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ACADEMIA INTERNACIONAL DE CINEMA

FILMWORKS 1
ROTEIRO

PAULO MARCELO
CONTEÚDO:

• TEMA

• PERSONAGEM

• ESTRUTURA NARRATIVA

• CENA
AULA 1
TEMA

Se quer enviar mensagens, tente o correio.


Citação atribuída a Ernest Hemingway.
Tema é o que queremos dizer por meio da história.
Toda história tem um significado por trás da narrativa e que dialoga com um
valor humano universal – ou conjunto de valores.
Ampliando o conceito, o Tema também se relaciona com o ponto de vista do
contador de histórias. Por meio da sua criação, o contador de histórias revela sua visão
de mundo.
***
Vamos ilustrar o significado por trás da narrativa por meio da lenda da
formação da Cataratas do Iguaçu.

Segundo a Ciência, as Cataratas foram formadas por movimentos de placas e


erosões, centenas de milhares de anos atrás. Segundo os habitantes nativos da região,
as Cataratas foram formadas pelo MBoi – um deus em forma de serpente – para
impedir o amor de Naipi e Tarobá:

Os índios caingangues, que habitavam as margens do rio Iguaçu,


acreditavam que o mundo era governado por Mboi — um deus com forma
de serpente e filho de Tupã. Igobi, o cacique da tribo, tinha uma filha, Naipi,
[…]. Devido à sua beleza, Naipi seria consagrada ao deus Mboi, passando a
viver somente para seu culto. Havia, porém, […], um jovem guerreiro
chamado Tarobá, que se apaixonou ao ver Naipi. No dia da festa de
consagração da jovem índia, […] Tarobá fugiu com a linda Naipi numa
canoa que seguiu rio abaixo, arrastada pela correnteza. Ao saber da fuga
de Naipi e Tarobá, Mboi ficou furioso. Penetrou as entranhas da terra,
retorcendo o seu corpo e produzindo uma enorme fenda que formou as
cataratas. Envolvidos pelas águas dessa imensa cachoeira, […] os fugitivos
caíram de uma grande altura desaparecendo para sempre. Naipi foi
transformada em uma das rochas centrais das cataratas, perpetuamente
fustigada pelas águas revoltas. Tarobá foi convertido em uma palmeira
situada à beira de um abismo, […]. Debaixo dessa palmeira acha-se a
entrada de uma gruta onde o monstro vingativo vigia eternamente as duas
vítimas. In: O amor proibido de Naipi e Tarobá.
http://www.h2foz.com.br/lenda-das-cataratas. Acessado em 12 de julho de
2016.

A Ciência explica o fenômeno por meio das leis do mundo físico. A versão dos
caingangues pode ser mera fantasia, mas toca no coração humano com sentimentos
verdadeiros. Por trás da narrativa, a lenda de Naipi e Tarobá fala sobre Amor, Coragem,
Desafio, Liberdade e Vingança. São as temáticas que a história evoca no leitor.
Por isso, Albert Camus disse que “a ficção é a mentira pela qual falamos a
Verdade”.
Histórias são metáforas da vida.
E quando carregadas de valores universais, como a lenda de Naipi e Tarobá, as
histórias tem o poder de dialogar com toda a humanidade:
“Se quer ser universal, pinte sua aldeia”, nos ensinou Leon Tolstoi.
***
Cada um de nós tem o seu ponto de vista. E é isso o que buscamos nas
histórias: como cada um de nós enxerga o mundo. Para ilustrar o assunto, vamos
imaginar um filme sobre a vida do Ayrton Senna. Dos 34 anos de vida do piloto, vários
recortes são possíveis para tirar uma história:

• Da adolescência até a estréia na F1.


• Foco em 1991, terminando com a vitória dramática no GP do Brasil.
• Sua aparição no programa da Xuxa Meneghel.
• Da vitória dramática de 1991 à trágica morte em 1994.
• Uma história que resuma a maior parte da vida: da juventude à morte.

Cada recorte é uma história. E cada história revela um tema.


Um filme que termina com a vitória no GP do Brasil em 1991 mostra uma
jornada de superação: como a vitória pessoal só é atingida com a superação dos nossos
limites. Um filme que termina com o trágico acidente pode mostrar uma jornada de
punição: a fútil tentativa de superar nossos limites leva à morte.
Em 1991, Ayrton Senna já era bicampeão do mundo, ídolo nacional, talvez a
figura mais amada que tivemos. E ele nunca havia vencido uma prova no Brasil, o que
era uma grande pressão. No GP de Interlagos, todas as atenções estavam voltadas
nele. Ayrton tinha que vencer. Só que o pior que poderia acontecer, aconteceu.
Liderando a prova, sua caixa de câmbio quebrou, restando apenas a sexta marcha.
Ayrton segurou o carro no braço até o final e finalmente venceu em casa. Exausto,
precisou de ajuda para sair do carro e se arrastar até o pódio. Quando lhe entregaram
o troféu, Ayrton já não tinha mais forças para erguê-lo. A torcida gritou seu nome. E, de
algum lugar, Ayrton retirou a força necessária para erguer o troféu. O Brasil inteiro
vibrou naquele momento. Temos, assim, um final positivo e inspirador.
Agora, vamos supor que o filme comece com essa vitória no último ano que
Ayrton foi campeão. A narrativa segue os anos seguintes mostrando que a tentativa de
superar os limites somente frustrou o piloto e o filme termina com o trágico acidente
na Itália, no momento em que Ayrton estava disputando a liderança da prova. Temos
um final negativo e um alerta: a fútil tentativa de superar nossos limites leva à morte.
Ambos os pontos de vista são válidos. Completamente opostos e retirados na
vida da mesma pessoa. Ou seja, os mesmos fatos filtrados pela visão de mundo do
artista.
Uma terceira história pode mostrar a vida do Ayrton Senna da adolescência à
estréia na F1 e criar uma jornada de maturação. Começamos a história com Ayrton
correndo de kart aos 14 anos (sonhando em ser um grande campeão) e vamos até
1984, quando ele despontou para o mundo no GP de Mônaco. Durante a prova, uma
tempestade desabou e aquele jovem piloto de uma pequena escuderia mostrou a que
veio. Nas últimas posições, Ayrton começou a ultrapassar todos os outros pilotos,
incluindo os maiores do seu tempo. Ayrton chegou ao segundo lugar e estava prestes a
ultrapassar o líder Alain Prost, quando os dirigentes encerraram a corrida por falta de
segurança. Uma evidente manobra para garantir a vitória de Prost. Como boa trama de
maturação, temos um final ao mesmo tempo positivo e negativo. O garoto sonhador
do começo do filme perde a corrida, mas tem sua vitória pessoal e aprende que o
mundo pode ser sujo – conhecimento fundamental para as futuras conquistas.
O contador realmente expressa sua visão de mundo por meio do final da sua
história. Muitas vezes, pelo conflito interno e pelo Arco do Protagonista (como
estudaremos adiante), a mudança interior do personagem durante a história.
Concluindo esta etapa, a imaginação é o limite.
Podemos contar a vida do Ayrton Senna por meio de outro personagem, como
Nelson Piquet e Adriane Galisteu.
Podemos pegar um recorte ainda menor da sua vida: um filme que conta
somente sua aparição no programa da Xuxa. É uma oportunidade de buscar, de forma
ficcional, o aspecto mais humano do personagem. Ídolo, herói, campeão do mundo.
Mas como estava se sentindo enquanto contava os minutos para aparecer ao vivo
como namorado da Xuxa? E o que ele realmente pode ter falado no ouvido da
apresentadora (e que só ela ouviu)?
***
Nós não enviamos mensagens ao público. Para isso existe o correio, disse Ernest
Hemingway. Nós contamos histórias. E as histórias carregam um significado por trás da
narrativa – o Tema.
A não ser que você esteja escrevendo um episódio de He-Man, nossos
personagens nunca devem contar para o público a lição de moral no final da história:
“Hoje aprendemos a importância da educação e lembrem-se de frequentar a biblioteca
mais próxima da escola. Até mais!”. Como He-Man é destinado ao público
infanto-juvenil, aceitamos a forte carga didática.
Mesmo assim, Toy Story (1995) nos ensina sobre como o ciúme é nocivo ao
mostrar o cowboy Woody reconhecendo seu erro e construindo sua amizade com o
astronauta Buzz. Em outras palavras, o tema deve ser dramatizado na forma de uma
narrativa. Mostramos um personagem lidando, cena após cena, com um problema até
um final coerente. O tema de alguma maneira estará subentendido na história.
Como nos ensinou o professor Robert McKee:

“O contar uma história é a demonstração criativa da verdade. Uma estória


é a prova viva de uma idéia, a conversão da idéia em ação. A estrutura de
eventos de uma estória é o meio com o qual você primeiro expressa e
depois prova sua idéia... sem explicações.”
In: Story: susbtância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro.
Curitiba: Arte & Letra, 2006, p. 117.
***
Não devemos forçar um Tema para a nossa história. O ideal é que ele apareça
naturalmente na nossa criação, enquanto desenvolvemos a história, como ensina
Stephen King:

“Se você escrever um romance, passando semanas e depois meses


trabalhando nele, (…) você deve ao livro e a si mesmo um descanso (…)
depois de acabar, e deve se perguntar por que se deu o trabalho – por que
dedicou tanto tempo, por que aquela história pareceu tão importante. Em
outras palavras, do que se trata, afinal?
“Quando escreve um livro, o autor passa dias e dias procurando e
identificando as árvores. Quando acaba, é preciso dar um passo para trás e
contemplar a floresta. (...) me parece que todos os livros – todos os que
valem a leitura, pelo menos – tratam de alguma coisa. Seu trabalho,
durante ou depois da primeira versão, é decidir de que coisa ou coisas
tratam o livro. Seu trabalho na segunda versão – um deles, pelo menos – é
tornar essa coisa mais clara. E isso pode demandar grandes mudanças e
reavaliações. Os benefícios, para você e para o leitor, serão um foco mais
apurado e uma história mais coesa.”
in: Sobre a Escrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 172.
A Pixar, grande produtora de animação, sugere o mesmo de forma mais
resumida:

Buscar o tema é importante, mas você só vai saber sobre o que trata
a história quando terminar. Então reescreva.

***
O Tema não deve ser expresso por meio de palavras soltas.
O ideal é construir uma frase simples que demonstre um ponto de vista.
Seguem dois exemplos de como conceituar o Tema de uma história.

• Tema como Premissa, segundo Lajos Egri.

Em The Art of Dramatic Writing, Lajos Egri conceitua o Tema como Premissa.
Uma sentença simples que explica sobre o que é a história. Assim, Romeu e Julieta tem
como premissa: grande amor desafia a morte.

Grande amor pressupõe dois personagens que se amam.


Desafia pressupõe conflito, pressupõe obstáculos ao grande amor.
Morte é o fim da história. Romeu e Julieta morrem.

• Tema como Idéia Governante, segundo Robert McKee.

Robert McKee, autor de Story, ensina que o Tema deve ser expresso em forma
de uma Idéia Governante, uma sentença concisa expressa por valor e causa: o
significado central da história.
Retomando os exemplos da vida do Ayrton Senna, temos duas ideias
governantes diferentes:
- a vitória pessoal só é atingida com a superação dos nossos limites.
- a fútil tentativa de superar nossos limites leva à morte.
***
Importante!
A construção da história ocorre num processo dialético entre a Idéia e sua
antítese: a Contra-Ideia. Em outras palavras, a história nasce do choque constante
entre a Idéia e a Contra-Ideia, um verdadeiro zigue-zague entre cargas positivas e
negativas, do início ao final do filme.
Se nossa Idéia é os esforços do Homem prevalecem sobre a hostilidade da
natureza, nossa Contra-Ideia é os esforços do Homem são inúteis perante a
hostilidade da natureza.
Vamos ilustrar por meio do Vôo Força Aérea Uruguaia 571, o acidente com o
time uruguaio de rugby nos Andes em 1972, mais conhecido como “O Milagre dos
Andes”. O avião Fairchild, com 45 pessoas, cai no meio da cordilheira – um ambiente
inóspito para a sobrevivência. Temos a Contra-Ideia: os esforços do Homem são fúteis
perante a hostilidade da natureza, ou seja, todos vão morrer. E alguns realmente já
morrem na queda. Eis que mostramos um avião sobrevoando a cordilheira fazendo a
busca dos sobreviventes. Temos agora a Idéia, porque o esforço humano (voar) vai
vencer a natureza e salvar os sobreviventes. Mas o avião não os localiza e encerra as
buscas. Voltamos à Contra-ideia: todos vão morrer. Mas eis que eles conseguem se
proteger do frio e tirar sustento da maneira mais horrível possível: se alimentar dos
mortos. Temos a Idéia novamente: eles vão sobreviver. Mas logo a “comida” vai acabar
e como se não fosse ruim o bastante, uma avalanche acaba levando a vida de mais
sobreviventes. Novamente a Contra-ideia, todos vão morrer. Quando dois dos rapazes
(Fernando Parrado e Roberto Canessa) saem para procurar ajuda, temos novamente a
Idéia: eles vão viver. Mas eles quase morrem durante a busca e temos novamente a
Contra-Ideia. Depois de dez dias andando pela cordilheira, enfrentando a fome e o frio,
eles encontram um grupo de fazendeiros e retornam com o resgate para salvar os
outros 14 sobreviventes.
Encerramos a história com a Idéia Governante – os esforços do Homem
prevalecem sobre a hostilidade da natureza – depois do choque constante entre os
dois valores positivos e negativos da narrativa.
AULA 2

PERSONAGEM

“A única coisa que vale a pena escrever envolve o


coração humano em luta consigo mesmo”
William Faulkner
O personagem principal de uma história chama-se protagonista. Traduzindo do
grego (proto + agon), protagonista significa o personagem com o principal conflito na
história. Ou seja, histórias giram em torno de um conflito. Podemos resumir assim o
conceito mais simples de história: alguém precisa resolver um problema que não
poderia prever.

Protagonista e antagonista
Objetivo e obstáculos
Conflito externo e conflito Interno
Arco de Personagem
Motivação

Todos os elementos acima operam em conjunto numa história.


Um protagonista sempre quer ou precisa de algo e enfrenta um obstáculo. O
obstáculo costuma ser outro personagem que tenta impedir o protagonista de
conseguir o que quer ou precisa. Esse personagem é o antagonista – e pode haver mais
de um. Os antagonistas são personagens com objetivos opostos ao do protagonista. O
exemplo mais claro é o policial que precisa desvendar um assassinato: ele quer
descobrir quem é o assassino; o assassino vai tentar impedir o policial de descobrir.
Nem sempre o antagonismo é representado por uma pessoa. Se nossa
protagonista é uma médica de um hospital público que quer salvar a vida de uma
criança baleada, as precárias condições do hospital “querem impedir” a médica de
salvar a criança.
E, claro, algo precisa estar em jogo para o protagonista – pode ser a justiça ou o
altruísmo nesses exemplos.
Sempre pensamos na motivação dos personagens – aquilo que os move, que os
faz buscar o que desejam. São os valores dos personagens, o que está em jogo na
história. Retomando: para o policial, sua motivação é a justiça; para a médica que quer
salvar uma vida, é o altruísmo. Nem sempre o valor precisa ser nobre, a motivação
pode ser mesquinha, como veremos adiante em Breaking Bad.
***
Mergulhando em águas mais profundas, o principal antagonista do protagonista
costuma ser ele mesmo. Os bons personagens costumam ter uma falha. E a trama
coloca o personagem numa situação que o obriga a confrontar sua falha. Chamamos
isso de Arco.
Arco é a mudança interior que o personagem sofre ao longo da história. A
maior parte das histórias envolve a correção de uma falha. É o arco mais usual. A
história coloca um personagem diante de uma situação inesperada que o obriga a
enfrentar a si mesmo. Por isso, o escritor William Faulkner disse que uma boa história
apresenta um coração em luta consigo mesmo.
Na maioria das histórias, o protagonista corrige sua(s) falha(s). Algumas vezes,
não corrige. Vamos estudar alguns exemplos:

Central do Brasil (1998)


A amarga professora aposentada Dora escreve cartas para analfabetos no Rio
de Janeiro. Até que o órfão Josué aparece na sua vida e deflagra o objetivo de Dora: ela
precisa levar o menino para sua família no interior do Nordeste. Os obstáculos se
contrapõem ao objetivo de Dora: primeiro, são os traficantes de órgãos e depois todas
as dificuldades da árdua viagem – da falta de dinheiro à relação conflituosa entre Dora
e Josué. Acima de tudo, Dora precisa lidar com sua amargura e falta de empatia –
consequências do passado com o pai. No final, Dora e Josué criam um laço afetivo e ela
entrega Josué para os seus irmãos. Toda a jornada faz Dora enfrentar conflitos externos
bem como sua própria falha. Assim, ela reencontra a felicidade.

Toy Story (1995)


O cowboy Woody é o brinquedo favorito de Andy. Porém, Andy ganha um
astronauta no Natal: Buzz Lightyear. Assim, Buzz torna-se o brinquedo favorito. Isso
desperta a falha de Woody: ciúme/inveja. Durante o filme, Woody se vê obrigado a
salvar Buzz e deixar de ser ciumento/invejoso.

Breaking Bad (2008-2013)


A correção de uma falha pode carregar uma ironia. Qual a falha de Walter
quando a série começa? Ele não tem poder algum e sofre por isso. Poderia ser um
bilionário, mas é um professor humilhado pelos seus alunos. Sua falha é a raiz da sua
motivação: Walter busca poder do primeiro ao ultimo episódio. É isso o que o move
cena após cena. No final da série, Walter corrige sua falha e conquista poder – mas ao
custo de muitas vidas e tragédias, principalmente para os que estão mais próximos
dele.
***
A correção da falha é o arco mais usual em filmes e series, mas temos outras
possibilidades.
Touro Indomável e Manchester à Beira-Mar apresentam protagonistas que não
corrigem suas falhas nem vencem seus traumas durante a história.
Em Touro Indomável (1980), o boxeador Jake La Motta já começa como um
sujeito agressivo e auto-destrutivo. Durante os créditos, vemos o lutador por trás das
cordas vestindo seu roupão estampado como a pele de uma pantera. A metáfora é
clara: Jake La Motta é uma fera enjaulada. Ao longo da história, agindo como Otelo e
Iago ao mesmo tempo, La Motta desenvolve um ciúme doentio com a esposa e destrói
sua carreira e sua vida.
Outro arco menos usual é a manutenção da virtude, como Thomas More em O
Homem que Não Vendeu Sua Alma (1966). No século XVI, o Rei da Inglaterra Henrique
VIII quer se separar de sua esposa para se casar com Ana Bolena. Mas ele não recebe a
aprovação de More, seu Lord Chanceler. Para não trair suas convicções, More renuncia,
mas o rei continua perseguindo-o, obrigando-o a chancelar o matrimônio proibido pela
Igreja Católica. More se recusa e paga com a vida a sua virtude.
Finalmente, Ferris Bueller de Curtindo a Vida Adoidado (1986), o maior clássico
da Sessão da Tarde, é um personagem que não muda, mas que transforma os outros ao
seu redor. Faz com que seu melhor amigo Cameron tenha coragem de desafiar o pai,
com que sua irmã deixe de ser uma megera, faz toda uma cidade dançar e cantar e
acaba com o respeito do diretor da escola.

Dilema
O dilema é o conceito fundamental da ficção, como evoca a citação do Faulkner.
Todo bom personagem enfrenta um dilema. Pode ser a essência do filme. Pode ser
uma situação que aconteça no meio ou a decisão do final, mas sempre terá pelo menos
um dilema para o protagonista. Não importa o tom, se dramático ou cômico, de duas
saídas ruins, ele terá que optar por uma.
O maior besteirol de todos os tempos Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu (1980)
tem seu humor construído em torno da falha e do conflito interno do herói, como um
filme dramático: um veterano piloto de guerra é o único homem capaz de pousar um
avião comercial e salvar centenas de vidas (conflito externo); porém, ele carrega um
trauma consigo: acredita que foi o responsável pela morte de um amigo numa missão.
Assim, ele duvida da sua capacidade para pousar o avião em perigo (conflito interno).

Empatia e identificação
Devemos ter empatia pelos nossos protagonistas (e muitas vezes, pelos
antagonistas). Isso não significa gostar deles ou endossar tudo o que defendem.
Significa encontrar a humanidade em cada personagem. Por que nós nos importamos
com eles?
Sonia Rodrigues cita que Aristóteles descreveu a melhor estratégia para
construir um personagem:

“Trata-se de um personagem que não é totalmente bom, nem totalmente


mau. Se fosse bom, não teria contradições para se criar uma história. Com
maldade absoluta, perderia a chance do espectador se identificar com ele.”
In: Como escrever séries: roteiro a partir dos maiores sucessos da TV. São
Paulo: Aleph, 2014.p. 135

Ela ilustra o conceito por meio do protagonista de House of Cards, Frank


Underwood:

“Francis é um protagonista compreensível. Prometeram e ele um cargo


para o qual se preparou toda a vida. Traíram o prometido. Quem não se
vingaria se pudesse? O espectador não pode, mas Francis sim.”
In: Como escrever séries: roteiro a partir dos maiores sucessos da TV. São
Paulo: Aleph, 2014.p. 135.
O famoso diretor teatral Harold Clurman compartilha a lição:

“A principal motivação – ou espinha dorsal – de cada personagem deve ser


concebida segundo o ponto de vista do próprio personagem. A audiência,
por meio de julgamentos morais – favoráveis ou não – tirará suas próprias
conclusões. Assim, Iago e Gertrudes são canalhas, Lady Macbeth é
diabólica, Horácio é uma alma pura, Polonius é um idiota, James Tyrone é
um péssimo pai. Mas os atores que interpretam esses papéis devem pensar
neles em termos positivos.”
In: On directing. New York: Colliers Books, 1972, p. 74-75.

E acrescento: os autores que escrevem esses personagens também devem


“comprar” o ponto de vista de cada personagem. Voltando:

“Um diretor deve dizer ao ator que interpreta Iago que ele quer ‘corrigir a
injustiça que Otelo cometeu para com ele’. Otelo não o preteriu ao cargo
que ele merecia? James Tyrone contribuiu para o desastre da sua esposa e
dos seus filhos. Ele é um canalha mesquinho etc. Mas a espinha que
desenhei para o ator que interpretou o personagem foi “manter a família”.
O fato que seus esforços nesse sentido resultam em desastre é o drama da
peça.”
“Ninguém tem um comportamento estável. O homem sereno pode explodir
ferozmente. O revolucionário ardente agirá com cautela de vez em quando.
O professor simpático pode pegar um chicote. Mas essas alterações de
comportamento devem originar da principal motivação do personagem. É
uma boa regra para atores e diretores encontrarem esses momentos na
peça, onde pessoas ruins agem como pessoas boas e um sujeito educado se
torna truculento.”
In: On directing. New York: Colliers Books, 1972, p. 74-75.

E acrescento novamente: atores e diretores só encontram esses momentos no


texto porque alguém os escreveu.
As oito questões do Francis Ford Coppola
Quando veio ao Brasil, o roteirista James V. Hart contou as oito questões que o
cineasta Francis Ford Coppola usa para criar personagens. Seguem as perguntas, as
quais resumem todo o conteúdo exposto até aqui:

1. O que o personagem quer?

2. Quais obstáculos ele enfrenta?

3. No final, ele consegue ou não o que quer? Isso é bom ou ruim? Qual o
preço que paga pelo que quer? O que o protagonista precisa? Como isso
difere do que ele quer quando a história começa?

4. Por que nós nos importamos com ele?

5. Por que a história começa agora?

6. Quais as "feridas" (falhas) do personagem? O que está em jogo?

7. Quais os medos do personagem?

8. Você tem um final satisfatório?

Importante!
Reparem que ao desenvolver os personagens, também desenvolvemos a trama
da história. Quando pensamos nos obstáculos do protagonista, estamos já pensando
em situações e/ou cenas da história. E vice-versa.

Guia para desenvolvimento de personagem


Quase todos os manuais de roteiro tem a famosa lista de perguntas para
desenvolvimento dos personagens. Segue a proposta da professora Martie Cook,
autora de Write to TV:

1. Como personagem se parece fisicamente? (provavelmente você não vai


inserir essa descrição no roteiro, mas ajuda ter um visual em mente).
2. Onde o personagem nasceu e foi criado?
3. Qual sua relação com os membros da família?
4. Qual a situação econômica da família?
5. Amigos importantes (incluindo os bichos de estimação)?
6. Crença religiosa?
7. Opinião política?
8. Hobbies?
9. Profissão?
10. Desejos e desejos secretos?
11. Segredos misteriosos?
12. Medos e fobias?
13. Talentos?
14. Idiossincrasias e manias?
15. Casos amorosos?
16. Inimigos?
17. Se a casa estivesse em chamas, o que salvaria de mais importante?
18. Arma secreta?
19. Comida favorita?
20. Quais os eventos significativos que tiveram importância em sua vida
pregressa?

Somente preencher todos esses quesitos não basta para criar bons
personagens. Na verdade, nem todos precisam ser preenchidos. O importante é
conhecer o personagem e escrever segundo seu ponto de vista. Mas a lista ajuda
bastante.
Por exemplo, a crença religiosa. Se o personagem precisa praticar um ato
condenável pela igreja católica, a princípio é mais interessante ele ser católico. Se o
personagem precisa denunciar um político, a princípio é mais interessante o político
ser da mesma linha ideológica. Se ele tem um medo, é legal que ele seja confrontado
por esse medo durante a história.
E quais acontecimentos do passado ainda reverberam no presente? Não é
necessário escrever um livro com a biografia de cada personagem, mas é fundamental
saber o que de importante aconteceu antes de começar a história.
Ao pensar sobre a vida pregressa do personagem, lembre-se de Mario
Quintana:

“O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...”


***
O que é um personagem complexo?

Essa pergunta provoca diversas respostas no curso presencial.


É um personagem difícil de entender.
É um personagem com várias facetas.
É um personagem ambíguo.
É um personagem “cinza”.
E seguem outras similares.
Todas as respostas acima estão todas corretas porque a definição mais simples
de um personagem complexo é que ele te surpreende.
Sempre que o personagem nos surpreende, ele revela uma contradição. Cada
contradição acrescenta uma nova dimensão. Daí as expressões personagem
tridimensional ou multidimensional. Por exemplo, o protagonista Ethan Edwards, de
Rastros de Ódio (1956). Em seu livro sobre o cineasta John Ford, Lindsay Anderson
assim descreve o personagem:

“Desde sua primeira aparição, Ethan Edwards é apresentado como um


personagem sombrio e ambíguo; um homem condenado à solidão;
amoroso àqueles que ele ama e perigoso para todos os demais; cruel em
seu próprio detrimento, com uma severa inclinação para a vingança que
sugere uma amargura contra a própria vida”.
In: John Ford. London: Plexus, 1981, p. 154.

O romancista inglês E.M. Forster usa os termos “redondo” e “plano” para se


referir aos personagens:

“O teste de um personagem redondo é se ele é capaz de nos surpreender


de maneira convincente. Se ele nunca nos surpreende, é plano.”
In: Aspectos do romance. São Paulo: Globo, 2004, p. 94.

E vemos que não basta o personagem ser contraditório. O personagem precisa


ser coerente.
No documentário da Netflix Cinco Voltaram (2017), temos uma entrevista com
o cineasta John Ford, do citado Rastros de Ódio. Parafraseando o diretor, ele nos conta:
“Sou educado com os meus pares. Mais que educado com os meus subordinados. E
extremamente rude com os meus superiores”. Se flagrássemos John Ford em duas
cenas de um filme, o veríamos sendo cortês em uma e ríspido em outra. Seu
comportamento seria contraditório, mas coerente dentro do seu ponto de vista. Ser
rude com um superior e educado com um subordinado revela uma moral, um jeito de
ser.
***
A partir dessa reflexão, vamos a alguns insights sobre personagens:

• Escreva histórias simples com personagens complexos, diz a cineasta Suzana


Amaral. Os melhores filmes apresentam tramas simples, fáceis de compreender – e
com personagens complexos. Boas tramas complicadas são exceções.

• As histórias envolvem as mesmas situações, via de regra; o que muda é a


forma específica como os personagens reagem a essas situações genéricas, conferindo
originalidade. Podemos usar a Terceira Lei de Newton como ponto de partida:

“A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade …"

Personagens sempre reagem ao que acontece com eles. Mas usamos a Terceira
Lei de Newton como ponto de partida porque seres humanos/personagens não são
instrumentos de precisão. Nem sempre pessoas reagem com a mesma intensidade.
Um tapa pode motivar um tiro; a ameaça de um tiro pode motivar um tapa.
Personagens interessantes costumam reagir de forma inusitada e revelam, assim, uma
segunda faceta.
Em Breaking Bad, quando o médico revela para Walter White que ele tem um
cancer inoperável, o protagonista repara que o médico tem mostarda no avental.
Em Dúvida (2008), a rígida freira Aloysius conta para Sra. Miller que um padre
pode ter molestado seu filho. Qual a reação da mãe? Explode de ódio, nega o fato,
desaba em prantos? Não, ela aceita o fato porque o padre é o único homem bom para
o menino.
Em O Quarto de Jack (2015), a jovem Joy e seu filho Jack conseguem se ver
livres de um psicopata que os manteve anos em cárcere privado. Em princípio, Joy seria
feliz até o final do filme. Ocorre o oposto. A volta para a vida familiar e social é muito
mais difícil do que ela poderia imaginar – tanto que Joy tenta o suicídio.

• Pense em personagens que fazem coisas triviais de maneira estranha; e


personagens que fazem coisas estranhas de maneira trivial. No filme argentino Um
Conto Chinês (2011), o personagem do Ricardo Darín tem uma loja de ferramentas e
conta quantos parafusos vem em cada caixa para saber se está sendo enganado pelo
fornecedor. Contar cada parafuso da caixa é estranho, mas ele o faz como se fosse a
coisa mais normal do mundo. E gostamos dele imediatamente por isso. E isso gera
empatia.
***
Protagonista e coadjuvantes
O design de elenco é composto pelo protagonista e os coadjuvantes, divididos
em antagonistas e dinâmicos (os aliados do protagonista).
Existem diversas de maneiras de orquestrar o design de elenco. Vejamos
algumas.

- Sindicato de Ladrões (1954)


O protagonista é o ex-pugilista fracassado Terry Malloy, um estivador dividido
entre o Bem e o Mal – duas forças antagônicas que o atraem simultaneamente. A
questão do filme é qual lado Terry vai escolher. Do lado do Mal, está o sindicato
corrupto do titulo, os antagonistas. Seu chefe é Johnny Friendly, criminoso, assassino e
o homem que deu para Terry o pouco que ele tem. Abaixo dele, Charlie Malloy,
capanga e irmão de Terry. Do lado do Bem, os coadjuvantes dinâmicos. O padre Barry
que tenta denunciar os crimes do sindicato e Edie, irmã de um estivador assassinado a
mando de Friendly, a qual Terry se envolve romanticamente. O que ela não sabe é que
Terry, sem querer, foi implicado no assassinato. As forças encontram paralelo: de um
lado, amor romântico, de outro o amor fraternal; de um lado, o representante da
instituição da igreja, de outro o representante da instituição do sindicato. Terry
encontra-se diante de um dilema: se denunciar o sindicato, terá que se voltar contra
sua própria família e revelar que está implicado na morte do irmão da mulher que
ama; se não denunciar, continuará como cúmplice de um assassinato. Seu coração em
luta consigo mesmo.

- O Poderoso Chefão (1972)


Podemos resumir o filme em uma sentença:
Padrinho mafioso quer o filho favorito fora do crime; no final, o filho se torna o
Padrinho.
Temos um elemento de tragédia que só é possível pelo design de elenco. Se
Vito Corleone quer o filho Michael fora da máfia e, no final, o filho se torna o líder, não
há tragédia se ele é filho único. Logo, Mario Puzo cercou Michael Corleone de irmãos e
fez com que, tragicamente, ele fosse o único apto a assumir os negócios da família.
Michael tem quatro irmãos: Freddo, Sonny, Connie e Tom Hagen. Freddo é fraco e não
pode ser o Padrinho. Sonny foi criado para ser o Padrinho, mas é explosivo demais e
acaba assassinado. Connie é mulher, carta fora do baralho nesse universo. E Tom
Hagen seria o Padrinho ideal – é equilibrado e racional – mas é filho adotivo e não
pode assumir sem o sangue da família. Assim, sobra para Michael. E que Padrinho ele
é? Dividido entre o “dever ser” (equilibrado e racional como Hagen) e o “tem que ser”
(violento como o pai e o irmão), ele faz o que precisa para garantir o futuro da família.
Uma chacina.

- The Shield (2002-2008)


O protagonista da série é o policial corrupto e eficiente Vic Mackey. No piloto,
ele já apresenta diversas facetas. Ele desafia o superior porto-riquenho e respeita uma
tenente negra. Ele trata o amigo Shane numa relação de pai e filho e é bully do detetive
nerd. Ele é um bom pai e marido e isso não o impede de ter uma amante. No final, só
ele pode salvar a vida de uma garotinha raptada por um molestador de crianças.
Como? Torturando o suspeito. Vemos que cada coadjuvante tem uma função: revelar
as diversas facetas e contradições de Vic.
***

Quadra de Personagens

A B C D

A quadra acima é uma ferramenta muito útil para desenvolver os personagens e


a trama. Quando começamos a criar uma história, tudo é muito nebuloso e temos mais
perguntas do que respostas. Preencher a quadra nos obriga a pensar na história, na
relação entre os personagens.
Temos linhas e colunas.
Na linha do personagem A, começamos a escrever sua relação com os demais
personagens, segundo o seu ponto de vista. Depois, fazemos o mesmo com o
personagem B na sua linha e assim por diante.
Depois desse processo, alguns quadrinhos estarão em branco. É a relação do
personagem consigo mesmo, o conflito interno. Qual a relação do personagem A
consigo mesmo? Qual a relação do personagem B consigo mesmo. E assim por diante.
O personagem principal precisa ter o conflito interno mais complexo.
Personagens coadjuvantes e secundários precisam ter conflitos internos proporcionais
ao seu papel na história.
Segue um exemplo meramente hipotético. Alguns quadradinhos estão em
branco justamente para vocês completarem, como os conflitos internos (hachurados
em cinza) e a relação do personagem D com os demais.
A B C D

A AMA RESPEITA

B TEM MEDO QUER SER


IGUAL

C IGNORA QUER SER


MELHOR

Pensem que precisa haver jogo entre os personagens. Se colocarmos dois deles
num mesmo lugar, que tipo de tensão pode ocorrer. Se A ama B e B tem medo de A, o
que aconteceria se ficassem presos num elevador?
A também respeita C, que ignora A.
Diante dessas relações, o que A pensa quando coloca a cabeça no travesseiro
de noite? Isso vai no quadradinho do conflito interno.

Multiplot (ou Filme Coral)


Chamamos de Multiplot (ou Filme Coral) as histórias com vários personagens
principais: Short Cuts, Magnólia, Cerimônia de Casamento, Nashville, 360, Modern
Family e This Is Us, por exemplo.
Acompanhamos diversos personagens principais com seus conflitos em tramas
paralelas que se entrelaçam de alguma maneira. Pode ser um terremoto (como Short
Cuts) ou uma chuva de sapos (como Magnólia). O que une as histórias também é um
tema em comum em todas, apesar das narrativas sempre diferentes.
E o Multiplot carrega um segredo: todos os personagens principais precisam ter
conflitos internos de intensidade similar. Se um conflito for mais intenso, o personagem
torna-se o protagonista (e os demais, coadjuvantes).
AULA 3
ESTRUTURA

“Um roteiro é uma combinação de poesia e


arquitetura. Se você não tiver arquitetura, o
desgraçado vai desabar sobre você”
Billy Wilder
A estrutura narrativa é a organização coerente das situações que acontecem
numa história, do começo ao final.
Como nas aulas de Redação do colégio, nós apresentamos, desenvolvemos e
concluímos uma história.
O roteirista José Carvalho recorre à origem da expressão “contar histórias”.
Como no inglês, storytelling, contar (to tell) tem dois significados: narrar e computar
números. Então, contar histórias é uma narração que segue uma estrutura – primeiro
isso, depois isso, depois isso etc.
A forma mais essencial de pensar a estrutura é por meio do desenvolvimento
do protagonista – pelo arco, como estudamos anteriormente.
O arco é a mudança que o personagem sofre ao longo da história. Para
mudança ser coerente, ela não pode ocorrer num piscar de olhos. O personagem
precisa passar por diversas situações (obstáculos), que o influencia, até corrigir (ou
não) sua falha, bem como manter (ou não) sua virtude. Esse momento culminante
chama-se Clímax, como veremos a seguir.
Segundo o professor Robert McKee:

"A verdadeira personagem é revelada nas escolhas que um ser humano faz
sob pressão - quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira
a escolha para a natureza essencial da personagem.
Pressão é essencial. Escolhas feitas sem nenhum risco significam pouco. Se
uma personagem escolhe contar a verdade em uma situação em que uma
mentira não lhe daria nada, a escolha é trivial, o momento não expressa
nada. Mas se a mesma personagem insiste na verdade quando uma
mentira poderia salvar sua vida, podemos então perceber que a
honestidade está no núcleo da sua natureza".
A função da Estrutura é criar obstáculos progressivos ao desejo do
Personagem , forçando-o a enfrentar dilemas cada vez mais difíceis. A
função do Personagem é trazer à história as qualidades necessárias para
fazer a escolhas que os obstáculos o obrigam de forma convincente.”
In: Story: susbtância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro.
Curitiba: Arte&Letra, 2006, p. 106.
***
A produtora Pixar sugere uma estrutura muito simples e eficiente para
começarmos a pensar uma história. Uma estrutura tão simples e eficiente que abrange
a totalidade das histórias, da Lenda de Naipi e Tarobá até Breaking Bad:

Era uma vez, ____. Todo dia, ____. Até que um dia, ____. Por causa disso,
____. Por causa disso, ____. Até que finalmente, ____.

Vamos retomar a lenda de Naipi e Tarobá:


Era uma vez os caingangues Naipi e Tarobá. Todo dia, eles viviam apaixonados.
Até que um dia, a tribo resolveu entregar Naipi como sacrifício ao deus serpente MBoi.
Por causa disso, Naipi e Tarobá fugiram numa canoa pelo Rio Iguaçu. Por causa disso, o
deus serpente ficou furioso e provocou o terremoto que formou as cataratas. Até que
finalmente, Naipi e Tarobá desabaram para a morte e forams punidos pela eternidade.
Todas as histórias seguem essa estrutura. O que muda de uma história para
outra é a sua duração, a quantidade de reviravoltas. Logo, uma lenda simples conta-se
com apenas dois “por causa disso”. Uma série como Breaking Bad terá centenas de
“por causa disso” entre o começo e o final.
Vamos definir as reviravoltas por meio da estrutura sugerida pela Pixar.
O roteirista Aaron Sorkin diz que nós não temos uma ideia para uma história até
usarmos as palavras mas, até que ou então. Parafraseando o autor: “Querer fazer um
filme sobre surf não é uma ideia. Você não tem uma ideia até usar as palavras mas, até
que ou então. Por exemplo, era um belo dia como qualquer outro, saí para surfar e
então…”. E então acontece algo que o personagem não podia imaginar. Pode ser um
tubarão ou um tsunami. Agora sim temos a ideia para uma história.
Esse momento equivale ao “até que um dia”.
Apresentamos o personagem principal (“Era uma vez…”), revelamos o que
estará em jogo na história – sua falha ou virtude (“Todo dia…”) e damos o pontapé
inicial da trama (“Até que um dia…”).
O nome mais usado para esse pontapé inicial é Incidente Incitante.
O Incidente Incitante é o acontecimento sem o qual a história não existe. No
vocabulário técnico, é o incidente que provoca o objetivo do protagonista e um
desequilíbrio na sua rotina – uma turbulência na sua vida. E o objetivo está ligado à
falha ou virtude do protagonista, fazendo com que mais cedo ou mais tarde, ele seja
obrigado a se desafiar.
Se Naipi não fosse prometida ao deus MBoi, a lenda não existiria. Uma vez que
ela é prometida – o Incidente Incitante – entra em jogo o amor entre ela e Tarobá.
Como eles reagem? Fugindo. Temos uma reviravolta na trama.
Seguem, assim, as reviravoltas – os “por causa disso” – as quais chamamos
Pontos de Virada (Plot Points). Cada vez que o personagem supera um obstáculo da
trama, temos uma reviravolta. As reviravoltas conduzem a trama de forma coerente e
tem o papel de gradualmente contribuir para a mudança do personagem.
E reparem que o antagonista também reage. A fuga de Naipi e Tarobá é um
obstáculo ao desejo do deus MBoi. Por causa disso, ele provocou o terremoto que
formou as cataratas. É outra reviravolta na trama.
Por isso, toda história é um jogo.
Ajuda bastante pensar em outro idioma.
Roteiro em inglês é Screenplay. Se dividirmos a palavra, temos Screen/Play.
Play é um jogo. Players são os jogadores. A história é um jogo, onde os jogadores são
os personagens.
A história, o jogo, segue o curso “até que finalmente” temos seu desfecho. O
personagem consegue ou não seu objetivo, corrige ou não sua falha, mantém ou não
sua virtude. É o famoso Clímax. Naipi e Tarobá mantém sua virtude (o amor), mas são
punidos com a morte nas cataratas.
***
Não existe personagem sem trama. Nem trama sem personagem. As questões
do Francis Ford Coppola (aula de Personagem) mostram que desenvolvimento de
personagem e de trama caminham em paralelo.

O que o personagem quer? Quais obstáculos ele enfrenta? No final, ele


consegue ou não o que quer?
Quando criamos os personagens a partir dessas questões, desenvolvemos a
trama em paralelo. E vice-versa.
***
Importante!
Não devemos estigmatizar a palavra “didático”.
Precisamos ser didáticos nas nossas histórias.
Criamos um universo, personagens e tramas. As pessoas precisam entender a
história, quem são os personagens, o que está acontecendo etc. Devemos ser claros na
exposição das situações e dos conflitos. Afinal, quem não entende um episódio de
Breaking Bad?
Claro que, ao mesmo tempo, precisamos respeitar a inteligência do público.
Precisamos de equilíbrio na comunicação das informações da história para o
espectador.
Vamos ilustrar por meio de uma metáfora.
Nossa capacidade de engajamento com um esporte depende do quanto que
conhecemos as regras e o que está em jogo. Alguém que não conhece absolutamente
nada de um esporte, que não sabe o que está acontecendo, fica indiferente na
arquibancada. Quem conhece as regras, o que está acontecendo e o objetivo
dos atletas, fica apreensivo, torce, se emociona, comemora. Quase ninguém gosta de
baseball no Brasil, justamente porque quase ninguém conhece as regras. Já com o
futebol, todo mundo é técnico do seu time de coração.
Então, vamos supor que um marciano chegue na Terra e vá a um estádio de
futebol.
O que o marciano precisa saber o quanto antes para desfrutar o jogo? Dois
times e onze jogadores de cada lado (dez na linha que usam os pés, um no gol que
pode usar as mãos); cada time precisa fazer o gol no outro lado do campo e quem fizer
mais gols ganha o jogo. Finalmente, o árbitro garante que os jogadores obedeçam as
regras. Isso é o básico. O marciano não precisa saber de antemão todas as regras do
jogo.
As demais informações podem surgir gradualmente ao longo do jogo, se
necessário: falta, cartão amarelo, cartão vermelho, substituição, escanteio, pênalti,
impedimento etc.
Não precisamos bombardear o marciano com todas as informações de uma vez.
Também não podemos deixá-lo sem saber nada. Conforme as informações são
necessárias, contamos para o marciano.
Vale a mesma estratégia para contar histórias. Precisamos passar, com
organização e critério, informações das nossas histórias aos espectadores. As
informações fundamentais devem vir o quanto antes: quem são os personagens
principais, quais suas falhas ou virtudes, o que está em jogo e sobre o que é a história.
As demais informações podem ser distribuídas ao longo da história. Outras, o público
pode deduzir.
Clareza na exposição da trama não significa o fim da magia.
Não assistimos a um jogo de futebol para ver as regras acontecerem diante dos
nossos olhos. Assistimos a um jogo para admirar a raça dos jogadores, os dribles
desconcertantes, a troca de passes, os gols de placa e as defesas espetaculares dos
goleiros. Da mesma forma, vemos um filme para desfrutar uma história interessante,
diálogos afiados e para descobrir quem realmente são aqueles personagens além da
primeira faceta.
Um filme pode ter um final fechado ou aberto. Pode ter um final ambíguo com
duas ou mais possibilidades de interpretação. A real motivação dos personagens pode
ser um mistério no final da projeção.
Voltando ao marciano no estádio, com atenção ele pode compreender as
táticas dos times, as jogadas ensaiadas, o repertório de cada jogador etc. Tudo isso
equivale à nossa técnica para criar histórias. Um técnico arma uma jogada ensaiada
como o contador de histórias trama uma cena.
Nem todo torcedor precisa conhecer a fundo as táticas do futebol para vibrar
com o jogo. Nem todo espectador precisa conhecer as técnicas da dramaturgia para
apreciar um filme. Agora, quem quer ser técnico ou roteirista precisa dessa ciência.
***
É muito comum lições de estrutura narrativa que combinam dois elementos
contrastantes: um da lógica, outro da emoção. Billy Wilder fala de poesia e arquitetura,
como na citação que abriu a aula. Ítalo Calvino fala de chama e cristal. Em uma crônica
semanal, Luiz Fernando Veríssimo aludiu a fogo e álgebra citando Borges:

“O americano John Barth escreveu sobre dois pós-modernos


contemporâneos que admira, Calvino e Jorge Luis Borges, e tomou
emprestado de Borges uma definição de dois valores que, combinados,
descrevem a arte da dupla, Álgebra e Fogo. Álgebra significando a
engenhosidade formal de uma obra, o truque que surpreende ou desafia o
leitor, e fogo o que o comove. Álgebra sem fogo acaba em malabarismo
técnico sem alma, fogo sem álgebra acaba em literatura enjoativa, porque
alma demais também enjoa. Para Barth, Calvino e Borges são os dois
grande escritores do nosso tempo porque, na sua ficção, atingiram como
ninguém mais a fusão de álgebra e fogo. Barth descreve o que eles fazem -
ou fizeram, pois já se foram - como "virtuosismo passional". Perfeito.”
In:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,algebra-e-fogo-imp-,1552461,
acessado em 15.07.2016.

Poesia, chama, fogo são a substância da história, seu coração, aquilo que nos
emociona. Álgebra, arquitetura e cristal formam a estrutura, que organiza e combina
todos os elementos da narrativa. O poder da estrutura pode ser visto nas combinações
citadas. Fogo, álgebra, chama, poesia, arquitetura e cristal são palavras soltas num
dicionário. Combinadas de maneira inteligente, criam expressões de efeito.
***

Estrutura Clássica em Três Atos

A estrutura narrativa mais usual nos longas-metragens é a clássica, dividida em


três atos.

“O primeiro ato mostra quem são as pessoas e qual é a situação da


história toda. O segundo ato é a progressão dessa situação para um
ponto culminante de conflito e grandes problemas. E no terceiro ato,
temos a solução dos conflitos e problemas”
Ernest Lehman

Longas costumam ter 90 a 120 minutos de duração. Nesse tempo, um bom


roteirista consegue coordenar com eficiência as cinco principais reviravoltas que
compõem a estrutura clássica: Incidente Incitante, Ponto de Virada I, Ponto Central,
Ponto de Virada II e Clímax.

Já estudamos o Incidente Incitante e o Clímax.


Os Pontos de Virada são as reviravoltas que levam a trama de um Ato para
outro.
Cada Ato recebe uma denominação: o Ato I costuma ser chamado de
Apresentação; o Ato II costuma ser chamado de Confrontação; o Ato III costuma ser
chamado de Resolução. Começo, meio (desenvolvimento) e fim são conectados pelos
Pontos de Virada.
Cada Ato também tem uma duração aproximada: o Ato I equivale a 1/4 da
narrativa; o Ato II equivale a 2/4 da narrativa; o Ato III também equivale a 1/4 da
narrativa.
Finalmente, o Ponto Central é uma reviravolta que divide o segundo ato em
duas metades e prepara a trama para o Ponto de Virada 2. Recorrendo mais uma vez às
metáforas do esporte, o Ponto Central levanta a bola para o Ponto de Virada 2 cortar.
Cada uma dessas cinco reviravoltas tem papel no Arco do protagonista. Cada
uma delas faz o personagem desafiar um obstáculo que conduz a trama para o Clímax,
onde o personagem corrige ou não sua falha – e mantém ou não sua virtude. Cada
reviravolta é um degrau na jornada da mudança interna do personagem.
***
Importante!
Não é o número de atos que define o número de reviravoltas. O número de
reviravoltas de uma história define o número de Atos.
Não criamos um longa-metragem com cinco reviravoltas porque queremos uma
estrutura em três atos. No final, temos uma estrutura em três atos porque, em 90 ou
120 minutos, articulamos bem cinco reviravoltas. Leva-se um tempo para construir
uma reviravolta.
Curtas-metragens, pela sua natureza, terão menos reviravoltas. Logo, menos
atos. Um, talvez dois.
As peças do William Shakespeare eram mais longas, com três horas de duração
– ou mais. Com seis grandes reviravoltas, as peças tinham cinco atos.
Todas essas histórias tem em comum a estrutura que vai do “Era uma vez...” ao
“Até que finalmente...”, com diferentes números de “Por causa disso”.
***
Vamos estudar algumas sinopses de longas-metragens para ver a estrutura
narrativa.

Bingo – O Rei das Manhãs (2017), escrito por Luiz Bolognesi

Anos 80. Augusto Mendes é ator de pornochanchadas como O Abajur do


Amor e não consegue papéis em novelas da maior emissora do Brasil.
Divorciado de uma estrela de sucesso na TV, ele é um pai dedicado para
Gabriel. Marta Mendes, a mãe de Augusto, também foi uma estrela e hoje
amarga o esquecimento dos fãs.
Augusto descobre um teste para um programa infantil numa emissora rival:
o palhaço Bingo, uma marca internacional. Um a um, os candidatos são
reprovados pelo produtor americano do programa, até que Augusto
improvisa: ele xinga e ofende o gringo, provocando uma explosão de risos
no estúdio. Sem entender nada, o produtor decide que Augusto será o
palhaço Bingo.
Só há um inconveniente: ninguém pode saber a real identidade do palhaço.
Durante os primeiros programas, Augusto bate de frente com a diretora
Lúcia. Ela quer que os roteiros sejam seguidos à risca. A audiência deixa a
desejar e, mais uma vez, Augusto improvisa. As improvisações de Augusto,
bem como suas ideias, fazem o programa estourar e chegar ao segundo
lugar na audiência. Por outro lado, o sucesso faz o ator se afastar do seu
filho e começar um mergulho no álcool e nas drogas.
O programa atinge a liderança da audiência e Augusto age de forma
agressiva ao vivo: com ódio, ele pisa numa boneca loira que simbolizaria a
estrela de programas infantis da maior emissora do Brasil (uma referência
à Xuxa).
O auge do sucesso também marca o início do seu fracasso.
Augusto vence um importante prêmio, mas não pode tirar sua fantasia de
palhaço diante das câmeras. Ninguém sabe quem é Augusto.
Marta é selecionada para uma novela e perde o papel para outra atriz.
Assim, ela morre de desgosto.
Augusto mergulha de vez nas drogas.
Durante um programa ao vivo, seu nariz sangra por causa da cocaína que
cheirou nos bastidores. É o fim do seu trabalho como o palhaço Bingo.
Augusto se torna cada vez mais irresponsável. Bêbado, ele não consegue
impedir seu filho de entrar em coma alcoólico. Augusto perde o direito de
visitar o filho.
No fundo do poço, Augusto frequenta um grupo dos Alcoólicos Anônimos e
consegue se reconectar com o filho. Ele também passa a apresentar-se nos
palcos de uma igreja evangélica frequentada por Lúcia, onde contará sua
história.

O filme apresenta o arco bem definido do protagonista e as cinco reviravoltas


que compõem a Estrutura Clássica em Três Atos.
Augusto é um homem que precisa de um palco – ou melhor, ele precisa da luz
do palco, como diz sua mãe:

- Tem gente que é formiga na vida. Tem gente que é cigarra. Nós somos
mariposas. Precisamos de luz para viver.
Augusto busca o holofote. Essa é sua motivação, o drive do personagem. Ele
busca o holofote no cinema (não por acaso o filme se chama O Abajur do Amor), na
novela e a encontra no programa infantil do Bingo. Sua obsessão pelo sucesso provoca
sua demissão. E, mais uma vez, Augusto encontra um novo palco com um holofote: a
igreja. Não era o palco que ele desejava, mas foi o palco que ele conseguiu afinal – e
dentro da sua motivação: a busca do holofote.
Essa jornada se dá por meio das cinco principais reviravoltas da trama:
- Incidente Incitante (aprox.. 13m): Augusto descobre o teste para o programa
infantil do palhaço Bingo.
- Ponto de Virada 1 (aprox. 17m): Augusto consegue o papel do Bingo. Fim do
Ato I.
- Ponto Central (aprox.. 60m): na metade do Ato II, a trama faz a transição entre
o auge do sucesso e o início da derrocada de Augusto. O programa infantil atinge a
liderança da audiência e Augusto comemora com fúria, pisando na boneca loira. Lúcia
diz: “Você enlouqueceu”.
- Ponto de Virada 2 (aprox. 90m): Augusto perde o papel do palhaço Bingo. As
luzes se apagam enquanto ele deixa o estúdio. Fim do Ato II.
- Clímax (aprox. 100m/105m): a sequência onde Augusto narra seus problemas
na reunião dos Alcoólicos Anônimos apresenta outras sequências em paralelo com sua
voz em off: ele se reconecta com o filho fazendo teatro de sombras na parede de um
edifício e entra vestido de palhaço no palco da igreja, onde, sob palmas, retira a
maquiagem e se revela como Augusto Mendes. De volta para a reunião dos Aas,
Augusto diz: “Qualquer lugar que tiver um holofote de luz, vai ser o meu palco”.

Resumindo por meio dos Atos:


No Ato I (Apresentação), a trama revela o protagonista Augusto e sua
motivação: a luz do palco. Ele consegue o papel do palhaço Bingo.
No Ato II (Confrontação), a trama desenvolve a jornada de Augusto como o
palhaço Bingo, do sucesso à derrocada. Se o primeiro Ato termina com Augusto
conseguindo o trabalho, o segundo Ato termina com sua demissão. Finais de Atos
costumam ter uma conexão e o Ponto Central faz a transição: depois do auge, começa
a derrocada de Augusto.
No Ato III (Resolução), a trama fecha o conflito de Augusto. Ele se reconecta
com o filho e conquista um novo palco com luz.

O Veredicto (1982), escrito por David Mamet

Frank Galvin, um advogado alcoolatra que perdeu a fé na justiça, pega um


caso de erro médico grosseiro e recebe um lucrativo acordo extra-judicial.
Porém, quando percebe que está sendo comprado, ele vê a oportunidade
de se redimir e decide levar o caso ao tribunal.
Porém, todas suas estratégias juridicas dão errado perante os advogados
opostos, muito mais eficientes. Quando tudo parece perdido, Galvin
persiste e com dificuldade, encontra a testemunha chave que poderá trazer
vitória no tribunal.
Galvin faz uma apaixonada defesa da justiça e vence o caso – atingindo sua
redenção.

Começamos no Ato I. Nos primeiros cinco minutos do filme, somos


apresentados ao “mundo comum”, a rotina do protagonista. Era uma vez o advogado
Frank Galvin. Todo dia, ele bebia demais e tentava encontrar clientes da maneira mais
baixa possível – em velórios de vítimas de acidente de trabalho. Galvin é um abutre.
Até que um dia, ele recebe um caso de erro médico grosseiro que nem ele, nem o
maior hospital católico de Boston querem levar adiante. É o incidente incitante – define
o objetivo do filme (vencer o caso nos tribunais) e desequilibra a rotina do protagonista
(um abutre recebe o caso grande que pode levar à sua redenção). Por volta dos 25
minutos do filme, Galvin encontra o padre responsável pelo hospital que lhe oferece
um cheque robusto para encerrarem a discordia ali mesmo num acordo extrajudicial.
Porém, Galvin recusa o cheque quando percebe que está sendo facilmente comprado.
Ele revela literalmente seu dilema: “Se eu aceitar o dinheiro estarei perdido. Serei mais
um abutre rico”. O dilema é famoso: ele está com o cheque na mão, caso vencido – seu
único, aliás – mas sabe que foi comprado e que a justiça não será feita. Se recusar o
cheque, ele pode perder tudo no tribunal, mas também pode encontrar sua redenção
como advogado e ser humano. Galvin recusa o cheque e o caso vai para o tribunal.
Temos então o Ponto de Virada I e vamos para o Ato II.
No início de cada Ato temos um período de respiro antes que a dramaticidade
volte a se intensificar. Ele está confiante na vitória e prepara sua estratégia no tribunal.
Temos o início de uma subtrama romântica: Galvin começa a se relacionar com uma
advogada.
Porém, logo o respiro acaba e as complicações do segundo ato começam a
surgir em progressão. Suas testemunhas não comparecem, seu expert revela-se
limitado e a outra parte antecipa todos os movimentos de Galvin, destruindo todas as
suas evidências. Galvin até tenta um acordo extrajudicial e dessa vez, é a outra parte
que recusa. O caso ganho ali atrás revela-se perdido agora. E pior: Galvin descobre que
sua namorada é, na verdade, uma espiã. Trama principal e subtrama se encontram na
crise do protagonista.
Agora sóbrio e crente na sua missão, Galvin descobre o paradeiro de uma
testemunha chave que pode ser fundamental para sua vitória. Porém, Galvin o faz de
maneira imoral: ele mente e viola correspondências. Temos o Ponto de Virada II e a
trama entra no terceiro e ultimo ato.
No Ato III Galvin convence a testemunha a comparecer no tribunal. Depois do
seu depoimento, vem o climax, quando Galvin faz uma apaixonada defesa da justiça
que convence os jurados. A vitória pertence a Galvin. Ele faz justiça e ao mesmo
tempo, cumpre seu arco – de um desprezível abutre num defensor da causa certa,
mesmo que agindo de maneira imoral para fazer o que acredita. Em outras palavras,
ele está apto para jogar o jogo sujo.
***
Reparem como cada ato se intensifica até um ponto de maior dramaticidade.
Todo ato começa com um relativo repouso e termina com um evento de forte
carga dramática: Frank recusa o acordo e vai a julgamento; o julgamento parece
perdido e Frank faz uma apaixonada defesa da justiça. E cada ato é mais intenso que o
anterior: a dramaticidade da resolução do terceiro ato é maior do que a dramaticidade
do evento que encerra o segundo ato, o qual por sua vez é maior do que a
dramaticidade do evento que encerra o primeiro ato.
AULA 4
CENA

“A palavra-chave, para mim, é sempre


conflito. Qual é o conflito na história?”
Walter Bernstein
• Definição de Cena, segundo Flávio de Campos

O roteirista Flávio de Campos define assim uma Cena:

“é o segmento de um incidente que, delimitado, por um lugar, o narrador


narra”
in: Roteiro de Cinema e Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007 p. 122.

E completa em seguida:

“… se muda o lugar, muda a cena – mesmo que o incidente seja o


mesmo”.

Nesse conceito, a Cena é uma situação que ocorre num determinado lugar.
Nesse momento que escrevo, estou digitando no meu escritório. Isso é uma situação
que ocorre num lugar. Você está lendo esse texto agora. Isso também é uma situação
que ocorre num lugar.
Essa definição é prática porque coincide com a formatação oficial do roteiro
que ainda estudaremos. Toda cena começa com um cabeçalho definindo onde e
quando a cena acontece. Por exemplo, se pensarmos no curta Geri’s Game:

EXT. PARQUE – DIA


***

• Definição de Cena, segundo Robert McKee

A definição do professor Robert McKee é mais complexa e rica como


dramaturgia:

“A cena é uma estória em miniatura – uma ação através do conflito em


unidade ou continuidade de tempo e espaço que transforma as cargas da
condição de vida da personagem. Na teoria não há limites para a duração e
a localização de uma cena. [...] Não importa a locação ou a duração, uma
cena é unificada ao redor do desejo, ação, conflito e mudança”.
“Em cada cena, uma personagem busca um desejo relativo a esse mesmo
tempo e lugar. Mas esse Objetivo de Cena deve ser um aspecto de seu
Super Objetivo ou Espinha, a jornada que vai do Incidente Incitante ao
Clímax da Estória. Dentro da cena, a personagem age sobre seu Objetivo de
Cena ao escolher sob pressão tomar uma ação ou outra. Contudo, de
qualquer um ou de todos os níveis de conflito vem uma reação que ela não
antecipou. Como efeito, a brecha entre expectativa e resultado se abre,
levando suas fortunas externas ou sua vida interna ou ambos do positivo ao
negativo ou do negativo ao positivo em termos de valores que o público
entende que estão em risco.”
in: Story: susbtância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro.
Curitiba: Arte&Letra, 2006, p. 222.

Vamos analisar trecho por trecho a definição.

(a) “A cena é uma estória em miniatura…”


Se o filme é um progressão de cenas até uma resolução (o Clímax), a cena é
uma progressão de reviravoltas (ações e reações entre os personagens) até o climax da
cena – sua virada.

(b) “… uma ação através do conflito em unidade ou continuidade de tempo e


espaço que transforma as cargas da condição de vida da personagem. Na teoria não
há limites para a duração e a localização de uma cena. [...] Não importa a locação ou
a duração, uma cena é unificada ao redor do desejo, ação, conflito e mudança”
Unidade ou continuidade de tempo e espaço significa que a cena não está
restrita a um lugar ou duração, como na definição do roteirista Flávio de Campos. Em
regra, as cenas ocorrem num ambiente e numa duração aproximada de três minutos.
Mas nada impede que tenhamos uma cena que se desenvolva em mais de um
ambiente e com duração indeterminada, segundo o conceito do professor Robert
McKee: a unidade da cena vem da ação do personagem, que se desenvolve por meio
de um conflito. No final da cena, ela “vira”.
Dizemos que toda cena “vira” – o seu clímax. Existe uma mudança durante a
cena, algo que muda a carga de um ou mais personagens de um polo negativo para um
polo positivo ou vice-versa. Ou de um aspecto negativo para outro ainda mais negativo
– bem como um aspecto positivo para outro mais positivo.

(c) “Em cada cena, uma personagem busca um desejo relativo a esse mesmo
tempo e lugar. Mas esse Objetivo de Cena deve ser um aspecto de seu Super Objetivo
ou Espinha, a jornada que vai do Incidente Incitante ao Clímax da Estória.”
Retomando o item (a), se o filme é um progressão de cenas até uma resolução
(o Clímax), a cena é uma progressão de reviravoltas (ações e reações entre os
personagens) até o seu climax, onde ela vira.
Se o personagem tem um objetivo ao longo do filme, ele precisa cumprir uma
série de objetivos menores para atingir esse gol. Por exemplo, o protagonista quer
solucionar um crime (o gol!), ele precisa ouvir testemunhas, colher provas, realizar
análises forenses, interceptar ligações telefônicas etc.

(d) “Dentro da cena, a personagem age sobre seu Objetivo de Cena ao


escolher sob pressão tomar uma ação ou outra. Contudo, de qualquer um ou de
todos os níveis de conflito vem uma reação que ela não antecipou.”
Chamamos de brecha ou gap a reação que o personagem não antecipou. A
cena traz um obstáculo que o personagem não poderia prever. Por exemplo, um garoto
franzino com flores na mão toca a campainha da casa onde mora a sensível garota que
está apaixonado. Qual sua expectativa? Que a garota abra a porta. Porém o resultado é
outro. Quem abre a porta são seus irmãos: lutadores de Jiu-Jitsu tatuados com
símbolos ameaçadores. Agora, sob pressão o garoto pode tomar uma ação ou outra –
pode pedir que os irmãos chamem a garota ou pode dizque errou de casa.

(e) “Como efeito, a brecha entre expectativa e resultado se abre, levando suas
fortunas externas ou sua vida interna ou ambos do positivo ao negativo ou do
negativo ao positivo em termos de valores que o público entende que estão em
risco.”
Continuando o drama do garoto franzino diante dos brutamontes, se ele vence
o medo e pede para os irmãos chamarem a garota, a cena termina num polo positivo.
Se ele vai embora, a cena termina num polo negativo.
Em ambos os casos a cena vira.
***
Toda cena vira, uma vez que toda cena gira em torno de um conflito.
Porém, um filme ou episódio de série não é todo construído em cima de viradas
espetaculares. Dentro de um amplo espectro, a dramaticidade das cenas pode ser alta,
media ou baixa.
Retomando a estrutura em três atos, temos cinco grandes reviravoltas ao longo
do filme: Incidente Incitante, Ponto de Virada 1, Ponto Central, Ponto de Virada 2 e
Clímax. São as reviravoltas que provocam os maiores dilemas e transformações na
jornada do protagonista. As demais cenas serão, em sua maioria, de media ou baixa
dramaticidade.
***
As três perguntas mágicas de David Mamet.
Em seu divertido livro Bambi Vs. Godzilla, David Mamet ensina que todas as
cenas devem responder três perguntas:

1. Quem quer o que (de quem)?


2. O que acontece se não conseguir?
3. Por que agora?

Vamos ver cada uma delas:


- Quem quer o que (de quem)?
Robert McKee disse que a cena é uma ação que se desenvolve através do
conflito. Ou seja, os personagens tem objetivos antagônicos e precisam resolver um
problema.
Em Geri’s Game, o velhinho (personagem principal) precisa vencer a partida de
xadrez, bem como seu alter-ego maligno (antagonista).
No exemplo anterior, o garoto franzino quer convidar a sensível garota para sair.
- O que acontece se não conseguir?
Não basta o personagem ter um objetivo. Ele precisa ter algo importante em
jogo. Se não há risco, não há drama.
O velhinho e seu alter-ego maligno disputam a dentadura no duelo. O garoto
está apaixonado pela garota.
Pensemos num gerente que precisa demitir um funcionário. A história fica
interessante se o gerente é um grande amigo do funcionário. E pode ficar mais
interessante se o gerente souber que o funcionário precisa do trabalho e, mais, se a
demissão é injusta. O que está em jogo para o funcionário? Sua subsistência. E para o
gerente? Sua consciência e sua amizade.
Colocamos os personagens em situações que não gostaríamos de estar na vida
real e vemos como reagem.
O gerente demite o amigo ou não? Se sim, como o faz? Se não, como ele encara
a consequência?
Comédias funcionam da mesma forma, só que o drama do personagem dentro
da história é risível fora dela. George Costanza tem seu namoro em risco porque sua
“sogra” o flagrou comendo um doce que estava na lata de lixo (Seinfeld). As manias de
Sheldon Cooper são cômicas para nós, mas dramáticas para ele (The Big Bang Theory).

- Por que agora?


Essa pergunta diz respeito a uma urgência. O objetivo do personagem da
história não pode ser um que possa adiar, que se possa resolver ano que vem. O
personagem precisa resolver agora! O filme flagra justamente esse momento. O
gerente recebeu a ordem de demitir o funcionário naquele dia. Urgência traz
dramaticidade. E obriga o personagem a agir. O garoto toca a campainha da casa e os
brutamontes abrem a porta. Como o garoto lida com a situação agora, nesse instante?
***
Costumamos dizer que as cenas viram. Ou seja, não terminam da forma que
começaram. Os personagens mudam ou revelam uma segunda faceta no desenrolar da
cena, como o velhinho bonzinho trapaceia no jogo de xadrez para derrotar seu
alter-ego maligno em Geri’s Game.
Por isso, toda cena envolve uma (eventual) troca de poder.
Quando a cena começa, um personagem tem mais poder sobre o(s) outros(s).
Ao longo da cena, o poder pode trocar de mãos ou não.
Conflito traz subtexto. Se personagens querem algo, podem não manifestar
diretamente o seu desejo. Subtexto nos faz imaginar a real motivação dos
personagens.
E além de conflito, as cenas tem exposição, ou seja, passam informações da
trama para o público.

O primeiro episódio da minissérie Dois Irmãos, escrita por Maria Camago,


apresenta um conflito com uma virada mais sutil.

INT. SOBRADO/QUARTO DE YAQUB – DIA

Zana borrifa perfume sobre a fronha bordada com capricho, onde se lê:
Yaqub. Dá os últimos retoques na arrumação do quarto já impecável. Rânia
arruma flores (helicônias) num vaso.

ZANA
Meu menino vai dormir com as minhas letras, com a minha caligrafia…

RÂNIA
Está bem aqui?

Zana olha em torno, satisfeita com o que vê.

ZANA
Teu irmão vai gostar.

RÂNIA
Por que ele ficou tanto tempo longe?

Uma sombra sobre o rosto de Zana.

ZANA
Devias perguntar isso ao teu pai.

Ela pega alguma flores do vaso, sai. E já ouvimos o som do bimotor que
sobrevoa.

A cena apresenta um conflito forte, porém sutil. Rânia quer saber por que o
irmão ficou tanto tempo longe e Zana não quer responder. A cena tem subtexto: Zana
esconde algo da filha. Assim, a cena não terminou da mesma forma que começou.
Descobriremos ao longo da história que Zana não gosta de Yaqub. Ela aparentemente
está feliz com a volta do filho e arruma seu quarto com carinho; na verdade, ela ama
somente seu outro filho, o gêmeo Omar.
E temos a exposição por meio desse conflito: mãe e filha arrumam o quarto do
outro filho que está voltando para casa.
***

Análise de cena – Bonitinha, Mas Ordinária (1981)

Bonitinha, Mas Ordinária (1981) é a adaptação cinematográfica da peça de


Nelson Rodrigues.
O protagonista é o jovem humilde Edgard. Ele recebe do colega de trabalho
Peixoto uma proposta inusitada: casar-se com a filha do chefe – o Dr. Werneck, sogro
do Peixoto, aliás – porque a garota foi estuprada. Edgard gosta de Ritinha, mas sente-se
tentado pelo dinheiro. A cena a seguir é o momento que Edgard vai na casa de
Werneck para receber oficialmente o “convite”. Werneck acredita que Edgard é um
novo Peixoto, que se vendeu por dinheiro para casar com sua outra filha. No backstory,
Werneck humilhou Peixoto para “comprá-lo” e agora repetirá a estratégia com Edgard.
Mas Edgard não é Peixoto.

Sala do Dr. Werneck. Estão todos sentados em sofás diferentes e


bebendo cafézinho: Edgard, Werneck, Peixoto e Ligia.

WERNECK
(para Edgard)
Bom, então você já sabe de tudo?

EDGARD
De fato.

PEIXOTO
Contei o caso por alto.

WERNECK
Bem. Portanto, você já sabe que a moça. A moça sofreu um acidente.
Foi um acidente. Como um atropelamento, uma trombada. Entende?
Essa moça é minha filha. Filha do seu patrão. Presta atenção porque
Isso é muito importante. Filha do seu patrão. Entendido?

EDGARD
Sim senhor.

WERNECK
(com prazer)
Gostei da inflexão. Um “sim senhor” bem, como direi.

LIGIA
(para Edgard)
Meu filho! Houve o que houve com a minha filha, mas eu posso
garantir. Nunca houve menina mais virgem!

WERNECK
Exato. Exato. Mas vamos ao que interessa. Você trabalha na firma há
onze anos. Entrou pra lá, antes do Peixoto. Começou de baixo. Veio
do nada. Qual foi mesmo seu primeiro posto lá?

EDGARD
(sorri, com embaraço)
Auxiliar de escritório.

WERNECK
(num berro triunfal)
Mentira!

Werneck gargalha. Se levanta e segue até Edgard.

LIGIA
Que é isso Heitor?

Werneck chega bem perto de Edgard.

WERNECK
É mentira dele! Você começou como contínuo. Contínuo! Contínuo.
(para Peixoto)
Não foi como contínuo?

PEIXOTO
Contínuo.

EDGARD
Realmente, eu!

WERNECK
(interrompe)
Contínuo! Contínuo! Portanto, nao se esqueça disso. Você é um
ex-contínuo! Póe isso na tua cabeça!

LIGIA
Heitor, você está humilhando o rapaz.
(para Edgard)
Meu marido gosta de fingir de mau. Mas ele é bom.

Edgard faz menção de levantar.

EDGARD
Eu posso falar?

Werneck o impede de se levantar e continua.

WERNECK
Senta! Momento! Eu não acabei.

Edgard obedece.

WERNECK
Você vai se casar com a minha filha. Ta bom! Mas sabe como é. Com
separação de bens.

EDGARD
Aliás, eu acho que se eu me casar. Se, realmente, eu.

EDGARD
Não ouvi.

EDGARD
Eu acho que a separação de bens é o certo, o justo. Eu também
prefiro.

WERNECK
Prefere nada! Conversa!

Edgard novamente faz menção de levantar.

EDGARD
Olha aqui, meu senhor.

Werneck o empurra de volta para a cadeira.

WERNECK
Senta, rapaz. Essa mania. Essa obsessão de ficar de pé.
(pausa)
Separação de bens, mas você vai ganhar alto. A mesma coisa. Não faz
diferença. Vai ganhar até mais.

LIGIA
Heitor, você fala como se estivesse comprado um genro.

WERNECK
Ligia, não atrapalha! Essa eterna mania.

LIGIA
(para Edgard)
Meu marido é bom.

WERNECK
(para Ligia)
Mentira! Você me acha um cafajeste. Diz que eu faço barulho quando
eu como.

LIGIA
Nunca! Eu vou me retirar. Com licença.

Ligia levanta e segue para fora da sala. Volta-se para Heitor.

LIGIA
Você é bom, Heitor. Você é bom.

Ligia sai de cena. Werneck volta a se sentar diante de Edgard.

WERNECK
(resmunga)
Caso sério a minha vida!
(para Edgard)
E você que quase não fala. Tudo sai de você aos bocadinhos feito
titica de cabra. Fala, rapaz!

EDGARD
Vou falar sim.

Edgard levanta.

WERNECK
Mas senta!

EDGARD
Escuta aqui, doutor Werneck.
(para Peixoto)
E você também, Peixoto. Você! Não é doutor, não. Você!
(de volta para Werneck)
Olha! Eu não vou mais casar com a sua filha não. Não vou mais não. E
tem mais. Eu largo o emprego. Enfio os onze anos de estabilidade no
rabo. É! No rabo! E tem mais.
(mais agressivo)
Eu sou um ex-contínuo e você é um filho da puta.

Edgard se dirige para fora da sala. Werneck e Peixoto estão perplexos.


Edgard se volta para Peixoto uma última vez.

EDGARD
(num berro maior)
Seu filho da puta!

Edgard sai de cena.

Edgard começa a cena “querendo ser comprado”, logo num pólo negativo. E
termina a cena reavendo sua dignidade, logo num pólo positivo. Então a cena virou,
cumpriu sua função. E qual o momento da virada, o clímax da cena? É o momento que
Edgard se levanta e não só diz que não vai mais se casar como xinga o Dr. Werneck de
“filho da puta” bem na sua cara.
Podemos resumir assim a cena pelo seu clímax:

Edgard xinga o Dr. Werneck e diz que não vai se casar com sua filha após
ser humilhado.

Até o clímax, temos uma progressão de ações e reações que conduz a cena. As
ações são as provocações do Dr. Werneck e as reações, as tentativas de Edgard falar e
até mesmo seu silêncio resignado – até sua erupção.
Como Werneck é o principal antagonista de Edgard, vamos responder as três
perguntas mágicas do David Mamet:
Quem quer o que de quem?
No início da cena, Werneck quer “comprar” Edgard como genro. E Edgard quer
ser “comprado” por Werneck.
O que acontece se não conseguirem?
Werneck não casará sua filha com um genro escolhido por ele. E Edgard não
ganhará dinheiro ou status social.
Por que agora?
Porque é agora que os personagens são colocados frente a frente, uma
maquinação do Peixoto – como se revela adiante na história.
No início da cena, todas as vontades estão convergindo. No final da cena, existe
divergência por causa da dignidade de Edgard – o elemento que nem Werneck nem
Peixoto poderiam prever. Do ponto de vista desses dois antagonistas, a dignidade de
Edgard é a brecha entre o que desejam e o que realmente acontece: Edgard não aceita
ser humilhado – e tampouco Edgard poderia imaginar que seria humilhado ao entrar
na cena. Logo, temos brechas dos dois lados.
Podemos ver o design progressivo da cena ao traduzirmos cada fala do Dr.
Werneck num verbo ou expressão verbal. Cada mudança de intenção na fala revela um
novo subtexto – todos em linha ascendente até a explosão de Edgard – o clímax da
cena.
Werneck começa a cena suavizando a situação – se referindo à filha estuprada:
– Ela sofreu um acidente.

Depois, ele ameaça Edgard:


– Essa moça é filha do seu patrão.

E depois passa a humilhar Edgard:


– Contínuo!

Segue-se uma progressão de humilhações até a explosão de Edgard que


retruca:
– Eu sou um ex-contínuo e você é um filho da puta.

Essa é a primeira ação efetiva de Edgard na cena – lembrando que toda ação é
uma reação. Até então, ele praticamente estava tentando reagir – tentando levantar,
tentando retrucar, mas sempre dominado pelo Dr. Werneck.
***
Análise de cena – O Pagador de Promessas (1962)

O Pagador de Promessas (1962) é a adaptação cinematográfica da peça de Dias


Gomes.
Na trama, o lavrador Zé do Burro precisa cumprir uma promessa a Santa
Bárbara e carrega uma cruz nas costas da sua roça no sertão até a igreja de Salvador.
Ao chegar lá, se depara com a intransigência do Padre Olavo, que o impede de entrar
na igreja. Segue a cena:

O Padre está no topo da escadaria. Zé do Burro aguarda com sua cruz sob a
escadaria.


Padre! Eu queria falar com o senhor.

PADRE
Agora está na hora da missa. Mais tarde, se quiser...


É que eu vim de muito longe, Padre.

PADRE
O que é que você quer?

O Padre desce a escadaria e vai ao encontro de Zé, seguido do Sacristão.


Eu andei sete léguas...

PADRE
Para falar comigo?


Não, pra trazer esta cruz.

O Padre examina a cruz.

PADRE
E como a trouxe? Num caminhão?


Não, Padre, nas costas.
PADRE
Deixe ver seu ombro.

Zé mostra o ombro em carne-viva para o Padre.

PADRE
Promessa?


Pra Santa Bárbara. Estava esperando abrir a igreja.

SACRISTÃO
Deve ter recebido dela uma graça muito grande!.


Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo.

PADRE
Mesmo assim, não lhe parece um tanto exagerada e pretensiosa a sua
promessa?


Nada disso, seu Padre. Promessa é promessa. É como um negócio. Se a
gente oferece um preço, recebe a mercadoria, tem que pagar. Quando
Nicolau adoeceu, o senhor não calcula como eu fiquei.

PADRE
Foi por causa desse Nicolau, que você fez a promessa?


Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma árvore que caiu, num dia de
tempestade.

SACRISTÃO
Caiu em cima dele?


Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa
escorrendo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos dele, mas
o sangue não havia meio de estancar.

PADRE
Uma hemorragia. Venha comigo.

O Padre acena para Zé segui-lo e dá ordens para o Sacristão e os fieis.

PADRE
Vai! Vai! Estamos atrasados. Vai, filha. Vamos pra missa!

Zé coloca a cruz nos ombros e começa a subir a escadaria junto do Padre.

PADRE
Então foi uma hemorragia.


Só estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta de vaca e
taquei em cima do ferimento.

PADRE
Mas meu filho, isso é atraso! Uma porcaria!


Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse aquela
porcaria de cima da ferida, que senão Nicolau ia morrer.

PADRE
Sem dúvida.


Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma
cachoeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar? Ensopava algodão e
mais algodão e nada. Era uma sangueira que não acabava mais. Lá pelas
tantas, o homenzinho virou pra mim e gritou: corre, homem de Deus, vai
buscar mais bosta de vaca, senão ele morre!

O Padre ri.

PADRE
E o sangue estancou?


Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário não sabia?

PADRE
Não estou interessado nessa medicina. Adiante.


Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia
seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido: eu saí de casa e
Nicolau ficou. Não pôde se levantar. Todo mundo reparou, porque quem
quisesse saber onde eu estava, era só procurar Nicolau. Se eu ia na missa,
ele ficava na porta esperando.

PADRE
Na porta? Por que ele não entrava? Não é católico?


Tendo uma alma tão boa, Nicolau não pode deixar de ser católico. Mas não
é por isso que ele não entra na igreja. É porque o vigário não deixa. Nicolau
teve o azar de nascer burro...

PADRE
Burro?


De quatro patas.

PADRE
Então esse que você chama de Nicolau, é um burro? E foi por ele que você
fez a promessa?


Foi. Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito no
padre Nicolau…

PADRE
(desconfiado)
Rezas? Que rezas?


Seu vigário me disculpe... mas eu tentei tudo. Preto Zeferino é rezador
afamado na minha zona: Sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de
gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo
mundo diz.

PADRE
Mas esse homem é um feiticeiro?


Como feiticeiro se as rezas são pra curar?

PADRE
Não é para curar. É para tentar. E você caiu em tentação.


Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar. Eu já estava
começando a perder a esperança. Foi então que comadre Miúda me
lembrou: por que eu não vai no candomblé de Maria de Iansan?

PADRE
(com gravidade)
Candomblé? Espere um pouco.

O Padre sobe degraus e se posiciona acima de Zé.

PADRE
Candomblé?


É um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça. Eu sei que
seu vigário vai ralhar comigo.

PADRE
Claro! Candomblé é feitiçaria. Macumba.


Mas o pobre Nicolau estava morrendo. Não custava tentar.

Zé e o Padre voltam a subir a escadaria.


E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que era mesmo
com Iansan, dona dos raios e das trovoadas. Iansan tinha ferido Nicolau...
pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa. Mas tinha
que ser uma promessa bem grande, porque Iansan, que tinha ferido
Nicolau com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. Foi então
que eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se
Nicolau ficasse bom eu levava uma cruz de madeira de minha roça até a
Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.

O Padre para. Zé espera.

PADRE
Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...


A Santa Bárbara.

PADRE
A Iansan!


É a mesma coisa...

PADRE
(Grita)
Não, não! Não é a mesma coisa!
O Padre volta a tomar a dianteira de Zé, em posição superior.

PADRE
Essa confusão vem do tempo da escravidão. Os escravos africanos
burlavam assim os senhores brancos. Fingiam cultuar santos católicos
quando na verdade estavam adorando seus próprios deuses. Não só Santa
Barbara. Muitos santos foram vítimas dessa farsa. Mas continue.


Prometi também dividir minhas terras.

PADRE
Dividir? Com quem?


Com os lavradores mais pobres do que eu.

PADRE
Igualmente?


Sim, padre.

PADRE
Sei. Descanse.

Zé tira a cruz do ombro e a apoia na escadaria.

PADRE
E o burro?


Sarou em dois tempos. Milagre. Milagre mesmo. No outro dia já estava de
orelha em pé, relinchando. E uma semana depois todo o mundo me
apontava na rua: “Lá vai Zé-do-Burro com o burro de novo atrás!”. Eu nem
dava confiança. E Nicolau muito menos. Só eu e ele sabíamos do milagre.
Eu, ele e Santa Bárbara.

PADRE
Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara, não
se trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O burro podia ter-se
curado sem intervenção divina.


Como, Padre, se ele sarou de um dia pro outro...

PADRE
E além disso, Santa Bárbara, se tivesse de lhe conceder uma graça, não iria
fazê-lo num terreiro de candomblé, de macumba.


É que na capela do meu povoado não tem uma Santa Bárbara. Mas no
candomblé tem uma Iansan, que é Santa Bárbara...

PADRE
Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica! O senhor foi a
um ritual fetichista. Invocou um falso ídolo e foi a ele que prometeu esse
sacrifício!


Não, Padre, foi a Santa Bárbara! Foi até a igreja de Santa Bárbara que
prometi vir com a minha cruz! E é diante do altar de Santa Bárbara que vou
cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fez por mim!

PADRE
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua
promessa?


Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha consciência e
quite com a santa.

PADRE
Só isso?
(acusa)
Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?


Eu?

PADRE
Você Sim, você que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martírio de
Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imitar o Filho de Deus.


Padre... eu não quis imitar Jesus...

PADRE
Não é verdade! Mentira! Eu gravei bem suas palavras! Você mesmo disse
que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo.


Sim, mas isso...
PADRE
Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior. A
de igualar-se ao Filho de Deus.


Não, Padre.

PADRE
Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade? Não, para
salvar um burro!

ZE
Padre, Nicolau...

PADRE
É um burro com nome cristão!


Mas Padre, não foi Deus quem criou também os burros?

PADRE
Mas não à Sua semelhança. E não foi para salvá-los que mandou seu Filho.
Foi por nós, por você, por mim, pela Humanidade! Entendeu?


Padre, Nicolau não é um burro como os outros. O senhor não conhece
Nicolau. É um burro com alma de gente.

PADRE
Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja você não entrará com essa
cruz!

O Padre dá as costas para Zé e se dirige para a igreja, chamando os fieis.

PADRE
Vamos! Vamos!

Zé volta a colocar a cruz no ombro e segue até a igreja.


(desesperado)
Padre! Escuta! Prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a
promessa!

PADRE
Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer outra parte, menos num
antro de feitiçaria. Num terreiro de candomblé.

Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não pode fazer
isso. A igreja não é sua, é de Deus!

PADRE
Vai desrespeitar a minha autoridade?


Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara.

PADRE
(para o Sacristão)
Feche a porta. Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da
sacristia. Lá não dá para passar essa cruz.

O Padre e os fieis entram na igreja, fechando a porta na cara de Zé.

Vamos retomar o conceito do jogo por meio das perguntas do David Mamet:
- Quem quer o que? Zé quer levar a cruz até o altar da igreja. O padre Olavo
não quer que Zé entre na igreja com a cruz.
- O que está em jogo? Para Zé, sua palavra, sua promessa. Para o padre Olavo,
sua autoridade - e os cânones da Igreja Católica.
- Por que agora? Porque Zé está nesse momento diante da igreja com sua cruz.

Quando a cena vira?


Identificamos a virada pelas ações do protagonista. Por isso a cena não vira com
a ordem do padre, o antagonista. Como Zé reage à ordem do padre? Ele o desafia. Essa
é a virada da cena:

Zé desafia a autoridade do Padre quando ele o proíbe de entrar na igreja


por ter feito a promessa num terreiro.

A reação do Zé move a trama adiante. A cena termina por volta de 30 minutos


do filme (corresponde ao final do Primeiro Ato). Temos muito mais história pela frente.
Numa primeira leitura, a cena vai de um polo positivo para um polo negativo.
Zé começa a cena crente de que vai cumprir sua promessa e termina ouvindo a
proibição do Padre Olavo. Seu desejo foi frustrado. Porém, temos uma segunda
camada de leitura. Quando o Padre impede Zé de entrar, ele persiste na sua promessa,
levando-o a um polo ainda mais positivo. Pressionado, o personagem age. Sua
determinação é colocada à prova e ele revela uma grande força. Daí o título O Pagador
de Promessas.
***

Tanto Bonitinha, Mas Ordinária quanto O Pagador de Promessas são histórias


que giram em torno de manutenção da virtude – e não correção de falha. Mesmo
pressionados a abrir mão do que acreditam, eles não cedem.

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