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FILMWORKS 1
ROTEIRO
PAULO MARCELO
CONTEÚDO:
• TEMA
• PERSONAGEM
• ESTRUTURA NARRATIVA
• CENA
AULA 1
TEMA
A Ciência explica o fenômeno por meio das leis do mundo físico. A versão dos
caingangues pode ser mera fantasia, mas toca no coração humano com sentimentos
verdadeiros. Por trás da narrativa, a lenda de Naipi e Tarobá fala sobre Amor, Coragem,
Desafio, Liberdade e Vingança. São as temáticas que a história evoca no leitor.
Por isso, Albert Camus disse que “a ficção é a mentira pela qual falamos a
Verdade”.
Histórias são metáforas da vida.
E quando carregadas de valores universais, como a lenda de Naipi e Tarobá, as
histórias tem o poder de dialogar com toda a humanidade:
“Se quer ser universal, pinte sua aldeia”, nos ensinou Leon Tolstoi.
***
Cada um de nós tem o seu ponto de vista. E é isso o que buscamos nas
histórias: como cada um de nós enxerga o mundo. Para ilustrar o assunto, vamos
imaginar um filme sobre a vida do Ayrton Senna. Dos 34 anos de vida do piloto, vários
recortes são possíveis para tirar uma história:
Buscar o tema é importante, mas você só vai saber sobre o que trata
a história quando terminar. Então reescreva.
***
O Tema não deve ser expresso por meio de palavras soltas.
O ideal é construir uma frase simples que demonstre um ponto de vista.
Seguem dois exemplos de como conceituar o Tema de uma história.
Em The Art of Dramatic Writing, Lajos Egri conceitua o Tema como Premissa.
Uma sentença simples que explica sobre o que é a história. Assim, Romeu e Julieta tem
como premissa: grande amor desafia a morte.
Robert McKee, autor de Story, ensina que o Tema deve ser expresso em forma
de uma Idéia Governante, uma sentença concisa expressa por valor e causa: o
significado central da história.
Retomando os exemplos da vida do Ayrton Senna, temos duas ideias
governantes diferentes:
- a vitória pessoal só é atingida com a superação dos nossos limites.
- a fútil tentativa de superar nossos limites leva à morte.
***
Importante!
A construção da história ocorre num processo dialético entre a Idéia e sua
antítese: a Contra-Ideia. Em outras palavras, a história nasce do choque constante
entre a Idéia e a Contra-Ideia, um verdadeiro zigue-zague entre cargas positivas e
negativas, do início ao final do filme.
Se nossa Idéia é os esforços do Homem prevalecem sobre a hostilidade da
natureza, nossa Contra-Ideia é os esforços do Homem são inúteis perante a
hostilidade da natureza.
Vamos ilustrar por meio do Vôo Força Aérea Uruguaia 571, o acidente com o
time uruguaio de rugby nos Andes em 1972, mais conhecido como “O Milagre dos
Andes”. O avião Fairchild, com 45 pessoas, cai no meio da cordilheira – um ambiente
inóspito para a sobrevivência. Temos a Contra-Ideia: os esforços do Homem são fúteis
perante a hostilidade da natureza, ou seja, todos vão morrer. E alguns realmente já
morrem na queda. Eis que mostramos um avião sobrevoando a cordilheira fazendo a
busca dos sobreviventes. Temos agora a Idéia, porque o esforço humano (voar) vai
vencer a natureza e salvar os sobreviventes. Mas o avião não os localiza e encerra as
buscas. Voltamos à Contra-ideia: todos vão morrer. Mas eis que eles conseguem se
proteger do frio e tirar sustento da maneira mais horrível possível: se alimentar dos
mortos. Temos a Idéia novamente: eles vão sobreviver. Mas logo a “comida” vai acabar
e como se não fosse ruim o bastante, uma avalanche acaba levando a vida de mais
sobreviventes. Novamente a Contra-ideia, todos vão morrer. Quando dois dos rapazes
(Fernando Parrado e Roberto Canessa) saem para procurar ajuda, temos novamente a
Idéia: eles vão viver. Mas eles quase morrem durante a busca e temos novamente a
Contra-Ideia. Depois de dez dias andando pela cordilheira, enfrentando a fome e o frio,
eles encontram um grupo de fazendeiros e retornam com o resgate para salvar os
outros 14 sobreviventes.
Encerramos a história com a Idéia Governante – os esforços do Homem
prevalecem sobre a hostilidade da natureza – depois do choque constante entre os
dois valores positivos e negativos da narrativa.
AULA 2
PERSONAGEM
Protagonista e antagonista
Objetivo e obstáculos
Conflito externo e conflito Interno
Arco de Personagem
Motivação
Dilema
O dilema é o conceito fundamental da ficção, como evoca a citação do Faulkner.
Todo bom personagem enfrenta um dilema. Pode ser a essência do filme. Pode ser
uma situação que aconteça no meio ou a decisão do final, mas sempre terá pelo menos
um dilema para o protagonista. Não importa o tom, se dramático ou cômico, de duas
saídas ruins, ele terá que optar por uma.
O maior besteirol de todos os tempos Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu (1980)
tem seu humor construído em torno da falha e do conflito interno do herói, como um
filme dramático: um veterano piloto de guerra é o único homem capaz de pousar um
avião comercial e salvar centenas de vidas (conflito externo); porém, ele carrega um
trauma consigo: acredita que foi o responsável pela morte de um amigo numa missão.
Assim, ele duvida da sua capacidade para pousar o avião em perigo (conflito interno).
Empatia e identificação
Devemos ter empatia pelos nossos protagonistas (e muitas vezes, pelos
antagonistas). Isso não significa gostar deles ou endossar tudo o que defendem.
Significa encontrar a humanidade em cada personagem. Por que nós nos importamos
com eles?
Sonia Rodrigues cita que Aristóteles descreveu a melhor estratégia para
construir um personagem:
“Um diretor deve dizer ao ator que interpreta Iago que ele quer ‘corrigir a
injustiça que Otelo cometeu para com ele’. Otelo não o preteriu ao cargo
que ele merecia? James Tyrone contribuiu para o desastre da sua esposa e
dos seus filhos. Ele é um canalha mesquinho etc. Mas a espinha que
desenhei para o ator que interpretou o personagem foi “manter a família”.
O fato que seus esforços nesse sentido resultam em desastre é o drama da
peça.”
“Ninguém tem um comportamento estável. O homem sereno pode explodir
ferozmente. O revolucionário ardente agirá com cautela de vez em quando.
O professor simpático pode pegar um chicote. Mas essas alterações de
comportamento devem originar da principal motivação do personagem. É
uma boa regra para atores e diretores encontrarem esses momentos na
peça, onde pessoas ruins agem como pessoas boas e um sujeito educado se
torna truculento.”
In: On directing. New York: Colliers Books, 1972, p. 74-75.
3. No final, ele consegue ou não o que quer? Isso é bom ou ruim? Qual o
preço que paga pelo que quer? O que o protagonista precisa? Como isso
difere do que ele quer quando a história começa?
Importante!
Reparem que ao desenvolver os personagens, também desenvolvemos a trama
da história. Quando pensamos nos obstáculos do protagonista, estamos já pensando
em situações e/ou cenas da história. E vice-versa.
Somente preencher todos esses quesitos não basta para criar bons
personagens. Na verdade, nem todos precisam ser preenchidos. O importante é
conhecer o personagem e escrever segundo seu ponto de vista. Mas a lista ajuda
bastante.
Por exemplo, a crença religiosa. Se o personagem precisa praticar um ato
condenável pela igreja católica, a princípio é mais interessante ele ser católico. Se o
personagem precisa denunciar um político, a princípio é mais interessante o político
ser da mesma linha ideológica. Se ele tem um medo, é legal que ele seja confrontado
por esse medo durante a história.
E quais acontecimentos do passado ainda reverberam no presente? Não é
necessário escrever um livro com a biografia de cada personagem, mas é fundamental
saber o que de importante aconteceu antes de começar a história.
Ao pensar sobre a vida pregressa do personagem, lembre-se de Mario
Quintana:
Personagens sempre reagem ao que acontece com eles. Mas usamos a Terceira
Lei de Newton como ponto de partida porque seres humanos/personagens não são
instrumentos de precisão. Nem sempre pessoas reagem com a mesma intensidade.
Um tapa pode motivar um tiro; a ameaça de um tiro pode motivar um tapa.
Personagens interessantes costumam reagir de forma inusitada e revelam, assim, uma
segunda faceta.
Em Breaking Bad, quando o médico revela para Walter White que ele tem um
cancer inoperável, o protagonista repara que o médico tem mostarda no avental.
Em Dúvida (2008), a rígida freira Aloysius conta para Sra. Miller que um padre
pode ter molestado seu filho. Qual a reação da mãe? Explode de ódio, nega o fato,
desaba em prantos? Não, ela aceita o fato porque o padre é o único homem bom para
o menino.
Em O Quarto de Jack (2015), a jovem Joy e seu filho Jack conseguem se ver
livres de um psicopata que os manteve anos em cárcere privado. Em princípio, Joy seria
feliz até o final do filme. Ocorre o oposto. A volta para a vida familiar e social é muito
mais difícil do que ela poderia imaginar – tanto que Joy tenta o suicídio.
Quadra de Personagens
A B C D
A AMA RESPEITA
Pensem que precisa haver jogo entre os personagens. Se colocarmos dois deles
num mesmo lugar, que tipo de tensão pode ocorrer. Se A ama B e B tem medo de A, o
que aconteceria se ficassem presos num elevador?
A também respeita C, que ignora A.
Diante dessas relações, o que A pensa quando coloca a cabeça no travesseiro
de noite? Isso vai no quadradinho do conflito interno.
"A verdadeira personagem é revelada nas escolhas que um ser humano faz
sob pressão - quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira
a escolha para a natureza essencial da personagem.
Pressão é essencial. Escolhas feitas sem nenhum risco significam pouco. Se
uma personagem escolhe contar a verdade em uma situação em que uma
mentira não lhe daria nada, a escolha é trivial, o momento não expressa
nada. Mas se a mesma personagem insiste na verdade quando uma
mentira poderia salvar sua vida, podemos então perceber que a
honestidade está no núcleo da sua natureza".
A função da Estrutura é criar obstáculos progressivos ao desejo do
Personagem , forçando-o a enfrentar dilemas cada vez mais difíceis. A
função do Personagem é trazer à história as qualidades necessárias para
fazer a escolhas que os obstáculos o obrigam de forma convincente.”
In: Story: susbtância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro.
Curitiba: Arte&Letra, 2006, p. 106.
***
A produtora Pixar sugere uma estrutura muito simples e eficiente para
começarmos a pensar uma história. Uma estrutura tão simples e eficiente que abrange
a totalidade das histórias, da Lenda de Naipi e Tarobá até Breaking Bad:
Era uma vez, ____. Todo dia, ____. Até que um dia, ____. Por causa disso,
____. Por causa disso, ____. Até que finalmente, ____.
Poesia, chama, fogo são a substância da história, seu coração, aquilo que nos
emociona. Álgebra, arquitetura e cristal formam a estrutura, que organiza e combina
todos os elementos da narrativa. O poder da estrutura pode ser visto nas combinações
citadas. Fogo, álgebra, chama, poesia, arquitetura e cristal são palavras soltas num
dicionário. Combinadas de maneira inteligente, criam expressões de efeito.
***
- Tem gente que é formiga na vida. Tem gente que é cigarra. Nós somos
mariposas. Precisamos de luz para viver.
Augusto busca o holofote. Essa é sua motivação, o drive do personagem. Ele
busca o holofote no cinema (não por acaso o filme se chama O Abajur do Amor), na
novela e a encontra no programa infantil do Bingo. Sua obsessão pelo sucesso provoca
sua demissão. E, mais uma vez, Augusto encontra um novo palco com um holofote: a
igreja. Não era o palco que ele desejava, mas foi o palco que ele conseguiu afinal – e
dentro da sua motivação: a busca do holofote.
Essa jornada se dá por meio das cinco principais reviravoltas da trama:
- Incidente Incitante (aprox.. 13m): Augusto descobre o teste para o programa
infantil do palhaço Bingo.
- Ponto de Virada 1 (aprox. 17m): Augusto consegue o papel do Bingo. Fim do
Ato I.
- Ponto Central (aprox.. 60m): na metade do Ato II, a trama faz a transição entre
o auge do sucesso e o início da derrocada de Augusto. O programa infantil atinge a
liderança da audiência e Augusto comemora com fúria, pisando na boneca loira. Lúcia
diz: “Você enlouqueceu”.
- Ponto de Virada 2 (aprox. 90m): Augusto perde o papel do palhaço Bingo. As
luzes se apagam enquanto ele deixa o estúdio. Fim do Ato II.
- Clímax (aprox. 100m/105m): a sequência onde Augusto narra seus problemas
na reunião dos Alcoólicos Anônimos apresenta outras sequências em paralelo com sua
voz em off: ele se reconecta com o filho fazendo teatro de sombras na parede de um
edifício e entra vestido de palhaço no palco da igreja, onde, sob palmas, retira a
maquiagem e se revela como Augusto Mendes. De volta para a reunião dos Aas,
Augusto diz: “Qualquer lugar que tiver um holofote de luz, vai ser o meu palco”.
E completa em seguida:
Nesse conceito, a Cena é uma situação que ocorre num determinado lugar.
Nesse momento que escrevo, estou digitando no meu escritório. Isso é uma situação
que ocorre num lugar. Você está lendo esse texto agora. Isso também é uma situação
que ocorre num lugar.
Essa definição é prática porque coincide com a formatação oficial do roteiro
que ainda estudaremos. Toda cena começa com um cabeçalho definindo onde e
quando a cena acontece. Por exemplo, se pensarmos no curta Geri’s Game:
(c) “Em cada cena, uma personagem busca um desejo relativo a esse mesmo
tempo e lugar. Mas esse Objetivo de Cena deve ser um aspecto de seu Super Objetivo
ou Espinha, a jornada que vai do Incidente Incitante ao Clímax da Estória.”
Retomando o item (a), se o filme é um progressão de cenas até uma resolução
(o Clímax), a cena é uma progressão de reviravoltas (ações e reações entre os
personagens) até o seu climax, onde ela vira.
Se o personagem tem um objetivo ao longo do filme, ele precisa cumprir uma
série de objetivos menores para atingir esse gol. Por exemplo, o protagonista quer
solucionar um crime (o gol!), ele precisa ouvir testemunhas, colher provas, realizar
análises forenses, interceptar ligações telefônicas etc.
(e) “Como efeito, a brecha entre expectativa e resultado se abre, levando suas
fortunas externas ou sua vida interna ou ambos do positivo ao negativo ou do
negativo ao positivo em termos de valores que o público entende que estão em
risco.”
Continuando o drama do garoto franzino diante dos brutamontes, se ele vence
o medo e pede para os irmãos chamarem a garota, a cena termina num polo positivo.
Se ele vai embora, a cena termina num polo negativo.
Em ambos os casos a cena vira.
***
Toda cena vira, uma vez que toda cena gira em torno de um conflito.
Porém, um filme ou episódio de série não é todo construído em cima de viradas
espetaculares. Dentro de um amplo espectro, a dramaticidade das cenas pode ser alta,
media ou baixa.
Retomando a estrutura em três atos, temos cinco grandes reviravoltas ao longo
do filme: Incidente Incitante, Ponto de Virada 1, Ponto Central, Ponto de Virada 2 e
Clímax. São as reviravoltas que provocam os maiores dilemas e transformações na
jornada do protagonista. As demais cenas serão, em sua maioria, de media ou baixa
dramaticidade.
***
As três perguntas mágicas de David Mamet.
Em seu divertido livro Bambi Vs. Godzilla, David Mamet ensina que todas as
cenas devem responder três perguntas:
Zana borrifa perfume sobre a fronha bordada com capricho, onde se lê:
Yaqub. Dá os últimos retoques na arrumação do quarto já impecável. Rânia
arruma flores (helicônias) num vaso.
ZANA
Meu menino vai dormir com as minhas letras, com a minha caligrafia…
RÂNIA
Está bem aqui?
ZANA
Teu irmão vai gostar.
RÂNIA
Por que ele ficou tanto tempo longe?
ZANA
Devias perguntar isso ao teu pai.
Ela pega alguma flores do vaso, sai. E já ouvimos o som do bimotor que
sobrevoa.
A cena apresenta um conflito forte, porém sutil. Rânia quer saber por que o
irmão ficou tanto tempo longe e Zana não quer responder. A cena tem subtexto: Zana
esconde algo da filha. Assim, a cena não terminou da mesma forma que começou.
Descobriremos ao longo da história que Zana não gosta de Yaqub. Ela aparentemente
está feliz com a volta do filho e arruma seu quarto com carinho; na verdade, ela ama
somente seu outro filho, o gêmeo Omar.
E temos a exposição por meio desse conflito: mãe e filha arrumam o quarto do
outro filho que está voltando para casa.
***
WERNECK
(para Edgard)
Bom, então você já sabe de tudo?
EDGARD
De fato.
PEIXOTO
Contei o caso por alto.
WERNECK
Bem. Portanto, você já sabe que a moça. A moça sofreu um acidente.
Foi um acidente. Como um atropelamento, uma trombada. Entende?
Essa moça é minha filha. Filha do seu patrão. Presta atenção porque
Isso é muito importante. Filha do seu patrão. Entendido?
EDGARD
Sim senhor.
WERNECK
(com prazer)
Gostei da inflexão. Um “sim senhor” bem, como direi.
LIGIA
(para Edgard)
Meu filho! Houve o que houve com a minha filha, mas eu posso
garantir. Nunca houve menina mais virgem!
WERNECK
Exato. Exato. Mas vamos ao que interessa. Você trabalha na firma há
onze anos. Entrou pra lá, antes do Peixoto. Começou de baixo. Veio
do nada. Qual foi mesmo seu primeiro posto lá?
EDGARD
(sorri, com embaraço)
Auxiliar de escritório.
WERNECK
(num berro triunfal)
Mentira!
LIGIA
Que é isso Heitor?
WERNECK
É mentira dele! Você começou como contínuo. Contínuo! Contínuo.
(para Peixoto)
Não foi como contínuo?
PEIXOTO
Contínuo.
EDGARD
Realmente, eu!
WERNECK
(interrompe)
Contínuo! Contínuo! Portanto, nao se esqueça disso. Você é um
ex-contínuo! Póe isso na tua cabeça!
LIGIA
Heitor, você está humilhando o rapaz.
(para Edgard)
Meu marido gosta de fingir de mau. Mas ele é bom.
EDGARD
Eu posso falar?
WERNECK
Senta! Momento! Eu não acabei.
Edgard obedece.
WERNECK
Você vai se casar com a minha filha. Ta bom! Mas sabe como é. Com
separação de bens.
EDGARD
Aliás, eu acho que se eu me casar. Se, realmente, eu.
EDGARD
Não ouvi.
EDGARD
Eu acho que a separação de bens é o certo, o justo. Eu também
prefiro.
WERNECK
Prefere nada! Conversa!
EDGARD
Olha aqui, meu senhor.
WERNECK
Senta, rapaz. Essa mania. Essa obsessão de ficar de pé.
(pausa)
Separação de bens, mas você vai ganhar alto. A mesma coisa. Não faz
diferença. Vai ganhar até mais.
LIGIA
Heitor, você fala como se estivesse comprado um genro.
WERNECK
Ligia, não atrapalha! Essa eterna mania.
LIGIA
(para Edgard)
Meu marido é bom.
WERNECK
(para Ligia)
Mentira! Você me acha um cafajeste. Diz que eu faço barulho quando
eu como.
LIGIA
Nunca! Eu vou me retirar. Com licença.
LIGIA
Você é bom, Heitor. Você é bom.
WERNECK
(resmunga)
Caso sério a minha vida!
(para Edgard)
E você que quase não fala. Tudo sai de você aos bocadinhos feito
titica de cabra. Fala, rapaz!
EDGARD
Vou falar sim.
Edgard levanta.
WERNECK
Mas senta!
EDGARD
Escuta aqui, doutor Werneck.
(para Peixoto)
E você também, Peixoto. Você! Não é doutor, não. Você!
(de volta para Werneck)
Olha! Eu não vou mais casar com a sua filha não. Não vou mais não. E
tem mais. Eu largo o emprego. Enfio os onze anos de estabilidade no
rabo. É! No rabo! E tem mais.
(mais agressivo)
Eu sou um ex-contínuo e você é um filho da puta.
EDGARD
(num berro maior)
Seu filho da puta!
Edgard começa a cena “querendo ser comprado”, logo num pólo negativo. E
termina a cena reavendo sua dignidade, logo num pólo positivo. Então a cena virou,
cumpriu sua função. E qual o momento da virada, o clímax da cena? É o momento que
Edgard se levanta e não só diz que não vai mais se casar como xinga o Dr. Werneck de
“filho da puta” bem na sua cara.
Podemos resumir assim a cena pelo seu clímax:
Edgard xinga o Dr. Werneck e diz que não vai se casar com sua filha após
ser humilhado.
Até o clímax, temos uma progressão de ações e reações que conduz a cena. As
ações são as provocações do Dr. Werneck e as reações, as tentativas de Edgard falar e
até mesmo seu silêncio resignado – até sua erupção.
Como Werneck é o principal antagonista de Edgard, vamos responder as três
perguntas mágicas do David Mamet:
Quem quer o que de quem?
No início da cena, Werneck quer “comprar” Edgard como genro. E Edgard quer
ser “comprado” por Werneck.
O que acontece se não conseguirem?
Werneck não casará sua filha com um genro escolhido por ele. E Edgard não
ganhará dinheiro ou status social.
Por que agora?
Porque é agora que os personagens são colocados frente a frente, uma
maquinação do Peixoto – como se revela adiante na história.
No início da cena, todas as vontades estão convergindo. No final da cena, existe
divergência por causa da dignidade de Edgard – o elemento que nem Werneck nem
Peixoto poderiam prever. Do ponto de vista desses dois antagonistas, a dignidade de
Edgard é a brecha entre o que desejam e o que realmente acontece: Edgard não aceita
ser humilhado – e tampouco Edgard poderia imaginar que seria humilhado ao entrar
na cena. Logo, temos brechas dos dois lados.
Podemos ver o design progressivo da cena ao traduzirmos cada fala do Dr.
Werneck num verbo ou expressão verbal. Cada mudança de intenção na fala revela um
novo subtexto – todos em linha ascendente até a explosão de Edgard – o clímax da
cena.
Werneck começa a cena suavizando a situação – se referindo à filha estuprada:
– Ela sofreu um acidente.
Essa é a primeira ação efetiva de Edgard na cena – lembrando que toda ação é
uma reação. Até então, ele praticamente estava tentando reagir – tentando levantar,
tentando retrucar, mas sempre dominado pelo Dr. Werneck.
***
Análise de cena – O Pagador de Promessas (1962)
O Padre está no topo da escadaria. Zé do Burro aguarda com sua cruz sob a
escadaria.
ZÉ
Padre! Eu queria falar com o senhor.
PADRE
Agora está na hora da missa. Mais tarde, se quiser...
ZÉ
É que eu vim de muito longe, Padre.
PADRE
O que é que você quer?
ZÉ
Eu andei sete léguas...
PADRE
Para falar comigo?
ZÉ
Não, pra trazer esta cruz.
PADRE
E como a trouxe? Num caminhão?
ZÉ
Não, Padre, nas costas.
PADRE
Deixe ver seu ombro.
PADRE
Promessa?
ZÉ
Pra Santa Bárbara. Estava esperando abrir a igreja.
SACRISTÃO
Deve ter recebido dela uma graça muito grande!.
ZÉ
Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo.
PADRE
Mesmo assim, não lhe parece um tanto exagerada e pretensiosa a sua
promessa?
ZÉ
Nada disso, seu Padre. Promessa é promessa. É como um negócio. Se a
gente oferece um preço, recebe a mercadoria, tem que pagar. Quando
Nicolau adoeceu, o senhor não calcula como eu fiquei.
PADRE
Foi por causa desse Nicolau, que você fez a promessa?
ZÉ
Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma árvore que caiu, num dia de
tempestade.
SACRISTÃO
Caiu em cima dele?
ZÉ
Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa
escorrendo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos dele, mas
o sangue não havia meio de estancar.
PADRE
Uma hemorragia. Venha comigo.
PADRE
Vai! Vai! Estamos atrasados. Vai, filha. Vamos pra missa!
PADRE
Então foi uma hemorragia.
ZÉ
Só estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta de vaca e
taquei em cima do ferimento.
PADRE
Mas meu filho, isso é atraso! Uma porcaria!
ZÉ
Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse aquela
porcaria de cima da ferida, que senão Nicolau ia morrer.
PADRE
Sem dúvida.
ZÉ
Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma
cachoeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar? Ensopava algodão e
mais algodão e nada. Era uma sangueira que não acabava mais. Lá pelas
tantas, o homenzinho virou pra mim e gritou: corre, homem de Deus, vai
buscar mais bosta de vaca, senão ele morre!
O Padre ri.
PADRE
E o sangue estancou?
ZÉ
Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário não sabia?
PADRE
Não estou interessado nessa medicina. Adiante.
ZÉ
Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia
seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido: eu saí de casa e
Nicolau ficou. Não pôde se levantar. Todo mundo reparou, porque quem
quisesse saber onde eu estava, era só procurar Nicolau. Se eu ia na missa,
ele ficava na porta esperando.
PADRE
Na porta? Por que ele não entrava? Não é católico?
ZÉ
Tendo uma alma tão boa, Nicolau não pode deixar de ser católico. Mas não
é por isso que ele não entra na igreja. É porque o vigário não deixa. Nicolau
teve o azar de nascer burro...
PADRE
Burro?
ZÉ
De quatro patas.
PADRE
Então esse que você chama de Nicolau, é um burro? E foi por ele que você
fez a promessa?
ZÉ
Foi. Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito no
padre Nicolau…
PADRE
(desconfiado)
Rezas? Que rezas?
ZÉ
Seu vigário me disculpe... mas eu tentei tudo. Preto Zeferino é rezador
afamado na minha zona: Sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de
gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo
mundo diz.
PADRE
Mas esse homem é um feiticeiro?
ZÉ
Como feiticeiro se as rezas são pra curar?
PADRE
Não é para curar. É para tentar. E você caiu em tentação.
ZÉ
Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar. Eu já estava
começando a perder a esperança. Foi então que comadre Miúda me
lembrou: por que eu não vai no candomblé de Maria de Iansan?
PADRE
(com gravidade)
Candomblé? Espere um pouco.
PADRE
Candomblé?
ZÉ
É um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça. Eu sei que
seu vigário vai ralhar comigo.
PADRE
Claro! Candomblé é feitiçaria. Macumba.
ZÉ
Mas o pobre Nicolau estava morrendo. Não custava tentar.
ZÉ
E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que era mesmo
com Iansan, dona dos raios e das trovoadas. Iansan tinha ferido Nicolau...
pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa. Mas tinha
que ser uma promessa bem grande, porque Iansan, que tinha ferido
Nicolau com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. Foi então
que eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se
Nicolau ficasse bom eu levava uma cruz de madeira de minha roça até a
Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.
PADRE
Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...
ZÉ
A Santa Bárbara.
PADRE
A Iansan!
ZÉ
É a mesma coisa...
PADRE
(Grita)
Não, não! Não é a mesma coisa!
O Padre volta a tomar a dianteira de Zé, em posição superior.
PADRE
Essa confusão vem do tempo da escravidão. Os escravos africanos
burlavam assim os senhores brancos. Fingiam cultuar santos católicos
quando na verdade estavam adorando seus próprios deuses. Não só Santa
Barbara. Muitos santos foram vítimas dessa farsa. Mas continue.
ZÉ
Prometi também dividir minhas terras.
PADRE
Dividir? Com quem?
ZÉ
Com os lavradores mais pobres do que eu.
PADRE
Igualmente?
ZÉ
Sim, padre.
PADRE
Sei. Descanse.
PADRE
E o burro?
ZÉ
Sarou em dois tempos. Milagre. Milagre mesmo. No outro dia já estava de
orelha em pé, relinchando. E uma semana depois todo o mundo me
apontava na rua: “Lá vai Zé-do-Burro com o burro de novo atrás!”. Eu nem
dava confiança. E Nicolau muito menos. Só eu e ele sabíamos do milagre.
Eu, ele e Santa Bárbara.
PADRE
Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara, não
se trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O burro podia ter-se
curado sem intervenção divina.
ZÉ
Como, Padre, se ele sarou de um dia pro outro...
PADRE
E além disso, Santa Bárbara, se tivesse de lhe conceder uma graça, não iria
fazê-lo num terreiro de candomblé, de macumba.
ZÉ
É que na capela do meu povoado não tem uma Santa Bárbara. Mas no
candomblé tem uma Iansan, que é Santa Bárbara...
PADRE
Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica! O senhor foi a
um ritual fetichista. Invocou um falso ídolo e foi a ele que prometeu esse
sacrifício!
ZÉ
Não, Padre, foi a Santa Bárbara! Foi até a igreja de Santa Bárbara que
prometi vir com a minha cruz! E é diante do altar de Santa Bárbara que vou
cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fez por mim!
PADRE
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua
promessa?
ZÉ
Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha consciência e
quite com a santa.
PADRE
Só isso?
(acusa)
Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?
ZÉ
Eu?
PADRE
Você Sim, você que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martírio de
Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imitar o Filho de Deus.
ZÉ
Padre... eu não quis imitar Jesus...
PADRE
Não é verdade! Mentira! Eu gravei bem suas palavras! Você mesmo disse
que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo.
ZÉ
Sim, mas isso...
PADRE
Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior. A
de igualar-se ao Filho de Deus.
ZÉ
Não, Padre.
PADRE
Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade? Não, para
salvar um burro!
ZE
Padre, Nicolau...
PADRE
É um burro com nome cristão!
ZÉ
Mas Padre, não foi Deus quem criou também os burros?
PADRE
Mas não à Sua semelhança. E não foi para salvá-los que mandou seu Filho.
Foi por nós, por você, por mim, pela Humanidade! Entendeu?
ZÉ
Padre, Nicolau não é um burro como os outros. O senhor não conhece
Nicolau. É um burro com alma de gente.
PADRE
Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja você não entrará com essa
cruz!
PADRE
Vamos! Vamos!
ZÉ
(desesperado)
Padre! Escuta! Prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a
promessa!
PADRE
Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer outra parte, menos num
antro de feitiçaria. Num terreiro de candomblé.
ZÉ
Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não pode fazer
isso. A igreja não é sua, é de Deus!
PADRE
Vai desrespeitar a minha autoridade?
ZÉ
Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara.
PADRE
(para o Sacristão)
Feche a porta. Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da
sacristia. Lá não dá para passar essa cruz.
Vamos retomar o conceito do jogo por meio das perguntas do David Mamet:
- Quem quer o que? Zé quer levar a cruz até o altar da igreja. O padre Olavo
não quer que Zé entre na igreja com a cruz.
- O que está em jogo? Para Zé, sua palavra, sua promessa. Para o padre Olavo,
sua autoridade - e os cânones da Igreja Católica.
- Por que agora? Porque Zé está nesse momento diante da igreja com sua cruz.