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P R E L Ú D I O A UMA JUSTIFICAÇÃO
E S T É T I C A DA E X I S T Ê N C I A
§ 1 . 0 Enigma
1889. Nos primeiros dias de Janeiro, na cidade italiana de Turim,
Nietzsche, ao transpor as portas do hotel em que se encontrava hospe-
dado, é confrontado com um acontecimento dramático. Na rua, um
cocheiro chicoteia violentamente um cavalo. Indignado com o gesto cruel
e injustificável que foi forçado a presenciar, o filósofo interpôs-se entre o
homem e o animal indefeso, para deste modo evitar que ele continue a ser
vítima da agressão perpetrada pelo cocheiro, abraça-se à cabeça do cavalo
e começa a chorar convulsivamente. O público concentra-se no local para
presenciar o episódio enigmático e, no momento em que um represen-
tante da autoridade se preparava para intervir com o objectivo de resolver
a situação, Nietzsche cai abruptamente desmaiado no chão vítima de
comoção cerebral. Foi transportado para o seu quarto, mas os sintomas de
delírio continuaram a manifestar-se repetidamente. Face à intenção de
1
Cf. FRANCIS BACON, New Atlantis (Nova Atlântida. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues,
Lisboa, Editorial Minerva, 1976).
2
Cf. M I L A N KUNDERA, A Insustentável Leveza do Ser. Trad. de Joana Varela, Lisboa,
D. Quixote, 1988, p. 3 3 0 , a partir da edição francesa revista pelo autor e publicada pelas
Éditions Gallimard sob o título Ulnsoutenable Légèreté de VEtre.
3
Cf. KUNDERA, op.cit.
4
Cf. ESQUILO, Prometeu Agrilhoado, Trad. de Fernando Melro, Editorial Inquérito,
Lisboa, s.d., p. 4 3 , 41.
Nietzsche e o Cavalo 119
5
"[...] em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas se pode encontrar
uma outra prática que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da águas, do ar, dos
astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como
conhecemos os diversos misteres dos nossos artífices, os poderíamos utilizar de igual
modo em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim corno que senhores e
possuidores da natureza." Cf. R E N É DESCARTES, Discours de la Méthode (Discurso do
Método, Trad. de Newton de Macedo, Lisboa, Clássicos Sá da Costa, 1992, p. 49).
ó
C f . M A R T I N H E I D E O G E R , Vortrage und Aufscitze (Essais et Confèrences, "Science et
Meditation", Trad. de André Préau, Paris, Gallimard, 1993, p. 5 8 ) .
7
"Quando o animal geme, não quer dizer que se queixe: só quer dizer que tem urna peça
a ranger. Quando a roda de um carro de cavalos chia, isso não quer dizer que a chaírete
tenha uma dor: é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser interpretadas da
mesma maneira, e é perfeitamente estúpido lamentar a sorte de um cão dissecado em
vida num laboratório." Cf. KUNDERA, op. cit., p. 328.
8
"Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. [...] A
verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se cm toda a sua pureza e em todo a
sua liberdade com aqueles que não representam força alguma. O verdadeiro teste moral
da humanidade [...] são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com
os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que
está na origem de todos os outros." Cf. KUNDERA, op. cit., p. 329.
120 Manuel João Pires
9
A tradução aqui apresentado dos excertos que nos parecem mais significativos do
primeiro coro da Antígona de Sófocles foi realizada a partir da tradução apresentada por
Heidegger na versão francesa da Einführung in die Metaphysik publicada nas edições
Gallímard com tradução de Gilbert Kahh; procurou-se ainda, na impossibilidade de
recorrer ao texto original, proceder a uma comparação com a tradução portuguesa da
Antígona realizada por Fernando Melro e publicada na Editorial Inquérito. Por todas as
razões expostas estamos plenamente conscientes dos limites da tradução apresentada.
10 A este respeito cumpre dizer que existem determinadas interpretações do Coro de
Antígona que Heidegger rejeita como erróneas por permanecem prisioneiras de uma
leitura antropologista que oculta o verdadeiro sentido do poema. Assim sendo é neces-
sário recusar as leituras interpretativas que I ) vêem no poema uma discrição ilustra-
o
tiva dos diversos domínios da actividade humana 2 ) interpretam o mesmo como uma
O
1 4
Cf. STEINER, op, cit., p. 126.
1 5
Cf. K A N T , Immanuel, Kritik der Reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura, "Prefácio à
Primeira Edição", Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 3).
1 6
A este respeito Cf. HANS BLUMENBERO, Das Lachen der Thrakerin. Eine Urgeschichte
der Theorie (O Riso da Mulher de Trácia. Uma Pré-História da Teoria, Trad. de Maria
Adélia Silva Melo e Sabine Urban, Lisboa, Difel, 1994).
Nietzsche e o Cavalo 123
1 7
Cf. JEAN-FRANÇOIS LYOTARD, Le Postmoderne Explique aux Enfanís (O Pós-Moderno
Explicado às Crianças, Trad, de Tereza Coelho, Lisboa, D. Quixote, 1993, p. 96).
1 8
Cf. GOTTFRIED W I L H E L M LEIBIIÍZ, Essais de Thêodicée. Sar la Bonté de Dieu, la
Liberte de VHomme et l'Origine du Mal, Paris. Flammarion, 1969, pp. 76-77.
1 9
Cf. JONATHAN SCHELL, The Fate of The Earth (O Destino da Terra, Trad, de Cardigos
dos Reis, Lisboa, Dom Quixote, 1983, pp. 46-52).
124 Manuel João Pires
2 0
Cf. STEINER, op. cif., pp. 62-63.
2 1
RENAN, L'Avenir de la Science, cit. in: A L A I N FINKIELKRAUT, UHumanité Perdue
(A Humanidade Perdida. Ensaio Sobre o Século XX, Trad. de Pedro Tamen, Lisboa,
Asa, 1997, p. 71).
2 2
Cf. FINKIELKRAUT, op. cit.
2 3
Cf. HANNAH ARENDT, Juger, sur la Philosophie Politique de Kant, cit. in
FINKIELKRAUT, op. cit.
metzscne e o cavalo
2 4
Cf. FINKIELKRAUT, Op. CÍt, p. 5 7 .
2 5
HIMMLER, cit, in FINKIELKRAUT, op. cit., p. 65. O sublinhado é nosso.
2 6
PRIMO L E V I , cit. in FINKIELKRAUT, op. cit., p. 7.
126 Manuel João Pires
2 7
A este respeito Cf. FlNKlELKRAUT, op. cit., p. 10.
2 8
Cf. VOLTAIRE, Candide ou VOptimisme, Paris, Le Livre de Poche, s/d, 1983, p. 125.
<> IbM.
2
3 0
"«Quanto mais se compreende o universo, mais ele nos aparece desprovido de
sentido.», escreveu em Os Três Primeiros Minutos o físico Stephen Weinberg. Desa-
fio-o a repetir estas palavras escutando - como o faço neste momento - As Bodas de
Fígaro, de Mozart". Cf. HUBER REEVES, VHeure de S'enivrer (A Hora do
Deslumbramento. Trad. de Jorge Branco, Lisboa, Gradiva, 1994, pp. ¡ 9 3 - 1 9 4 ) .
Nietzsche e o Cavalo 127
na poesia, na música?
De acordo com perspectiva defendida por Alexandre Soljenitsyne, a
arte é a única forma capaz de transfigurar, positivamente, a experiência
do terror inumano. É pela sublimação estética que as realidades anónimas
inscritas no devir da história adquirem um rosto pessoal, que testemunha
o seu carácter insubstituível, inscrevendo-as de forma inelutável na
memória colectiva da humanidade. É a experiência estética que permite,
pela instauração da presença do acto criador, transformar a existência na
nossa existência.
" A arte transmite de um homem para outro, durante a sua breve perma-
nência na Terra, todo o peso de uma longuíssima e desusada experiência,
com os seus fardos, as suas cores, a seiva da sua vida: recria-a na nossa
carne e permite-nos tomar posse dela como se fosse nossa." 33
3 5
Cf. FRIEDRICH NIETZSCHE, O Crepúsculo dos ídolos, Trad. de Delfim Santos, Lisboa.
Guimarães Editores, 1985, p. 44.
™ Ibid.
3 7
A este respeito Cf. CLEMENT ROSSET, La Philosopkie Tragique, Paris, PUF, 1960,
pp. 105-146.
Nietzsche e o Cavalo 129
3 8
Cf. GILLES LIPOVETSKY, VEre du vide (A Era do Vazio, Trad. de Miguel Serras Pereira
e Ana Luísa Faria, Lisboa, Relógio D'Água, 1989, p. 35).
3 9
Porém a estrutura narcísica da contemporaneidade não excede, como pretende
Lipovetsky, o horizonte de sentido instaurado pelo Niilismo. A figura de Narciso -
símbolo do tempo presente - representa, na sua decisão existencial, o comportamento
paradigmático do niilista. Narciso testemunha o comportamento niilista do Antropos -
os Homens Superiores que Zaratustra acusa de não saberem perspectivar o sentido da
existência para além da mesmidade solipsista da Consciência-de-Si - que, após a ruína
dos fundamentos Onto-Teológicos da existência, procura substituir os valores divinos
por valores humanos. Como defendemos o narcisismo contemporâneo coloca no lugar
do absoluto supremo da metafísica - Deus - a estrutura egocêntrica do indivíduo que,
incapaz de realizar a transmutação, permanece prisioneiro do Niilismo. O Narcisismo
não só preserva a estrutura egóica do Cogito, própria da metafísica na sua constituição
Onto-Teo-Ego-Lógica, como comete o erro de, não reconhecendo que a ruína do
EISOCT acarreta a ruína do mundo aparente, transferir para a dimensão da aparência, do
espectacular e do imediato a essência do ontos on metafísico, fundando a sua cosmovi-
são numa autêntica glorificação do império do efémero.
130 Manuel João Pires
§5. Da Alegria
A construção de uma justificação da existência como fenómeno
estético, implica assumir, incondicionalmente, o fenómeno paradoxal da
alegria. O paradoxo da alegria consiste, essencialmente, por um lado em
assumir conscientemente a dimensão trágica do mundo e, por outro, em
afirmar todas as formas de realidade independentemente do seu carácter
positivo ou negativo, ou seja, em aprovar sem reservas a tragicidade
essencial da existência . 40
4 0
"Le paradoxe de la joie, qui est de faire face à la tragedie, c'est-à-dire d'admettre sans
dommage psychologique toute espèce de réalité, si peu désirable qu'elle puisse être."
Cf. ROSSET, Op. cit., "Avant-propos".
4 1
Cf. JEAN-FRANÇOIS LYOTARD, L'lnhumain. Causeries sur le Temps (O Inumano,
Considerações sobre o Tempo, Trad. de Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre,
Lisboa, Editorial Estampa, 1989, p. 91).
4 2
"[•••] o sentimento do sublime é um prazer que surge só indirectamente, ou seja ele é
produzido peio sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão
imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas." Cf. IMMANUEL KANT,
Nietzsche e o Cavalo 131
pois, como refere Albert Carnus "É preciso imaginar Sísifo feliz" . 45
4 4
Neste sentido afigura-se necessário fazer da existência a representação carnal do
imperativo de Borges: "O fio perdeu-se, o labirinto perdeu-se também. Agora nem
mesmo sabemos se nos rodeia um labirinto, um secreto cosmos, ou um caos impon-
derável. O nosso mais grato dever é imaginar que há um labirinto e um fio. Nunca
daremos com o fio; talvez o encontremos e o percamos num acto de fé, numa cadência,
no sonho, nas palavras que se chamam filosofia ou na mera e simples felicidade." Cf.
JORGE LUÍS BORGES, LOS Conjurados (Os Conjurados, "0 Fio da Fábula", Trad. de
Maria da Piedade M . Ferreira e Salvato Teles de Meneses, Lisboa, Difel, s/d, p. 59).
4 5
Cf. ALBERT CAMUS, Le Mythe de Sisyphe (0 Mito de Sísifo. Ensaio sobre o Absurdo,
Trad. de Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas, Lisboa, Livros do Brasil, s/d,
p. 152).
4 6
A este respeito passamos a citar um excerto significativo do discurso de uma das
personagens do romance, a saber, Mustafá Mond: "Pela primeira vez na história sabe¬
-se perfeitamente para onde é que se caminha. [...] - Porque o nosso mundo não é o
mesmo que o de Othello. [.,.] O mundo é estável agora. As pessoas são felizes, conse-
guem o que querem e nunca aquilo que não podem obter. Sentem-se bem, estão em
segurança, nunca estão doentes, não receiam a morte, vivem numa serena ignorância
da paixão e da velhice, não são sobrecarregadas com pais e mães, não têm mulheres,
nem filhos, nem amantes, pelos quais poderiam sofrer emoções violentas, estão de tal
modo condicionados que, praticamente não podem deixar de se comportar como
devem." Cf. ALDOUS HUXLEY, Brave New World (Admirável Mundo Novo, trad. de
Mário Henrique Leiria, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pp. 241-251).
Nietzsche e o Cavalo 133
"E então que a ciência, incitada pela sua enérgica ilusão, se apressa
desenfreadamente e chega aos seus limites, nos quais fracassa o seu opti-
mismo oculto na essência da lógica. Porque a periferia do círculo cientí-
fico tem um número infinito de pontos [...] o homem nobre e dotado
acaba, é inevitável, por chegar, ainda antes de atingir metade da sua exis-
tência, a tais pontos limítrofes da periferia, onde só pode mirar fixamente
o que não se deixa esclarecer. Ao ver aqui, para seu pavor, como nesses
limites a lógica descreve círculos em torno de si mesma e morde por fim a
própria cauda - aí irrompe a nova forma de conhecimento, o conheci-
mento trágico que, para ser tolerado, necessita da arte como protecção e
remédio." 47
4 7
Cf. FRIEDRICH NIETZSCHE, Die Geburt der Tragödie {O Nascimento da Tragédia, Trad.
de Teresa Cadete, Lisboa, Relógio D'Agua, 1997, pp. 109-110).
134 Manuel João Pires
RÉSUMÉ
4 8
Cf. FRIEDRICH NIETZSCHE, Über Wahrheit und Liige im aussermoralischen Sinne
(Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramorai, Trad. de Helga Hook
Quadrado, Lisboa, Relógio D'Água, 1997, p. 221).
4 9
" [ . . . ] só depois de o espírito da ciência ler sido levado aos seus limites e a sua exigên-
cia de validade universal ter sido destruída pela comprovação desses limites é que
poderíamos ter esperança num renascimento da tragédia." Cf. FRIEDRICH NIETZSCHE,
O Nascimento da Tragédia, op. cit., p. 121