, p . 95. 56 C. R égy, op. c it. , p . 65 .
32 6 A LB M DOS LI MITES, A C E N A S O B I N V ESTI G A Ç Ã O
A TRAVES SIA DA S LIN G UAGE N S, VAL [;RE N OVA R INA E C L A U D E R ÉG Y 3 27

acon selhando os ato res a proc urar o " n ã o- fa ze r", exatanlen te lem b r a m o s anteriorm ente. O ator n o cas o a ssume u m a figura
ex p e r im e n ta n d o a impotência de conseg uir à perfeição ess e de barqueiro, um barqueiro de s ilê n c io s .
não -fazer. Também d urante os ensaios, o a to r trabalha ig u al- Foi dito frequentement e q ue o s ilên c io é um a d as c ara c-
me nte o r a le n t a m e n to dos gestos e das palavras, da respi ração terísticas recorrentes da dramaturgia contemporân ea. Todos
e d o mov im e n to . O temp o da criação é o da lentidão. De fa to, aqueles que trabalham no teatro da atualidade revel am-lhe a
o alentecer dos gestos permite lu tar cont ra o naturalis mo e a preg n â n cia extre ma nos textos. É evidente que o silêncio q ue
repres entação. E le "d es real iza" o movime nto e o br iga o ata r está em q uestão na obra de Régy não tem nada a ver co m a falta,
a sair do s e u cotidiano a té atingir u m es tado dife renciado. O a incomunicabilidade, a impossibilidade de falar ou o desejo de
ralentamento acentua por si rnesrno a presença no es paço, na se calar. Ele não se refere nem às circunstâncias nem à psicologia
d ura ç ão, nos sons, nas percepções, colocando e m s uspe nso o dos seres. T rata -se de um silênc io infi nitamente mais rico e car-
imag inário d o ator e d o espec tado r. Tal ral en t a rnen to é por- regado d e re novação, um s ilêncio d e na tureza qu a s e existenc ial
tador de um se n time n to de imateriali d ad e , imate r ialidade do que permite remo n tar rastros do in cria d o . Pois q uando o a tor
co rpo e da a t uação q ue caracte riza t ã o b e m os espe tácu los de está "fazendo silêncio" é a escuta q ue ele desenvolve: t anto a s ua
Régy. E ss e es ta do - qu e n ã o é n em êxt ase n em transe - ag u ça quanto a dos o u tros. Ele p ode então abrir-se "para a cena, ao
a p resença d o a to r q ue se to rn a , a ssi m , pal avra escr ita e fa la d a. unive r s o , a t oda s as d im e n s õ e s" para que se o uça "a a bert ura
A bre o espaço interio r e íntim o d o ator p a r a a quel e, imenso, d o da p al avra': Ao institu ir o silêncio no cen tro d a cena é qu e as
além. O ator to rn a -s e per meável a to d a s as dimens õ e s e e nche palav ras escapam d a re p resent açã o que as esp reita. Elas acabam
e n tão o tab la d o, e n t re t a n to v azio d e s u a transparência . por ser dotadas d e d ensidade . Lon ge d e ser estát ico, tal s ilê n cio
A le ntidão dos gesto s caminha paralela com a lentidão da é portador de plenitude na cena. P e rmite a forç a da c a p t ação da
elocuç ão, uma el oc u ç ã o fei ta tamb ém d e silên cio. A ssociad o palav r a c o m o também a a m p l ific a ção da pres ença e da escu ta
aos m o vim entos ralentados , o s ilê ncio de cupla as fo rças, as do ato r, para n ã o fa la r d aquel a do esp e c t a d o r.
t ro cas e ne rgét icas e pro vo c a o est a do d e co ncen t r a ç ão, o estar- Tal s ilêncio e t al r itm o ralentado facilitam, segu ndo Ré g y, a
-lá do a to r, o bse rva R é g y. O a to r d e ve a p ren der a escu tá- lo , a circula ção d o t exto e ntre os atores. Os a to res n o tab lado entã o
car regá- lo. O silêncio es tá lá p ara c o lo c a r -se co n t r a a a gitação estarã o ab ertos às forças d e atr a ção cole tiva. Os diálogos fu n-
d o a m b ie n te. Permite p erceber os detal h e s dos ges to s, aumen ta dem - s e riurna única voz, num único dis curso , transformando
o es paçov e traz à lu z as força s d e atração co le t iva do tablado. O as múltipla s pala v ra s n um conju n to . Eles se t o rnam um, "[ res -
s ilê nc io é ação cên ic a: "É durante as paradas qu e a verd a deira titui n d o ] u m m o n ólo g o , o que n ã o q uer di zer d isc u rso de uma
pl eni tud e d a escrit u ra é o uvida , caso n ão a t enhamo s oc u ltad o única p ess oa, m a s um discurso ún ico"?". A palavra n ã o é m ai s a
desde o corne ço' v": ela conduz os atores "p o u c o a pouco, a es tar de um indivíduo, mas aquela d e urn a co le t iv id a de como o era, na
m ais p erto de s i mesmos e a emitir o s s o ns a partir desse mais trag édia, a palavra d o coro que fa lava e m nome d a ci dad e. N ess a
p erto d e s i m e smo s na expec t a t iv a d e atingir, o m ai s p o ssí vel, os circ u lação d e p alav ras, que ultr apa ss a os indiv íduo s para a ti ngir
o ut ros - os espectadores - e d e sl o c ar assim o barulho p e riférico o co letivo, o espec tador tem a im p ressão d e q u e o ator fa la n ã o
no qual n ó s nos movirnentarnos'tw. Esses es p a ços de s ilên cio são em seu próprio no me , mas no n ome d e todo s . Esse con j u n to
um a das formas d e c r iar esse d e svão no seio das palavras q ue rest it u i a a c e n a unicidade, p o esia e trans c endência. E le restitui
a forç a d a escr it u r a, dramátic a e cê n ic a a o m esmo tem p o .
57 Tal imp ort ância d o e s pa ço deve se r s u b li n h a d a porque, para Rég y, assim O m esmo oco rre com as peças q ue m onta (Quelqu'un va
co m o p ara N ovar i na , a fonte comum da p alavra e d o gesto é precisamente o ven ir [Alguém Virá], de [o n Fosse, Knives in Hens , de David
e sp a ço.
58 C. Régy, o p . cit. , p . 65 .
59 Lb i d ern , p . 15.
60 Ib id e m , p . 68.
328 AL € M DOS LIMITE S: A CENA S O B I NVESTI GAÇÃO A TRAVESSIA D A S LINGUAGE NS: VALtRE NOVARINA E C LA U D E R € G Y
32 9

Harro w er, 4.48 Psychose, de Sa rah Kane, o u L a Mo rt d e Ti n tao i: exis tencial q ue carrega não apenas sobre o s textos dramatúrgicos
les [A Morte d e TintagilesJ, de M a u r ic e Maeterlinck, p ara c itar que .e s c ol h e para mon tar, po ré m, mais ainda, sobre a própria
a pe nas a lgu m a s )?', n a s frases muito si mples que faz os a tore s escntura.. E n ten de -se ig u alm ente q ue a at it u de d e R égy, longe
d izerern - f rase s que ele fr a g iliza e d ensifi ca a o m e smo tenlpo _ d e ser uru c arn e n te esté tica, é de n ature z a ontológica e origina -
e nas q uais R é g y tenta precis am ente a p lic a r esses prin cípios. É -se de urna ética de artista e de u m a ética de vida . Sua atitu de é ,
be m co n hec ida a ext re ma lent id ã o d o s esp et á culos d e Régy, paradoxalmen te, a d e urna travessia da língua , lí ng ua da qua l ele
ruas trazer à lu z tarnb érn as r a z õ e s que e xpli c am e s sas e sco- proc ura res t it uir a de nsidade e a f ragilid a de ao m e sm o te mpo.
lha s es tétic as e sclarece, para o públic o , o m .étodo d e trabalho Para. e s s a .viagem a través d os texto s e a t r avés d a lí n gua , R é g y
d o e nce n a d o r e pe r m ite compre ender no q ue tal es tética es tá d eseja a SSIm c o n d uzi r o a to r p ara uma tra v e ssia d e si própri o ,
não sorne ri te ligada d i retarrierrte a uma determinada v isão d a um a trave ssia n o deco rrer d a qu al poderá talve z co nsegui r ir ao
escr i tu ra, mas e m . qu e m edid a e mana a par ti r dela e é inclu- cen ~o d a s coisas, carregando o espec tador co ns igo.
s ive d eterminada por el a. D ado qu e R égy pro cura para além E imp ortante r e s s a lta r que esse o l har q ue R é g y d edi c a à
d a esc r it u ra o lugar d e ond e n a sce a esc r it u r a - o l ugar "d e escritura e q ue c olo c a e m p rática trabalhando s o b re a lgu ns tex -
o n de se fal a': com o o di z ele próprio - , s uas e n c e n açõ e s são to s os rna ís r epres entati v o s das form a s dram áticas d a a t ua lid a de
m arcad as por essa estét ica tão p articular que as carac ter iza. (M a rg u e r it e Duras , Jon Fo sse, Peter Handke , David Harrower,
Pois, p ara a lém das p r ó p r ias p eças, das narrativa , dos diálogos, Leos Ja n a c e k , Sarah Ka ne, G reg o r y M otton, Tom Stoppard,
é uma ve r d a d e ir a visão de es critor q ue Régy c a r r e g a cons igo. Botho Strauss ), e le o dirige paralel amente a texto s mais anti -
E sc r ever pa ra a ce na e esc rever u m a peça r e sultam d a mesma go s q ue escol heu m o n ta r ( M a u r ice Maeterlinck, especialmente,
n e c e ssidad e e b ebem n a s mesma s fo nte s . V is to que R é g y levar a mas ta m b é m Anton Tchékhov, Jean-Pau l Sartre) o u para textos
sér io a escr it u ra - e ntre palav r a e sopro, e n t re corpo e esp ír ito, emprestados d e o utras formas n ã o teatrais (especial men te a lgu ns
e n tre o rde m e d e s ordem, e n t re d ensidade e esp ir it ualidade, entre tex tos bíblic o s d o Eclesias tes t r aduzido s p o r H enri Mescho n n ic
imateriali d a de e inc ons ci e nte -, ele adota um mo do d e interpre- ou poemas d e C h a rl es R e znikoff) . É preciso q ue se dig a q ue tal
taç ão que lhe é ú nic o , baseado no s ilê nc io e na lentid ã o que às visão n ã o é própria nas e scrituras contemporâneas - esc r itu r as
vezes irrita os espectadores , mas dos quais compreende-se lo go que tendem a privilegiar u m a escritura esburacada, urn a d rama-
o sentido profu n do. Tal busca é alimentada pelo olha r q uase tu rg ia fragme ntada, uma dramaturgia d o s ilêncio, do quad ro,
longe da linearidade e m q ue a língua se insere como signo fra -
61 Pod e ría mos ta m b ém ci ta r Der R itt iibe r den Bodensee (A Cavalgada n o Lago
tu rado -, porém nelas encontra u m terreno privilegiado.
d e Co ns ta nça), de Pe ter H andke ( 197 4); D ie u nvern ünft ig en s terben aus (As
Pesso a is !rra z o á veis es tão e m V ias d e E xtin ç ã o ) , d e P e ter H and ke ( 1978); Compreender-se-á, s e g u r a m e n te, que no caso de Novariria,
T rilogie des Wieders eh ens (T r ilog ia d o A deus), d e Botho St rauss ( 1980); Gross como t amb ém no de Régy, a r ela ç ã o com a r e pre s ent a ç ã o , no
und klein (Gr a n d e e Peque no), de Bhoto St rauss ( 1982); Über di e D õrfen (Pelas
senti do fi losófico do termo, é questionada m u ito profunda-
Ci dades), d e Pe ter H and k e ( 1983); Ivanov, d e A n ton Tchékhov ( 1985); Der
Park (O Parque), de Botho Strauss (1986) ; 7hree Travellers Watch a Sunrise m ente. Seu teatro n ão pode mais r epresentar o mundo . El e s e
(Três Viaja ntes O lham um P ôr d o So l), d e Wal1ace Stevens, e Le Crirnine l (O di stanciou não somente da mimes e , mas também do próprio
C r im i n o so ) , de Leslie Ka plan (1986); Le Cerceau (O A rco) , d e V iktor Slavkine;
H uis elos (E n t re Qu at ro P aredes ) , d e Jean - P aul Sa r tre (1990); Downfall (F ra-
tea tro . Nisso, ambos s ã o rnuito herdeiro s do s ano s de 1970.
cassos), d e G rego ry Motton (199 1); Th e Ter r ible Vo ice of S a ta n ( A Terrível Sem dúvida, a a t it ude não é nova n em no domí nio da literatura
Voz d e Satã), d e G rego ry M otton (1994); Pa rol es du Sage ( Pa la v ras d o Sá bio), ne~ no do teatro. Numerosos são os poetas e escritores que
de Henr i Mesc honn ic ( 1995) ; La Mor t de Tintagiles, de Mau rice Maete rli nck
( 19 9 6 ); Holocaus to, de Charles Reznikoff ( 19 97); No k o n kjem till a komme
se inserem nesse m o vim ento a par tir d e M allarm é e Artaud,
( A lg u é m virá), de Ion Fo sse ( 19 9 9); Knives in Hens , de David H arrow e r ( 20 0 0 ); especialmente. N u me rosos são t amb é m os m ovimento s literá -
M el an ch olia ( M e la ric o lia ). de Ion Fosse, e C a r n et d 'u n d isparu (Cad e r n eta ri o s q ue colocaram essa rela ção com a língua no seio de suas
d e um Desaparecido) , de Leo s Ia n a ce k ( 200 1); 4 .48 Psy chose , d e Sarah Kane
( 200 2); Variation s s u r la mort ( Va r iaçõ es so b re a Morte ), de [ori Fosse ( 20 0 3).
pr e o cup a ç õ e s. O q ue é novo, ao co n trário, ta n to n o caso d e
3 30 A LIÔM D O S LIMITE S: A CENA SO B I NV ESTI G A Ç A O

Régy q ua nto n o de Novarina, é a fo rça dada à palavra car re gad a


por urn corpo q ue o atar trabalh a para esvaziar de s u as escórias.
" É no lu ga r d o va i e ve m do co r po na p alavra"?' que re side , para
Novar ina, o trabalho esse nc ia l do texto . R é g y pode r ia dizer
outro tanto, por ém, mais p rofundamen te no seu caso, é a n tes
de tudo para o trabalho de de nsificação e d e frag il ização d a
líng ua q ue e le orien ta to dos os esfo rços d o ata r. O trab al h o
deste ú lt imo n ã o re sulta d o exe rcício b anal d a si rnp les e n ce n a-
ção de um t exto , ele to c a n o s fu rrda rrie rrtos d a escr it u ra e nas
fontes da p al avr a e, exatarrien te iss o, nos a rca nos do s ujeit o. É
urn perc u rso, se não espirit ual, pelo m eno s exis te n c ial, que um
e o u t ro proc u ram instituir. Tan to um quanto o o u t ro tentam
ir às fonte s d o in criado ; daq u ilo que você é , daquilo que não é
ai n da e que pro vavelm ente nun ca será . A m b os colo cam u m a
qu estã o co m u m , fund am ental e que c im e n t a o c o n j u n t o da sua
o bra e d e s ua atitude : d e o n d e ve m o que s e fa la?
Parte V
Há qualq ue r cois a d e p re s ente , d e ausente e d e furt ivo e m nós.
C o m o se car regássemos a m a rc a d o des conhecido [ ... ] h á um o ut ro
e m m i m , que n ã o é v ocê, q ue n ã o é ninguém . Quando fa lamos , h á na
n o ss a p al avra um e xílio , um a s eparação para conosco mesmos [ . .. ]
o Interculturalismo Ainda
Fa la r é urna ci são d e s i m e sm o , um d om , um corne ço. v- Possui u m Sentido?
A a p roxim açã o entre R égy e Novari na para aí. Se Novarina
procura restab el ecer a primitiva ligação entre a palavra e o corpo,
um co r p o - p a lavr a e urna palavra -corpo, Régy tenta , espetácu lo
a pós espetác u lo, ir mais longe ao tentar criar uma s im b io s e entre
pensamento, corpo, espaço, texto e voz. Porém, tanto num caso
co m o no outro, observa-se bem uma b usca do a b soluto da palavr a
e m conexão com o dize r. Criar o desvão n o centro d as palavras,
faze r o u vir a abertura n o centro das coisas e, para além daq u ilo
que se o uve n a cena, fa zer o uvir urria outra cena. A missão é quase
im possível tanto para um quanto para outro. N ess a captação da
palavra , nesse a to cor aj o s o de di z er onde o atar se esquece de si
m esmo , es p ect ad o re s e atares são convidados a fazer uma travessia
das linguag ens e a transpor-se para além.

Trad.NaciFerna n d~

62 V. Nova r ina , o p. c it., p . 30 .


63 Apud Ivan Darrau lt -H arri s, f?e vant la p arole, p . 134 -135 .
1. Linguagem e Ap rop riação :

co m o re in t e rp re t a r Shakespeare no
Quebec, o e x e m p lo d e Robert Lepage l

Embora, faz uma década, a noção de interculturalismo esteja d e


certa forma em voga na América do Norte e ocupe no discurso
crítico o lugar que ainda ocupava há b em pouco o di scurs o so b re
o p ós-rnoder'nisrno ou sobre a d e sc onstruçã o , a in da assim, e la
reflete as t ran sformações profundas que afetarn n ã o apen a s
nossos modos d e p ensar e d e c r ia r, m a s nossa man eira d e v iv e r
no interior de uma c u lt ura específica , de várias cultu ras, n o
cru zamento d a s culruras-. Longe d e se r um fenômeno estético
ou um s im p les e fe ito d a m oda , o interculturalism o tornou-s e ,
acima d e tudo , um fenômeno social qu e n o s a fe ta a to dos, q u er
nos submetamos a ele, quer o assumamos seg u n d o os contexto s
nos q uais avançamos.
Portanto, deter-se no interculturalismo den tro d o s d orn í -

nio s do te a tro é e s c olher isolar, n o s e io d e s s e fe nô me no


planetário que faz fronteira c o m todo s os se to res da socieda de,
as mudanças que imprimem se u s efeitos sobre a prática teatral.
Entretanto , a o fazê-lo , é necessário lembrar : toda an álise s o b re
o teatro n ão pode - nem d eve - s e r isolada d o conj u n to d a s
1 Public ado e m French R ev iew, Sa n ta Ba rbara. v. 7 1, n . 6 . M a y 1998.
2 Para rem eter a um títu lo de P atr ice Pa vi s, O Teatro no C ruza m en to de C u lt u ras.
Sã o Paulo: Pers p e ctiv a . 200 8 .
ALf.M DOS LI MI T ES: O I N T E RC U LT U RA Ll SM O . . . LI NG UA GE M E APROPRIAÇ Ã O 33 5
334

m u d a nças q u e afetarn a sociedade . A a ná lise re mete necessa- É co m esse espírito que esco lhemos discutir três formas d e
r ia m e n te a is so, de s tac a ndo q ue ela p ró p r ia se i n s c reve n e sse prá ti c a s interc u lt urais no Q uebec: as de Michel Ga r nea u, d e
co n text o m ai s vas to que co m p ree n d e n o s sa é po c a p a r a a lé m Jea n - P ie r r e Ronfard e de Robert L epage , b em co mo ana lisa r
das s o c ie d a des . Ass im se n do, e la a t in ge o " rnac rossocial" sua n atu r e z a à luz de ce rto refere n cial teó rico empres t a do, ao
Nou t ro extremo, pensar o inte rc u lt uralismo exige igual m ente m e smo ternpo, dos conce itos interc u lt ura is e das teori as d a
d o s uje ito um tra b alho sobre s i p róprio n a med ida e m q ue a q ues- co n1un icação.
t ã o fo rça n e c es sar ia m ente quem possui um discu rso crítico a se S e h á uma n a ç ã o o n de a p robl emát ic a intercult ural e lin -
p o si ci ona r sob re o tabu le iro de xad rez d a s c u lt uras. O exercí cio o g u ística se m p r e es teve p r es ente, é cer ta m en te o Quebec e, cl aro ,
o b r iga involu n taria mente a retra çar s u a p rópria h istória , a tornar o C a n a dá. Pát r ia de imig r a ç ã o , te r ra d e a s ilo dito volu n tá r io.
claras s uas pró pr ias fil ia çõ es , a a n a lis a r seus a n c o radouro s para Muit o pró x imo d o s E st a d os U n ido s e, n o e n t a n to, m u ito dife -
m elhor lo c a li z a r a si p ró p rio e o e nco n t ro p ossível co m o o ut ro ; rent e , o C a n a d á se m p re p romove u a "s oc ie d a de das c u lt u r a s"
isto é , p ara lanç a r luze s s obre seu p róprio c o n texto d e a n álise e ao es boça r, no d e cu rs o d o s a nos, p olít ic a s encarregadas d e s u a
c r ia çã o. Aqui, n ós a ti ngimo s o "m icrossocia l". prom oçã o . P rog ressiva men te, os v o c á b u los e vo lu ír a m. A no çã o
A p a ssage m d o m.acrossoc ial a o m ic r o ss o c ial, que p ermite d e "s o c ied a d e d a s c u lt u ra s" cedeu lu g a r à d e "m u lt ic u ltu r alis m o"
a reflexão sob r e o interculturali smo, é s ua grande rique za em que os p olític os preferiam - aind a a té h á pouco t e m p o - porque
relação à n o çã o anterior e p o liticame n te mais limitada, a q u ela do ela fa z ia um c h a m a d o , um c h a m a d o à v arie d a de d e etnias e
multiculturalismo, a qual fo i p reponderante nos discurso s p olíti- c u ltu ras que lhe são con t íg u as, p ara formar o m o s aico cultural
c o s e governamentais, a que insistia s o b re a justaposição p acífica de que falam os t exto s governamentais , um mosaico em que as
das culturas e não sobre sua dinâmica de absorção recíproca. co is as se justapõem sem se integrar de verdade. Hoje, é a noção
No d omínio propriamente do teatro, o interesse prin cipal de interculturalismo que a assume, mais vasta, que s u b li n h a a
da noção de ín t e r c u l t u r a lis m o, cuja incidência sobre a repre- necessidade de uma dinâmica interior de troca entre as culturas.
s entação t eatral tanto c o m o sobre as técnicas de atuação e s obre A práti ca artísti ca no Quebec é , ela mesma, um reflexo
• o texto >, que alguns analisaram e m detalhe , é o fato d e q ue dessa pluralidad e d e culturas, visto que h á um certo número
ela no s força - n ó s , espectadore s e analistas do fenômeno t ea- d e p r átic a s p lu r ic u lt u r a is que s ã o r e sultado de grupo s étnicos
t ral - a r einterrogar nossa posição n a história, assim c omo a específi c o s ( g r e go, h aitian o , português , v ie t n a m it a, latino -
da obra a r t íst ica es t u d a d a, a r e -historici zar o a contecim ento -a me r icano, italian o ) , o u que integram v á r ia s c u ltu r as, raças e
teatral a partir d o lugar em que ele se inscreve, a c o n t extuali za r co res no se io d e um m esmo grupo (C a r bone 14, Théâtre Repere
a obra a partir do modo por meio do qual ela integra a s temá - e Robert Le p a g e, Pigeon International, Omnibus , Arts Exilio
ticas ou as práticas artísticas de outras culturas, a reinterrogar au théâtre) .
n o s sa rela ç ã o co m o outro. E ssa noção traz e m seu cer ne as No entanto, é preciso lembrar que , a cada vez que esse mul -
questões a ssociada s à tomada d e e m p rés tim os, a textos literá- ticulturalismo fa z im p o r t ações, responde um multiculturalismo
r ios que passam d e uma c u ltu r a para a o u t r a e , e m particular, à interno constitutivo d a identidade canadens e, uma vez que o país
questão d a língua na qual as transferências acontecem, c r u ci al, conta com d ois grup o s linguísticos: o francês e o inglês. As rela-
é ó b v io , numa nação como o Quebec. ções e n t re um e outro nem sem p r e são harmoniosas, mas uma
tolerância recíproca, às vezes forçada , os leva a coexistir -. Falar
3 R u s to m Bha ru ch a , Th eatre an d th e W o rld , N cw Yo rk: Ro u tledg e , 1993; P. de multiculturalismo n o Quebec é despertar seu lado sombrio.
Pavis , o p. c i t. ; E d war d Saíd , Orie n ta lis m, New Yo r k: Pa ntheon, 19 7 8 ; Ric h ard
Schech ner, Essays on Performance Theory, New Yo rk: D r am a Book Specialists,
1977. Ve r t am b é m os a r tigos de Dary l Chi n, Una Chaud uri e Diana Taylor 4 Aos doi s grupos, cuja identidade ling uística se suste nta sobre uma identidade
em Bonn ie M a r r an ca; Gauta m D a sgupta . In tercu ltu ra lis m and Performa nce, cu lt u ra l, acresce n ta -se u ma te rce ira cu lt ura: a a meríndia . única tensão a u tê n-
New Yo rk: PA I P ublicat io n s, 19 91. tica, g era lm ente esqueci da no con t ine nte.
3 36 AL I'.M D O S LI MIT ES : O I NT E RC U LT U RALl SM O .. . LI N G U AGEM E A P RO P R IAÇ Ã O
337

Por tan to, é s obre a problem ática multi cultural e interc u lt u ral n a medida e rn que ele sobreveio em traduções e que estas são
co mplexa, in de fec t ivel me n te ligada a o s problema s d a lí ngu a , q ue freq uentemente realizadas na França, donde a necessidade de
se ins c r eve a prática do teatro e , de modo mais esp e cífico, o p ro- retraduz ir os te x to s no Q ue bec, de reter r itori a lizar o au tor e
ble ma prop o sto pela le it u r a d e o bras d e Sh a kespea re n o Q u e b ec. a ssim o faze ndo, retomar posse da lite r a t u r a". '
É co m p le tame n t e inútil le rn brar aqui o quant o a dec u p a - Foi o que fez Michel G a r n e a u , um dos primeiros a tentar com
g e m d o rea l e a a r t ic u la ção do p ensamento são profundam e n te s u a tra d ução de l\Ilacbe th para o qu éb écois", publicada em 19 7 8 .
d ete rminados pel a s pal avras que utili zamos. É em t or n o de uma Sem fa la r no gesto político que o texto representav a à época, é
língua q ue s e o pe ra a integraç ão d e o u t r as culturas , é a t r a vés eviden te q ue a t r a duç ã o de Nlacbeth para o qu éb écois trazia um
d o bia s d a integração das o u tras lí n gua s n a sua p róp r ia c u ltu r a p aladar mais sh a k e s p e aria n o para o texto , d e um rn o d o que n ã o
qu e s e o p e ra, p or s ua v e z, um c e r t o i ntercu lturalisrn o s. fa zi a , por exem p lo, a trad ução an te r ior d e F rançois -Marie H ugo
Ora , o Queb e c se e s forç a e m vão, e le s ó continua a e xisti r n a ou, m ais pró xim a de nós, a d e Yves Bon nefoy.
m edida e m q ue a língua q ue se fa la é o fra ncês, apesar de to dos os
quebequismos e particular idades locais. A língua impregna tudo BANQUO : O n es t encôre ben é loég nés dno tar r iv ée .
e forç a uma a p reensão particular do mundo . Esp e c ific a men te , se Oh , qu e cest q ui s urgi t là!
h á um d omí n io o n d e a líng u a é fun damental, de cer to, é aqu ele Tout v íe íll'z.ís, tout entortillés da n s une confu sion
D 'artifai lles a bom ina b les . . . Y-z-on t l'aparcevan c e d ê te
da o b ra lit erária e, particularmente aqui , o da ob ra dramatúrgica.
E tra n g es à terre .. . p our tant son t v is ib el me n t présents.
Ora, para todo quebequense q u e se s a ib a , é impossível ignorar os
E tes-vo us d es corps humains e n v ie ou b en d es cadâbes ?
grandes m odel o s d a h istória: Molie re, R acine , Beckett , Ionesco , Avez -vo u s co m me qui dira't e u n e p arl ure quon p ourras e n te n de?
G e net, p a ra c ita r ap en a s a lguns que esc reveram e m língua fra n - Vo us m 'a ve z l'ai r de com p re n d e de quoé cest que j'dis .
cesa. Em consequê ncia de o a r tista d e t e atro ressentir-se de uma Rg ârd . . . Aveuc le u s d oigts tout eilichés, ca s' to uch e les leuves
a lie nação face a esses t e xto s muito distan tes d e seu falar coti- C hac u n son touro
Vous avez quasiment l'air dête des c ré a t u res,
d iano, é qu e os a n os d e 1970 p rOInovera m a rejeição a todo s esses
S i que vous avi e z pas d 'barbes, j'e n s'r as pluss e ca r ta in. ( 1,3,20 -2 1)
modelos tão dist a nte s q ue tendiam a eliminar a identidade lo cal.
Nos anos de 1990, retornou-se bastante a essa re c u s a s iste m á-
O modo de s e reapropriar dos textos pelo bias d a língua é
ti ca e vár ios en c enado r e s quebe quens es - d e Je an Asselin a Alice
o p rimeiro degra u d e s s e interc ulturalismo lite r á rio q ue Bonnie
Ronfard, passando por René-Richard Cyr, Yves D esgagnés, R o bert
Marranca c hamav a d e s u as oferendas e m se u li vro Intercult u -
Lepage, Gilles Maheu, Denis Marleau , Lorraine Pintal - mon tam
ralismo e Perforrnan cer. Trata - s e de urna prim eira form a d e
hoje em d ia textos ant igos e con temporâneos s e m se e n r e d a r nos
p rob lemas da língua . Is s o não impediu q ue Shakespeare ti v esse 6 Para m a is d etal h e s sobre a questão da tr adução de tex to s d ramáticos no Quebec,
proposto no passado - e coloque ainda h o j e - algum prob le m a nós re ferimo s ao estudo bem interessante fe ito por Annie Brisset em seu Socio-
critique de la trad u ction: Th éâtre et al te rité au Québec (1968-1988), Longueuil: Le
Pr éarnbule , 1990, assi m como ao n úmero d o s Ca h iers d e th é âtre lE U, 56 , 1990,
5 "D' u rie faço n g érr éra le, c'est le lang a g e q u i d orm e acces à la cul t u re, e t e n d ed ic a d o ao te a tro .
p art ic ulier aux identit é s culture lles d ífféren tes d e la n ôtre, Corr cr êternent, il est Em p o rt u g u ê s não h á equival ente ao termo québ éco is p ara nomear o idioma,
b ien clai r que dans le rapport à la c u lt u re de l'Aut re, le p r e mí e r obstacle au q u el por iss o , prefe rimos m anter a expressão. (N. da T.)
o n se heu r t e , cest l'obstacle d e la langue , Iobstacle d e s langue s (au plur íel ) . To ut 7 " Tha t i n terc u lt ura l wri t i ngs h a v e n ot made a m ore s u bs tantial a lte m p t to
co m me nce p ar là: ces t la p ar tie visibl e d e l' íc e b e rg " (De um m odo geral , é a bri n g into the di s c o u r s e th e d ifficult q uestions of d r a m aturg y, o r to exp lore
li n g u a g em q u e m d á acesso à cu lt u ra e , e m par t ic u lar, às id ent idade s c u ltu rais t h eir own literary ambig ui ty, is regrettab le, especia lly since in terculturalism
dife ren tes d a n o ss a. Co ncretamente, é claro q ue em rel a ç ã o à cul tu ra do Outro, can b e understood more broadly a s a form of in tertextualism" (Que escritos
o p r imeiro obstác u lo co m o q ual n o s d e b a temo s é o da lín gu a , o obstácu lo das in te r cultura is n ã o te nha m feito u m a ten tativ a mais s u b s t a n ci a l d e tra ze r p a r a
lí n gu a s (no plu r al ). Tu do começa aí : é a pon ta d o iceberg), n o s di z Iea ri- Ren é o interior do di sc urso as questões dtfíceis da dram aturg ia , ou e xp lorar su a
Ladrn ral, Edmo n d Marc Lipian sky, La C o rnrn u nication intercu lt urelle , Pa ris :
í
própria ambigu idade lit erária , é lamentável , e specialm ente, desde que o inter-
Armand C o li n , 1989, p . 21. c u lt u ra lis mo pass ou a se r entendido m ai s arnpl arnenre co mo uma form a d e
33 8 ALÉ M DOS LI M IT E S: O I N T E RC U LT U R A Ll S M O .. . LI N G U A G E M E APRO PRIAÇÃO 33 9

importação e adapta ç ão de u m texto "estran gei ro" e m uma Assim, a ten tativa de a propriação lingu ís t ic a d o t ex to de
c u lt u r a e uma língua loc ai s. É claro que Shake spe are ultrapassa Shakes peare te ve , e m s u a o r ige m, o objetivo p rincipal de afi r-
as espe cificidades regionais e mesmo nacionais e q ue el e é, m ais m ar a identidade d e uma língua - o q uébéco is - (e e m s eg u id a
que n enhum outro , u m autor u niversal, po rém s ó permanece de uma " p á t r ia" ) que p oderia critic ar o s grandes textos e fazer -
»>:
a ss im n a m edida e m q ue a es co lh a da língua d e ap re s e ntação -Ih es justiça. Po r t a n to, o res u ltado imediato foi a aprop riação de
não é in d ife re nte. u m texto clássico q ue s e enriqu ece u com o ap orte li n g u ístic o .
Essa fo rma de t r a d uçã o- a d a p taçã o " d e t e xto s d ifere n t es E n t re t a n t o , ao montar Macb eth e m 1992 n a Inglaterra e na
daqueles que sobressaem d e deter m ina da c u lt u r a - aqu i, a F r a n ç a, c o m a mesma tradução d e Garneau, Robert L epage
queb equense - imp ôs - s e n o s lt irnos vin te anos c omo uma
ú
tinha um objetivo totalmente diferente, o co n tex to hi stórico
necessidade , porque e la faz fron te ira com a afirmação de uma en t ã o havia mudado. C o m e fe it o, para Lepag e , não se tratava , d e
identidade lo c a l. Ora, esta passa necessariame nte pela língua. maneira ne nhuma, d e fazer uma d eclaração p olítica s e melhan te
O pro b le rna aumenta porqu e no Q uebec a lí n g u a n ão con- àquela de Garneau alguns anos antes. Ao retomar a trad ução
s is te propr ia m e rr t e ern falar o francês ta l como praticado na de Gar neau, Lepage proc urava reencontrar a a spereza do inglês
Fran ça, na Bélgica o u em qualque r o u t ro p a ís francófo no. As d o o r igi nal. Ass im, ele agia ape nas p o r fidelidade ao t exto e
b ases d a s d uas língua s são d e c e rto idêntic a s cria n do aparen te- n ã o ma is co m u m a p r e o cupa ç ã o d e afirmação identitária. A
rnerite u m fenô m eno de reco n h ecimen to que se presta às vezes lín gu a tor nava-se u m meio, u m veícu lo para melhor fazer o
à ilus ã o , mas, de m odo geral, o resu ltado d e superfície, aquele da espec tado r entrar no u niverso s hakespeariano, para mel hor
lí n gua fal ada coti d ia n a men te, é b em d iverso, id iomático, dando a restituir a lg u ma coisa d a ve rdade d o t exto . A p r e o cupa ç ã o era
impre ss ã o d e o u tra língua. É que a língua falad a n o Quebec pos- puramente estétic a, a r tíst ic a e Shake spe are foi b em retribu ído .
su i n u merosas estru tu ras s in táticas e lexicais que lhe são p róp r ias, N esse s e n t id o, cabe o b ser var qu e o Macbeth d e L epa g e foi
acrescidas d e u m sotaq ue - o u sotaques totalme nte específico s. m u ito b em receb ido n a I nglate r ra e n a F rança, onde os críticos
Se acrescen tarmos a t u do iss o o fato d e que essa lí ngua é, e m d estaca ra m a rique za da língua e a sensuali dade d o s corpos. Em
g ra n de par te, p opu la r, com p ree n de rerllos a co m p lexidade do com p e nsação, el e foi re c ebido com fr ieza no Q uebec p o r cau sa
problema que s e c o loca a todo art is t a que d es ej a tr a d uz ir para o d a interpretaç ão d o s a t ore s , julgada insuficiente. Fato in teres -
q uébéco is um t exto advindo d e uma outra c u ltu r a . s a n te foi a língua utili z ada - m uito pró xim a e , no e n ta n to,
As sol uções t amb ém s ão va riadas, segu n do as é pocas e diferente d o québ écois (essa língu a , com efeito, n ã o existe como
a evolução d o prob le ma identi t ári o d o Quebe c; a tradução - tal, co m u m voca b u lário e uma s in taxe d e fi nido s ) - , q ue d e s a -
-adaptação de Garneau p ara Macbeth em québ écois (le m b ro g radou p orque e la n ã o permitia, em r a z ã o de s ua p roximidade
q ue estávamos em 1978) rep resen to u um a d ata imp o rtant e na d o québ écoi s, a distânc ia c rítica q ue os espectado res n a França
afi r mação d e s s a língua e d ess a identidade". co ns ide ra ram t ã o s uges tiva , por tanto, a língua não operou
como m e io d e sed ução.
D e fa to, a escolha da língua n o Macbeth d e Lepage advém
intertextu alismo ", ver Bonnie Marranc a; G a u ta m Dasgupta, lnterculturalism
d a m e sma pre o cupaç ã o m anife s t ada p o r A r iane Mnouchkine
and Pe rfo r man ce, New York: PAI Publications , 1991, p . 18 -19· Essa oposição
entre o q ue pode ríamos ch a m a r um intercu lturalism o literári o (o u drama- quando el a reco r re u à estét ica d o te at ro n ô e d o k abuki p a r a
túrgi co) e um interc ulturalismo pe rformati vo ou cé n ico está ce r ta m e n te no m ontar seus próprio s Shakespeares. Ao insp irar-se e m t éc n ica s
ce n t ro d a problemátic a qu e n o s interess a aqui.
8 Para m a is d et alhes so b re a quest ã o d a traduç ã o , ve r l. -R. La d m i ra l; E.M .
d e in terpretação pertencen tes a u m a c u ltura e uma t r a d içã o tea -
Líp ía n sky, o p. c it .; a ssi m c o m o A nn ie B ri sset, So ci o critiqu e d e la tr adu ct ion- tral d ist in t a s '0, Mnouchkine e ntendia isso como o meio de fa zer
Briss e t afi r m a qu e a t raduçã o to r n o u -se maté ria p ara esc r it u ra.
9 No m esm o s e n t ido, Ga r nea u re a liza r á um Ci d mag an é a bo rd a n do, desta vez, 10 As tradi ç õ e s asiát ic a s p are cem p ara IVl no u c h k in e as úni c as ve rdade iras n o
a li te rat ura fran cesa . cam po d o te at r o . C f. On n'inve n te p lu s d e thé o ri e s du jeu dans le d om ai n e
340 ALlÔM DOS LIM ITES: O INTERCULTURALlSMO .. LINGUAGEM E APROPRI A ÇÃO 34 1

compreender e ver Shakespeare d e m odo diferente , reti ran d o- lhe sua s traduç õ e s , mui to poét icas, não poss uenl quase nenhum
de re p rese n ta ções tradi cionai s às quais e le fora s ubmet ido. Ao q uebeq u ismo; co m mui to t rabalho, pe rcebe-se algumas singu-
c r ia r al gum efeito d e di stanciam ento, ela forçav a o espect a d o r a laridade s d e uma língua q ue pe r manece mu ito b el a para ouvi r,
o lha r d e o u t ro m odo. Havi a aí o d e sejo d e re stituir ce rta pureza p o r exe rnp lo, em Co riola no:
ao tex to , d e renovar a esc u ta d o público. Portanto, lo nge de ser
p olític o , o e m p résti mo foi puramente estético, p ara o ben e fíc io C O M ÍN IO : E le trata o melhor butim
exclusivo do texto, da representação e do espectador". Co mo se fosse u m a isca
Long e de fazê -lo com outra cultura como o fa z M ri o u c h . Ele é mais mesqu in h o que a m iséria
Qu ando se trata d e se r p ago
kine , é paradoxalmente ao emprestar de s u a própria língua que
E c o ns ide ra que seus a tos
G arneau e Lepage se reap ropr iarn do texto de Shakespeare. São s u a úni ca re comp ens a . ( II, 2)'3
Mas, em ambos os casos, o efeito visado e obtido é totalmente
diverso, para não dizer contraditório. Para Garneau, o uso do A história do Quebec se n d o novamente alterada , a rel ação
québécois permite reapropr iar-se de Shakespeare desalienando c o m a própria língua também rrruda.
o públi c o de um francês normativo no qual este último não se Por sua vez, Jean-Pi erre Ronfard v a i se estender mais n essa
reconhecia à é p o c a. Portanto, há algum efeito de aproximação.
refl exão. Apareceu em 19 79 c o m o desejo de levar adiante um
Para Lepage, contudo, a língua não permite aproximar o projeto intitulado "Shakespeare Folies, un théâtre de variétés
texto do público, mas, ao contrário, distanciar-se para melhor peuplé de personnages shakespeariens" (Folias de Shakespeare,
apreender o que pode ser a língua de Shakespeare em sua época.
um teatro de variedades povoado de personagens shakespea-
Se acrescentarmos a isso o fato de que seu Macbeth foi inicial-
rianas), que Ronfard finaliza em 1981 ao criar uma obra que ele
mente apresentado para um público francês antes de sê-lo aos vai intitular Vie et mort du roi boiteux (Vida e Morte do Rei
quebequenses, compreende-se por que a recepção em ambos os
Manco), vasto panoraJna shakespeariano no qual se encontra
lados do Atlântico só poderia ser bem diferente. Aqui, a contextua-
o enredo de Ricardo III e de H enriqu e IV, acrescido de excer-
lização é capital para melhor compreender e analisar não apenas
tos de Hamlet e Rei Lear, aos quais se acrescentam num erosos
as intenções do artista, mas também as reações do público" .
excertos, citações e acenos a toda a literatura: de Racine à Bíblia,
É ainda mais interessante constatar que, dez anos mais
de Brecht a Aristóteles, de Anouilh a Trernblay, Toda a litera-
tarde, quando Garneau publica as traduções de Coriolano (enco-
tura está aí de modo que cada um seja capaz de possuí-la: e m
mendada pela Ecole Nationale de Théâtre) e de A Tempestade,
parcelas, povoada de imagens, de estereótipos, de mito s , de
lembranças de leituras, de tiradas aprendidas anteriormente. As
du th éátre, C a h ie rs du th éâtre [eu , n . 5 2 , 1989, p . 7 - 14. Publi c ad o numa ve rsão
ingl e sa em The Drama Re view, n . 124. 1989, p . 88-9 7. C f. t amb ém 1. Feral, personagens mitológicas coexistem com aquelas que realmente
R encontres a vec Ariane Mn ouchkin e: Dresser un monument à l éph ém êre, Paris: viveram: Mata Hari ao lado de Joanna D'Arc, Moisés e Einstein,
XYZ; Montréal: Éditions Th éãtral e s, 199 5. Ricardo III com Francis co I .
11 É d a m e sma preocupação que advêm o s empréstimos de d anças indianas feitas
e m Os Àtridas, a preocupaçã o d e Mnouchkine e do Théâtre du So leil foi d e en con - O prólogo dá o tom:
trar um modo de apres entar o s coros hoje, redescobrindo-lhes alguma coisa da
impress ão que eles deveriam dar à é p oca de Ésquilo e Eurípides. Entra a horda humana [ . .. ] composta de uma quinzena d e p erso -
12 É exa t a m e n t e o que enfatiz ava Mikhail Bakhtin ao a fi r mar qu e "o centro
nagens heteróclitas entre as quais há obrigatoriamente um monge cego
nerv o s o d e toda enunciaçã o . d e toda e x p r e ss ã o não é interi or. m a s exterior;
e le está s ituado n o m ei o soc ia l qu e c erca o indivíduo". ver Le Ma rxisme et
e possivelmente uma gueixa japonesa, uma mendiga da rua Saint-Denis,
la philo sophie d u langag e: Essa is d'a p p lica ti o n d e la m éth ode socio logiq ue en
li ng uisriqu e , Pa ris : M in u it , 19 7 7. p . 13 4. Po r ta n to, é e x at am e nte a socieda d e 13 " C o rn rn in ius : II traite le m eilleu r Du t in I co m me si c 'é tait de la boue tte I ii est
re c eptora que co lo re o s en t ido de u m a traduç ã o . É o q ue d iz também B ri ss et plus c h ic he q ue la m is ere II quan d ii s'agit d 'ê t re p a yé I e t conside re que ses
q uan do afirma qu e a traduç ã o opera n o di scurs o socia l. ver o p. cit., p . 252. actes I so n t sa seu le r écornpe n s e"
342 A LÉ M DO S LIMITES : O I N T E R C ULT U R ALI SM O ... LI N G U AG E M E A P RO P RIAÇÃO 3 43

um lenh ador queb equense, um escocês, um ha re krishna, u m a dama RI C A R D O: A n n ie , e u e s to u na rnerd a .


distinta , um homem -rã , u m gerente d e banco com sua maleta, um ANA : E nfi m! Iss o d e ve a conte c er co m você , c o m o a to d o rnu n d o ,
travesti , uma banhista, urna vegetariana, u ma enfermeira, um a ge n te de Envelhece s, m anco, a penas isso.
seg u r a nça , um. guerreiro rorrr arro, uma da ma da Idade Média com se u R I CA R DO : N ão rne a m o le, estou e m c aco s."

h en nin , um m arquês do século X V II, Rob e sp ierre, o aiatolá Khomein i,


Golda 1'vlei r, um c os m o n a u t a , um á r a b e , o Apo lo d e Belvedere, .!vIana Para es t a releitura bem pessoal dos clássicos, R onfard a cres-
Lisa o u A Liberdade Gu iando o Povo, de Delacroix, a lg umas cr ianças, centa uma ficção c r ia d a a partir de todas as peças, im p o r ta n d o
alg uns a ni m a is do rn ést icos.':'
para a vida de u m pequeno bairro de Montreal - o bairro do
Arsen a l - as luta s fratricidas e reais q ue opõem os clãs na obra d e
C o m o e m Shakespeare , e o u tros tan tos, a cena d o teat r o é o
Shakespeare. Aqui, é a genealogia dos Ragone que afronta aquela
m undo e as personagen s v iajam d e u ma cena à outr a : d o Azer bai -
dos Roberge em combates s a n g r e n to s, e m combates de r ua que
jão ao topo do Mon te A rarat; d o d ese rto nas planícies d o Cáucaso;
dife re m p ouc o d a q u el e s d as cortes. Atrás do R e i Manco, há todo
d o s cam pos d e batalha d e Varincourt aos quintais d o b airro d e
um m u n d o que se perfila: R icardo II, certamen te, m a s também
Arsenal o u ao Café Spartacus; d o j a rdim do rei Ri c ardo a o
H amlet e N e ro. A trás de Catari na Ragone, es tão ao m esm o tempo
topo do Emp ire State Building ; d as p ro fund e z a s d a A mazôn ia
Catarina II e Catarina de Médic is, mas também Agripina o u a
a Samarka n d .
mãe d e Hamlet. P a ssando de u m a a o u tra, o d iálogo permite ao
Os n íveis d e linguagem s e s uce d e m e o t exto p a ssa, se m
espec tado r v iaj a r e m to dos esses un iv ers o s sem dis c ri min a ç ão .
t r a nsição , d o dis curs o da corte ao dis curso da rua, da lingua-
gem polida à popular, da li n g u ag e m da tragédia àquela da farsa. CATA R INA: A p roxi me-se Nero, e tomai vosso lugar
É tempo que e n t re n ó s a luz se fa ç a
A C idade do R ei Manco, 6 2 d ia, 7- Eu ign o ro d e qual crime puderam m e calu n iar
De todos aquel es que e u come t i, e u irei vos esclarecer [ . .. ]
AN A : O M aj e stade , vós m e s u r p r een de is e m minhas o c u pações R ICA R DO : O lhai es ta pintura. Ve de que g raça respira sob re esse rosto!
d omé stic a s! D e s culpai -me . Não sei c o mo r e c onh e c er a g r a n de A f ron te d e Jú pi ter e m p e ss o a ! É a face d e m eu pai, F rancisco
h on r a que m e fazeis [ . . . ] Primeiro. Vosso marido (ele prende o medalhão d o p es co ç o de
RI C AR D O : Con dessa. N ã o vos p erturbai. Não sede e m o t iva a ess e Catar ina). E ago ra o lhai p ara este, o a ma n te que to m ou seu lugar:
p onto. um h orror! Vó s poderíe is a pagar a lembr anç a d esse á pice esplê n -
ANA : E u s o u, Majes tade . P ens ai, e n tão. O r ei R icardo , me u r ei! dido p ara c hafurda rdes n e sse lafue iro [... ] (7° d ia , 13),6
Neste lu gar! S u bitame n te ! Às o nze h oras d a m anhã, e nquan to eu
p reparo a comi da ! U ma sala d a d a estação c om e rvas m edicina is,
15 La C ité du Roi boiteux , VI eme j o u r n é e , 7.
seg u n do o s preceito s vegetariano s d o h erborista da co rte. E vó s, ANNfE: O Majesté , vo us m e su rpre n ez d ans m es occupations m énag êresl Excusez-
sir, e m t oda vossa g lória, em v o ss o g ra n d e traje s o lene, c om a m o i. Ie n e sais comment re con n ait re le grand honneu r que vous me faite s [.. .].
c oroa e o cet r a ! [ .. . ] R I CHARD: Com tesse, n e vous trouble z pas. Ne soyez pas ém ue à c e pomt.
ANNfE: [e le suis, Majesté. Pens ez -d onc. Le roi Richard, mon roi! Dans ce lieu!

14 "En tre la horde humai ne [ . . . ] composée d 'u ri e q ui nzaine de p ersonnages A l'i m p ro v iste ! à o n z e he u res d u matin , p endant q ue je prépare le manger !
h étéroclites parmi lesquels ii ya obligatoirement u n moine aveugle et possib le- Une s a la d e de s a is o n aux simple s des bois, se lon les préceptes végétariens d e
ment une geisha japonaise, u n e clocharde de la rue Saint-Denis, u n b üc h eron I' herboriste de la co uroEt vo u s . Sire , dans to u te votre g loi re, dan s v otre g r a n d
q u éb écoís, u n Ecossa ís , u n h arikris h n a , un e d a m e d is ti nguée, un hornrne- cos tume d 'a p parat, avec la cou ron ne e t le sceptre ![ .. . ]
gre nou ille, un géra n t de banque avec son suir-case, un trav e sti, une baigneuse , R I CHARD: A n nie, je s uis d a n s la mer de.

un e végétarien ne, u n e garde -malade, u n agent de sécu rité, un guerrier romain, ANN IE: E nfi n ! Ça devait t'arriver comme à tout le monde. T u vieilli s, le bo úi -

une dame du moyen-âge avec son h e n n in , un marquis du XVIIeme sie cle, t e ux, cest toute .
Rob e spierre , I'Ayatollah K hom einy, Gold a Meir, un c os mon a u te, un Arabe, R I CHARD : Bouscu le-moi pas, j e suis e n morceaux.

I'A p ollon du B el véd ére , Mon a Li sa o u La Liberté s u r les B arricades d e Dela c ro íx, 16 C A T H E R I N E : App ro che z -vous N érori , e t pren e z v o t re p la c e

qu elques enfants, q u e lques a n im a u x domest iques': Je a n - P ie r r e Ronfard , V ie II e st temps qu 'entre n ous la lu rn ie re s e fass e
et mort du roi b oi teux , Montréa l: Leméac, 19 81 , p . 38. J'ignore d e quel crime on a p u m e noircir
ALI'.M DO S LIMIT ES: O INTERCULTURALI SM O . . . LI N G UA G E t>1 E A PRO P R IAÇÃO 3 45
344

N ós citamos no início deste t ex to a reflexão de Bonnie Mar- de Ronfard. Daí em diante , c o m p re e n d e- s e t amb ém por qu e
ranca sobre essa incapacidade q ue reveste uma cer ta forma de toda tradução dessa obra torna -se difícil: v is to que ela não deve
inte rc u lt u ralisITIo para integrar as literatura s de o u t ras c u ltu ras a pe nas restituir todos os níveis de línguas, mas também trazer
e ID u rna m e sma fo r ma de esc rit ura qu e interroga s ua própria co nsigo todo um universo feito de sobreposições . Aqui, não
ambig uidade e insc reve se u p ró p r io con texto cultural. Uma das se trata de modo algum de um interculturalismo cênico t a l
g ran des qualidade s d o tex to d e Ronfa rd é precisamente jogar como aqueles que p u de ram fazer Brook, Mnouchkine ou Barba,
com t oda s essas litera tu r a s rec usa n do- lhes ao mesmo tempo m uito menos se t r a t a de passar UD1a mito logia de uma c ultu ra
o s imp les e m préstimo d e o u t ras língua s , cult uras o u tradições para a o utra. Trata-se sobretudo de apresentar o modo segundo
ar tís t icas - seja m es tas tã o impres si onante s quant o p ode sê- lo a o q u a l as m it ol ogi as se tra n srnit e rn de uma c u lt ura a o ut ra e
o b ra d e um Shake spe are ou a q u ela de um Racine po r exemplo- po dem se integrar de ntro de uma mito logia local fictíc ia .
e a a daptação. Ronfard opto u por um a inte gra ç ã o comple ta em Com efeito, o res ultado é um nivelamento das literatu ras:
q u e t e xto s d e o rigem se to rnaram parte integ rant e de uma o b ra literatura nobre e lite r atura p o pul ar, lingu ag em p olida e p opu-
o r iginal e to t alm ente p e s s oal. la r, p ers o n a g e n s d e fi c ç ã o e p e rs o n a g ens h is t óric a s . To dos d o
P o rtanto , ao se rvir-se d o s rriocl e lo s d a gran de literatu r a mes mo modo animam esse uni ve rs o e rn q u e não h á mais o a lto
e ao res t a b e lecê- los ao n ível do qu otidian o , ao lh e s colocar n em o b a ix o , o n de n ã o h á m ai s cl a s s e s d efinida s, d e c ul t u ras
igualmente e m p aralelo co m a mitologia lo cal c r iada a partir d e nitidam ente disti n tas, d e p ropriedade s culturais.
t odas a s p e ças , R onfard n ão a pe n a s desrnorita os mecanismo s D e fa to, h ouv e um ap o rte ex ter ior, m a s n ã o colon izaç ão
conduzindo a uma admi ração paralisante do s textos, mas ele c u ltu r a l. O s di versos e m p r ést im o s foram absorvido s, trans -
faz um texto que lhe é próprio e que é propriamente québécois. formado s , digeridos. Eles saíram d aí capacitados para uma
Então, como c o m p ree n d e r toda est a g enealogia sem conhe- segunda v ida num t exto p odero s o , se n d o bem - suc edidos
cer alguma coisa da literatura quebequense (a de Trernblay, por numa integração d a s c u lt u r as e d a s literaturas, n o plural,
e xem p lo ), sem ter um co n h e c im e n t o - s eja este s u p e r fic ia l - do para uma c u lt u r a lo cal qu e se e ncon t ra agora e n r iq uecida. É
m ei o quebequense e m que ela se localiza? Aqui, a contextuali- preciso fa lar d e ac u ltu r ação, d e encu lt uração (e ncu lt ura tio n) ou
za ç ã o da obra é uma vez mais indispensável à sua co m p r ee nsã o. d e trans cultura ç ã o? A que stão co n t in ua a ser dis cutida.
E la a enriquece com um nível de leitura que escaparia de o u t ro Analisou-s e com frequên cia a o b ra de R onfard a partir do
modo a o esp e ctador. modelo d o carnaval bakhtiniano. P o r s ua vez, a a nálise, p or mais
Mas e s t a contextuali zação vai bem rn a is long e n a m edida justificada que seja, aparentemente pre cis a ser ultrapass ada ou
e m que ela inscreve um a form.a d e " in t e r c u lt u r a li s m o dram a - ao meno s reno v ada à luz dess a v isão intercultural que s e es b oça.
t úrgico" que se dobra em um interculturalismo evid e n t e . C o m E n t retan to, uma questão p erdura : t ai s transferênc ias podem
e fe it o, caso se defin a o interculturalismo, como o faz L.E. Sar- viaj a r em direçã o a o u tr as c u ltu ras que as t omariam de em p rés-
baugh, através do nível de h eterogeneidade dos p articipantes timo p ara integ rá -l as a seu modo?'8 Is so n ão es t á claro , n a medida
e m p reseriç a " , assim, c ompreende- s e toda a riqueza d a o b ra e m que o pro cedimento só p ode ser específico e rn u m lugar,
um p a ís , um a de te r m i nada c u lt ura. Seria iss o uma confissã o de
De tous ce ux qu e j'ai faits je va is vo us é claircir. [ . . . ] fraca ss o ? Totalmente c orreta é a afirm a ção d e que o intercultu-
RICHARD : Regardez cette pe int ure. Voyez quelle grâce respirait s u r ce visage! ralismo pro v a velmente possui limites .
Le fron t de Ju p ite r lu i- m ê m e ! C'es t la face de mo n pere F rançois P remier.
Votre mari (II ar rache le médaillon du cou de Catherine) . Et maintenant
regardez ce lu i-ci, l'a ma nt qui a pris sa pl ace : u n e horreur! Avez-vo us pu effacer Trad. A driano C.A . e So usa
le souven ir d e ce sommet s p le n d id e po ur vous vautrer dans ce marécage [...)
17 C f. os d iversos empréstimos feitos por Ivlnouchkine de formas artísticas in s-
piradas em dife rentes culturas asiáticas em Os Átridas. 18 Dito d e o u t ro mod o, seria possível retradu zir o texto de Mi chel Ga r nea u?
2. Percepção do
Intercu Itu ral ismo

o exemplo de Ariane Mnouchkine 1

As diferentes teorias que abordam a questão do espectador


procuram traçar-lhe o perfil e o funcionam ento, seja em termos
estatísticos (estudos sociológicos), seja como ser passivo, que
reage ao estímulo da representação, colo cada em prática pelos
realizadores do espetáculo (autor, atar, diretor, c e n ó g r a fo ) ;
seja, ainda, como ser ativo construindo o espetáculo a partir
de proposições que lhe são feitas.
Com efeito, as distinções são apenas teóricas, em favor das
necessidades dos estudos efetuados. Na realidade, o especta -
dor é ao mesmo tempo determinado por uma soma de fatores
(sociais, físicos, emotivos, culturais, estéticos) que o condicio-
nam e sobre os quais não possui um compromisso verdadeiro,
mas ele permanece pouco livre de suas reações face à repre-
sentação dentro da qual escolhe seus elementos de leitura, de
interpretação, de apreciação.
Assim, há em toda representação determinismos impostos
pela mise-en-sc êne, ela própria um condicionante do espectador,
e determinismos que pertencem propriamente ao espectador,

Esse texto fo i ap rese ntado no Co ngresso d a GETEA (Grupo de Estudios de


Teat ro A rgentino e Ib e ro a m e r ic a n o ) , em B uenos Aires, jul. 1999.
ALIÕM DO S LIM IT ES: O l N T E R C U I.T U RA Ll SM O . . . P ERC EPÇÃO D O rN T ER C U LT URALISMO : o EX EMP LO DE MNOUCHK INE 3 49
34 8

qu e fazem co m que ele vej a uma apres entação apenas através Ocorre ig ua lme n te qu e M rio uchkine jamais ped iu a se us
d e de ter m in a das grades e a lg u mas categ o ri a s. Mas h á t a m b é m, at o re s p ara interpretar "à la japonesa" ou mesmo para aprender
para a lém do s d eterminismo s , uma ce r t a liberdade d o espec- regra s d a a r te d o kab u k i, p or exem p lo. E la s imp lesmen te d eu
tad o r que o d eixa livre p ara se interessar pela r epre s enta ção O u o te atro japo nês COIno m odel o ex te r io r, a o ci rc u lar imagens e
p ara n ão s e interess ar e, caso ele s e i n te resse, d e orientar SUa fot o s, ao faze r v e r film es , ao recome n dar ce rtos liv ro s e p edir
ate n ção aos elementos que e le privilegia . aos a tor es para encont rar, c a d a um , uma via que lhe fo ss e pró-
Ri chard Schechner obs erva q ue, fa c e à abundâ ncia d e pria para dar a mesma impre s s ão de presença e xtrem a qu e
estímulos q ue o es p e c t a d o r re c ebe no decurs o de uma represen- ve i c u l arn as peças o r ie n t a is .
taçã o teatral, e ste último e scolhe e s elecio na. A propósito disso, G e orge s Bigot, por ex e m p lo , que foi um Ri cardo II m emorá-
Schech ne r fala "de inatenção sele t iv a", insistindo não s o b r e o vel, afirma que e s tud o u , durante esse mesmo p eríodo, o savate - e
qu e o esp ec t a d o r r et érn, rnas s o b r e o qu e el e esc o lhe eliminar. n ão o teatro oriental - a fim d e poder des c obrir a pres ença do
Todos nós j á fomos vítimas d e sses mom entos "d e inateri ção" co r po, a rapidez d o gesto , a tonicidade do movimento que o o lh a r
profano do públ ico e n co n t r a r á completamente "j a p o nês': Por-
tanto, é a partir de s eu p ró p r io imaginário q ue os atores r e criam
Ricardo II à la Jap o n esa esse Ja pão imagin ár io, inspir a n d o -s e, e n tre o utros, em filmes ele
Kurozawa e Mizoguchi, imagens pop u lares d e samu rais, li v ros e
E m 1981, A riane Mno u chkin e e o Th éâ t re du So le il aprese nta- seu conhec imento, mesmo s ucinto, de fo rmas teat rais .
ram ao público fran cês u m a série d e t rês peças shakespea ria nas: N ã o é s u r p reen den te, p ortanto , que semelhanças tenham
Ricard o II, He nrique I V e Twelfth N igh t (Noite de R eis) . As peças si do p erc ebidas entre a interpreta ç ã o d o s a tores d e M no uch kine
foram apresen tadas em turn ê de 19 8 2 a 1984 em Munique, B er- e um est ilo d e inte rpreta ç ã o "japonês': semelhanças q ue perm i-
lim , Avignon e são a atração de en cerramento do festival olím p ico tia m ao público projetar elementos d e "japoriidade" mesmo o n de
d e Los Angeles. A acolhida recebida p elas três peças do Théâ tre du n ão havia. Efetivamen te, todo mundo lh e convém, M nouchkine,
Soleil é adm irável. Para essas três peças, o Th éâtre du Soleil a do- excepcional: os Shakespeares não eram nada japoneses.
tau um estilo de in terp retação j ap on ês pa ra R icardo II e H enrique A com u nicação p ass ava assim a través de d ois imag in ário s que
t v e um es tilo de interpreta çã o in dian o, in spirado no Kathakali, se e nco ntrav am: o d o a tor e o do espectador. Po rta n to, é a t ravés
para Twelfth Nigh t. d ess e Japã o imaginário, q ue o es pec ta d or rec riava a seu modo, que
Os críticos são u nânimes. Eles f al a m d e "S a m u ra i d e S hakes - o contato se fazia e q ue o prazer de recon heciInen to se estabelecia.
p eare" (L e Monde), d e "Sh akespea re em Quimono" (L'Hurnan ité], O espe tác ulo s e dava como japonês em sua totalidade,
de "nô" shakespeariano (EEspo ir) . Eles di zem que, com Mno uch- m a s não no detalhe. E le despertava no espírito d o espectador
kine, Shakespeare se torno u japon ês (France Sair). a im a g e m desse Jap ã o conhecido de todos, mesmo daqueles
q ue jamais estiveram lá.
De mo do surpreen dente, Mno uchki ne co nvence a m a io r ia
do p úblico a través de s uas escolhas artís ticas, m e sm o se essas
esco l has não são, e m n ad a , fi éi s às formas d o teat ro j ap o - AB RAHAM MOLES:
n ê s nas q u a is e les se insp iram e às qu a is somos o r ie n tad os a TEO RIA DA P ERC EP Ç Ã O ESTÉTICA
r el a ci oná -la s : n
ô,k abuki. À LU Z DA TEO RIA DA INFORMAÇÃO
O interessan te nessa démarche d e Mnouchkine é q ue jamais
o teatro orie ntal foi colocado como m odelo para imitar, mas C o mo a n a lis a r essa p ercep çãoj To marei emprestado a Abraham
simple smente como fonte de inspiração. Mole s c ert o s c on ceitos da teoria d a informaçã o e da perc epção
ALf:M DO S LIM ITES: O INTERC ULT URALl S IvIO . . . P ER CEPÇÃO DO INT ER C ULT URALl SM O : o E XEMPLO DE MNOUC H K INE 35 1
350

esté t ica - tí t u lo d e se u l ivro p u b lic a do em 197 2 - pa ra te n ta r Redundância e Originalidade


a r t ic u la r como o pera u m a le itura q uase coletiva desses dois es pe-
tác u los de M nouch kine. po r q ue tomar esse exemplo na investigação q ue nos interessa
Moles lig a si m u ltaneame n te do is c onceito s: o que ele cham a aq ui? Porque o exemplo coloca um prob le ma. Agora q ue e u
de g rau de originali dade pe rceptível n u ma me nsage m e o g rau os co nvenci, ao menos, eu espe ro, que Ric ardo II te nha s ido
de informa ç ã o que ela traz. A mbos, p ara ele, estão di retamente realmente japonês, revelo q ue as mesmas referênci a s visuais a pre-
lig ad o s. Co m efe ito, para Mol es , não é o q ue se s a be que chama a se n tadas n o Jap ã o p a ra um público japonês n ã o fo ram, d e m odo
a te nção (ou informa ) nurna m ensa gem - mas o que n ã o se sabe e alg u m, perceb id as como japonesas, recolocan do e m questão todo
q ue a parece, portanto, num a primeira abo rdag em , como o rig inal. o pro cesso d e recepçã o d e q ue n ó s já fa la mos. O que faz co m que
Como lo cali z ar ess a o r igi nal idade ? A r e sp o sta d e M oles o m es m o espetác u lo tenha s ido p erc ebido como japonês p or oci-
é qu e ela ocorre pelo g r a u d e imprevisibilidade , d o quanto há d entais e d e m odo a lg u m pelos as iátic o s (s o b re tu d o, japones es).
de inesperado. Ten tem o s compreender e ex p lic a r a partir de M ole s por que
Trê s c o n c e it os estão e m j ogo aqui: o r ig i n a li da de , infor- tod a s as referências j aponesas reconhecidas n ão foram r eco-
maç ão e imprevi sibilidade. N o caso que nos pre o cupa, a nh e cida s e apreciadas como tais pelo e spectador j ap on ê s. E s t e
imprevisibilidade do espetáculo de Mnouchkine vem, e m parte, se q ue r a s viu ou rnesrno a s localizou. E uma vez mencionadas,
de ssa componente japonesa que ela escolheu dar à p eça de n ão reconheceu sua pertinência estética.
Shakespeare e que é a marca de sua mise -en -scén e , 1. O primeiro motivo vem disso que destaquei há pouco, no
Um quarto conceito vem se juntar aos três já menciona- processo de trabalho de Mnouchkine. Seu trabalho com os atores
dos. Com efeito, Moles observa que em todas as s it u a ç õ es de jamais teve por objetivo reproduzir um Japão bem específico ou
comunicação, a im.previsibilidade deve ter limites. Uma obra uma determinada forma artística japonesa, mas sobretudo de
estética não pode se construir sobre a imprevisibilidade; esta inspirar-se nele para restituir a aparência de um Japão imaginá-
necessita de um fundo de redundância s o b r e o qual pode se rio. Portanto, a parte de subjetividade do ator foi muito grande
c o n s t r u ir. Por quê? Porque esse fundo d e redundância permite ness e trabalho. Para ele, tratava-se de chegar o mais próximo
a inteligibilidade da e strutura. Em outros termos , isso signi- possível de uma forma , d e um espírito, de uma linha que evo-
fica que na mise - en -sc én e que Mnouchkine fe z de Ricardo II, casse o Japão. Essas ca r a c terís tica s, Mnouchkine as fundiu , ela
a japonicidade só pode ser p ercebida como forma , visto que as construiu ao entrecruz á-Ias com elementos ocidentais (figuras
e sta última constrói uma ce r t a redundância: s igno s retornam eli sabetanas, gibões, cenários abstratos) que as atenuava e com
nas máscaras, nos figurinos, nas maquiagens, na interpretação as quais eles dialogam. Paradoxalmente, o cruzamento (estético)
que enriquece a categoria d e "j a p o n ic id a d e" para o es p e c ta d o r
permite ao espectador ocidental perceber muito antes a japo-
e que permite identificá-la, reconhecê -la e lê-la no e sp et á c u lo.
nicidade do conjunto, visto que o próprio espectador japonês
Uma redundância c r ia d a a partir das formas, lembrando que a percebia muito mais o ocidentalismo da mise-en-scên e.
forma, s e g u n d o Moles, é um a "c o n s c iê n c ia de previsibilidade':
2. O segundo motivo está ligado ao processo de percepção
Digamos, então, que é a relação sutil entre r edundância e
e de informação que coloca à prova todo o espetáculo. Esses
originalidade que faz a complexidade e o valor de uma obra processos, Moles os analisa assim: o fenômeno da percepção
e stética. Foram a redundância e a percepção de originalidade (e, portanto, da recepção) é fundado sobre certos princípios:
que provocaram no público, no caso de Mnouchkine, a persua-
um deles é que
s ã o que s e r ia necessária a um Shakespeare japonê s .
o indivíduo p o ssui um limite m á xim o p ara a p ree n de r informa ç ã o. Ou
essa capac idade máxima d e produção de informaç ões p erc eptíveis é
352 A LfM D OS Lll\IITES: O I NTERC ULT URALl SM O .. . P ERC E P Ç Ã O D O INTERCULTU RALISMO: O EXEMPLO DE MNOUCHK INE 3 53

muito inferior à c a p acid a d e de produzir d as fo n tes que nos e nvo lvem "A originalidade da mens agem se rá , para ele, p e s s o alm ente ,
v isíve is. s o no ra s o u táteis : n ó s utili zarnos - c o n statação banal em psi-
dim in u íd a à proporç ão, a quantidade d e in form a ç ã o que ela
c o lo g ia - ape nas li m a fra ção ínfima d e informação q ue n o s chega do
rn u n d o ex te r io r. lhe t r a n s m it e será ainda mais fraca: a redundância c o n ve n ce
pro p o rc io n al m e n te :';
M oles co n cl u i, e n tã o , ao afirmar que " P e r c e b e r é selecio n a r, O que nos revela um tal ex e m p lo de experiência d o público
e compree nder o mundo é compreender as regras da seleção face a urna rep resentação?
percept iva"". 1. A primei ra, e a mais e v id e n te, é que a s c o n d iç õ es c u ltu r a is
Afina l, o q ue n ó s sele c iona mos? O ra e le rn e n to s "s ig - de todo espec tador determ inam, sem dúvida, a recepção que ele
n i ficat ivo s" ( q ue fa z em se n t ido e são i n te li g íve is), Ora faz d e um d ado es petác u lo. Portan to, é claro q ue se os espe tác u-
el ementos "o r ig in a is" q ue su rpreenda m . Moles r e ss alt a quê, los viajam, o modo como são recebidos varia de um e spectador
paradoxalmente, a in fo r m a ç ã o é transm itida não po r eleme ntos a ou tro em razão de urna s é r ie de fatores pessoais, sociais, c u l-
s ig n ific a t iv o s - como s e crê hab it ua lme n te - m a s através de tura is , p a r a os q uais a cultura é um componente fundamental.
ele mentos orig inais que são portado res d e m ais in for m a ções e Ela cond iciona n ã o apenas a compreensão do espetáculo, s ua
provocam m ai s re a ç õe s>. sig nifi cação, m a s , d e mo do mais impo rtante, o q ue o espectador
E ntão, co mo d efinir a p ri ori a o rig inalidade d e um a s itu a- perc ebe e o que lh e esca pa n u m d ado espe tác u lo.
ção? Através d e se u g rau d e imp re visibilidade. 2. D e m odo ain da rnais pe r tinen te, a c u ltura do espectador
O q ue se r e v el a improv áv el na rnise-en-sc én e d e Mnouch- co n d ic io na a qu antidade d e info r m a ç ã o e a o r igi nali dade
k i ne p a r a o es pec ta do r fr a ncês , norte o u s u l-am e r ic a n o ? São situ a d a n o e s petác u lo. H á elemen tos do espetác u lo que o espec-
as co m po n e n t es japoni zante s da enc enaç ã o que destacam a tador n ão vê porque n ão p ode fa zer a d ecupag em cên ica que lh e
orig i nali d a de da rnise -en -sc én e e criam o e feito d e ruptura que imporia a p ercepçã o . Isto é, ele n ã o cheg a a a preen de r os s ig n os
s u r p ree n de o leitor. São esses el ementos que sustentam infor- de originalidade d e que fal ava Mole s . N o c as o pre ciso que nos
mações novas tra zida s pela mise-en -scé n e. interess a aqui, a razã o dess a insensate z é dupla : el a vem d e que o
N o caso d e n o s s o esp ec tador j ap on ê s , a s it u ação é dife- Jap ã o evocad o p o r M n o uch kine parece dis t a nte p ara o j a ponês
ren te: é a lux ú ri a d o s figur in o s bas tante elisabe tan os que vai dess a c u lt u ra, e m toda re ferência ao Ja pão q ue e le con hece. Ele
chamar s ua a tenção e, portan to, co nfe r ir- lhe o sen t imen to de co ncer ne t amb ém ao fato d e que o Japão imaginário q ue n ó s
originalidade , a paga n do os p ouco s elementos j a ponizantes que ociden tais con st r u ímos n ã o p o ssui n enhuma se melha nça co m
e le acaba n ã o ven do, d ado que estão longe da imagem muito o Jap ão im agin ári o d o próprio japon ês .
real e v iva qu e e le t em do Japão d e h oj e o u mesmo d e o u tro ra. 3. Se é evidente que um esp e t á c u lo o pe r a um a co nst r ução
Isso con d uz a um a que stã o: o qu e a c o nte c eria, então, se do proce sso de p erc epção do e spe ctador - p ortanto , que ele o
o s u jeito r e c e p tor, s egu in do s u a c u ltu ra, seus con h ecimen tos orienta n a le itura qu e dev eria faze r - e m ú lti mo re cu r s o , d e seu
anteriores o u, por q ualquer o utro motivo, possu ísse u m con h e- lado , o espect a d o r ac rescenta seus pró p r io s e nquadramentos. O
cimento cada vez m ai s a profundado (como é o caso de n osso intere ss e d a exper iê ncia esté tica é que e la força o d ir eto r, como
espec tador japonês), cada vez mais extenso sob re a m ens agem o espectado r, a m odi fic a r s uas p r ó p r ia s referências d u ran te a
que lh e é transm.itida , so b r e os m odo s d e es t r u t u r a ç ão, s o b re repre s entaçã o e a exp a n d ir se us limite s. O espectado r j ap o -
os símbolos e s ua fre q uência ? A r e sp o sta d e M ole s é a segu in te: nês , recusando e ss a dim ens ã o d a o b ra, d e sta c a a relatividade
d essa construção d a p erc e p ç ã o artística o perada pelo próprio
2 A . Mole s . Th éorie d e l'info r mation et perceptio n esth ét iq u e, Paris: De no él, 1973. espetáculo. A co nstrução do espet ácu lo e a significação fina l
P· 94·
3 Ibi d ern , p . 3S . 4 Ibi d ern , p . 191.
354 ALÉM DO S LI MIT ES: O I N T E R C U LT U R ALl S M O . . . P ER C EP Ç Ã O D O I N T E RC U LT U RALl SM O : O EXEM P LO DE MNOUC HK INE 355

p e r te nce m, e m boa par te , ao es pec ta d o r. É este último q u e lhe est éticos h abituais . Mnouchkin e n ão o s u bs t it u iu, co n tu d o , p o r
dá s entido e lh e a ss e gura a ava liação e s tét ica . um m odelo o r ie n t a l definido . O modelo p r op o st o não pertence
4 . A quarta c o n s tat a ç ã o q u e ess e e x e m p lo permite fa zer é que mais a o Oriente que ao O cidente, el e e s t á e n t re os d o is , e m um a
a percepção e stétic a é f u n d a d a s o b re urna percepção de u m a zona d e fr o n te i ra onde tern s u a própria autonomia ficc io n a l e
ce r t a distância e n t re o que deve chegar e m nosso " hor izo n te estética.
de exp ect a tiv a" e o q ue e fe ti v a men te acontece. É o elemento de Portanto, ele nos obriga, nós, e spectadores inscrito s e m s is -
r up tu ra, de imprevisibilidade d e que fa la Moles . Seria possível tem a s c u ltu r a is determinados , a s a ir de nossos eriquadrameritos
dizer q u e Mnouchkine, ao introduzir a interpretação japonesa, habituais . Ele faz o apelo a u m novo gênero de e s pec t a d o r, um
c r io u uma distância na percepção que o esp e c t a d o r tem do espectador "iritercultura l"
e s pet ác u lo, uma distância que o leva a o lhar as coisas de o u t ro
modo. A manipulação da dis t â n cia é, s e g u n d o Ben C haim, um Trad. A d ria no C.A. e S o usa
dos fa tores subjacentes mais instigantes das p ráticas teatrais de
hoje-. E la criou um efeito d e s urp resa n o espectador ociden tal.
E la i nscreve a originalidade para rec uperar os conceitos que
tomamos emprestados de Moles lo g o acima, o u essa distância
n ão foi p ercebida pelo espectador japonês, c ujas referê ncias
c u lturais eram paradoxalmente p r ó xi m a s d aquel as evocad as.
5. I sso n o s e nsi na t amb ém que se os es q uemas na p erc epção
d e um espetác u lo diferem d e urn a c u ltu ra a o u t r a, s ign ifi c a
q ue os có d igos d e le itura d e um espetác u lo n ã o s ão, d e modo
a lgu m, compone n tes ins c r ito s na própria re p resen tação, mas,
ao contrário, que esse có d igo d e leitura se a t ualiza a cada v ez
riurna realida de social específica e no rnornerito m e smo o n d e
e le é recebido po r um espectador o u u m d e t e r minado p úb lic os,
Repe ti n do em t e rm o s mais simp les, a reação d o p ú b lico
a um certo espetác ulo é canaliza da p elo s lim it e s c u ltu rais de
cada u m.
Como concl uir esse bre v e percurso? S i m p les men te, lem-
b ran do S uzan Ben netF e Sa rah Bryan t-Berraí l", que a fir m avam
q ue o t r abalho d e M no uchkine a presen ta a g rande vantagem de
ter descentrado o t e a t r o europeu ao fo rçar o espectador e o a ta r
a u m descentramento em relação a seus referen tes c u lt u rais e

5 D aphn a Ben C ha im , D istance in th e th eatre, Ann Arbor:uMI Press, 1984, p . 79 :


6 Ja cque s Leenhardt, To ward a Sociology of R ead írig, em S usa n R. Suleiman;
Ing e C r o s m a n (e ds. ), Th e Reader irt th e Tex t, Princeton: Prin ceton University
P re s s , 19 8 0 , p. 2 23 -22 4 .
7 S usa n Be n ne t, Th e atre A ud ie n c e s , New York: Routled g e, 19 9 7, p. 197.
8 Sa r a h Br y a n t - Ber ta i!, G en de r, E m pire a n d Body Politic a s Mis e e n Sc êrie:
Mn o u c h k i n e 's " Les At r id e s" 7h ea tr e [ou rnal, Y. 4 6 , n . 1, 19 94 , p . 3 0 .
3. Toda Trans-Ação Conclama
Novas Fronteiras"

Em 1995, no decurso de um colóquio em Bruxelas, cujo título


era Culture as Diversity (Cultura Como Diversidade), um
fotógrafo narrou o resultado de pesquisas que ele havia desen-
volvido durante anos. Ao realizar fotos aéreas de cidades, ele
fotografava , ano após ano, certos quarteirões para ver que trans-
formações se poderia constatar. a resultado era muito claro: os
muros e tapumes foram construídos para separar as proprieda-
des, os jardins, as áreas privadas, depois de terem desaparecido
num primeiro período sob o efeito de uma vontade deliberada
de construir espaços abertos, de facilitar as comunicações e
as trocas, reapareciam ao longo dos anos, recriando assim os
confinamentos que se pretendeu combater no início. A única
diferença sensível era que essas novas fronteiras foram ligeira-
mente deslocadas, mas subsistem .
a testemunho é interessante por vários motivos. Ele
exprime, de fato , uma dupla tendência nos indivíduos - e

Tex to proferido e m conferên cia durante o C o ngresso da FIRT em Sydney, 2 0 03.


O tema d o c ongresso e r a Tran s -A ction : C u lt u re and Perf orm ance (T r a ns- Ação:
C u lt u ra e Perform an ce ). Fo i publicado co m o título Eve ry Trans a ctio n Con -
jures a N ew Boun d a r y, e m Ia n el le Re inelt; Io e Ro a ch (eds.), C rit ica l Th eo ry and
Performance, Mich igan : Un ive rs ity o f Mi chiga n Press , 2 0 0 7.
358 A LIÕM D O S LIMIT E S: O INT ERC ULTUR ALl SMO .. .
TODA TRANS-AÇÃO CONCLAMA NOVAS FRONTEIRAS 359

den tro das estrut uras q u e estes colocarn - um d uplo movj, transmissão, trân sito, t r a n s e c ç ã o , transpira ç ã o e tc. E m todo
rnerito de abertura e de fechamento ao mesmo tempo. Com caso, tais noções e x p re s s a m modalidades diferentes do con-
efe ito, aí o n de os disc ursos do m i nan tes, ce rtamen te n umer osos ceito, mais geral, de trans -ação. É o que evo ca m os diferentes
hoje em dia, n ã o cessam de fa la r e m a be rt u ra para o Ou t ro, títu lo s de comunicações propostas nestes dias.
q uer se trate de um lugar, UlTIa fro nte ira, UITI país, urna c u lt u ra, Essas noções recorrentes são utilizadas em d iferentes cam -
um a di s ciplina , u ITIa o u tra a r te , o bs e r va-se p a r alel amente um po s d e aplicação:
rnovi rne n to d e recorripa r tirne n t aç ão , d e fec hamen to, c o m o se
a c u l t ura, claro (fala-se, po rtanto, de transc u l tural, inter-
o qu e se ganhava corno a ber t ura e m u m ce rto nível fosse p ago
c u ltural, mu lt icultural);
co m uma comparti mentação e m o u tro.
a arte (fala-se assim de t ransartístico, de transdisciplinar);
Gostar ia de tomar essa h istó ria como metá fo ra d a p rop osta
mas também a genética (transgenét ico);
q ue desejo cons iderar e a na lisar t rês aspectos aos q uais el a n os
sexo e gênero ( t ransexua l),
sensib il iza :
a geografia (transgeográfico, translocalídades, transnacíonalj -,
a . A n tes d e tudo , sob re a exis tên c ia d e s s e duplo m o vimento o p olític o ( t ranspo lí tico);
de d e s c ompartim entação e reco m parti me ntação qu e parece o eco nô mico (tra nseco nôm ico).
incidir a o rri e srno t emp o sob re o s indivíduo s e a s est r u t u r as
Com s ua carga pos itiva, o pre fix o trans, qu e ret orna a b u n-
que e les a p rese ri ta rn.
dan tem ente n o s d is curs o s d e h o j e , é fr equenten1 ente utiliz ado
b . E m s e g u id a, so b re a relação particular n o e s p aço que a
nas ci ênci a s duras e n a s c iên cias so c ia is e humanas: cu lt u ra l
compartimentação e a des c ompartimenta ção inscrevem (s eja
stud ies (es t u dos culturais ) , antropologia, p erformance , t e atro
um e spaço fí sico real ou um e spaço imaginário ).
(talvez, fil o s ofia , história ) . A q u i, el e se dobra n a palavra a ções
c. Adoraria interrogar a relação no tempo em que se inscre-
(tran s- ações), que implic a um cer to m o vimento , uma mud ança,
vem e s ses movimentos de ab ertura e fe chamento que sob revê m
na ver dade, uma din â mi c a, um a von tade d elib e rad a d e ir d e
s im u l tâ n e a e alternativam ente.
um ponto a o u t ro.
d. E n fi m , adoraria analisar e m que a prática artístic a - espe-
O ra, cer tos p ens ado r e s d e h o j e (Ed g ar M orin, particular-
cificamente, a prática teatral que tomo como exemplo - podem
mente ) c onstatam qu e, p ara urna ép o c a em que ess as n o ç õ e s
contribuir com um esclarecimento particular sobre s e m el h a n te
torn aram - s e o dis curs o d ominante e n ã o é m ai s p ossível p ens ar
questão e, talv e z , d e que modo ela pod e trazer um aporte cog-
o mundo e m qu e vi v em o s - o u a a r te qu e pratic am o s - sem n o s
nitivo, ajudando -nos a entender melhor o fen ômeno.
referirm o s a e le, as práticas que n o s c irc u n dam n ã o t e stemu -
C o m p r een derem o s atravé s desse preâmbulo que a noção de nham, d e m odo a lg u m, essa ab ertu r a . As dis ciplinas s e fe cham
trans -ações, que co n s tit u i o tema agregador do c o ló q u io, é tão e n ã o se com u n icam u mas com as o u tras. Os fe nô m e nos são
somente um a forma des s e proce sso d e a ber t u r a do qual d esejo cada vez m ai s f ragmen tados, sem qu e c heguem a con ceber sua
fa lar. E n ten de re m os tamb ém que o pro c e s so é indis s ociável, a un idades. De fato, o bserva-se que as fro nteiras fora m s im p les-
m eu v e r, de u rn p ro cesso d e fechamento quas e s im u ltân e o que men te d e sl o c ada s , m a s sempre est iveram lá . E las "se con fi r mam
o acompanha. em lugar d e se d e sfa zerern't-.
E, para clarear as cois as , façamo s um rápido percurso
linguístico considerando tudo que pode evo c a r a ideia de trans-
2 Arjun Appadurai, Sovereignty without Territoriality: Notes for a Postnati onal
- ação o fe r e c id a a q u i à n o ssa reflexã o. Essa no ç ã o con cl a ma
Geography, em Patricia Yeager (e d.), 7!!e Geograp hy of Ident ity , Ann Arb or:
a q ue las d e t r o c a , influência, transla ç ã o , t r aduç ã o , tra nsc r i- U n ive rs ity of Michi g an Press , 1996.
ção, t r an sfo rm a ç ã o , t r an s fu s ã o , transparênc ia, transgressão, 3 Idem, p. 1 24 .
4 Ibid em.
360 A Lt M D O S LIMI T ES, O I N T ERC U I.T U R ALI SM O . . . TODA TRAN S'AÇ ÃO CON CLAMA N O V A S FRONTEIRA S
36 1

Digarnos e ntão q ue se constata um mov imento ge nerali_ obras biográficas perturbadoras: La Mort n e v e ut pas d e moi
zado que tende a restituir as fronteiras geográficas, econômicas, (A M o rte N ão m e Qu e r, 19 9 7) e N'eJÍe p as p e u r de savo ir ( Não
políticas ou culturais porosas, ao mesmo tempo que soberanias Tenha Med o de Saber, 19 99).
territoriais (para tomar num sentido político, cultural e artís- O e sp e tác u lo, que dura s e is horas, co rri eça c o rri o teste -
tico) afirrnarn -se. Isso nos le va a constatar que, no fundo, nesse munho de Yolande Mukagasana, qu e narra durante quarenta
vasto movimento d e abertura m undial - trans -ações - no qual minu~?s ~s três m eses de genocídio a partir de sua própria
somos enredados, nós reconstituímos sem cessar exclusões e experre.ncra. Narra a morte de seu marido, levado de sua casa
zonas de compartimentação. Nós reconstituímos necessar ia_ co~o milhares de outros tútsi s e espancado c orn golpes de
mente fro n teiras. fac ão, amputado de uma mão diante de s e u s olhos enquanto
Meu objetivo então, no tempo que me é concedido h oje, é ainda estava vivo. Narra também a morte de seus três fi lhos
de estuda r esse movimento constante de abertura e fechame n to com idades de dezoito, dezesseis e treze anos, a caçula, Nadine,
em três níve is: 1. o político; 2. o artístico; 3. o teórico. inclusive, fora enterrada viva: ela te ria prefe rido se jogar na
Para ancorar minha reflexão nos domínios do teatro, eu m e fossa de cadáveres em vez de enfrentar os golpes de facão.
basearei em dois espetáculos que acabam de ser apresentados O testemunh o é desconcertante. Dia após dia, Yolande
no Festival d a s Arnértcas>: Rwanda 94 do Groupov e A llemaal Mukagasana revive esses três rrieses, sua lu ta , se u medo, as trai -
Indiaan (Todos Indianos) de Alain P latel, espetácu los q ue já ções dos vizin hos e amigos que eles frequentavam diariamente,
haviam sido apresentados em numerosos festiva is e que algu ns com ?s q ~ais seus próprios filhos haviam crescido, e que serão
de vocês já d e v e m t e r vis to. os prrmerros a a po n tá -los para o m a s s a cre.
In te r r o m p en d o se u tes tem u n ho com lá grim a s du r ante a
evocação d e se us m om ento s di fíc ei s , dia a pós di a , Yo la n de
o POLÍTICO: Mukagasana vem t est e mu nh a r não as suas feri das, mas os even-
TERRITÓRIOS CONTRA LOCALIDADES tos nos quais o país mergulho u e aos q uais s ua história serve
de fio cOl:d utor. Sem ser patética e sem desejo de vingança,
Rwanda 94 é uma peça q ue t rata do genocídio em Ruan d a. descrevera a fuga e o sentimento terríve l de ter fracassado em
Duran te c inco a nos, a equ ipe e nco ntro u sobreviventes, reco- seu p a p el d e mãe.
lheu testem un hos, fez pesquisas h istó r icas, l e itu r a s , viagens O espetáculo alterna entre ficção e real idade: testemunhos,
ao país, para estudar o que ocorreu no decurso daqueles três filmes sobre o genocídio, cantatas de rnor toss. A peça com-
meses (de abril a junho de 1994), durante os quais 800 mil preende até uma conferência de Jacques Del uvellerie, direto r,
túts is fo rarn eliminados p el o s h útus, re prese n tan do 8 0% da que explica em 45 minutos as origens das etnias túts i e hút u e m
pop u lação e m Ru anda . Ruanda , e as razões políticas e econôm icas q ue le v a r a m a u m
Apo iando-se em testemunho s e informação recolhida, tal genocídio e à ausência de intervenção do mundo inteiro,
cinco autores entregaram-se à tarefa de esboçar esse panorama que preferiu ignorar tais a co n t e c im e n to s 7.
a fim: 1. de fazer u m espetác u lo; 2. um espetáculo que tivesse a . Os procedimentos se entrelaçam para transformar o espe-
dignidade q u e o assunto impõe, evitando-lhe o sensacionalismo taculo cada vez mais em uma verdadeira peça de teatro e em
e o simples doc unlentário. um testemunho percuciente do extermínio sangrento de todo
Entre os autores , uma mu lher, Yolande Mukagasana, tes-
temunha direta do genocídio, tútsi de origem e autora de duas 6 Os a tores são belgas e ruandeses.
7
As fo rças d ~ OT~N só in ter vi r a m t ard ta m ente no confl ito. A g ran de m ai o r ia
5 Fes t iv a l q ue ac o n tece a cad a d oi s a nos e que re ú ne es pec ta do res pro venientes d a p opul a ç a o ]a h a vi a SIdo e li m i nada. Ve r sob re a q ues tão, o s ite < h t tp ://
sob ret u do d a Am éri ca d o No r te, da Am éri c a Latin a e Euro p a . r wand a .fr e e .fr /we brill g .htm >.
3 62 ALtM DO S LIMITES: O I N T E R C U LT U RA LI S M O . . . T ODA T RANS -AÇÃO C O N C LA M A NOVAS fRONTE IRA S 363

um grupo étnico ao qual o mundo inteiro a ssistiu s em poder pudem o s a ss is tir no decor re r dos séc ulos e, particularmen te,
(o u querer) intervir. as guerras é t n ic as , q ue se dese n volvera m com fo rça d e a lg u n s
O que a peça coloca em cena? anos para cá.
Para além do testemunho de fatos reais e históricos deso- Digo gu erra é t n ic a , mas é e vid ente que , quando as re lações
ladores , ela coloca e m cena o que estudiosos c o m o Arjun de fo r ça são desiguais e q ue t odo um gr u po é t nico - o u q u e
Appadurai, Akhil Gupta, Jam es Ferguson e, claro, Homi Bha- se identifica c o m o t al - g ue r re ia co n t r a urn o u t ro desarma d o ,
bha" examinaram com precisão, logo após Deleuze e Guattari , é preciso falar e m g e nocíd io . É o que a p eça R w a n da 94 t orna
em particular: as relações muito complexas entre nação, Estado, perfeitamente claro.
identidade, territorialidade e localidade em relação ao espaço. Através de uma longa exposição sobre a s origens das duas
Esses pesquisadores, c o rno outros no campo dos cu lt u ral etnias, a peça mostra c o m o a s múltiplas migrações de indiví-
s t udies, e mp errhara m-se em mostrar como a ideia que uma duo s dentro do país co lo c a r a m e m questão a s sobreposições
nação, um Estado ou um indivíduo faz de sua identidade está isomórficas entre a identidade das diferentes e t n ia s e dos Est a -
intimamente ligada à noção de território, concebido como dos que elas compõ em. Paralelamente, ela chama a te n çã o para
espaço geográfico que se pode situar no interior de fronteiras o fato de que a s diferenças é t n ic as observáveis foram o resultado
bem definidas, portanto, território espacial>. deliberado, no c a s o de Ruanda, de um a vontade política dos
Ora, todos nó s sabemos - porque temos todas as provas belgas, ocupantes do país que decidiram, em 1920, identificar os
cotidianas nas mídias - que essas noções estão profundamente habitantes de Ruanda através de seu pertencimento étnico, um
em crise hoje, graças a uma disjunção cada vez mais manifesta pertencimento para o qual eles deveriam definir os parâmetros,
entre: 1. a ideia de nação e de Estado; 2 . e mais ainda, entre a ideia visto que tais divisões não ocorriam à época.
de nação e a de território considerado como espaço geográfico Assim, eles tomam inicialmente características morfológicas,
definido, quer esse território, seja uma subdivisão de um Estado, econômicas, para, em seguida, operar esta divisão: o tútsi seria,
quer, ao contrário, ele venha a confederar diferentes espaços, sobretudo, cultivador e mais tranquilo, maior e de traços finos; o
para além das fronteiras, criando um território transfronteiras. hútu possuiria os traços mais negroides e seria mais camponês. A
Aqui, a noção de território é pertinente, porque ela faz peça narra que o s recenseadores foram , e n t re ta n to , confrontados
abstração das fronteiras geográficas que fazem os Estados para com numerosos casos problemas de tútsis ou de hútus que não
lançar luzes sobre uma comunidade fundada em origens, inte- entravam nas categorias definidas. Aí juntaram-se outras: assim,
resses , características morfológicas, históricas, econômicas ou foi declarado tútsi todo indivíduo que possuía dez vacas e hútu,
políticas comuns. todo indivíduo que tivesse menos de dez vacas.
Quando visão do território e visão do Estado se sobrepõem Pode -se entender tranquilamente o que tal classificação
perfeitamente, e se apoiam sobre uma visão da nação ~epresen­ possuía de absurdo, mas ela foi adotada e se tornou uma das
tada por uma só etnia, s u rg e m as guerras de extermínio às quais causas do drama que se representava em Ruanda, em 1994.
Ela reflete um momento da história em que toda a população
considerava judicioso definir seu pertencimento em termo s de
8 A. A ppa d u rai, Sovereignty w it ho u t Terr it or iali ty . . . , em P. Yeager (e d .), o p. cit.:
Akhil G u p ta; James Ferguson, Be yond "Cu lt u re": Space, Id entity a nd lhe Politics .' etnia e que, longe de endossar a ideia que o indivíduo pertence
of Difference, e m A . G u p ta; J. Ferguson (e ds.) , C u lt ure, Power, Pia ce: Explora - à um vasto conjunto em que as interações (as transações) apro-
tion s in Criticai Anthropology, D u r ham / Lo n don : Duke U n ive rs ity Press, 1997;
Homi Bh a b h a , The C om mitment to Theory, The Location ofCulture, London :
ximam os seres, preferirá optar por fronteiras entre indivíduos,
Routledge, ' 994. fro n t e iras raciais frequentemente traçadas com uma boa dose
9 Mas também território v irt ua l que pode se r o re sultad o imagin ári o de pro- d e a r b it rarie dade.
jeçõ es com o pode ser o Khalistan, n a çã o de que alguns s iq ues so n h a m corno
deveria s e r s e u própri o es p a ço .
364 AL ÉM DO S LI MI T E S: O I N T E R C U LT U R A Ll SM O . .. T O D A T RAN S-A ÇAo CONC L A M A N O VAS FRONTEIRAS 365

Território e Sobe rania 4. E u acrescen ta r ia u m a última qu e s tã o relevante'». re lac iona -


-se c o rn a noção d e e sp a ç o , u m e s p a ç o que é aí n ova me nte
Meu objetivo não é e x p o r a sit uação h i s t ó r ic a , muito Com - julgado isomórfico p ara o g r u p o ét rr ic o". Vis to que os hútus
plexa, que levo u ao d r arna ruandês, mas destacar como a peça sentem - s e am e açado s e m seu es paço, e les el irn ina rn os tútsis ,
m ontada pelo Groupov nos permite mensurar - n o domín io co nsi derados in trus o s, os enviam para suas pressu pos tas terras,
a r t ís t ic o - o que a obs ervação da realidade política j á con fi r m o u . Abis s ínia , e n t re outra s, d e o n de os tútsis seria m o rig i nários.

1. A lg u é m po deria infer ir a partir da peça que o s gover- A r elaç ã o com o e spaç o é esse ncia l, porque um a das coisas
nantes de R uanda à é p o c a , tanto q uanto to d a s as pessoas q ue qu e o público pode apre ender da situação p olítica, t a l c o m o
c o n t r ib u í r a m para o massacre, acreditaram que o E s ta d o - n a ção ap resen tad a pel a peça R wanda 9 4 , é o fa to de que o s argumentos
pe r m a n e c e na ideia s u bj a c e n te de coerência é tn ica como a b ase que p ermitiam tais matança s foram baseado s e m con cep -
da s o b e r a n ia do Estado. Portanto, e les teriam a justificativa para çõ e s n aturalizadas de "c u lt u r as" e spacializada s onde Es t a d os
d iminu ir, pe nalizar, expel ir e, n e ste caso, até ma tar aquele s co n- apoiam -se n uma v isão de e s p a ç o como naturalmen te desco -
s id e r a d o s in fe ri o r e s o u e t n ica men te d ife r ente s . Tal coerên ci a ne c t a d o d o viz inho. Essa desconexão parece te r s ido sempre
é t n ic a u lt irn a rn e rite esteve b a s e ad a no grupo fe c hado (enu me- prevale nte. Ta l po n to de vista perm i te afirmar a sob erania de
ração, constan te e imóvel) d e d e st in a t á r io s ap ropriados. u m a n a ç ã o o u, nesse caso, de u m gr upo é t n ic o que pretende
2 . A peça também nos lembra que embora o fun dame n to ter- d irigi r u m país. Enq uan to países, Es tados , mes mo te rritórios,
r itorial do Estado-rraç ão'? es teja ruindo rap idamente n o s dia s de ba s e are m - s e n uma v isão d e espaço d e s c one c t ada e m vez d e erri
h oj e , como todos sabem os, ainda que a ONU esteja aj u dan do a por u m espaço conec tado, h a v e r á v iolê n c ia e disputa p elo p ode r.
fi m à ideia d e integridade te r r itorial d o s Estados-nação existen tes, À gu is a de co n cl usão a essas primeira s co nstatações,
ambos são os ú nicos gran des a tares n a cena g lobal q ue r e almente p o d e m o s dizer que a peça ilust r a o fato, d e s t a c a d o de modo
necessitam d a ideia d e soberania b a s e a d a em terri torialidade. r e c o rrent e por pes qu isa dores (soció logos, a ntropólogos,
3. Isso enfatiza que, quando h á u m isomorfismo ent re os povos, observadores da cena política, econom istas) de que, embora
o território" e a soberania le g tt irna " , a violência pode irrom per». as sistamos n o mundo a um d iscurso de abertura a o utras

10 A n o çã o remonta ao aco rdo a sso ci ado co m as reso luções d a P a z d e W estfália 14 Des tacada p or A . G u p ta; J. Fe rgu son, Be yond C uItu re . 00' o p . ci t. Sob re e sse
e m 1648. Fo i nessa ocasião qu e O prin cíp io d a so b e r a n ia te r ri to r ia l to r n ou-se aspe c to, ve r tam b ém s o b re es te a s p e cto H . Bhab ha, The Co mmi tment to
o conceito m atri z do Es tado - nação. Theory, o p . c it.
11 O terri tóri o es tá voltado p a r a a integridade , top o grafi a , p olíti cas e s u b sis tê ncia. 15 A . A p pad u ra i es c r e ve : " N a h ist ór ia d a teor ia da c u l t u ra, te r ri tório e ter r i-
12 C la ro, isso fo i a ssumido p el o s "ge nocid ártos" qu e e n te n d e ram q u e es te iso - tori alid ad e d e s empenhara m um p ap el imp ortante: d e m odo ge r al, a ide ia
m orfis m o esteve p erto d e se r rompido ap esar d e el es rep re se ntarem 80 % da d e que c u lt u r as são coe re n tes , d elimitad a s , con tí g uas e p ersi s tente s s e m -
p opul ação. p r e fo i d e ixado d e lad o p o r um se n t ido d e que a sociali dade hum ana está
13 "O que a pluralidade é tnica faz (es pecial m e n te qua n d o é o produto d e m ovimen- na tu ra lmen te lo c alízad a e m esm o d elimitada lo calmente . A p r eo c upa çã o d e
to s p opulacionais com m emória r ecente) é vi ol a r o se n tido de isomorfismo entre an t ropó logos com r egras d e r esidência e s u a relação com g r upos e m b a ix a e
identidade territ orial e n a ci onal e m que o Estado-naçã o mode r no se apoia'; A. o ut ra s forma çõ es sociais, por exe mplo, está b a seada n u rn se n tid o contí n uo
A p pad u r a i, o p . c it ., p. 57. E le ac resce n ta : "O que pl u ralismos di asp ó r icos pa rt i- d e que as realidad e s ter r it ori ai s d e um o u o u t ro tipo , a m bos d elimitam e
c u la r men te ex põe m e intensi ficam é a disparidade e n t re o s p oderes d o Estado d e termi n am as d ispo si çõ e s sociais . A d esp eito d e a lg u ns esforço s v ig o rosos
p ara regular fr onteiras , mon it orar os di ssidentes, d istribuir direito s d entro d e para contrariar tais variedades d e d eterminismo territorial. A ima gem de
um terri tório fin it o; e a fic çã o d a s in g u la r idade é t n ica n a qual a m ai o r parte das r ecurs o s esp a ciais e práti cas, co ns t it ui n do e d eterminando form a s d e soc ia -
n ações tem se ap oi ado recentemente . E m o u tras palavras, a integridade territorial lidade, a in d a é impreci sa . Essa id e ia é co m p le ta m e n te exp líci ta n o s r am o s d a
q ue j us tific a es tados e a s ingu la r idade é t n ica q ue valida naçõ es es tão ca d a vez eco log ia , a rq ueo logia , e est u d o s c u lt u rais e le me n ta r es que tom am prática s
m ai s di fíc ei s de ser vi st a s co mo as pectos se p a r a dos um d o o u t ro . . . Colocado esp a ci a is como s ua prin cipal fo n te d e e vidê ncia e a nálise [00 . ] H á aind a um
d e o u t ro mod o , desde q ue estados, territó ri o s e id ei as d a s in g u la r id a d e é tn ica se n tid o amplam ente d ifu n d id o de q u e os seres hu m an o s e st ão co n d ic io n a -
n a ci ona l são se m p re p rod uções h istóricas co m p lica d as . o plurali s m o d iaspórico d o s a pro curar espaços d e s u b m iss ão que sã o exte nsões d e s e u s co r pos'; A .
tende a e mbaralhar todas as n ar rati vas q u e te n ta m n at urali zar ta is h istórias:' Appad ura í, o p . c it ., p. 53.
3 66 A L ÉM DOS LIMITES: O INTERC ULT URALI SMO .. . TODA TRA NS-AÇÃO C O NC LA M A NOVAS F RO N T EI RA S 367

culturas q ue a simples existência de grandes correntes de migra - fen ômeno liberador, segun do a lgun s ; fe nô me no t a m bé m de
ção vem reforçar, há paralelamente - em a lg uns países - Um enfraque cin1ento da identi d ade, s eg u n do o u t ros. Qualquer
m o v im e n to co n t rário d e fec ha men to extremo e de excl us ão, q ue s ej a a perspec tiva (o t i m is t a ou pessimista, e u fó r ic a ou
car regado de u rna t al v iolência q ue pode c u lm i nar em mass a- disfórica ao tratar dessa rea li d a de ), é forçoso c o nst a t ar que a
c re ao afi rrria r u rn a soberan ia territorial. Em o utras palavras, a tendência dominante para v á r ios dentre n ós, globe- trotters do
peça nos le mbra d o fa to d e que, e m bora a a c u lt uração esteja se conhecimento e imigrantes transnacionais, é o fenômeno de
esp a lhando pelo m u ndo, novos nac ionalism os, geralmente ata- aculturação no qual n ós estamos profundamen te inseridos.
d o s ao separatismo é t n ico e à tu r b u lênc ia e m nível d e Esta d o, E n t ã o , o q ue narra Allemaa l Indiaan? Em cena, dois sob ra-
e ncontram-se e m ascensão. dos c o m peças, por tas e janelas, escadas, tetos e corredores .
Ela tam bém nos lembra de que as fro nteiras, d a s q uais não As portas e janelas se abrem, fecham- se, batem. Abrem -se e
cessa d e tratar, p odem ser, evidentemen te, geográficas, mas elas se fecham persianas. C e n as banais do d ia a d ia se desenrolam
são, cada vez m a is , d e natu r e z a ideológica, e se co ns t ituem de d e nt r o o u fora, j us tapostas , s e m ligação ent re e las, exceto a
to do um p r o c e ss o a través d o q u a l co nfi n a mos o o u tro numa co n tigu i dade d e espaços ou os acasos p rovocados pelas ci r -
o r igem, n u ma c u lt u ra, nu ma religião, n u ma ideolog ia esp e- cunstâncias e os d e s ej o s dos in divíduos . O espec tador vê tudo
cífica. Co m esse p rocesso d e identifi c a ç ã o - e de d e fin ição através de v idros de casas o u no exterior d e d u a s casas (calçada,
esclarecido - , pode-se excluir o o utro de seu próprio espaço. r uela o u r ua, o espaço é mal definido) . Ele observa vários fatos
Eis o o b jetivo últim o : evacuar o lugar (no se n t ido de esvaziar e ges tos d a v ida a nódina de d uas fa mílias d e u m bairro pop u lar.
o lugar, d e a b r ir caminho). Retornare i a esse p onto. Iss o p oderia a co n tecer e m qualque r lugar. São famílias es tilh a-
çadas (p a i o u mãe a use n te, pais so b re c a r reg a dos, filh o s que
brincam d e am edrontar co m a r mas ou d e se a rris c a r e m ideias
o ESPA ÇO D ES -TERRITORIALI Z AD O in ó cua s ). Cada p ers onage m possu i se us des vio s : d efici ente
m ent al, cego, e m pregada domés tica s u ic ida, mãe sobrecarre-
A segunda p eça qu e e u gostaria d e evoca r co m vocês é total- gada , imigran te p roc u rando ser aceito, filh o s que não querem
m ent e diferente e m nature z a e ins p ira ç ã o . E la se ins c r e ve nas reve r a mãe q ue r e to r n a e , após u rn a in ternação p siquiá t rica,
a n t ípo d as da peça Rwan da 9 4 . Sua t emática, s ua forma, as adolesce n te à proc u ra d e u m pai que d es ej a d eixar a casa.
p ers onagens que ela c o lo ca e m cena p arecem mais p r ó x imas A p e ç a é co nstruída em micro narrat ivas, c uja im b ricação
d o c o tid iano n o qual n ó s (ocide n t a is d e país es d e s e n v olv idos) te r mi n a realizando um tec ido d e relações t runcada s , m as múl -
est a mos m ergulhados habitualmente quand o ne n h u m cata- tipla s e n t re os in d ivíduos (doze personagens) . Para alé m da
clismo natural o u human o v e m gerar cris es corno a que a p eça violência n a s r el açõ e s e d a a usência d o p atético d a s s it u ações,
Rwanda e voca. col o c a - s e assim diant e de n ó s urna rede d e com u nic ações e n t re
Mostrar a com par t imen tação s o b re a qual repousa a n ar- os seres, todo s um po uco perd idos, d e o n de, n o e n tan to, s u rge
rativa con t a da p ela p e ç a R w an d a foi eviden te. Tudo a gia n esse aq ui o u a li urn a certa le v e za , desajeitada, m a s p re s e n t e " . U rna
sen t ido. C o n t u do, mos t rar a a bertura p a r a a o bra na p e ç a A lle- p e r s ona g em chama nossa atenção, a q uela d e um imig ran te d e
maal Indiaan é também urna d émarch e evide nte n a m e dida em Mon tenegro, d e sobrenome Kóssovo, e ncan tado d e se e nco ntrar
que o ferece corri o t emátic a p rincipal a ab ertu r a de espaços, a enfim n e sse novo país anfitrião, põe-se a can tar o h in o n acional
c irc u lação d e indiv íduo s e a aus ência d e identidade for te.
A lle maal Indiaan é a terc e ir a p e ç a d e uma t rilo gi a do diretor 16 Ca be c o nstat a r que o s joven s se r e conhe c em enorm emente n e ss e qu adro.
O trat am ento fra gment ário da do às i m a g en s e à re alid ade caó tica q ue e las
Alain P latel que traduz o mundo de hoje, neste caso, um outro
evoca m, m ergulha d a num a mú s ic a te chn o pró xirn a d e se u univ ers o , es tava
fenômeno atual em que nós estamos presos: a aculturação, mais har m o ni z a d o co m s ua se ns ib ili dade m ode r n a .
368 AL ÉM D O S LIMIT ES : O IN T ER C U LT U R ALl SM O . . . T .ODA TRANS -AÇAO CO N CLAMA NOVAS FRONT EIRAS 369

de s ua te rra acolh e do r a - a Bélgic a - a pesar d e , n ess e mesmo múlti p los, se m fron t eiras reais - o exterior e o in terior estã o e m
rno m erito, um d e se us v iz in h o s e s c rev e r sob r e urn a v id r aça: pro longam en to um d o o u tr o e n ão e m ruptura - quas e n eut ros,
Koso vo Go H ome ( Kóssovo Vo lte p ara Casa) . ond e têm lugar as ações das person age ns sempre em in ter-ação
Sem t r am a narrat iva dom inan te, o elo en tre toda s as p e rso - uns corn os o u t ros . A o m esmo tempo d e s co n tínuo e c o n tí n uo, é
n ag ens é c r ia do p el o espaço (a s dua s casas c o n t ígua s d e o n d e as lu g ar a colhedor, d e passagem, d e t ravessia - t ransve r sa l - mais
pe rsonage ns sae rn e o n de e la s erit r arn s e rn c e s s a r ) p el o b ias de qu e de ide n tificação. É o lug a r m es mo d e s s a s z o n a s in d e fi ni -
a bert u ras à s vezes pre vi sí v ei s e às vezes s u rp ree n de ntes: portas das '", esp aços re territor ía liza d o s 's seg u n do n o vo s par â m et r o s
e janelas, mas t amb ém t eta , ca m in ho a o long o d a can a le t a , qu e invis tam os ind iv íduo s q ue n ã o p a r ecem à pro cura d e
e q u ilib r a n d o - s e num a t áb u a s e rn a p o io a lgu m. pon tos d e ancora g e m.
Nós e s ta mo s e m um e s p aço h abitado pela s frivo lid a des da É o lug ar da exp loração e d a pass a g em, lugar d e trânsito.
vida co t id ia n a. Os laço s e nt re os seres são a q ueles q u e impõem Desinves ti do como espaço próprio , e le é o simples r ece p tác u lo
o fa to de que todo s esses ind ivíduo s são v izi n hos : eles vão e d a s ações d o cotidian o . Ele é o n ã o lugar d e que fa la M a r c A ugé,
vêm , o lh a m através das j an el a s, cam in h a m d entro das casas ou a zona d e pas sagem, d e transi ç ão, (e n t r e a c as a e o solo estr a n -
no ex terior, sem grande di stinção v e st i me n tár ia o u de outro ge iro, entre o dentro e o fora , e n t r e con hecid o e des conhe cido,
tip o . A s e p a r açã o e n t re es paço interior e es p aço exte r io r se e n tre o e n t o r n o arnig ável e a v iz in h a nça antagóni ca), qu e reflete
turva . O espaço torna - se um v a s to lugar de habitaç ão o n d e se ca d a v ez mai s o s universos n o s quais nós vivemos.
r e con stitui uma comunidade dispersa, cujos laços s ã o e ss e n-
cialmente as ações rn i údas de uma vida cotidiana comum.
É surpreendente a abertura extrerna do espaço, tudo é dado o Que a Peça Exprim e?
a ve r, m esmo o interior das c a s as . O íntimo desaparece. Não h á
mais e spaço privado. Tudo se torna público, dado a ver, objeto 1. A abertura do espaço parece responder à abertura dos indi-
d o olhar. Aí, tudo s e torna esp e tác u lo . O s indivíduo s p erdem (ou ví d uos e à s ua au s ência d e individualidade forte. É a r el a ção
cedem, ren u ncia m a ) seu próprio esp a ço, daí as várias tentativas de co rn o o u t ro que os d e fin e.
uma d as p ersonagens para faze r os o u tros sa ír e m d e seu universo, 2 . O es p aço é d e sinve stido co mo e s p a ç o s im bó lico. Ele se
o n d e el es vi eram se incrustar. Tem-s e a impress ão d e que o espaço to r n a a pe n as o luga r d e um faze r. M an ipulad o e long e d e
n ão p ertence propriamente aos indivíduos. A peç a o ferece assim
o q uadro d e um recuo d o es paço privado em b enefício d o esp aço 18 Como o o bse rvam G u p ta e Fe rguson, retomando as pro p o si çõ es que D eleuz e
público , trans fo rman do o privado e m público e oferecen d o -o ao d e s envolv e u antes d ele: "A es fe r a pública trans n a c ion a l certamente tro u x e
o lhar. As fr o n teir as e n tre a casa e o mundo se diluem. O sujeito alg u m se n ti d o d e c o munidade es t r ita m e n te deli mitada o u localidade obsole ta .
Ao mesmo temp o , p e r m itiu a cria ç ão d e fo r mas de soli dariedade e de iden ti -
n ão fa z mais diferença entre o que deveria s e r m o strado e o que d ade que n ã o rep ousa m n uma ap ropriação d o espaço o n de contiguidad e e o
n ã o d e v eria, o públic o e o ín t irno . O mundo e n t ra e m ca s a e a con ta to face a face são s u p re mos. No es p a ço p u lve ri zado d a p ó s-mod er nid ade ,
a bertu ra ced e lugar ao fecham ento atrav és da inv a sã o d o ex ter io r", o esp a ç o n ã o s e torn o u ir re le va n te : e le se to rnou re te r r it o ria lizado d e urn
m odo que não se c o n fo r m a à ex p eri ê ncia d e es paço q ue ca ra c teri zo u a era d a
O espaço, que j am ai s é a p resen tado co m o t otalidade , nem a lta m odernidad e, A . G u p ta; J. Fe r g u son , op. c it ., p . 38 . Ele a c r es ce n ta a in da
em sua totalidade, n ão foi inve stido d e nenhum s entido simbó- " D ad o que n ã o é a penas o d eslo ca d o qu e exp e r im e n ta um d esl o c a m e n to. Poi s ,
lico. E le est á aí e m s u a m aterialidade e s e d e spedaça e m e spaços m esm o pessoas qu e p ermane cem e m lu g are s fa m il ia re s e a n cestra is co n s i-
d eram a nature za d e s ua rela çã o co m o lu gar indiscutiv elmente a lterada e a
ilusã o d e um a co nexão n atural e esse nc ia l e n t re o lu ga r e a c u lt u r a, a r ru in ad a :'
17 Co mo o di z H. Bhab h a , o p. c ít., p . 11: " Is to r e sul ta em u m redes en ho d o 19 " Re te r r itoria l izaç ão p ode e n vo lve r o esforço para c ria r n ovas co m u n id a des
es paço do més t ico como es p aço das té c ni ca s de n o r m a li za ção , p asto ralização e resid e n ci ai s lo cali zada s (favelas, ca m pos d e re fugi ado s, a lbe rg ues) q ue pe r -
individu a çã o do p oder e da p olíti c a m o d ern o s : o pessoa l é p o lít ico ; o mundo m an e cem n ã o e m um im a g in ári o n aci on a l, mas apenas e ITI um im agin ár io
d e nt ro d a casa." d e au to no m ia lo cal o u de r ecurs o à so b e rani a': A . Appadura i, op. c it., p. 55·
370 A LJ:.M DOS l.IMITES: O INTERCULTURALISMO . . . TODA TRA N S-A Ç ÃO C O N C L A M A N O VAS FR O N T EI RA S 37 1

apri sionar, é explorado em suas m últ ip las fa c etas. E le d á a cesso 5· A identida d e apa rece aí po rtanto como o resu ltado de u m a
ao a lg ures s e os indivíduos o desejarem . inte r a ç ão , de um recomeço q ue n ã o é o r e sulta d o de condições
3. O perpétuo cruzamento nesse e s p a ç o cria redes que m a r- hi stóric a s s ociai s o u p olíticas, o lugar de u m a transpla n tação
cam co nj untos q ue s e mo d ificam ins tantaneamente para se p erm an ente d o s ujei to n o te m po e espaço, o lugar d e trans-
prestar a o utras trajetórias . O espaço torna - se a pe nas lugar de -a çõ es com se u e n tor no p re sente e p a ssado, m últiplo. Nada d e
trave ssias , zona f ronte iriç a (e n ã o zona de fro n te iras) o n de os fe tichização da noção d e ide n t idade, nada de id e ntidade fixa.
limite s se transpõ em sem cessar. O c r uzame n to das fron te ir as O s uje ito to r na -se o lug a r de identi dades mutan tes, híbridas,
trans for ma necessariamente to d o material o u c u ltura hegem ô" re sult a d o d e tran s - a ç õ e s com seu e n to r n o .
nico s , todo espaço hierárqu ico. E le corit arn ina-" o e spaço. O
G u p ta a fi r m a q ue
e s p a ço torna- se intersticial p a r a a s pessoas. O cruzamento das
fro n teiras é o q ue os conec ta e nã o o q ue os separa. E le p erm ite
N ó s di s cutimos q ue a d esterritoriali za ç ã o d es est abilizou a firm e za
tra ns -ações reais, b a s e ada s não e m trocas d icotômicas ou d e d o " nós m esm o s" e os "o u tros': Mas n ã o c r iou ass i rn s uj e itos que são
v ia ún ic a , mas um network d e movimentos e trocas. m ónada s flutu an te s . .. A o invé s d e anular a noção d e d e sterri torializa -
4. A fronte ira, n e ss e caso, não se refe re a um a topolog ia fix a, ção, a pulverização do es p aç o da a lta mod ernidade, prec isamos teorizar
mas a uma zon a inte r sticial, u m a "zo n a d e desloca men to e des- com o o es p aço está sendo re territoria li zado n o m u n d o c o n te rnp o r ân eo.v
ter r i t orial iz.aç ã o", como o bservam G u p ta e Ferg uson, u ma zo n a Nu m ero s o s pesquisadores d o d om ín io d o s cu lt u ra l studies
que " molda a id en ti d a d e d e u m s ujeito h ibr id izado">'. Num tal diss ertaram a b un dantem e nte so b re o s benefícios de tais espaços
espaço, n ã o é mai s p o ssí v el invocar a ideia o rtodoxa d e c u ltu ra. a be r tos, est r u t uras sem f ro n tei r as, zon as d e p a ssagem que el e s
É um a zona o n de a lguém p ode te s t emunh a r "u m agrup amento defin iram como lo c alid ades, t ranslocalidades, fa la n do d a n ec e s -
d e prát ic a s c u ltu rais q ue n ã o per te nce m a um povo particu lar s idade d e reter r itorialização d o espaço e m re a ç ã o c o n t ra um a
o u a um lug ar d ere r rn inado'l" . Não é um espaço h íb r ido , mas d e ste r ritorial iza ç ã o que necessariamen te espreita o in d ivíd uo.
um espaço d e h ib r id isrno" . T u do isso m e parece a p ro priadame n te expresso t anto e m
Rwanda 94 qu an t o em A lle maal In diaa n, s e n do, evidente,
20 Noção que Barba utili zava para d esi gn ar a form a ç ã o que ele p r ivil e gi ava n a ente ndido que as peças s ó n o s int eress a m p o rque n o s ofere c em
t r a ns rníss ão de u rn sab e r a o ato r e m for'ru a çâo .
21 A . G up ta ; J. Fe rg u so n , op. c it ., p . 4 8 .
uma traduç ã o c o n densada de r ealidades que n o s cer cam .
22 Ibid e rn , p . 4 9 . E la e nfa tiza a produ ç ã o d a lo c a lid ade , co mo um a d im en são d a E u gostar ia d e acrescen tar UITl último p onto às obs e r v açõ es
v id a soci a l, corno u m a es t r u tu ra d e se n t im e ntos, e n q uan to p rese n ç a diante feitas sobre A llemaa l Indiaa n e passar pa ra m in ha última p a r t e .
d o o u t ro, atra v é s d a p ers onag em do i migran te, e la t amb é m ten d e a m o strar
de que m aneira a lgu ns lugares que co ns t it uem espaços lo cais para a lg u ns,
são transl oca is p ara o u tro s, expo n do a com p le x idade d o n o v o es paço e m que
v ivemos. Es ta transl o c alidade seria o r e sult ado d e (ou exp ressa) di ferentes como G u p ta e Fe rguson afi r mam, u m a zo na que "dá for ma â id entidade
fo r mas d e o rga nização hu m ana . Deve mos r e verter est a v isão, co mo G u p ta d e um s ujeito htbr id tzado " E m um t al espaço, n ã o é m a is possível evoca r
e Fergus on têm ace r tadamen te tent ad o , p ara suge r ir e s u bst ituir a ideia de a ideia orto doxa d e c u lt ura . um a zona onde se pode apenas tes te m u nh ar
É

qu e es paços são n a tu r alm ente intercone ctado s, então, p aí ses, n a ç õ es o u ai n da " u m ag lo meramen to d e p rát icas c u lt u rais que n ã o pe r tence m a um povo
g r u pos é t n icos p o ssi velm ente n ã o pre cisa r ã o m ai s u s ar o argu men to para pa r tic u la r o u a um lug a r d efi nido ': Não se trata d e um es paço h íb rid o , mas
e m p rego de v io lê n cia e luta pel o p oder. C o ntu do, e le re com end a in ic iar co m d e um espaço d e h ibridism o .
a "p re m issa de que espaços se m p re fo ram hierarqui c am en te in tercon e ctados, 24 A. G u p ta ; 1. Ferg u son, o p . c it., p . 50 . E le p erm ite a e me rgê nc ia d es s e third
e m vez de n at ura lm ente desconec ta do s , a ssim, mud a n ç a c u lt u ra l e soci al sp a ce, o lug a r d e u m a id entidade outra d e repente tornad a p o ssível d e qu e
co m eça a torn a - s e n ão uma que stã o d e contato e a r ticu lação c u ltural, mas fal a v a H . Bh abha , op. cit. " Pa r a mim , a imp or tânci a d o h ibridism o n ã o é se r
um a refle xão a t ravés d a con exão': A . G u p ta ; 1. Ferguso n , op. ci t., p . 35. Es ta capaz d e traçar d o is m om ento s o r igina is dos quai s u m te r ce iro e merge, pa ra
inte rconexão d o espaço é torn ada p o ss ív el p el a impo r tância dada a lo c a lidades mi m , hib r idismo é antes de m a is n ada 'o terc e ir o espaço', q ue possibilita as
( tra ns loca lidades), o u transcomunidades ma is d o que a te r r itó r io s g r a n d es. hist órias qu e cons tituem isso, e pre p a ra- n o vas est ruturas de autoridade , novas
23 A fro nteira , nes te c a so, n ã o r efere a u ma topo logia fixa , ma s so b re t u d o a inici ativas polít icas [ . . . ] A diferen ça não é nem de Um o u d e Outro, mas algo
u m a zona interst icia l, u m a " zo n a d e d e sl o c a m en to e desterritoria lização" além disso':
AL tM DOS LIM IT ES: O I N T E R C U LT U R A LI S[I.[O . . . TODA TRAN S 'AÇÃO C O NC L A M A NOVAS FRONTE IRA S 3 73
372

Nesse espaço virtual e completamente a ber t o que represe n ta D O A RTÍSTICO AO TEÓ R ICO
a peça, os indivíd uos estão sempre te n ta n d o fechar portas, fec har
j anelas, sair ou entrar para escapar dos o u t r os, porém, no minu to Portanto , p ropon ho uma ap roximação e n t re as dua s peças d e que
s eg u in t e , eles vão reab rir persia nas, abrir portas, ir em d ireção falei e pro curo apontar e m q u e, a pesar da o p osiç ão flagrante que
ao outro. E mesmo ass irn , a fron teira es tá s e m p re se movendo, contra sta as v isões que a m b a s p o ssuem sob r e o mund o (re lação
desaparecendo, reaparecendo e m algum luga r. E m bo r a ela per- co m o espa ço , c o m a naçã o , a identid ad e ) - a primeira m arcando
maneça aí como uma possibilidade constante. Torna-se parecid a o fecham ento e a compartimentação, a segunda mostrando, ao
co rri u m a membrana elástica, uma linh a porosa , que precisa contrário, a abertura extrema e a ausência de fronteiras entre os
e s t a r aí como uma potencialidade a s e r c r uza da" . espaço s e o s indivíduos - , as dua s p eças trazem e m s i, d e modo
A s personagens não cessam, já o dissemos, de tentar, numa inconsciente, talvez, os rnesrnos ingredie n tes q ue expli cam por
interpreta ção de disponibilidade e fu ga, abarcar o que é dado qu e elas s ão o avesso e o lugar de uma mesma r ealidade.
co m o n e ce ss a ri am e nte aberto, zona d e passagem, de fluxo, lugar C o m e fe ito , se co ns id e r a m o s as duas peças e o q u e elas nos
de redes entre os indivíduos , o n de tudo passa e n a d a permanece. diz e m dos e s p a ç o s, dos in divídu o s, das narrat ivas e das formas
As p ersonagens te rminam por se enclausurar na própria abertura>, estéticas que elas ence nam, é pre cis o r econ he cer qu e ce r tas
to d o s c o loca n d o aq u i e ali g estos qu e indicam o fe chamento. ca ra c te rís t icas são aí as mesmas, ve iculando assim ern filigrana
Vamos no s d eter um pouco sobre e sse desejo de fron teiras u m d is c urs o qu e poderíamos tender a oc u lta r.
( d e limites) qu e me leva a me u ponto de partida quando desta- De fato, o que as d uas p e ç a s mostram ao m e s m o tempo?
cava, e u r e c ord o , que e m to d o m o vimen to d e a be rtur a, h á uma 1. A diss oluç ã o d a iden t idade d o s in divíd uos represen tados.
t en d ê n c ia ao fec hamento. No primeiro caso, os indiv íduo s contam s ua p r ópria h istória ,
A segu ir, gostaria de expo r sob re a n e c e ssidade d e e fe tiv a- m o stram como p e rderam n o d r arna inesperado sua p rópr ia iden-
men te d a r atenção a a lgu ns discurs o s (d iv inos?) que só visam tid ade p a r a n ã o ser m ai s ident ificados senão a u m grupo étnico.
a abertura d e espaços (e d e in divíd uos) em termo s positivos Privados d e existênc ia autônoma, li g a d o s a u m grupo é tn ico , é
de renovação e d e enriq uec ime nto d o s s ujeitos, de luta con t ra es te último q ue os d e fin e e p el o m esmo m otivo que os conde na
os n acionalismos dive rso s, os Estados soberanos e a s exclusões a mo rrer. E les perdem aí se u papel de mãe, esposa ou filha p ara
de toda sorte. Não duvido q ue h ouve e fe t iv a m e n te n umerosas não ser m ais que um n ú m e r o designado na m a ss a , no s braços
vantagens para a ex is tê n cia de tais espaços o u de ta is d émarches d o s assass inos .
(no mundo em que nós vivemos seria a liás difícil fa zer de outro No caso de Allemaal India an , as p erso nagens interpretam
modo) , mas é preciso p ermanece r vigilante quanto aos di sc ursos certos papéis de mãe, filho, esposo, mas papéis são desprovidos
dominante s e jamais perde r d e v is ta, e u creio, o avesso d a s coisas. d e v it a lidade, t ã o s uperficiais , feitos d e tantas ações sem conse-
q uência, de p equenas frivolidades da vida cotidiana d eixadas
25 "Zo n as d e fron te ira es tão s e to rnando ag ora esp aço s de c i rc u la ç ã o c o m p lexa ao acaso dos e n c o n t r o s e das situações, q ue o espectad or tem a
q uase le g al d e pess oas e b ens . Exem p lo : a fr o n te ira e n t re o s E U A e o M éxi co.
é u m e x celente exe m p lo de um ti p o d e t r an sl o c a li d a d e . Se m el h a n te m e n te, impressão de que assis te a uma dissolução também da própria
v á r ias zo n as tu rí s t ic as po dem se r d e scrit a s co mo tra n slo c a lid ade s [ . . . ] Todas identidade do s indivíduos . Em q u e tal di ssolução coloca b ases
as zo n as d e com é rcio li vre são zo n as d e co m é rcio livre, lug a r e s turístico s. d o h ibridis m o do novo s ujeito por vir e q ue permanece ainda
g ra ndes cam pos de r efu g iad o s. viz in has d e exilados e t r ab alhadores convi-
d a d o s . um a t r ansl o c a li d ade." A lg ué m p o d e a ss umi r, n a p er fo rrn a n ce . q ue
É
a de terminar?
as pers o nagen s precisam desse lim it e ( fr o n te ir a) pa ra p o d er j o g a r co m isso
2 . A segunda característica que liga a s duas peças vem de que
e o cu p a r o es pa ço d e o ut ro m odo .
26 F.. intere ssant e n ot ar que é n es sa vi sã o d e a be r tu r a te r rivel me n te pre cária e n o s d ois un iv ers o s o priv ado s e to r n a públic o . Imp o ss ível de
pe rigo sa qu e o púb lic o n o rte a me r ica no e , e m p a rticul ar. os jovens. re conhe- se fi r m a r num a in t im idade que ind ivid ualize o s uje ito; t u do é
ce ra m -se m a is fac ilme n te.
37 4 A L~ M D O S LIMITE S: O I N T E RC U LT U RA Ll S M O . __ TODA TRANS-AÇÃO CONCLAMA NOVAS FRONTEIRAS
375

v iv id o co n stan teme n te à v ista d e todo s (daí a s tentativa s per- os c a m a r a d a s vão efetivamente dizer que ele está nos limites
ma nen tes das pe r so n age n s em A lle maal lndia an d e pux ar as do v a z io) . A violência está nas fraquezas de ca d a um e e clode
pe rs ia n as, fech ar a s portas , es co n de r a s j anelas e s e enclausurar às vezes e n tre os se res, se volta contra os o bjetos, se orie n t a às
no fundo de cad a cô m o d o ), mas para tamb ém s a ir de lá, in ca - vezes contra s i própria (ten tativa de s u icíd io, jogo com a m orte).
p a z e s d e v iver fo ra d a relação c om o o ut ro. E o espectad or ass is te impotente o jogo que poderia a q ual-
Em Rw anda 94, a n egaçã o d o priv ado também es tá presente, q u e r mo mento d e g ene r a r n u m jogo d e m a s s a cre. Por tan t o,
mas é imposta à força, a partir do exterior, p elos g enocidas. No a violê nc ia es tá aí (ap e sar d e ce r tos m omento s d e te r n u r a e
c a s o de A lle m aa l Indiaan, parece s obretudo assumida pelas d e felicidad e , fran c a men te !) provando que esse universo d e
p ers onag ens, os indivíduo s a p a re n ta n d o se a c omodar n esse abert u ra ve ic u la co nsigo s uas zo nas som b r ias e seus perigos.
m odo de v ida o n de o privado se t orn ou p ú b lico, priv ando o Nós ent ramos n o u niv e r s o iriu rriario o n de as iden t id a des
se r d e toda intimidade. Os s u j e itos s ão objetos do olhar dos fo r tes efet iva m e n te se d e s fa z em , o n de os indiv íduos re criam
o u t r os e s u b m e tidos a seu olhar. O se r desapare ce n esse olhar co m p ouca co n v icçã o s u as fr onteira s (ch a mem os de limites) de
que , longe d e lh e p ermitir localizar os s ig n os distintivo s, só qu e eles teriam n e c essidade sem dúvida d e melh or se e nco n t r a r.
re co n h ece o que t o rn a os s uje itos semelha n te s uns aos o u t ros,
4 · Esses d ois espaços são o lug a r d e trans -açõ e s que n ão t êm
p ortanto, s e m diferença (indiferentes) .
ce r ta me n te n ada d e c o m u m nern e rn força, nem e m v io lên c ia,
N o s d o is casos, o re sultado é qu e todos os eve n tos d o co t i-
mas lá o n de R w an d a 94 est a belece um s is tem a linear e unívoco
d ia n o s e t ornam "e s p e t a c u la re s", isto é , "o b j e t o s de espet ácu lo",
en t r e os car rascos e a s v ít imas, A lle m aa LIndiaan , por s u a v ez,
c orno o filme documentário e m Rwanda 9 4, ao alinhar o s cor-
prefere um s is t e m a de r elação e d e interação construído sobre
pos massacrados que u rna câmera filma com a colaboração
a circularidade do s eventos , das r el a ç õ es e dos indivíduos. As
b enevolente dos assassinos, que s o r r ie m, mostram a tomada
micronarrativas s e e n t r a n çam no c a os de gestos insignificantes
(co mo um quadro d e caça) e fa zem sinal para a câ rne ra, esq u e-
da v id a cot id ian a, e n q u a n to em R wa nda 94 , assiste -se também
ce n d o o h orror d a a ção exe c u t a d a.
múltiplas mi c r onarrativas, que, todavia, compõem uma narra -
3 . A terceira c aract e rís tic a é que, de modo s u r p reen d e n te, a çã o : a d a e lim in açã o d e um a e t nia .
v iolê n c ia ocupa o s dois univ ersos. C la r o , não possui a m esma
fo r rn a, n ern a mesma intensidade, nem o m esmo sentido, mas 5· No s d ois cas os, e st a m os num c erto caos. N o primeiro caso,
se r ia um e q u ív o co p ensar que a v io lê n c ia p ertence s o me n te ao
Rwanda 9 4, trata- s e d e um caos que tem sua origem na abolição
de uma ordem que dava a ilusão d e repousar sobre uma ce rteza
e n cla u s u r a men t o evo cad o e ITI Rwanda 9 4 . Pre sente , d e m o do
ética. N o seg u n do, A lle maa LIndiaan, o cao s é e strutural. É a
insuportá vel e m R w anda 9 4 , que evo c a a barbári e hum ana,
própria v id a que é des e struturada e as coisas a í s e tornaram
ela está igualmente pre sente, mas de modo dissimulado, mais
se m importân cia.
difuso, em Allernaal Indiaan, Feita de p equenas fraqu ezas e de
traiç õ e s minúscula s , a v io lê ncia é c o nst a n te. A flo r a n a s rela- 6. Tem -se a impress ã o e m a m bos os cas o s que a s noçõ e s de
ções e n t re o s in div íd u os, s u rge d e rep ente e m certas form a s d e ética cad uca ram, mas p or m otiv o s diferentes . N u m caso, é por-
j ogo , d e a t u ação p ara d e s apare c e r tamb ém d e s estabiliz ando que ho uve uma re vers ão de uma cer t a o rd e m s o cia l, ela própria
o s se res ( p o r exemplo, a mãe fa zendo a morte e o p ânic o no fu n d a d a sem dúvida sobre um a cer t a viol ência, e que ern seu
o lhar d a crian ç a. O jogo d e a t uação se p r olonga p a r a a lé m luga r n ada foi instit u íd o . N o seg u n d o caso, p orque p arece difícil
do simples jogo de modo que o espectador é, e le também, d e de in stituir n o espaço ab erto e s e m an coragem socia l o u p olítica
repente, tomado pela dúvida; ou ainda, a c riança avan ça n do d e A lle maal In dia a n d ire itos o u c!.everes que n e c essitam p o ssui r
de o lhos ve ndados sobre a t áb u a com a inqu ietude de saber se u m a visão d a socied ade à qual as p ira -se. Nesse últ irno caso,
ALIÕM D O S LIMIT ES : O I NT ERCULT UR ALl SM O . . . TODA TRANS -AÇÃO CONCLA MA NOVAS F RO N T EIR A S 377
376

está-se propriamente numa sociedade fundada sob re a abertu ra q ue pode ser cornparado a zonas de trânsito onde as apostas do
e a ausência de fronteiras entre os indivíduos, entre os espaços, rriundo são provisoriamente suspensas (mesmo quando os inci-
rnas ao mes mo te mpo a ú n ica estr u t uração que perma nece é den tes do espetáculo são reais) : aeroportos, hotéis, estações de
aquela das interações que ligam os ind iv íd u o s entre si. trem . Ele se t o r n a a zona de fronteira que, em si própria, é rnais
interessante que os dois lados que ela delimita, porque é nesse
7. Seria tentador dizer que nós entramos num terceiro espaço lugar único q ue as trans-ações são verdadeiramente possíveis.
que Homi Bhabha gostaria de ver emergir a partir desses espa- Ao re presentar não so rnente o mundo como é, mas mos -
ços intersticia is, zonas de fronteiras (sem fronteiras), lug ares trando q uais são as novas fo rças q ue o traba lham, tornando
de diáspora c u ltu ral e política. visíveis certas compone n tes que const it uem u m universo q ue
De fato, o que as duas peças e ncarnam com força, s im u l- nos envolve, ao most rar-l he as con t radições e a face escondida,
taneamente, é a necessidade de toda trans -aç ão, mas tam bém o teatro desempenha seu papel d e revelador. Torna-se um instru-
se u perigo q uan do ela se es te ia n a a be r tura ilusó ria de lugares mento cognitivo impo rtante, c u jas imagens p or ele projetadas são
tra ns-acio nais a bsolu tos. uma con t r ib u ição conce it uai. Esse mundo , que n ã o é faci lmen te
Em ambos os casos, as f ron tei ras p erm an e c e m e é pre ciso decodificável e m fun çã o d a s categor ias clássic as, o tea t ro p e r m it e
prese rvá- las, fro n tei ras q ue, e ntretanto, n ã o dist irig uern mais p enetr ar. E le d e s empenh a seu p ap el di al étic o e p re e n ch e s ua
os li mite s geográ ficos, n a cionais o u é t n icos, m a s q ue d estacam fu nção c rít ica .
a abso luta n e c e ssidade d e fazer, d e m odo que o p r ivado não Iss o n o s p ermitiu fa z er a trave ssia pela s du a s peças .
se t orne públic o, c aso co n t rário o suj eito a n u la a s i próprio no Darei a s últimas p alav ras a H omi Bhabha, que já o bservav a
es pe tácu lo. É o que G uy D ebord e x p r esso u muito b em . e m 1994:
P a ra fi n a liza r, r etorno ao teatro e ao n o ss o p a pel nos estu-
d o s t e at r a is. Q ue t emo s a d i z er d e tudo iss o ? Q ue discurso
o es t u do d a literatu ra d o mundo d e ve ser o es tu do do mo do a través
do q u al c u lt u ras se reco n hecem a través d e suas projeções de "a lte r id ad e"
devemos apreen der sobre as práticas ? Onde outrora a t r a n sm iss ã o de t r a d içõ e s nacionais foi o grande tema
Se nos co nte ntamos em repertoriar as formas artíst icas e as da literat ura do m undo, talvez possamos s ugerir q ue his tórias t raris -
práticas, ar riscamos p e r m an e c e r num forrna lisrno certamen te nacionais de migrantes, o colonizado o u refugiados políticos - essas
útil, mas p ouc o eficaz; se n o s co n ten tamos em sal ie n tar nas condições de li m it e e de fronteira - ta lve z ten ham se to r n a d o os terre nos
produções ar tíst icas, s ua adequação co m o real ou o discurso da literatura d o mu ndo. "
Privado e público, passado e presente, a p s ique e o social desenvol-
que elas possuem sobre o mundo, a déma rche é certamente útil,
vem uma intimidade in te rst ic ial . É u m a intimidade que interroga divisões
mas corre o risco t a mb é m de ter um a contrib uição limitada ; binárias at ravés das quais essas esferas da experiência social são geralmente
o t r a b al h o d a pesq u isa só é int e ress ant e se ela co nsegue ler, opostas n o es paço, momento de distância estética que proporciona a n a r-
descobrir, traçar d entr o d isso q ue n o s é a p resentado cam in h o s rativa com d upla face, q ue representa u m hibrid ismo, uma diferença " in te -
ainda inexplorados . rior': um sujeito que h abita a margem de u m a "realidade intermediária"' 8.
O interesse por esses dois espetác u los se dá porque eles
nos permitiram assis tir à criação d e n o v o s territór ios, o bse r v a r Pode-se questio n a r como u m a peça d esse ti po vai ao encon-
uma per meab ili dade d e fro n teiras que poss ib ilitam esca p ar à tro d e s ig nos d e co m par timen tação d e que ela fa z a n a r r ativ a ?
rigidez de realida d e s coerc it ivas, do real, e que , ao p ro po rc io n a r De que modo e la con t r ib u i, p ara a lém d a s im p les evocação
um rec uo, pe r m ite m u m a d istân ci a c rítica. E las re a fi rmam a d e ss e s eve n tos trági c o s , p a r a m odifi c a r a visão d e um fec ha-
realidade d o teatro. O teatro a parecendo co mo u m a zo na d e mento na visão estreita do terr itório, da nação, do Estado ou
fronteira em q ue se pode dizer as coisas, lugar entre dois que 27 H. Bhabha , op. cit. , p . 12 .
escapa a uma categorização de nat ureza política apressa da e 28 Ib ídern , p. 13 .
378 ALE M DOS LIM IT ES : O I N T E RC U LT U RA LI SM O . . . T O DA T RANS -AÇÃO CONC LA MA NOVAS FRO N T E IRAS 37 9

d o i n d iv íd u o ? D e qu e m odo p e r mi te i n sc re ve r uma aber tu ra a lógica binária q ue d iv ide os r ua n d eses e m tútsis e hútus,


poss ib ilit a n do trans - a çõ es f u tu ras ? s u b s titu in d o- a por um a lógica mais comp lexa c o m apor tes d e
E u distinguirei mai s níveis , alguns a d vê m d e fa to res não o u t ras o r ige n s , e m que o p rese n te n ã o p ode ser n em o s imp le s
a r tíst icos, fa to res qu a s e co n t inge n tes , e n t r e t a n t o , imp o rtantes; prolongamen to do p a ss a d o , n em uma rup tu r a , mas é fe ito d e
o ut ros , res u lta m de fa to res propriarn e nte artís t ic o s. d e scontinuidad e s , de c omplexidades e d e exp e r iê n c ias.
1. A n tes d e m ais n ad a , o exclu siv ismo é t n ic o obse rvad o em 4 · Co m efei to, ao rec usar a m bas as gran des n a r r ativ a s u ní-
Ruanda durante o s even tos d e 1994 n ã o ocorreu e m ce n a por- vocas, a forma a dotada p el a p e ç a sob ressai d e uma hibrida ç ão
que u m do s atore s e ra, pare c e, h út u" , uma presença e n t ret a n to d e gêne ros . Ass is t ia-se a uma mistura d e fo r mas q ue i am do
não afirm ada na n arrati va. M e smo mod e sta, essa a be r t u r a era te stemunho , d a con fissão ao es t ilo a u to b iog r a fia narrada , do
pertinente. exame d e p rovas e m re portagem t el e visi v a , p a ssando p o r c o n -
2. A lém di s s o , d e sd e o início d o es pe tác u lo, os a tores ter- fe rê ncia e m b o a e d e v id a forma (45 minuto s ) , a a bor dage m
min a r am c onstituindo urn a d i á sp ora . D ad o que todo s e r a m vi o le n ta d o p úbli c o - se n ã o m e escu tarem, vocês p articiparã o
o r ig iná r ios d e Ru and a (exce to os a t o res belg a s ) , a lg u ns deles co mo ca r rascos - , a a nálise c rític a , mi cro fic ç õ e s , o ratória, o
te rminaram p edindo o es ta t u to d e re f ug iado s qu and o pas- r e curs o às míd ias el etrôni c a s o u a in da à can t a ta. Ao m e smo
s a r a m pela Franç a o u pel a B élg ic a > : o u t ro m odo d e lutar t emp o , evit a n do re crutar o público, fa ze r uma c r u z a da pela
co n t r a um a v isão identitári a qu e liga irrem edi avelm ente um justiça o u fa zer um ato d e reiv in d ic a ção, e v it a n do tamb ém a
e spaço geográfico e um a identidade é t n ic a . N ó s e n t ra m o s em n arrativa patética, a peça foi a p resen t a da d e modo é p ico.
zo n a s e m que as identidades , longe d e ser unívo c a s, t ornam -se Diferentes procedimentos a r t ís t icos coexistentes p ermi -
interativas e n ão se diminu em c o la n do-s e a uma n a ção, um tiram fa z er desse espetá culo um c o n j u n t o que tem êxito e m
Estado, um p aís ou m esmo uma localidade. Elas e stão ligadas con s e rva r a dignidade que o a ssunto impôs. O hibridismo do
d ir etarn e n te com o presente, um presente qu e cons erva sem c o n j u n t o - colagem, montagem, bricolagens diversas - foi
dúvida relaç õ e s com o passad o, mas segu n do p arâm etros que um a r éplica el oquente p ara a purificação é t n ic a que a narrativa
n ã o são mais a q u eles da n o stalgia o u da r ecus a . Advêm de re c ordava .
nov o s esp a ços, espaç os interstic iais , es p aços d e fronteira , o Noss o objetiv o fo i mostrar co m o t odo discurs o de a ber -
t h ird space ( te rce iro es p aço) d e qu e n o s fala H omi B hab h a, o tura - como p ode se r o d o tí tulo d o co ló q u io - trans -ações - te ve
lugar d e uma di á spora c u ltural e p olítica. como co n trapart ida o s urg imen to d e n o v a s fronteiras.
3. Co n t ra a unifo rmidade d o g r u po, a peça afirmav a a iden-
tidade dos indivíduos e de s u a trajetória n ica>'. Ela recusava ú Tra d. A d r ia no c.A. e So usa

29 D e fa to , trata - s e d e u m t úts i, d esqu al ifi c ad o e m h útu por q ue é p o bre .


30 Aliás. receando q u e a lg uns d el es requeress em o es tatu to de refugi ado s, o Canadá
lhes impô s grandes d ifi c u ldades p ara co nferir um v is to pa ra atuar n a peça. Foi
somen te co m a m obi liza ç ã o d e todo o m e io que a p eç a se torn ou p o ssível.
31 H . B habh a , o p. ci t. , p . 2 . " Ess es es paços ' In te r v a la res' propi c iam o terreno
para a e laboraç ã o d e es t raté g ia s d e i nd ivid u a li d ade - s i ngu la r o u com u n a l-
q u e cria m n ovo s s ig nos d e íde nti dad e e o lhar es in o v a d o r es de cola b o ra ç ã o e
co n te s tação, n o a to d e d efinir a ideia da própria soc ie d a de.
É co m a e mergê ncia d o s interst ício s - a sob re posição e d e sl o c amen to
d e d om ín io s d a di fe rença - d e que a expe riência intersu bje t iva e co le t iv a de
n a c io n ali d a d e , i ntere ss e co m u m, o u va lo r c u lt u ral são neg o ci ados . Co mo
sã o formados s uj e itos "i n te r v a la res . o u em e xc e sso d e, a so ma d e ' p a r tes' de
d ife r e n ç a (n orma lmente , e n u nc ia dos c o mo r a ç a / cl a sse / g ê n ero e tc .) ?"
4 . Em Direção a Identidade s
Transcultu rais

o intercultu ra li s m o a in da é possível?

Esse tex to se p rete nde o prolongamento d e um a r tigo p ublicado


sobre o o r ientalismo e m espetác u los de Mnouchkine, artigo que
foi p u b licado no livro Trajectoires du So LeiL(Traj etórias do Sol)
e fora apresen tado num co ló q u io organizado por M its uya Mori
e Tomoko Saito e m Tókio n o ano d e 2011' . À época, e u havia
apresentado essa reflexão sobre o interc ultural ismo a partir d o
exemplo d e Ariane M nouchki ne , toman do como exemplo o
c iclo d e Shakespea re (R icardo II, H enrique IV, p rincipa lme nte)
e ao tentar la n ç ar lu zes sobre a insp iração japonesa que habitou
Mno uchkine q uando da criação dessas obras, a ssim c o m o a
r e c e p ç ã o q ue t a is espetáculos p rovocaram em toda a Europa,
sob retu do o sen time n to p ara a maioria d o p úblico da época de
uma criação q ue restituía características p r ó p r ias ao Japão ou
à imagem q ue o público faz ia dele. A discussão foi aca lo r a d a e
nossos a nfitriões japoneses não cessaram d e repetir qu e, para
e les, a p ro d ução n ã o r e p r e se ntav a n en hurn ingrediente pro -
priamen te japonês.

L'Orierit re v is it e , e m J. Féral, T raj ect oi res d u Soleil, Pa r is: Editions Th éâtrales,


2005, p . 225-2 43. O co ló q u io oco r reu e m 200 1. O te xto a qui anexa do foi apre -
se n tado n o coló q u io qu e segu iu e m 2006, IV Inte rnati on al Co lloq u ium of
Theat re St udies in Tokyo, o rga nizado p el a s Universidades Meiji e Se ij o .
382 A Le.M D O S LI MIT ES: O IN T ERC ULT URALI SM O .. . E M DI RE Ç ÃO A ID E N TI D A D ES T RANSCU LTURA IS ... 383

o descompa ss o d e i n ter p re taçã o foi , para mim , perturba- A que stã o que g o staria d e colocar h oje é a s eg u in t e: o inter-
dor, mas foi tamb ém ex t r e m a m e n te frugal na m edida em que c u lt u ralis mo fe ito d e em p rés ti m os, cr uza me ntos o u influ ências
e u nã o parei mais d e tent ar c o rn p ree rrde r a s razõ es de uma d e c u lt uras - o n ip rese nte n a p r á t ica te atral d e h oj e - e que s e
tal defasagem ' ern nossas a nál is es re spectivas d e um mesmo d eclina sob rri ú lt ipla s for mas qu e seria necessário es t u d a r e m
fen ômeno artístic o e d o interculturalismo q u e e le revelava. O d etalh es pa r a e v itar gen eralizações - a in da possui um se n t id o
in te rc u lt u r a lism o p oderia ser relativo ao espectador? D epende- a u tê n t ic o ? A in d a p oderia n o s aj u da r a p ensar os fe nô m e n o s
ri a do contexto d e c r ia ç ã o ? De recepção? Todas essas questões d e qu e s u pos t a men te d e veria d ar c onta? O q ue ele n o s diz do
ab stratas me levaram s e m cessa r a uma que stã o pragmática estado d a s prátic as artís t ic as d e h oj e?
b em s írri p les: por qu e os j a p o n e ses só v iam o o c id e n ta l n o s Para la n ç a r d e rep en t e urna hipótese qu e n ão d eixará
espetácu los em que o s e u ro pe us v ia m formas d e c u ltu ra pró - d e pro v o c ar a lg urn as reações vee me n tes , ava nce mos nis so.
prias ao Ja p ã o ? C o n fo r me o i nterc.ultu r a l ts rno traz e m s e u c oração a noção
N ão r e t o m a r e i aqui esse lo n g o debate (sobretudo, por q ue de diferença - diferen ç a d e culturas (dramat urgias, técnicas,
n e cessi taria fa z er uma exp lica ção m uito lo n g a que pode remos lí nguas , m odos narrativo s , c o nce pçõ e s cên ic as) - pensar a
a b o r d a r e rn o u t ro m om ento ). N ã o o recordo co mo s in to m a d e diferença n o s termo s n os qu ais a p ensamo s hoj e (com o um
u m mal -estar pro fund o que percor r e toda leit u ra in terc u lt u - p rogre sso, um sig no d e abertura de nossas so ciedades e de
ral. E le ap onta certas disfunç ões - do lado da c r ia ç ã o como no ssas práticas artísticas à a lter id a de) - com todo o disc urso
daq uel e da recepção - e encaminha, afi nal, em último recurso, b em pensante e leniente tornado aquele d a maioria - não é iss o
ao próprio espectador, à sua su bjet ividade (portanto, à b agagem fi nalmente proc u rar promo ver um a di ferenç a e m uma é p oca
c u lt u ral d e cada um ). na q ual a id e olo gia da d iferença e d a e q u idade se t ornou a
O exem plo me perm ite também apontar o que já e ra um p ro - norrna - para n ã o d iz e r u m dogma? Não p o d ere m o s d iz e r que
blema e m 19 9 7 (u ma in terpre tação diferente d o interculturalismo pensar a d ife r enç a , lo n g e de a largar os esp íritos e de p e rmitir o
e su a lo c aliza çã o e m cult uras div ers a s ) n ã o está s uperado, bem diálogo e n tre cul turas, t e rmina, e m ú lti mo rec urso, refo rçan do
ao contrár io, creio que ele se amplificou na medida em que as a s individualidades, as especificidades, indo ao encontro desses
prát ica s in tercu lturais tornaram -se d iversificadas e mult iplicadas. d iálogos d e c u lturas q u e e la ten de a iristitu i r-.
O inte r cultu r ali s m o n o campo a r tístico se aj usta b e m tanto E u n ã o procuro co lo ca r em q uestão as práticas in tercu lt u rais
do la d o das culturas ocide n t a is quanto do la d o das culturas e m s i que s ão mais do que nunca um a specto q uase onip re -
asiáticas, notadam ente japonesas e c hinesas ou c r ia ç ões c omo s e n t e de práticas atuais tanto na Europa quanto na América
aquelas d e Yukio N inagawa , Tadashi Suzuk í, o u Ong K eng Sen do No r te, n a Ásia, n a África o u no Oriente Médio (é o que ri ã o .
(por exemplo, seu L ear de 1997, ou s ua Desd êrnona, de 1999, param de nos mostrar os fe stivais e espetác ulo s que doravante
o u a temporada britânica de Shakespeare no Jap ão, UK9046) viajam m undo afora: veja -se a ópera montada por Schech ner
p ermi tir a m c r uzam.entos de d r am atu rg ia s , t é cnic a s de in ter- na C h ina, a sessão Shakespeare no Ja pão ( U K9 0 4 6 ) o u oLear
pretação e s is t e m as d e representação. de Ong Keng Sen ) , porém para in ter rogar o discurso implícito
que toda prática interc ultural traz em seu â m a g o .
2 P enso ter e n con t rad o um el emen to d e s o lução e m A b ra ham M oles e s u a s Em si, a que stã o não é nova, mas a respos ta que se pode
te o r ia s da r e c ep ç ã o . Esse últi m o m o s t r a , e m p articular, como to d a le itu r a dar hoje é diferente do que poderia ser h á c inco, dez, q uinze ou
sob r e a o riginalida d e de um a o b ra - seja li terária o u artística - s e fa z sob re
a b a se d e u m a d o se d e redu n d ân cia. Q uanto à impre ss ão d e originalid a de,
vinte anos a trás. Com efeito, hoje, a questão necessita de u m a
e la ve m d e um a mi stura d e impre visibilidade e de ruptura n o c a m p o d a resposta q ue le ve em conta a s it u a ç ã o do m undo e das fo rças
p erce p ção le v a n d o o es p e c ta dor a mod ificar s u as refe rê n c ia s e s u a v isão. Ve r
J. Fér a l, P ercepti on s de l'inte rculturalisme : l'exemple d 'Ari ane M no uc hklne" 3 A d ifi c u ld a d e n ã o se r ia, ao i n vé s di ss o , e nco n t rar disc u rs o s a r t is t icos, qu e
a p rese n tado na Gete a, Bueno s A ire s , 19 9 9, e nes t a e d ição. assu mem a resp onsabilidade em relaç ão a o socia l e ao cole t ivo?
3 84 AL f M DOS LIMITES : O IN TERC ULT U RALl SM O . . . E M D IREÇÃO A I D E NTI D A D ES TRANSC ULT URA IS .. . 385

em prese nça, si m u ltanea me n te a o nív el p olítico, fi losófico , ao m esmo tempo, de nossas sociedades diversificadas e pl uri-
antro po lóg ico, lin gu íst ic o e ao n ível artístico. N u merosos são c u lt urais, fe itas d e migrações m últ ipla s; mas ta m b é m de nossas
aq ueles q ue e scre v e r am s obre a que stã o : d o lado fil o s ófico e individualidades c u lt ura lmen te complexas. Não se t r a ta aqu i d e
polí t ico ci temos Tzve tan Todoro v, F rançois Lap la n t i ne, C la u d e louvar as vantagens d e um turismo to rnado m e rc ado r ía , porém ,
C lane t e sob re tu do o fil ó sofo C harles Taylo r-, do lado d o teatro, m ai s pro fundarnente , d e reco nhecer que as m igra çõ es - vo lu n tá-
Ja cquelin e L o e H el en Gilb ert, Uma C ha u d h u r i, C. Balm e e, rias ou in v o lu n tá r ias - são h oj e e m dia uma evid ê nc ia, e rn esrno
cl aro, Rustom Bha ru cha, qu e foi um d o s primeiros , dep ois de uma n ecessidade. P orque as migraçõ es , vividas sob o m odo e u fó-
E dward Said, a te ntar fazer a liga ç ão e ntre interculturalismo e rico o u sob o modo disfóric o , afetam, é cl a r o , as sociedades nas
polí tica (de n u nc ian do uma estratégia de interculturalismo que quais se insc revem, forç ando -a s a redefin ir seus limites e zo nas
Bhar uc ha avalia co mo urn avat a r d o colon ialismo). d e liberdade (veja-se a ques t ã o do k irp an n o Canadá o u do véu
Digamos também que a q ues tão do in te rc u lt u ral ismo, islâmic o n a F rança) . P o r q u e o fa to d e as m igra çõ es afetarem as
p erman e c e u rna pro b lemát ica que conce r ne b em m a is a o s práticas a rtísticas é a penas uma d a s co nse ql~ê nc ias e n tre o u t ras
te óric o s , t eatrólo g o s , fil ó s ofo s , linguista s e a n t r o pólogos, que d esse est a d o d e co isas.
t entam d e finir-lh e as p rern issas, a s m anifestaçõ e s e os obj etivos E n t ret a n t o, o s u r gi me n to d a alteridade n o seio d e n o s sas
a inda mais p orque ela não preo cupa o s praticantes fa ce à c r iação, vidas prov o c a n e c e ssariamente o r e corihecim e nto d o O u t ro:
estes es tão com p ro m e t id o s co m a urgência d e uma prátic a que um outro, longínquo ou pró xim o , que obriga a s ocie dade, o
respo n de iniciahnente a n e c e ssidades a r t ístic a s>, O intercultu- indivíduo e a arte a se redefinir. A r ela ç ão c om o outro é v iv id a
r alismo ser ia a ssim um efe ito a posteriori de urna dinâmic a que diferentemente segundo o país , a s ideologias, o s partido s políti-
a n tes d e tudo a urgência artística motivou. Algumas con st a t ações cos, a s culturas e os indivíduo s. É v iv id a , pois , diferentemente,
se impõem. à medida que se trata de dar c o n t a da alteridade no c otidiano
ou no campo artístico; à medida que ess a alteridade surg e num
país d e imigração (co mo o Canadá, os Est a d os Unido s , o R ein o
A N E C ESSIDAD E D E PENSAR Unido o u a Fran ça) ou um país d e e m ig r ação ( c o mo a lgu ns
O INT ERCULTURALISMO países d a Á fri c a ou do Oriente M édio) .
RELACIONADO AO POLÍTICO Portanto, pode-se realmente dissociar a an álise d o inter-
c u lt u ralis mo artí stic o d o interculturalismo p olítico e so c ia l
Um a Fascin açã o d e D ois G u mes (assu m id o ou s u b met id o) ? Pode -s e dizer que a essência da a r te
é de se m anter e m h eterotopia e m rela ç ão ao social d a m esma
O intere s s e pelo intercultural - noção que se a m p a ra hoj e s o b r e maneira que lhe foi frequentem ente c r iti ca d o ? P ode- se e studar
aquel a s d e multiculturalismo e transculturalismo ( n o s e n t id o o s cruzamentos artísticos de todas as naturezas sem a n a lisar o s
que o c u ban o Fernando Ortiz d eu àquele t ermo ) - é o s ig n o, pressup o sto s p olític o s e é t icos s obre os quais os c r uzame n tos
repousam? Tal é uma das múltiplas questões que se coloca m
4 Ver também Julie Holledge; [oanne Tornpkins, Pa rrice Pavis, Er ika Fischer-Lichte,
C la ude Karnoou th, Le v G raham, I.R. M ulryne , B. Marranca, S. Hil f. Jo n athan hoje quando se aborda a qu estã o do i ntercultu ralisrn o i"
Dollimore e n tre o u tros. Sem n ecessariamente des ej ar e n t r a r no s entido m ai s radi -
5 Deste p onto d e v is ta, a qu est ã o d o int ercultu ralism o apresenta a lgum p aren -
cal de alguns pensadores do interculturalismo - notadamente
te s c o co m a d o pós- moder nismo, que não co nsti t ui ne m u m m o v imento
artístico n em uma es té tica d e fi n id a e que são, mais frequen temente, etiquetas Daryl C h in, Carl W eber e R . Bharucha - nós s o mos obrigad os
coladas a pos teriori em p rá ticas q ue necessariamen te não as reivindicam.
Entretanto. uma aproximação tem seus limites dado que os artistas possuem 6 São questões no cerne da reflexãõde pensadores tai s c o m o Edward Said o u
mu ito mais consciência dos cruzamentos intelectuais e de sua neces sidade. e Rustom Bharucha (se g u id o s por Arjun Appadurai ou Una C h a u d h u r i e tantos
qu e eles não se preocupam com p ó s -modernismo. o u t ros) que foram o s primeiros a m o strar a ambiguidade d essas d érnarch es.
386 ALÉ M DOS LIMITES : O IN T E R C U LT U R A Ll S M O .. . E M DIREÇÃO A IDENTIDADES TRAN SCULTURAI S . . . 387

a a d m it ir, e n t re ta n to, que o problema do interculturalismo hoje a arte t endo , e m t odo s os t ernpo s , v ivido d e e m p réstimos. É o
não v e m de uma falta de interesse pelo O utro, mas de uma que fazem os partisans de um interc ulturalism o sem limite e
g ra n d e paix ão p el o outro (a o meno s no domínio artístico): s o b r e t u do artistas c o m o Mnouchkine, Brook o u Barba, mas
um "excesso d e desejo pelo Outro", diz Rustom B haru cha7. também Tadashi Suzuki , Ninagawa, Ong Keng Sen;
C la r a men te, a s ua preocupaç ão n ão é c o m o mérito de outras b. é b om o fato d e que o campo das artes s irva d e mo delo ao
c ulturas, mas com a mística d e sua diferença (eu a doraria t ra ba- político e permita um diálogo que s e desenvolve e m t ermos
l har co rn o s zulus , s e r ia s u a resposta e n t us ia s m a d a) . De modo mai s difíceis no c a m po do social e do político, o teatro p odendo
efetivo , há algum a coisa d e profundamente perturbador n e ss e mesmo ser o lugar de utopias que o so c ial n ã o p oderi a p ermitir.
ilimi tado e n t us ias m o pe la alteridade, a lgu ma forma que ela
Tais r e spostas, ce r t a In e n t e le g ít iIn a s , entre tanto, mal es c o n-
toma, um e n t usias mo que pareceria legitimar o que Daryl C h in
dem que a autarqui a d a prática artística é difícil d e j ust ifi c a r e
o u C a rl Weber puderam denunciar pelo passado (um mo do
ultrapassa necessariamente o soc ial, o que numerosos filó sofos ,
fáci l de va lor izar formas mori b undas e d e irij e t a r - l h e s s a n g u e
a ntropó logos e teóricos do t e a t r o se mpre nos le m b r a r a m.
n ovo sem que a s formas antigas fo ssem por isso recolocadas em
que stã o ou a legitimidade de tais transferências sej a colo cada) ".
Esse e n t us ia s m o , nos parece, s ustenta -se n u m e rro e m relação
Um Intercu ltura lismo q u e A tua En tre o G loba l e o Loca l
aos fenômenos p olíticos e soc iais do int erc u ltu ralismo c o m o
se a paixão dos artistas pelo fato intercultural estivesse longe
A seg u n da cons tatação qu e se infe re d a precede n te , é que o
d e r efleti r as co m p lexid a des d a prática art ís t ic a, e co mo se o
interculturalismo n ã o p ode ser a nalisado h o je co mo o faz Pavis ,
m u n do d o teat ro vivesse sob o ú n ico mo do e u fórico que e m
Carlson o u mes mo Físcher-Líchtes, ao t o rná -lo o im passe d o
todos os lu g are s se revela infin itamente mais complexo.
fenôme no da g lobalização c ultural atualm e nte no cent ro d a s
Poderíamos certamen te respon der a essas o bjeções d esta ca ndo :
preocu pações: "S e o in tercu lturalismo ante rior a r r iscava se r um
a . q ue a a u tonomia do campo artístico já está consolidada e teatro da exposição etnográfica, um 't e a t ro m useu: o intercult u-
que t o d a a n á lis e d eve se d e ter e m suas próprias componentes, ralismo no quadro da g lobalização corre o risco d e um câm b io
d e mercador ias int e rn a cional, o u t ro lug ar p ara consu mis mo,
7 R . Bhar u c ha, The Pol itics of Cu ltura l P ractice, Wesleya n U nive rs ity Press:
M id d le tow n, 2000, p . 43 .
t u r is rno de aventura e compras exó t icas", afir ma C h a u d u r i'".
8 Ver a segu inte afirmação d e Carl Weber : "O que p arece ser ign orado em todo Como outros antes dele , Chauduri o bserva q ue há u m a equação
es te b em aven t u ra d o p ensamento utóp ico são as r ealidades d o ' b u s in ess tran s- implíc ita i ncontor nável entre o inte r cultur al e o fenô meno d a
c u ltu r a l' co n te mporâneo . . . O teatro in te r nacion a l ou festivais d e performance
são mu it o m a is ex posiçõ es d e comér cio d o que even tos c u lt u ra is I.. .] G r a n d e
g lobalização q ue ameaça a diversidade d a s cultu ras e que t ende
número d e pro jeto s transculturai s tentando com b in a r, fu n di r, misturar - o u a nivelar tudo conduzin do o d ifere nte ao idêntico" .
como queira cha mar isso - traç o s indígenas com aq uel es d e uma c u ltu r a alheia ,
c hegam e m p erfonn an ces qu e u sam o co m ponen te a lhei o com o urri molh o 9 C ujos te xtos foram public ado s antes d a g r a n de conscientizaçã o d o fenôm eno
p ican te p ara torn ar a lgu ma sopa fa m iliar novamen te palatável I... J Parece que da g lo ba lização e a n tes d o s te xto s d e Bhar ucha e d e o u t ros sob re a li ga ções
eles teria m prosseguido com p ouco se t ivessem conside rado a historicidade im p o ss ív e is d e ignorar e n t re interculturalismo e polít ica.
d o mater ia l escolhido. Ai n da, a consciência d e con d ições h ist óri cas e sociais 10 Ve r U na C h a u d h u r i, Be y ond a "Taxonom ic Th eatre": In te r c ulturali sm after
d e uma c u lt u ra es t rangei ra d ada e s u a ins c ri ção e m todo s o s trabalhos de arte P o stcolonialism a n d G lob a lizat io n, Th eater, v. 32, n . 1, p . 3 9 . C h a u d u r i fa z
é p arâmetro em nosso con texto. A negligênci a d e tais con d ições, e d a ideolo- co men tár ios n otadamente a R . Bharucha , o p. cit.; de Joh annes Birring er,
gia inscri ta a través d el es, in e vit a velmen te le va r ia a uma mist u ra inco n g ruente Perform ance on th e Edge; de Julie H olledge ; [o an n e To m p k.ins, Womens ln ter -
de e lemen tos estrangei ros e n ati vo s que n a a nál ise fin al re cusa a se fu n d ir, c u ltu ra l Perfor ma nce, ass i m co mo de C la i re Sponsle r; X iaomei H en (e ds .),
soma n do-se num re sultad o q ue é muito m eno s d o que se us co m po ne n tes:' Eas t of W est: C rossc u lt u ra l Perform an ce and th e Staging of D ifference.
Ca rl W eb er. ACTC: C ur ren ts o f The atri c a l Exc hange, em Bonnie Marra nca; 11 D e s ua p arte , C la ude Karn o ouh o bse rva: " Te r ia este concei to se to rnado u m
Gau tam Dasgupta (eds.) , l n tercu lt ura lism and Performance, PAI Publications, d e ntre tanto s s im u lac ros d e pós -hu ma nismo durante a ú ltima m odern id a d e ?
1991, p. 29-30 . I ...] Q ua n do o Oc ide n te si n ton iza o u a bso r ve eventos c ul t u rais d e o u t ras
-
f

388 ALlôM DOS LIM ITES: O INTERCULTURALlSMO . .. EM DIRE ÇÃO A ID ENTIDADES TRAN SCULT UR AIS . .. 389

o in terc u ltu ral seria assim um mito para as massas d e st i- Efeitos Discutíveis
n ado a fa ze r-lhe s c rer na iguald ad e das r elaçõ es intern a ci onais.
C lau de K arnoouh o bse rva: "Intercultu r alidade é uma fá b u la A in da que o interculturalismo , se m dúv id a , marque mais deter-
pa ra as m a ss a s feli z e s , para faze r- lhes acredi ta r na igu ald ade minadas p ráticas culturais hegemónicas ociden tais do que outras,
das rel a ç õ e s ín te r n a ctonaí s ?' > E la p ress u põe uma liberdade d e seria errado pensar que ele se limita a elas, como o mostraram
escolh a que t odos o s benefi c iá ri o s d e migraç ões n ão puderam as mú lt ip las p esqu is a s na área e, p articularment e , a q uelas d e
ter, que r el e s p erten c e ss em a c u lt uras d e tradiç õ e s forte s o u J. Holledge, J. Lo, H. Gilber t e C. Ba lrne". A pesar disso, certas
n ã o . Com o o c o n Ce s sava O ng Keng Se n à Rustom Bharuc ha a' cons tatações parecem militar nesse sentido. Com efei to,
prop ó sito de seu L ear: "Q u a n to d e mim mesmo terei que p erde r
I. Q uais são os can d idatos privilegiado s a esse " irrte r c u lt u -
no intuit o d e pertencer a este c ir c u ito in terc u ltural ? Qu a nto
r al ismo i lim ita do"? Os artis tas que v iajam, ce rtamen te os que
d evo m e com p r o rne te r-":»
fre q uen tam os fes tivais, m as t ambém todo s os que es tão à es p re ita
Toda prática que t orria d e ernpré stimo, tradu z ou a dap ta
d e n ova s fonnas o u d e nov a s narrativas . "Som os p arte de um
cer t os co m pon e n tes d e outra s cultura s se m historici z á-l a s o u
clube excl us ivo d e aviado res freq uen t es, a diá spora privilegi ada ,
co n text ualizá- las, con t r ib u i irre v o gavelm ente para essa h omo -
a intell ig en tsia g lobal, os exila dos es cl a r e cido s ?': o bserva comba-
ge neização de práti cas (e d e c u lt u ras ) e m pres ença, assi m como
ti vam ente Bharucha ". A c rí t ica pare ce vee men te, a in da q ue n ã o
à s ua indiferencia ç ão. L o n g e, portanto , d e trab alhar p a ra o reco -
seja inteiramente inj usti ficável. Com e fe ito, para o o lhar p ro fa no,
nhecimento d e diferen ça s a res pe it o d o o u t r o , um tal m odo d e
não é s e m p r e evidente que as práticas t eatrais interculturais res -
funcionamento contribui, ao contrário, para nivelar a diferença
poridarn adequadam.ente a urna necessidade interna no ca m po
e para levar o outro ao mesmo, reduzindo-o ao status de m erca-
da arte; elas frequentemente emergem daí como o resultado da
doria . O intercultural é , pois, e sp r e it a d o pelo global e nec e ssita
moda, co nse q uên c ia t alvez de um turismo generalizado. Claro, é
d e ferram entas conceituais que nos permitam distinguir (d is-
difícil generalizar quanto ao assunto e a condenação não pode ser
crirniriate, dizem o s ingl e ses) e n t re o intercultural e o gl obal '<.
unívo ca . A realidade é eviden tem e n te mais complexa e ca d a caso
c ul t uras, e le simplesmente transforma seus va lores n a q u el e s que vão permiti r- m erece um estu do pontual, mais aprofundado, para determinar
-lh e s se r in tegrados n o mund o d a s m erc a d oria s. E m o u t ras p alavras , tud o que o fundamento adequado d e uma d émarch e artística (s e u ponto
parece d iferente, m a s p ode ser in tegrado n a esfera das mercado r ias, perde os
d e partida, se u process o , seus objetivos , seu co n t e x to histórico ,
valo res cultu rais ou rituais q ue anteriormente constituíam sua p a r t ic ul a r id a d e.
São esses os li m it e s da intercu lturalidade h istórica:' Ver Logos without Et hos: social, e m e smo p olític o , e a visão a r tíst ic a de que se aproxima)
On Inte r culturalism a nd Mult icu lt uralism, Te las, v. lI O , hive r 19 9 8 , p . 123. como o mostra corretamente o estudo que fizeram I .R. Mulryne,
12 Ibidem.
T. Sasayama e M. Shewring sobre Shakespeare a n d th e [apanese
13 R . Bharucha , Consu med in Si ngapo re: The Int ercultu r al Spec tacle of Lea r,
Th ea ter, v. 3', n . r, 2001, p . 12 4 . Se ria n e c e ssário a brir u m espaço p a r t icular Stage (Shak e spear e e o Palco Japonês) '?
pa ra essas prátic a s inte rculturai s qu e s u rge m d e um a vo n tade p olíti c a t al
que são os gove r nos que exp o r ta m s ua c u ltu ra n o es forço d e re ali z ar uma d entr o d e p auta s d e inte rcultu r alismo 'a u tó no rnas'"), R. Bharucha, The Politics
ap roxi mação e n t re cu lt uras o u uma aprox imaç ão de n ature z a econô mica, of Cultu ra t Practice, p. 5.
as artes c e den do a vez para outras t rocas . É sob esse â ngu lo que é preciso 15 C. Balme tratou de formas de intercult ura lismo no teatro africano ou de
cons ide r a r o pro j e to UK 90, t e m p orada o rgan izada pe lo R ei n o U n ido p a r a caraíbas; M ulr y ne, p rát icas in terc ultu rais aplicadas às rnise-ert -sc énes de
"a u m e n t a r a c o nsciência d a c u lt u ra britâni c a n o Jap ã o ': O e m p ree n d i men to Shakespea re n o Japã o .
que co m preen dia perto d e 12 0 even tos d ifere nte s d urou um to ta l de trê s meses 16 R . Bharucha , The Politics of Cu ltura l Prac t ice, p . 44 .
e cob r iu as ci dades de Tóq uio e 35 o u t ras cidades japonesas. 17 J.R. Mulryne expõe, em p a r ti cul ar, sobre a te ndê n c ia a incen tivar diretores
14 Em outros termo s . "sobre q uais a usências conceituais se constitui a sociedade ocidenta is para cond uzir p rod uções de Shakespeare com ata res japoneses
igu alitári a d e p ó s -mod e rno s e mult iculturalist a s" se p ergunta o auto r do art igo co n t rib uiu p a r a a sob reposição d e dua s visões d e Shakespea re - japo nesa e
Le M u lt icu lt u ralis me e st -Il u n h u m an isme ? x -a lta, n. 2/3, n o v '999, Mu lti cu ltu- ocidenta l. Ain da q ue esta fo rm a de intercultural ismo seja superficial , ela é
ralisrne. Disponível na interneI. Ou ai nda R . Bharucha que observa. de novo "o po rtadora de um certo colon ialismo cultural. A reflexão de M ulryrie par te de
global es tá em p o s iç ã o de sequestrar assumidamente interações democráticas A Tempestade de Ninagawa montada em 1988 durante o Festival de Edimburgo
390 A LIÕM D O S LIMIT E S: O IN T E RC U LT UR ALI SM O . .. EM DIREÇÃO A IDENTIDADES TRANSCULTURA IS . .. 391

Po rtan to, é preciso fazer um a d iferen ça e n t re teatro t ur íst ico inte rc ul tu r a lis m o ? Para quais artistas? Qu ais práti cas? Quais
o u d e turn ê (to uring thea tre) e u m interculturalismo ve rd a- es pec tadores? O aspecto benéfico é verdadeiramente doc u-
d eiro que pro cura in c orporar n a represen t a ç ão d e e lern e rito , m enta d o ? É evide nte q ue as respos tas fornecida s difere m à
( n a r rat ivos , ges t uais, cê n icos, es pac ia is, t emp orai s , m usicais, m e did a q ue se localiza nas culturas t r a d iç õ e s h egemônicas
co reog ráficos) de u m a o u t ra c u lt u ra, ele men tos tratados p o r (quer estas sejam o cidentais ou orientais) o u em o u t r as c u lt u -
tran sferência s , trad uções, tran sl a ç ã o , inco r porações o u a dap- ras '", Naturalmente, parte-se do a priori de q ue todo acré scimo
taç õ es . O resultado fin al p ode se r v a r iável s eg u n do as d o s a g ens é um enr íque c im e nto para as c ul tu r as existentes, mas pode ser
e a s m e stiçagens e fe tu a das . p e rc eb ido tam bém c o m o uma d ilu iç ão, ou mesmo u m e m p o-
bre c im e nto d e s s a s prátic a s e trad iç õ e s d e p a rtida. Se m qu erer
2 . N a o u t r a ex t rem ida de d o p ercurs o , a repre s enta ç ã o pro -
m e rgul h a r n u ma nor ma tividade e q u ivocada, é in te ressan te
voca n e c essaria m ente para o público, um efe ito de d istâ ncia, d e
para r, não é p r e c is o mai s qu e u m insta nte para se d iz er que
est ra n ha m e n to mais o u m eno s tranquilo d e se r d e codi fic ado ,
para q ue a s t rocas sejam d e duplo sen tido, como o recla mam
que re envia o espec tado r p a r a se u p róprio ima ginário e p ara
n u merosos pesquisadores, é p re cis o qu e as c u lturas recep-
uma subj etividade em que intervêm ine vitavelmente a c u lt u ra
to r a s (c u lturas -a lvo) não sej a m a pe nas e nriq uec idas co m a s
do r ec eptor e s ua relaç ão c o m o intercultural. C a d a espe ctador
co n t r ib u ições , m a s que el a s se d eixem pe ne t rar e m odificar
se encontra a ssim forç ado a completar por conta própria uma
p rofu rid arnerrte'? a tr avés d essas n ovas prática s, que el as se in t ro-
n egocia çã o en tre as culturas que est ão e m jogo , d o m esmo m odo
duzam e m s u a escola p a r a que nov a s formas e prátic a s art ís t icas
que o havia feito antes dele os diferentes criadores da obra. Sua
s ejam realmente liberadas (ve r n o sso desenvolvimento ulterior
c ompreensão, s u a apreciação mesma s ó poderá s e fazer s o b re
s o b re o teatro mestiço ou o teatro s in c rét ic o ).
a base de sua bagagem cultural pessoal e coletiva . Isto é , todo
interculturalismo s ó pode - e deve - ser lido em s e u contexto. 3. Tendo em v is t a todos os perigos que e s p r e it a m a s produ-
C l a r o , parte-se do princípio que o interculturalismo é ç õ e s interculturais , o interculturalismo ainda pode s e r pensado
forçosamente b enéfico para a atividade artística em se u con- h oj e e , e m ca s o p o sitivo , s o b re quais bases o ser ia ? Quais se r ia m
junto. Ou não h á mais c o m o c o loca r a questão d e beneficiário s os me ios? Pode- s e e v it a r o imperialismo d e um a c u lt ura s o b re
dessas formas interculturais . A quem r ealm ente favorece o a o u t r a ? E n t re o s que c o nsid e r avam o interculturalismo irres -
p ons áv el (M u lr y nej-", um beco sem s a ída, c aso sej a p ensado
e le v a co nsigo as q uestões seguin te s . "C o m o é pa ra u m e spec tador japonês, fora d o p olítico ( Bh a r u c ha, C h a u d u r i, Chin , W eber) , e a q ueles
implicado n a hist ória d o Japão m o d e rno e n a hi st ória d e se u teat r o , inte rpret ar
es ta p erforman ce shakespea r ia na? A interna ci onali za çã o d o p alc o japo nês 18 E p ara ra dicalizar a q uestão como o faz frequen te men te R . Bha r uc ha , ci te mos
d e Ninagawa ofereceu u ma ima ge m ge n u ína d e sse m omento c u ltu ral? A té suas p ro p o siçõ es : " Isso es tá faze n do alguma diferença p ara a moldagem d e urna
onde Shakespeare foi to ta lmente as similado, técnica e emocionalme nte, e o sociedade mult icuItu r al ? A vasta p roduçã o acadêmica d e n o va s al teridades foi
quanto seu tra b alh o foi a símples o casião para so licitar atenção internacional? bem s u ced id a em cru zar as fronteiras para além de classe e raça , ou isso es tá
E mesmo qu e e ste último fosse o c a so, a representação e n d in h e irad a de um reforçando n o va s in sularidades incorpo radas na re tórica da diferença c u lt u ra l?
e scritor ocidental, melhor apresentada e m ais vigorosamente executada do Nós atravessamos fron teiras apenas para fec har outras? '; 711e Po/itics ofC u lt u re
que e m se u próprio país, a poio u a co nt rib uição japonesa ap rop riada p a r a Prectice, p. 3 .
um a e me rge n te 'c u l t u r a mundial' ? O teat ro tradici on al d o Jap ã o fo i um a 19 Robert Le page em Corio /a no o u A Tempestade o u Sonh o d e uma Noit e de
in co rpo r a çã o gen uína, o u u sa d o m e ramente p ara d ar e fei to? O p úbli co es tava Verão utilizou h abilmente as form as j apone s a s introduz in d o - se n a esco la
test e munha n d o u m tra b alho d e a rte cultura lmen te fragmentado o u integrado? d el e s, o b serva J.R . M u l ryne, Introdu cuon, o p. cit., p . 9 .
O q ue isto t udo q uer d izer pa ra públicos japo neses em Tóqu io, Osa ka ou 20 "O interc u lt u ralismo n ã o p ode s e r real iza d o com sucesso se alguém separa
Quioto, se co m pa r ad os co m p ú b li co s no Edimburgo Pl a y h o u s e ?" Ess as q ues - 'u m a reflexão de s u as modalidades das contradições particula re s d o contexto
tões r e sumem a dificuldade do problema intercultural e de toda análise de histórico no qual o trabalho es tá loca lizado' e ainda esse co n te x to é virtual-
um espetácul o intercultural. Introduction , em J.R. Mulryn e; T. Sasaya m a; M . m ente in a ce ssí vel p ara a lg uém qu é n ão foi nascido nele'; J. Mul r yne, The Perils
S hew r in g (e ds.) S h a kespea re and th e lapanese S tage, C a m b r id ge : Ca m b r id ge and Profits of In te rc ul t u r a lis m a nd the Theatre Art of Tadashi Suzu k i, e m J.
Unive rsity Press , 1998 , p. 4 - 5. Mulry n e ; T. Sasa ya ma ; M. Shewri ng, op. ci t. , p. 77.
3 92 A LÉM DO S LIMITES : O I NT ERC ULT U RALI SM O . . . EM D I REÇÃO A IDE NTIDA D ES T RAN SC ULT URA IS .. . 393

qu e pensam tratar-se de d émarches ar tísticas que legitimam b . Ivlais importante ainda, o processo intercultural e m p reg a
todos os oornp or tarnerrtos, e les veem u ma via inte rnlediária? a re lação com a imagem identit ária d o s ujeito (espectador ou
cr iado r). Com efei to, t oda forma de interculturalismo demanda
reenvio a um contexto social determin ado , porém , ainda mais
INTERCULTURALISMO ao contexto do eu. São os contextos, no cruzamento d o indi -
E IMAGEM I D E N TI T ÁRIA v id ua l e d o co letivo, no c r uzamento da memór ia do grupo e
d a quela do in divíduo, que de terminam os lugares, os espaços
o q ue as pesquisas a tuais t endem a pro v ar, é q ue se to r n a cad a iden t itários q ue mo difi cam a seu modo nossa experiência
vez m ai s d ifícil p ens ar o intercultu r al sepa ra n do-o d e sua rela- c u ltu ra l. Esta faz a pelo an tes de tudo à i nte rs ubje tivi dade
ção com o soc ial e com O polí tico, por o u tro lado, de sua relação dos se r e s (mais ainda q ue àquela das formas e das c u lt u r a s ) .
com o p r ó p rio s uje ito e com s ua ident idade. l nters u bjetividade que é colocada em risco, maltratada pelas
práti c a s ar tís t icas . Espec tador e a r tis tas se e ncon tram ass im
a . A rela çã o com o social é indispens á vel n a m edida em q ue as
ob r igados a redefi nir s ua identidade c u ltura l. Co nfrontados
questões es té ticas sozi n has n ã o parecem mais poder le gitim ar
com a a lteridade - seja aquela de formas artísticas, de na rra -
excl usiva men te as tran sfe r ência s e ave n t uras en tre c u lt uras.
tiva s, d e espaços, d e ges t ua is, seja a d e cost u mes d i fe r ente s e
As t r ansfe rên c ia s , para serem co m preen d idas - e le gi t imadas
es t range iros - o s uje ito é co nvocado a precisa r de novo - e a
de a lgum m odo - pedem n e c e s sari a m e n t e um a colocação e m
d e sl o c ar - s uas refe rê ncias, s uas fro n tei ras, seus limit e s. E le se
co n tex to, histórico e político, que p ermita c ompre ender-lhe o
encontra fo rça d o, em d e fe s a d e seu cor po, a um r etorn o a o s
sen tid o e as ramificações profundas. Daí a dizer que s o m e n t e
"p r im ó r d ios do e u': corno diria Charles Tayl or.
os d etentores d e uma c u ltu r a podem apreender seu se n t id o , há
Semelhante trabalho s o b re s i pass a po r um trabalho s o b re
so rne ri te um p a s so, que alguns transpõem prontamente, mas
a imagem de s i, cer tamen te, mas tamb ém d o Outro, d e Outro
que co n d uzir ia, se ele foss e p erseguido, a uma c o m p a r t imen t a -
diante d e si, d e Outro e m s i. C o rn o imag inar o O u t ro ? Co rno
ção irra cional, d e fa to, à imp o s sibilidade d e com preen der ess es
r epre s entá-lo , c irc u nscrevê - lo, co rn p reeri d ê- Io , i nte grá -l o a
cruzam e n tos que fiz eram d e sde se m p re a rique za da arte'. Na
se u un iv e r s o (o u excl uí- lo ) . O ap orte de B ha r ucha e d e t odo s
a usên cia do co n text o histórico, político, s ocia l, que con s titu i
os que, co mo e le, lutam fe rozme n te contra e ssas form a s d e
s ua rique za eque lhe p res erva a com p lexid a de, t oda tomada d e
intercultur alismo "selvagem" é d e afirma r q u e , long e d a im a -
e m pr ést imo n ã o é mais que aqu el a d e forma s d e s enc arn adas
ge m romântic a d e um outro qu e n o s asseme lha, o ver dade iro
r eduzidas a concha s vazias que s o me n te a v ir t u os idade do a tor
trabalho inte r cultural imp õ e deixar as certezas e se us m odo s
p ermite-lhe preservar o sem- sen t ido.
d e funcion amento para ser m os confro n tados com r e alidade s
D aí a n ece ssidade para toda prática intercultural d e s e r
s o ciais d o outro, bem ante s d e esp os a r- lhe fo r mas estét icas.
tomada no co n texto, c o rno tenta fa z er J.R. Mulryn e em seu
Ora: a r e alidade é feita d e injustiças e d e pro funda s d es igual -
li vro s o b re a s e ncenações d e Shake spe are n o Jap ão o u C . Balme
d ades , d e que é im possível cons id erar se rn r isco (mes mo se
sob re o t e atro s inc rético. É a aus ência de con text ualização que
é evide n te que o t eat r o n ã o p ode muda r n ada ) . Tais p r áti c a s
t orna, para v ários p e squisadores , a s d émarch es d e Mnouchkine,
c o n t r ib uem para incitar o s u jeito a ir além d e suas diferenç a s ,
B ro o k, G r o tow sk i e m esmo Sche chner o u B arba, d ís cut ív els" .

21 Para Bharucha, que possui posições extremas nessa área, a s que st õ es estéticas [ ... ] é descontextuali zado de seu contexto estético e so ci al , m a s é pior quando
d e sobstruem necessariamen te as questões da ética. uma pe rforman ce t r a d ici o n a l põe d e la do as lig a ç õ e s com as vidas do pov o
22 " E u n ã o po sso n egar que esta tendênci a d ominante a d e si st oricizar a c u ltu ra para o q ual é r e p r e se n ta d a . Nada p o d e ser mai s de srespeito so a o teatro d o
d a fnd ia é a fonte de meu desconforto com a m aior parte das te oria s nter- í
que reduzir se u a to de cel ebração a um repos it óri o d e té cni c a s e teor ias". R .
c u lt u r a is d o teatro indiano. muito ru im quando um texto c o m o S h a k u n t a la
É
Bhar'ucha, Th eatre and th e vvorld, New York: R outledg e , 19 9 3 , p . 4 -5.
39 4 ALlÕ M DOS LIMIT ES: O I NTERCU LT UR ALI SM O .. . EM D I R EÇ Ã O A IDE NTIDADES TRA N SC ULT URA IS 39 5

em direção a um d iálogo unificador, uma " inte ireza c u ltural", Para fa z e r eco a Tzvetan T o do ro v, talv e z possa mos nos
afirma Mulryne" , É necessário recon hecer q ue não. É aí que perguntar se essa diferença absoluta, reconhecida e a fi r m a d a
a finalidade da arte marca seu fracasso . Sua influê ncia sobre o sem limites, não advém, de agora e m diante , mais d e um p en-
s o c ia l é mínima, para não dizer inexistente. samento co nse r v a d o r quando, hoje, as diferen ças s ã o um dado,
Há um revés a es s a ampliação de nossos horizontes . Com e o que p are ce difícil fa zer valer em n ossas sociedades é a fir m a r
efeito, numa inters ubjetividade em que toda diferença é legí - não a di versidade, mas a unidade, a coesão de grupo s s o c ia is e
tima, em que o relativismo cultural domina sem distinção, n ão culturais. Uma unidade que supõe e n o r m e s es fo r ç os, é perce-
s o rn os nós por fim chamados a nos fechar mais forteme nte bida como utopia negativa.
ainda, e m nossas dist inções e nossas diferenças? Depois d a Eu gostaria de ern iti r aqui uma hipótese, s e m ter o tempo
euforia desses mome ntos de diá logo, nos q uais, de re pen te, de prová-la: o que faz hoje a força de artistas como William
torna -se claro q ue algumas formas podem d ial o g ar com o u tras, Kentridge, Wajdi Mouawad ou Robert Lepage é de s e r e m bem
s uscitar novos sentidos, a brir la cuna s nos textos, cada u m é sucedidos em afirmar, para além da diversidade de diálogos
reenviado à s ua próp r ia c u ltura, s u as p r ó p r ia s p r átic a s es té ticas , c u lt urais, q ue s uas o bras conseguem instituir um diálogo u n i-
suas própr ias certezas. tário, mob ilizado r, que alcança o transc ultura l, um discurso
P a r e c e que se trata d e u rn d o s m eio s , n o â mago d e n o ssas verdadeiramente m e stiço , me teco. Evocar essa mestiçagem, essa
soc ie dades e d e n o ss o s g rupo s c u ltu rais e a r tísticos, d e r e afirmar t r a n s cultu r alidade , p a r e ce - m e o verdadeiro d es a fio de h o je .
n o ss a s identidade s cole t ivas, n o ss os tributo s re spectiv o s , tudo
d ando a impre s s ã o d e t er coloca d o um fi m n a historicidade
h eg emônic a d o cap italis mo. A prática do interculturalismo s e o QUE SER IA ESSE M ODELO
ins c r e v e ern um a ide olo gi a d a diferenç a , da equi d a de e n t r e I N T ERC U LT URAL?
todo s , do dir eito à di fere nça, como o diz em d ora v ante a maior
parte dos Estados e dos t e x t o s d e le is . São nossas ilhota s d e Lançar lu ze s sob re a mestiçagem implicaria privilegiar a lg umas
li b erd ad e , n o s s a s ilhas flutuan tes , diri a B a rb a , ilho t a s qu a s e formas de cruzamentos culturais - mais q ue o utros; cruzamentos
se m conseq uê nc ia, mesmo se essa lib e rdade fo i d uramen te que implicam m a is q ue transferências (translações, traduções,
coriquistada>'. adaptações, integ r a çõ e s ) de for mas cult urais outras, mas apro-
p ria ç õ e s verdadei ras q ue provoquem transformações n a s
23 " P a re c e que o interculturalismo pode fazer pouco, ao meno s até agora, para
dar expressão a o des ejo global por uma inteireza cultural': T.R. Mulryne, op.
profundezas de c ulturas-fonte e de c ultu ras -alvo para cria r
cit. , p . 7 5. formas onde o a málgama d e formas e de inspirações é tal que
24 Promover a ideia d a autonomia de uma esfera cultural que " t r a n s c e n d e todas não é mais p o s s ív el marcar as d iferenç a s , mas, ao contrário,
as alienações, que é liberadora e fonte de felicidade , suscita paralelamente o
relativismo cultural. C a d a um em sua identidade coletiva .. . Agora, O passo
as complemen taridades . O produto a r tístico o btido seria fe ito
é rápido para s o lic itar o reconhecimento público de todas es sas identidades, paralelamente d e ren ú ncias e aquisições. De enriquecimentos,
sempre pressupostas positivas a partir d o momen to em que fazem o objeto m a s t ambé m d e p erda s. Seria um a d a s m odalida d e s do inter-
de lutas por s e us direitos pela diferença e pela autenticidade. Nesse contexto,
q ue transformam a s relações comp lexas e d ial é t ic a s entre cultura e civilização, c u lturalismo e m duplo sen tido que evoca m vários te ó r ic o s d o
entre c u ltura e sociedade?': interroga-se o a u tor de "XA': artigo publicado na intercultural (Schech ner, e m p a rticula r, que foi um dos p rimei-
Internet. Ou então as proposições de Slavoj Z ízek, fero z opositor do m u lti- r o s a m e n cionar, m esmo se os espetácu los in tercu lturais q ue el e
cu ltural ismo, c o m e n t a d o por R . Bharucha: " M u lt icu ltu r a lism o é uma fo rma
de racismo repudiada, invertida, autorreferencial, um ' r a ci s m o com uma
di stânci a' - ele respeita a identidade do Outro, concebendo o Outro como Outro é a verdadeira forma de afirmar a superioridad e d e a lg u m vence do r."
uma comunid ade 'a u tê n t ic a: fe chada em s i própria , n a dire ç ão da qual, el e, o Z iz e k apud R . Bharuch a , Th e Politics ofCu lt ura l Practice , p . 3 4 -35. É prec is o ,
multiculturalista , mantém uma distância tornada possí vel g r aças à s ua posiçã o evlden t e men te, fa zer um a diferen ça entre interculturalism o e mult icultura -
universal privilegiada . .. O respeito multiculturalista pela especificidade d o lisrno , c o nce ito mais polític o que es té t ico.
.......
i

E M DI RE Ç ÃO A IDE NTIDADES TRA N SC U LT U RAI S . . . 397


396 AL(;M DOS LIM ITES: O INTERCULTURALl SMO .. .

e ncen a podem nos deixar um pouco céticos). Ta l v isão apro xima- e doc umen tado do campo intercultural. Cobrindo tudo e, ao
-se sem dúvid a d o te atro s inc rético (ver Balme o u Lo/G ilbert), mesmo tempo, o teatro multic ultu ral, pós -colonial e i nte r-
mas ela dever ia poder ser localizável igualm.ente e m o u t r o s c u l tural, elas tentam u m a taxi nomia pe r fei tamente clara das
lugare s g eográficos , não somente naqu eles q u e foram m arcados d iferente s formas de teatro t ransc u lt ural, a nalisa n do d e p a s s a -
pelo coloniali smo . gem os modelos elaborados p o r Pavis, Carlson e B alm e para dar
E n tre os exernplo s d e s s a s fon nas d e mes tiçagem, a lg u n s con ta d es s e s c r uzarn e nto s n o c a nlpo a r t ís t ico. O est u do p o s sui
espetáculos d e Willia m Kentri dge (Woyz eck on th e H ighveld, a v a n tagem d e ter ê x ito e m in screve r um a taxinomia e rn um
Fa u st us in Afri ca [Faus to na Áfri ca] e U b u a n d th e T r u th Co m - d omíni o a té aí fortemente f re q ue n tado, mas d o qual n enhum
missi on [Ubu e a C o m issã o da Verdade ]), Wajd i Mouawad (Six es t u do teria co nseg u ido oferece r u m p an oram a co e re n te.
p ersonnag es e n qu ête d'a u te ur [Seis Pers on a g ens à Procura de 1. E las lembra m q ue u ma primeira leitura d o fen ô m eno
um A u to r ) » ocupam um lugar à parte . Vindos d e h oriz ontes c u lt u ral, te n t ada j á faz v i n te a nos, v isava class ific a r as div er-
políticos muito diferentes, um da Áfri ca do Sul, país d o Apar- sas fo rm a s d e práti c a s a r t ísticas interculturais s e g u n do um
theid (e d e compar tim entação fe r o z d a s diferenças), o outro d e esp ec t r o progressivo d ando conta dos g ra us d e familiaridade
um Quebec multic u ltu r a l onde a diferença é reverenciada como ou d e singu la rid a de das tran sferên cias. Tamb ém , é a reaç ã o do
u ma ri q ueza n ã o a penas n e c e ss á ria , m a s , rrie s mo, i nco n tor ná- e sp e c t a d o r, confrontado a essas práticas, que determinariam
vel do pre s ente , fazem espe tác u los e m q ue tenta m não n e g ar o grau de fam iliaridade da práti ca. E s ta dep en deria assim de
as d iferenç a s (cu lturais, refe re nc iais, fo rm ais ) d e partida, m as s e u próprio grau de c onhecimento o u d e familiaridade com
colocá-las e m inte r a ção , d e m odo que, a p a r ti r d o diál o go , s u rja as outras c u lt u r a s " , Tal m é t o d o , Carlson já havia t e nta d o e m
o u tra coisa, um se ntido n o v o , um model o d ife rente q u e reenvia 1990. E le se encontra hoje r etomado por Julie Holledge e Io a n n e
ao mes mo tempo à c u ltura d e p a rt ida e à de c hegada, para que Tompkins e m s e u livro'" , Ou como o n o t a , de m odo b e m pre-
ao fim do p ercurs o as n o ç õ es m esma s d e ponto d e partida o u de ciso, U na C haudu ri , no comentár io que fez de s ua versão:
c hegada não se d is ti n g am mais, t ornem -s e obsole tas . E mergem,
e m cada urn d es s e s casos, espetácu los q ue t omam se u sen t ido e A Taxonomia dem arc a fron teiras e n t re c u l tu r as. Desde o te at ro
s ua ver dadei ra dim ens ã o d o cr uzame n to e do e n r i qtre c i rnento t ax o n ô m ic o (à s vezes c ha m a d o de teatro a n t ro p o ló gico ), começa co m o
r ecípro c o das form a s d e p artida . a to consc iente do d es lo ca m e nto c u lt ural e conflito interc u lt u ral, pode-se
Em se u texto "Toward a Topo g rap hy of C ross -Cult ural di z er, para instaurar dist inções c u lt u r a is assim como para ligá - la s ou
misturá -las. O teatro taxonômico resiste acusado aqui de enfati zar, e
Theatre P r a x is" ( Rumo a u m a Topografia d a P r áxis do Teatro
a té d e fetichi zar, a diferença c u lt u r al, apesa r de seus maiores pro jetos
T ransc u lt ural}", Ja c queline Lo e Helen Gilbert constatam que
terem s ido e m p re e n d id os sob o nome de urriversal isrno.t?
n ã o h á quadr o t e ó ric o p ara estudar o teatro t r a n s cultu r a l. Não
se p o d e estar senão de acordo. Também, e las se e mpenham em
2. Uma segu n da le itu r a dos fe nômenos culturais, q ue Lo e
constituir um t o d o ao realizar u m sobrevoo muito eloquen te
Gilbert destacam, visaria investigar os graus d e adapta ção e
d e transformação dos eleme ntos to m ado s d e e mpréstimo d a s
25 P odem o s a cre sc entar aos exe m p los o d e M artin elli, do T e atro d ell e A lb e.
Não des envolveremos aqui so b r e es te último e x empl o. P a ra isso, remetemos
à tese d e Denise Agiman que tratou so b r e a e la b o raç ã o d e um a m etodo lo - 27 D onde o fato, por exem p lo, no caso d o s Shak es peare d e M n ouchkine que n ó s
g ia de análise d o intercultural (UQ A M, 20 06 ) e que discute e m d etalhes as e vocamos r apidamen te n o in íc io d este texto, que o público fr anc ês p ercebeu
div ersa s mod alidade s d aquel e trab alh o. M art in elli fund ou co m s ua es posa co mo japo nês - e p o r ta nto , como es t rangei ro - d e fo rmas japonizan tes que
o Te atro d eli e A lbe q ue reúne a tores italianos e a to res se nega leses e m torn o não parece ram fam ilia res aos p róp rios japo neses.
de espetác ulos d e Com m ed ia dell'Arte. Os atores, out rora re c r u ta d o s entre os 28 Women s Intercultural Performancert-sew York: Routledge, 2000 .
imigran tes nas p ra ias, h o je são me mb ros reg ul a re s d a Compan hia. 29 Beyond a "Taxonomic Thea ter": l n te rc u lt u r a li s m afte r Postcolonialism and
26 A r tigo pub licado e m 7he D ra m a Review 46, 3, fali 2002. Globalization, Theater, v. 32, n . 1, p . 34 .
..
398 AL I':M DOS LI MI T ES, O IN T ERC U LT URALI SM O .. E M DIR EÇ Ã O A I D E N T ID A D ES T RANSCULTURA IS . . . 399

c u lturas de pa rti da (cu lt uras-fonte) para integrá- las às c ultu ras histórica, mas esclarecendo -lhe o bjetivos es té ticos e for mais v isa-
d e chega da (c u lt uras-alvo) . Baseado no m odel o da amp u lheta d e dos. E la a nalisa ria o espet áculo, a n tes de tu do, como proce sso
Pavis, trata-se de destacar as transformações que afetam assim (a ideia já foi adiantada por vários teóricos do intercultural) e se
as migrações através dos múltiplos estratos (cu lturais, artísticos, debruçaria s obre as obras n ã o só à luz do sentido histórico que
pessoais) das c u lt u r a s fonte e alvo. A vantagem deste modelo revela em filigrana os c o m po r ta men tos (e s o b re a s culturas de
sobre o precedente, é q ue o trabalho de codificação e decodifi- partida e de ch eg a d a) - o que fazem as análises críticas de Bha-
cação é o resu ltado conj unto do trabalho do a r ti sta e d a q u el e d o r ucha - mas também sobre o próprio artista e sua relação c o m
receptor. O m odel o p ermanece , e nt re tanto, u m p o u co si m plista e . o campo artíst ico. A obra intercultural emergiria daí verda -
não pode dar co nta d a com p lexidade d a s transferências c u ltu rais d e iram ente como lug ar d e negociação (mais do q ue exp ressão
no seio de nossas c u lt uras particularmente d iversificadas. cult ural), o que s ugere de modo bem preciso Zarr il i>' . A ideia
nos p are c e j usta. A leitura que Lo e Gilbert privilegiam tam -
3. A te rceira le it ura segun do elas seria mais propriamente h is-
bém t r abalh a r ia a s disjunções e resistências como paradigmas do
tó rica e social e se fa ria na mov ência dos estudos pós-colon iais.
pre s e nte. Ass im, n ã o seria mais p o ss ív el estudar os elementos
É o que a do ta C. Balme e m se u liv r o s". Esse último , qu e trata
p a rt icipa ndo d a s for mas in terc u lt urais como acrésci mo (o u
d e num ero sas práti cas t e atrai s lo caliz ada s , a m ai o r p a r t e , e m
s u b tr ação) d a s c u lt u r as d e p artida, m a s como inte rp enetra ç ã o
países d e c u lt uras n ã o h e gemônic a s (Áfr ica, Caraíbas, Jamaica)
ver dad e ira ao nív el semân t ico e fo rmal. As n o ç õ e s d e c u lt u ra
t enta inv e rter a lente d e a p roxim ação sob re o fenômeno c u l-
d ominante o u exp lo rada, d e c u ltura heg emônica , p erderiam
tural, a nalisa n do as fo r m as inte rculturais nos próprios p aíses
d e ss e modo s e u se n t ido : elas não cess a ri a m de existir, m a s a
onde se o per a m o s c r uzamen tos evo ca d os. El e m o stra, portanto ,
obra final a s ultrapa ssaria , faze n do e m e r g ir um s e n t id o n o vo
como a s culturas hegemônicas irrigaram, por s ua vez, as outras
próprio para a obra v ist a.
culturas sem v erter numa forma d e c o lo n ialismo a r t ístico. Seus
O proj eto pode parecer utopista, no entanto, tem - s e a forte
numero s o s exe m p lo s ilustram perfeitamente a diversidade de
impressão d e que ce r t as obras t eatrais adotam p r e c.isarn e n te
d iálogo s estab elecid os, t odo s p re s erv ando uma relaçã o c rítica
esse modo de rela ç ão com outras c u l tu r as. A q u elas de Dj anet
com a história e o d iscurs o d o qual esta p ode ser p ortadora.
S e ars e W ajd i M ouawad n o Canadá, a q uela d e K entridge n a
A s d enomina ç õ e s das forma s d e c r uzamen to proliferam: t ea -
África d o Su l, p o r exem p lo . E las n o s parec em ilustrar p erfe ita-
tro h íbrido (em que dua s c u ltu ras se fu n dem - merge), te atro
m ente essa forma d e trans cultur alismo p ara a lé m d a s c u lt u r as.
n ômade (o n de as fronteira s d e iden ti dades são transgredidas -
À que correspo n de r iam essas formas d e n egociaçã o ( d iá-
a fi r ma C h a u clu r f) " . Em cada caso estudado, aparece d e modo
logos , m a s também disjunç ã o e r e sistência) , em que níveis da
evid e n te que há um esfo r ç o real para ev it a r toda "t e n tativa de
obra elas poderiam ser lidas? E las p oderiam se manife star :
univ ersalizar, gener a lizar, alego r iza r os c r uza mentos c u lt'urais" " .
D e sta c a - s e d e ss a reflex ã o sob re o s incretismo que ele promete, a. Ao nível da n a rra çã o , e m s e tra t ando d o texto d e p artida ,
d e um a cer ta m aneira , a forma d e trans cultural idade, d e mesti- d a n a rrativ a , d o mi to r etomado e re t rabalhado numa p e rspe c -
ç a gem c u ltu r a l que n ó s tentamos definir. tiv a inte r cultural. Assim, o a u to r canade nse d e d e s c endência

4 . A leitura que n ó s gost a ríamos d e propor se a p roximar ia d as


o b ras d e mestiç a gem e levaria e m co n ta, por cer to, a p e rspectiv a 33 "Perforrnance como um modo de ação cultural não é um simples reflexo de
a lgum atributo essencializado, fixado de u m a cultura estática e monolítica,
m as uma a re n a para o processo constante de renegociar experiências e s ig -
30 D ecoIo nizing the S tage, Th eatricaI Sy n chre t isrn and Po st -Colo nia l Dram a , nificados que c onstituem a cultura:' Ver Phillip Za r r ill i, For Whom is the
Oxfo rd : C la re n do n , ' 9 9 9 . King a King ? Issues of Intercultural Product íon, Percepti on, a n d Re cept ion
31 U. C h a u d u r i, o p. ci t., p. ' 5. in a Kathakali King Le a r, em }. R einelt; }. R o ach (e ds.), Cr itica l Th eo ry a nd
32 Ib idern , p . 3 6 .. Performan ce, Ann Arbor : University of Michigan Press, '992, p . 16 .
A L t M D O S LIM ITES: O I NT E RC U LT U R ALI SM O . . . E M D I RE Ç Ã O A IDE N T ID AD E S TRA N SC U LT VR AI S .. . 401
4 00

afr icana D jane t Sea rs r e av ê a trama n a r r ativ a de O telo para c r iar lh e preser vam o es p ír ito, a quinte s s ên ci a , a fo rça s u bve rsiva,
uma o b ra int it u lada H arlem Duet (D ueto Harlern ), qu e co lo ca mas a crescentando uma nova camada d e leitura que permite
em c e na Billie e Otelo e r e i n t erp r e t a a peça de Shakespea re es tabelecer a relação com a cultura onde tais textos torn arn
em o u t ros termo s qu e n ã o p o s suem m a is nada a ver com o lugar ou aque las de que eles emanam: a s o c ied a d e s u l- a fr ic a n a
or íg i ria l> . A peça d e Sears s it ua -se temporalmente an tes d o do apartheid. Nesse caso, como naqu ele de Djanet Sears , a
momento e m q ue começa a p e ça de Shakespeare, el a a a n tecip a, nar rativa é idêntica, mas a s r éplicas foram modificadas e à s
a a n u ncia e a coloca e m co n texto t ã o b em que o leito r, ve n d o vezes com p letamente a lt eradas . O q u e r e sta do texto de ori -
em segu ida Otelo, vê s ua le itu r a marcada por essa con text u ali - gem? Po uca coisa, certamente, contudo, em cada u m desses
za çã o . Nós estamos p rec isame n te d entr o de um a out ra história, casos, seria fa lso fa lar em traição. De fato, o e spectador tem a
misc igenada, que d e ix a in tacto o texto d e origern, mas que o impre s s ã o , nos dois exe mplos ci tados, qu e o sen tido profundo
modifica profun dame n te, en tra num d iál o g o com ele. E le sai da obra foi não só prese rvado, mas revelado, que Sears, tanto
daí trans formado. como Kent r idge, t orn am a dar a essas obras n ã o some n te seu
O c orre o m e smo com as p e ç a s d e K entridge W oy z ech in ve rdade iro sen t ido, mas s ua p r o fund a fo r ç a s u bversiva.
[oh annesb urg, Faust us o u Ub u a nd th e Tru th Co m miss ion. A insis tênc ia na n arra t iv a é a in da m a is in teressante, porq ue
To dos m odificam profundamente as p e ç a s d e p artida e se as pesq u isas in te rc u lt u r ais sob re o te at r o se co n c ent r am , e m
localizam e rn um a o u t ra din âmi ca q ue a q uela d a tomada de geral, rnais sob re a repre s enta ç ã o e seus aspec to s visuais d o
e m p rést imo. E n q uan t o preserva a forç a d o t exto d e partida , elas qu e sobre a dramaturgi a , qu e p a r e c e , no e n tanto, p res ta r-se
tranquilamente às mestiçagens c u lt u rais produtiv a s .
34 C o b r a d o como um a tra géd ia rapsódica e t r iste , Ha rlem Du et é o p re lú dio ao
Othello de Shakespeare, e r e co nta a fá b u la d e O telo e s u a p rimeira mulher b. A o n ív el do corpo do atar, em seguida , porque este último
Bi llie - E la é a ú nica a n tes de Desdêmona [ .. . ] Sears descreve o Harl e rn é um lugar não recuperável politicamente como m ercadoría».
como "a o mesmo temp o um lug ar e um símbo lo . . . rep resen ta o melhor e o
pior de tudo sobre a s p essoas afro descendentes .. :' O a p a r t a m e n to de BiIl ie Mais co s tu meiro lugar de localização do Intercultural, o c o r po
e Otelo está localizado aqui , n a esquina d os boulevards M arti n Luther Kin g se pre sta a diferentes formas de trabalho formal que só p odem
e Malcolm X . O n ip rese n tes são os tema s d a a u toes t ima e raça tra b alhando
se interpenetrar, como o tenta Barba e m s eu trabalho sob re a
juntos o contrastante ci sma entre neg ro/branco advogado por M alc olm x e a
integração do "s o n h o" d e Marti n Luther King. A proporção que adent ramos exp ressivid a de d o a tor. Com efeito , n a m edida em que o cor po é
o mundo .d a peça, a estudante de g raduação Billie d escobre que s e u marido, s e m p re p ortador d e uma c u lt u ra (o que a técnica d e Suzu k i pre -
O te lo, a paixo no u -se por o u t ra mulher. .. " M o n a, q ue é branca. Ja m a is vemos
M ona, e xce to po r s u a voz e o rápido relance de um braço de a labastro, u m
cisamente co loco u e m questão) , toda técnica de in te r p retação o u
con t r a p o n to d issonante com a s outras pers onagens . Scars, que tem dito que forma es tét ica que se imprime s o b re e le só p ode ser realizada ao
Harlem Duet é a h ist ó r ia de B íllte, e sboça um co m p le xo e rico quadro, u m a preço d e uma m odific a ção e m profund idade das téc n ic a s d e b a s e
pint ura d a dissolução d o r el a ci o n amento d e Otelo e Billie.
A bagagem da experiência negra norte-americana contemporãnea é apre-
e sobre a e m e r gên cia d e um corpo novo, diferente e poliss êrnico
se n t a d a numa sé rie de flashback.s. Billie e Otelo s ão também um casal escravo fazend o dialog ar nele cor po pass ado e co rpo pres ente.
p lanejando u m a viagem n a estrada d e fe rro subterrânea d o s anos d e 1860; e
um clássico ato r combat ivo re duzido a humilhantes sh o w s d e m e n est r el , e sua c . Ao n ív el da represen ta çã o e nfi m, qu e fará a pelo a um ver-
esp osa ciumenta , na era do va u de v ille . N a s três s it uaçõ es, Otelo é consumido d adeiro traba lho t ran sdisc ip lin ar qu e se lo c ali za p ara a lém
pelo desej o de experimen tar as vantagens da so ci e d a d e branca. O primeiro
passo, e fatí d ico, foi levar u m a m u lher b ranca para s ua cama. d a s t r adi ç õ e s c u ltu rais esp ecíficas e qu e t r a ç a as linh a s d e
[ . . . ] Othello de Sears é consumido pela inveja da vantagem branca. Ele se
un e a C h ris lago (!), um colega professor na U nive rsid ad e Colu m b ia , o p o n d o-
-se à ação afirmativa e outros esquemas so ci a is identificado s co m o a vanço da 35 O corpo intercultural conclama a "r ec u rso s fís icos enraizado s n o corpo que
age n da n eg ra . Recon h ecendo que esta é a hi st ória de Billie , o ator Williams não necessariamente alimen tam a "n o va ordem g lobal". .. o co po p ode se r co n-
man té m as emo ções d e O telo b orbulh ando lo g o aba ixo d a s upe r fície . Willi ams fr ontado co m o mundo , mesmo quando é m arcado , m old ado , re g imentado e
co ns t ró i s u a p ers on agem devagar, num c r esce n do d e p ai x ã o c hega n do ao vio la do po r se us cód igos di sciplinares': o bse r va R. Bh arucha , Politi cs o/Cu lt u ra l
cl ímax em u m so li ló q u io int enso que a taca os ideais d e Bill ie . Pra ctice, p . 159.
402 A LtM D O S LI MI T ES: O I NT ER C U LT U RA LI SM O .. . E M D I REÇÃO A ID E N TI D AD ES T RANSCU LTURAI S . . . 403

um " im a g i n á r io transc u ltu r a l" É a opção que tom a Johannes e m c e na fa la m di fe r ente m e n t e p ara nosso i m a g i n á r io e e m q ue
B i rr i nge r a o d e s t a c ar q ue e s s e imaginári o trans cultural é a n o s força m a ver d e o u t ra m aneira?
. ....
c a r a c t e rís t ic a essenc ia l d a s p erformance s d e hoj e " n o m e a d a - Ao término d e se u p ercurso -atrav és do intercultu r al , Bha-
men te u m d e sta c a d o e a u tocie n te impuls o colabo r a t iv o que rucha o bser va: "Eu a p re n di que a mais forte r e sistênc ia co n t r a
a r e sistên ci a cultural res ide e m trabalho c riativo . P ol ê micas
':.$
perma nece ve r dade iro p ara g r u pos d e todo s os t ipos, a q u el es .7-,
e n t re e d entro d e países e a q ueles e n t re gê ne r os, mídia, tecno- t êm se u s limites , a d e speito d e elas s e rem n e c e s s á r ia s p ara
lo gi a s e dis cipli n a s" > . questionar o s dis cursos dominante s e e strutura s d e p oder d e
no ss o cenár io intercultural," Parec e -me que é a con cl usão que
O que co n clu i r d e s s a lo n ga e xplan a ç ã o? Seria necessá-
se impõ e em último r e curso. É a prática dos próprio s a r t is tas -
r io o p ta r por um a co ns tatação de fra c a s so d e toda d émarche
a q u el a d e Kentridge, p or exem p lo - que no s força a es te n der
intercultural, como o faz C h a u d u r i, Bharuch, Mulr yne e tan-
e a afinar mais o s limite s d e nossa reflexão. É o que p ermite a
to s outros? O e xemplo d e alguns artistas como Kentridge o u
refl exão s o b r e o intercultural.
Mouawad nos prova qu e é possível tomar de empréstimo sem
s e r s u jeit a d o ou sem sujeitar uma cultura à outra. Ele nos mos- Trad. Adriano C.A . e So us a
tra que pode -se trabalhar os níveis de sentido um através do
outro, enquanto temos êxito em manter as significações aber-
tas . E le nos mostra também q ue se pode romper as certezas e
considerar um discurso político e estético ao mesmo tempo.
Se é preciso critérios adequados para compreender ver-
dadeiramente as outras cult.urasv, como diz Charles Taylor,
convém portanto nuançar, articular as diferenças em função das
sociedades . Isso parece se impor também no campo do irrter-
c u ltu r a l artístico. Para lutar contra o absolutismo, a demagogia,
o funcionamento h egemônico, talvez seja preciso sustentar que
as únicas práticas propriamente interculturais são aquelas que
colocam no centro de suas preocupações um ato de resistên-
c ia consciente e assumido, que destaca os cruzamentos e as
disjunções; que permite também a cada cultura aprender sobre
a outra sem pilhagem e sem assujeitamento.
Qual é o eco de espetáculos como o de Kentridge para a
reflexão intercultural? Qual ressonância tais espetáculos deixam
e m nós? Em que nos forçam a sair de esquemas que nos apri-
s io n a m ? Em que as linhas, as formas e os conteúdos colocados

36 U. C h a u d h u r i co me n ta n do a s propo si çõ es d e 1. Bírrtnger, o p. c it., p . 4l.


37 C h a rl e s Ta yl or ( m as tamb ém Lapl antine ) fa la d a n ece ssidade d e encontrar
c ri té rios que d e em con ta da evolução d e n o ssa s so ci ed ad es e que re conheçam
q u e promo ver a ig ualdade p ode c hega r às pi o r es injustiças . preci so p ortanto
É

le var em co n ta a s d ife ren ç as pa ra se r perfe itame n te j u s to. Tais c o n st a ta çõ es


se a p lica m. ev ide n te. às tro ca s c u lt u rais. A ssim . n ã o se p ode m a is dize r q ue o
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na dire çã o d a s c u ltu ras h e gem óni c a s o u daqu e las q u e n ã o o sã o.

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