Você está na página 1de 10

Carceres

ARTIGO PCP & Covre P


ORIGINAL

Impacto
do diagnóstico precoce e
tardio da dislexia - compreendendo
esse transtorno
Patricia Cristina Pinto Carceres; Priscila Covre

RESUMO – A dislexia é um transtorno de aprendizagem que se


manifesta na infância e persiste ao longo da vida. Em geral, o diagnóstico
é feito nas séries iniciais do Ensino Fundamental, entretanto, muitos
indivíduos com sintomas de dislexia não chegam a receber um diagnóstico
ou são diagnosticados somente na vida adulta. O objetivo do presente
estudo foi comparar o impacto da dislexia em indivíduos que receberam o
diagnóstico em diferentes momentos da vida, na infância ou na vida adulta.
Seis participantes, divididos em dois grupos, em função do momento do
diagnóstico, responderam a uma entrevista estruturada a respeito da maneira
como foram afetados pela dislexia e por seu diagnóstico. Os participantes dos
dois grupos mencionaram dificuldades de leitura, baixa autoestima e uma
sensação de alívio após receberem o diagnóstico, por compreenderem melhor
suas dificuldades. Os participantes diagnosticados na vida adulta sofreram
maior impacto da dislexia em suas vidas acadêmicas, com repetências e
interrupção dos estudos. Já os participantes diagnosticados na infância,
após receberem o diagnóstico, mencionaram que mudaram sua relação
com a escola, que forneceu os suportes necessários durante a realização das
provas. Os resultados desse estudo permitiram uma reflexão a respeito da
importância do diagnóstico precoce da dislexia, que direciona as intervenções
e a implementação de estratégias, apoios e recursos apropriados.

UNITERMOS: Dislexia. Transtornos de Aprendizagem. Diagnóstico


Precoce.

Patricia Cristina Pinto Carceres - Pedagoga, Especialista Correspondência


em Psicopedagogia pela Universidade Presbiteriana Priscila Covre
Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil. Rua Maranhão, 554 cj 53 – Higienópolis – São Paulo,
Priscila Covre - Psicóloga, Doutora em Ciências pela SP, Brasil – CEP 01240-904
UNIFESP. Professora Convidada do curso de Es­pe­ E-mail: priscilacovre@gmail.com
cialização em Psicopedagogia da Universidade Pres­
biteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

296
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Impacto do diagnóstico de dislexia

INTRODUÇÃO também pode levar ao isolamento, à discrimina­ção


O transtorno específico da aprendizagem e à estigmatização de um indivíduo, se o foco se
é um transtorno do neurodesenvolvimento, no mantiver apenas nas dificuldades apresentadas7.
qual um indivíduo sem deficiência intelectual Riddick8 entrevistou crianças a respeito de
apresenta dificuldades persistentes e prejudiciais suas experiências ao receberem o diagnóstico
nas habilidades acadêmicas fundamentais de de dislexia, as quais destacaram como aspectos
leitura, escrita e/ou matemática1. Dentre eles, positivos a compreensão das próprias dificulda­
o mais frequente é o transtorno específico da des e o senso de pertencimento, pois o fato de
aprendizagem de leitura, também chamado de existir um diagnóstico significava para elas que
dislexia do desenvolvimento. De acordo com outras crianças também passavam pelas mesmas
a Associação Internacional de Dislexia, ela se dificuldades. Contudo, elas comentaram não
caracteriza por dificuldades na decodificação apreciar que o termo fosse muitas vezes utilizado
e fluência da leitura, que, como consequência, pelos colegas e pelos professores, de maneira a
pode levar a dificuldades de compreensão da isolá-las no contexto escolar, como se suas ha­
leitura e uma experiência reduzida de leitura2. bilidades ficassem reduzidas às características
Os sintomas da dislexia se manifestam durante do transtorno.
os primeiros anos da escolarização formal e per­ No Brasil, a disseminação dos conhecimentos
sistem ao longo da vida3. O curso e a expressão a respeito da dislexia nas escolas e para o público
clínica podem variar, a depender das interações em geral é razoavelmente recente. A Associa­
entre as exigências ambientais, da variedade
ção Brasileira de Dislexia9, conforme divulgado
e da gravidade das dificuldades individuais de
em seu site, foi fundada em 1980 e iniciou os
aprendizagem, das comorbidades, dos sistemas
pri­meiros diagnósticos a partir de 1983, mas as
de apoio e das intervenções disponíveis1.
pesquisas nacionais na área só ganharam força
O impacto da dislexia na vida varia de indi­
a partir dos anos 2000. Uma busca na literatura
víduo para indivíduo, mas pode ser significativo
nacional, nas bases de artigos científicos Pepsic e
nas áreas acadêmicas e profissionais, levando à
Scielo, revelou que os primeiros artigos sobre dis­
evasão escolar ou à interrupção dos estudos após
lexia no país foram publicados por volta de 2001.
o 2o grau, sendo que muitas pessoas com dislexia
No contexto nacional, o diagnóstico preco­
não chegam a completar a faculdade3. A dislexia
pode afetar também as experiências emocionais ce da dislexia, nos primeiros anos do Ensino
e sociais ao longo da vida, sendo frequentes os Fundamental, tem se tornado cada vez mais
relatos de baixa autoestima entre as pessoas com comum, bem como o diagnóstico de adultos que
esse diagnóstico4,5. não ti­veram suas dificuldades identificadas ou
Como os sintomas se tornam evidentes du­ compreendidas na infância. O impacto de rece­
rante a alfabetização, o processo do diagnóstico ber o diagnóstico na vida adulta tem sido menos
da dislexia costuma ocorrer nas séries iniciais do estudado na literatura, mas há evidências de que
Ensino Fundamental. Ao receber o diagnóstico promova alívio, por permitir uma compreensão
de um transtorno específico de aprendizagem, das próprias dificuldades e a busca por trata­
o indivíduo recebe um nome explicativo para o mentos e estratégias apropriadas10.
conjunto de sintomas que apresenta e esse pro­ O objetivo do presente estudo foi comparar
cesso pode ter um impacto positivo ou negativo o impacto da dislexia na vida de indivíduos
em sua vida. diagnosticados em diferentes momentos da vida,
O diagnóstico permite uma melhor compreen­ quando crianças e como adultos. Por meio de uma
são das dificuldades apresentadas, a implemen­ entrevista estruturada, foram investigados aspec­
tação das alterações ambientais necessárias e a tos relacionados à maneira como eles se senti­
busca por um tratamento apropriado6. Por outro ram afetados pelas dificuldades relacionadas à
lado, alguns autores apontam que o diagnóstico dislexia e pelo diagnóstico em si.

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

297
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Carceres PCP & Covre P

MÉTODO Análise dos resultados


Participantes Os participantes foram divididos em dois
Participaram desse estudo 8 adultos, 4 mulhe­ grupos, um com pessoas diagnosticadas na in­
res e 4 homens, com idades entre 23 e 48 anos, fância, e outro, com pessoas diagnosticadas na
diagnosticados com dislexia. Metade recebeu vida adulta. A análise dos dados visou comparar
o diagnóstico de dislexia na infância, até os 10 as respostas obtidas pelos indivíduos de cada
anos de idade, e a outra metade somente na vida grupo. As entrevistas foram transcritas e, em
adulta, após os 20 anos. muitas das respostas fornecidas, os participantes
extrapolaram o que foi questionado nas pergun­
Entrevista Estruturada tas da entrevista, apresentando outros conteúdos
pertinentes ao tema desse trabalho. Por exemplo,
Foi formulado um roteiro de entrevista, con­
apesar de não terem sido questionados a respeito
tendo 5 perguntas a respeito do impacto da disle­
do impacto da dislexia nos aspectos emocionais
xia e de seu diagnóstico na vida dos participantes.
na infância, todos os participantes mencionaram
As perguntas estão apresentadas no Quadro 1.
algo a respeito desse tema.
Assim sendo, na apresentação dos resultados,
Procedimentos
ao invés de agrupar as respostas dos participan­
Esse estudo fez parte do trabalho de conclusão tes em função das perguntas feitas na entrevista,
do curso realizado pela primeira autora como optou-se por agrupá-las em função dos tópicos
requisito parcial para obtenção do título de Es­ abordados pelos participantes em suas respostas.
pecialista em Psicopedagogia da Universidade Os tópicos estão descritos na seção dos Resulta­
Presbiteriana Mackenzie. O projeto foi aprovado dos juntamente com um resumo dos comentários
pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UPM dos participantes a respeito deles.
no 1393/09/2011 e CAAE no 0089.0.272.000-11).
Os participantes foram recrutados a partir da RESULTADOS
divulgação da pesquisa em mídias sociais e di­ Descrição dos participantes
retamente para profissionais ou associações que
Duas participantes apresentaram, além da dis­
trabalhavam com indivíduos com transtornos de lexia, outras comorbidades. Uma, diagnosticada
aprendizagem. na vida adulta, apresentava transtorno do déficit
As entrevistas foram realizadas pessoalmente de atenção e a outra, diagnosticada na infância,
e foram gravadas com a autorização do partici­ apresentava transtorno específico de aprendi­
pante, após assinar um Termo de Consentimento zagem para matemática (discalculia). Em seus
Livre e Esclarecido para participar da pesquisa. relatos, não era possível dissociar as dificuldades
e o impacto na vida vivenciado por conta dislexia
ou por conta das comorbidades. Para evitar que
representassem um fator de confusão para a aná­
Quadro 1 - Roteiro de Entrevista Estruturada. lise dos resultados, optou-se por excluir as duas
Como eram as suas dificuldades de aprendizagem na participantes das análises posteriores.
infância? Assim sendo, a amostra final do estudo foi com­
O que o levou a buscar o diagnóstico? posta de 6 indivíduos. Suas principais carac­
Como foi para você receber esse diagnóstico? terísticas sociodemográficas estão resumidas
O que mudou na sua vida (ou nas dificuldades que na Tabela 1. Os participantes que receberam
tinha) após receber o diagnóstico? diagnóstico na infância foram identificados com
Que dificuldades permaneceram na vida adulta/Quais a letra I (I1, I2, I3) e os diagnosticados na vida
os impactos da dislexia na sua vida hoje em dia? adulta, com a letra A (A1, A2 e A3).

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

298
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Impacto do diagnóstico de dislexia

Os dois grupos diferiram com relação à distri­ dos por eles. A maioria dos tópicos coincidiu com
buição do sexo e da faixa etária. A metodologia as perguntas feitas na entrevista, contudo, alguns
de recrutamento dos participantes, que dependeu foram extrapolações das perguntas realizadas. A
basicamente da indicação dos voluntários por Tabela 2 descreve brevemente cada tópico. Os
especialistas, não permitiu que essas varáveis comentários dos participantes a respeito deles
fossem controladas. Reconhecemos que esses fa­ estão apresentados de maneira resumida, segui­
tores têm potencial influência sobre a forma como dos de uma comparação entre os dois grupos de
os participantes analisam o impacto da dislexia participantes.
e de seu diagnóstico em sua vida. Contudo, por
se tratar de um estudo exploratório e qualitativo, Tópico 1. Dificuldades na infância: aspectos
optou-se por prosseguir com a análise dos resul­ cognitivos
tados e considerar esses aspectos na discussão Todos os participantes com diagnóstico na
dos dados. infância mencionaram problemas para aprender
a ler, com aquisição lenta (I1), tendência a trocar
Respostas à Entrevista ou inverter letras ou sílabas (I1 e I3), a pular
As respostas fornecidas pelos participantes linhas durante a leitura (I1), a não compreender
foram agrupadas em função dos tópicos aborda­ o que era lido (I1 e I3) e a ser menos fluente e

Tabela 1 - Características sociodemográficas dos participantes.


Participante Momento do diagnóstico Sexo Idade atual Escolaridade
I1 Infância Masculino 24 anos Superior completo
I2 Infância Masculino 23 anos Superior completo
I3 Infância Masculino 24 anos Superior completo
A1 vida adulta Feminino 38 anos Superior completo
A2 vida adulta Feminino 48 anos Superior completo
A3 vida adulta Masculino 47 anos Fund. II incompleto

Tabela 2 - Descrição dos tópicos abordados pelos participantes em suas respostas.


Título do tópico Descrição do tópico
1. Dificuldades na infância: Dificuldades específicas de aprendizagem
aspectos cognitivos relacionadas aos sintomas da dislexia
2. Dificuldades na infância: Impacto da dislexia no desempenho escolar,
aspectos socioemocionais relacionamento social e autoconceito
3. Apoio da família na infância* Relatos de acolhimento, apoio e/ou auxílio dos familiares
4. Processo do diagnóstico O que motivou a busca pelo diagnóstico,
que profissionais realizaram
5. Impacto do diagnóstico Como foram impactados pela revelação do diagnóstico de dislexia
6. Mudanças na vida após Acompanhamentos, estratégias, recursos e
o diagnóstico benefícios utilizados após o diagnóstico de dislexia
7. Impacto da dislexia na vida adulta Dificuldades remanescentes, estratégias utilizadas atualmente
(atualmente)
Nota: *Tópico 3: somente 4 participantes mencionaram esse tema em suas respostas, 3 pertenciam ao grupo diagnosticado na infância
e 1 ao grupo diagnosticado na vida adulta.

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

299
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Carceres PCP & Covre P

lento na leitura (I3). Um dos participantes rela­ Comparação entre os grupos: os participantes
tou que as dificuldades de leituras eram maiores dos dois grupos relataram influência da dislexia
quando precisava ler em voz alta em frente à sala sobre a autoestima. O grupo diagnosticado na
de aula (I2). Também foram relatados problemas vida adulta relatou um impacto maior em suas
na capacidade de concentração, principalmente vidas acadêmicas, sendo que todos repetiram de
perante tarefas difíceis (I3). Todos os participan­ ano e a maioria mais de uma vez.
tes diagnosticados na vida adulta mencionaram
dificuldades acadêmicas de uma maneira geral, Tópico 3. Apoio da família na infância
com problemas para compreender o que liam Todos os participantes diagnosticados na in­
(A2, A3). fância relataram receber apoio da família, em
Comparação entre os grupos: os participantes especial das mães. Um participante relatou que
com diagnóstico na infância descreveram suas a mãe criava exercícios para estimular a leitura
dificuldades de uma maneira mais específica, em casa e que nunca o tratou como um “coitado”,
destacando características típicas da dislexia, reconhecendo e enfatizando suas qualidades
enquanto o segundo grupo falou de suas dificul­ positivas (I1). Outro mencionou que a mãe tra­
dades de uma maneira mais generalizada. balhava fora, mas ajudava quando tinha tempo
(I3). Um outro participante comentou que rece­
Tópico 2. Dificuldades na infância: aspectos bia muito apoio da mãe e do pai, mas relembra
socioemocionais uma situação em que levou uma bronca severa
No grupo com diagnóstico na infância, foi do pai por ter escrito errado uma palavra. O
relatado impacto acentuado na autoestima e pai, segundo o filho, se arrepende até hoje (I2).
no senso de autoeficácia, ambos rebaixados Somente uma das participantes diagnosticadas
(I1, I2). Um dos participantes comentou que na vida adulta relatou ter recebido auxílio da
se sentia exposto perante os colegas de classe, família, especialmente de uma tia (A1). Os outros
quando demorava para realizar as atividades participantes não mencionaram esse tópico em
em sala de aula (I3). No grupo com diagnóstico suas respostas.
na vida adulta, foi relatado um sentimento de Comparação entre os grupos: esse tópico foi
inferioridade em relação aos colegas (A2, A3) e mencionado pelos participantes diagnosticados
a percepção de que os adultos os julgavam como na infância, indicando que se sentiram apoiados
preguiçosos ou burros (A1, A2). Uma das partici­ e auxiliados por seus familiares. A maioria dos
pantes relatou ter compensado suas dificuldades participantes do outro grupo não mencionou
mantendo bons relacionamentos interpessoais esse aspecto durante a entrevista.
com os colegas (A2), porém outro participante
declarou que sofria bullying dos colegas por Tópico 4. Processo do diagnóstico
conta de suas dificuldades (A3). A busca pelo diagnóstico de todos os parti­
Todos os participantes desse grupo repetiram cipantes do grupo diagnosticado na infância foi
de ano, dois deles mais de uma vez (A2, A3). Um feita pelos pais, motivados em compreender
deles interrompeu os estudos no Ensino Funda­ melhor as dificuldades dos filhos na escola. Um
mental II (A3) e outra optou por fazer supletivo deles foi a vários especialistas, dentre eles, neu­
no Ensino Médio, devido ao atraso em relação rologista, fonoaudiólogo, psicólogo, até receber o
aos pares (A2). Esta última fez faculdade muitos diagnóstico (I1). Os outros dois foram diagnosti­
anos depois de se formar (A2). Uma participante cados em uma instituição especializada (I2, I3).
relatou ter a sensação de que “não aproveitou Entre os participantes diagnosticados na vida
sua infância e adolescência” devido à necessi­ adulta, dois deles foram estimulados por um
dade de estudar mais do que as outras pessoas conhecido que forneceu informações sobre a dis­
para obter bons resultados (A1). lexia e a explicação sobre o tema fez sentido para

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

300
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Impacto do diagnóstico de dislexia

eles (A1, A3). A outra participante foi estimulada Comparação entre os grupos: os dois grupos
por uma amiga, cuja filha recebera recentemente destacaram os benefícios do diagnóstico por pos­
o diagnóstico de transtorno do déficit de atenção, sibilitar uma melhor compreensão das dificulda­
a buscar uma avaliação (A2). Dois deles fizeram des de aprendizagem. No relato dos participantes
o processo diagnóstico em uma instituição es­ diagnosticados na vida adulta, ficou implícito o
pecializada (A1, A3) e a outra participante o fez impacto negativo por não terem recebido esse
com profissionais especialistas (A2). diagnóstico anteriormente. O relato de um dos
Comparação entre os grupos: Nos dois gru­ participantes diagnosticados na infância eviden­
pos, a procura por diagnóstico foi motivada pelo ciou que a maneira como o diagnóstico é revelado
interesse em compreender as dificuldades de à criança ou como ela o compreende naquele
aprendizagem. No caso dos participantes diag­ momento também pode ter impacto negativo
nosticados na infância, a busca foi conduzida pe­ sobre a forma como ela lida com as dificuldades.
los pais, enquanto aqueles diagnosticados na vida
adulta fizeram a busca espontaneamente, após Tópico 6. Mudanças na vida após o
receberem informações a respeito da dislexia. diagnós­tico
No grupo diagnosticado na infância, os três
Tópico 5. Impacto do diagnóstico participantes relataram que a relação da escola
Dentre os participantes diagnosticados na in­ com eles mudou após saberem o diagnóstico.
fância, todos relataram um impacto positivo do Dois deles mencionaram o uso de recursos dife­
diagnóstico, por compreenderem o que estava por rentes durante as provas, tais como, aumento do
trás de suas dificuldades. O diagnóstico também tempo (I1), auxílio de um leitor para as perguntas
facilitou o acesso a informações para pesquisar (I1, I2) e realização da prova em sala diferente da
dos colegas (I2). Um deles utilizou os recursos
e aprender mais a respeito (I1), um deles ressal­
cabíveis também no vestibular (I2), mas nenhum
tou “vi que não era burro, meu cérebro apenas
dos participantes solicitou recursos ou apoio na
processava informações de maneira diferente”
universidade, argumentando que queriam testar
(I2). Entretanto, esse mesmo participante relatou
suas habilidades (I2, I3) e criar suas próprias
que, inicialmente, receber o diagnóstico foi um
estratégias para lidar com as dificuldades, como
processo difícil, pois a dislexia foi descrita para
um preparo para o mercado de trabalho (I1).
ele como se fosse “uma doença terminal” e ele
Além disso, após o diagnóstico, dois participan­
foi orientado a esconder o diagnóstico de seus
tes relataram mudança na rotina de estudos. Um
colegas na escola, o que fez com que se sentisse passou a fazer aulas de reforço escolar (I1) e outro
ainda mais confuso e solitário (I2). fez acompanhamento psicopedagógico, com o
Todos os participantes diagnosticados na vida qual desenvolveu estratégias de estudos (I2).
adulta relataram alívio ao saberem do diagnósti­ No grupo diagnosticado na vida adulta, uma
co. Um deles ressaltou a possibilidade de com­ das participantes estava na faculdade quando
preender melhor suas dificuldades para refletir recebeu o diagnóstico e passou a se beneficiar dos
sobre melhores estratégias para o dia-a-dia (A3), apoios e recursos oferecidos, como prova oral e
enfatizando que “é muito ruim ter um problema tempo adicional para a realização das provas (A1).
e ninguém saber o que é”. Uma das participan­ Duas participantes fizeram acompanhamento es­
tes, entretanto, relatou também um sentimento pecializado (A1, A2), aprendendo estratégias de
de tristeza e revolta por não ter recebido esse organização para lidar com as dificuldades. Outro
diagnóstico antes, “após tantos anos vivendo participante não mencionou acompanhamento,
com essas dificuldades e sendo considerada uma mas relatou que passou a utilizar estratégias
criança que não gostava de estudar; fico com pena de associação das informações para fixar me­
de mim mesma” (A2). lhor os conteúdos que necessitava aprender no

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

301
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Carceres PCP & Covre P

dia-a-dia, além de dar preferência a audiolivros que, por conta das suas dificuldades, leu poucos
na hora da leitura (A3). livros ao longo da vida e hoje em dia sente-se em
Comparação entre os grupos: todos os parti­ “defasagem cultural” em relação aos pares (A2).
cipantes descreveram a implementação de novas Comparação entre os dois grupos: ambos
estratégias para manejar as dificuldades, sendo relataram presença de erros na escrita, os partici­
que alguns fizeram acompanhamento com um pantes diagnosticados na infância destacaram o
profissional especialista. O grupo diagnosticado uso de estratégias para minimizá-los e dois deles
na infância utilizou recursos e apoios fornecidos enfatizaram uma boa relação com as dificuldades
pela escola nas avaliações e abriu mão desses e o diagnóstico. Os participantes diagnosticados
recursos durante a faculdade. O grupo diagnos­ na vida adulta mencionaram também as dificul­
ticado na vida adulta não teve essa oportunida­ dades de leitura e a tendência a ler com menos
de durante a infância, mas a participante que frequência.
re­cebeu o diagnóstico enquanto ainda estava
na faculdade beneficiou-se dos recursos para fi­ DISCUSSÃO
nalizar seus estudos. O presente estudo investigou a maneira como
a dislexia afeta a vida das pessoas, com o intuito
Tópico 7. Impacto da dislexia atualmente de refletir sobre o impacto de receber um diagnós­
(na vida adulta) tico na infância ou na vida adulta. Foram realiza­
Todos os participantes diagnosticados na in­ das entrevistas estruturadas com dois grupos de
fância mencionaram a tendência a cometer erros indivíduos que diferiram em termos do momento
na escrita hoje em dia, os quais têm impacto em que foram diagnosticados com dislexia.
no trabalho (I1, I3) e para se relacionar com as Em muitos aspectos, o impacto da dislexia foi
pessoas pela internet, o que na maior parte do similar para os dois grupos. Todos os participan­
tempo é feito por escrito (I2). Entretanto, eles tes relataram acentuada dificuldade para ler na
relataram utilizar estratégias para minimizar os infância e autoestima rebaixada por conta disso.
problemas, tais como, organização e planeja­ Descreveram sentir alívio ao receber o diagnós­
mento (I1), uso de corretor automático de textos tico, argumentando que foi o que permitiu que
(I2) e reler e refazer as atividades em busca de compreendessem melhor as próprias dificuldades.
possíveis erros (I3). Além disso, um dos partici­ Após o diagnóstico, a maioria fez algum
pantes desse grupo fez uma reflexão a respeito tipo de acompanhamento ou intervenção com
do impacto positivo da dislexia em sua vida. Ele pro­fissio­nal especializado e todos reportaram a
acredita que, por seu esforço em superar e driblar implementação de novas estratégias para lidar
as dificuldades, tornou-se uma pessoa curiosa, com os problemas decorrentes da dislexia. Além
autodidata, criativa e comunicativa, o que lhe ren­ disso, eles relataram que algumas dificuldades se
deu bons frutos tanto na área acadêmica quanto mantiveram na vida adulta, como a presença de
no trabalho (I2). Outro participante ressaltou que erros na escrita ou dificuldades para manter em
lida com as dificuldades com leveza, faz piadas mente o que foi lido, mesmo após o tratamento.
e “não fica se martirizando” (I1). Esses resultados estão de acordo com o espe­
Dentre os participantes diagnosticados na rado, já que a dislexia é um transtorno de apren­
vida adulta, duas participantes mencionaram a dizagem relacionado à leitura, que por definição
presença de erros na escrita (A1, A2) e a tendên­ é persistente e acompanha o indivíduo ao longo
cia a fazer anotações incompletas no trabalho da vida1. Outros estudos demonstraram que é
(A2). Dois participantes mencionaram também comum que indivíduos com dislexia possuam
as dificuldades para ler (A2, A3), necessitando baixa autoestima4,5. Com relação ao diagnóstico,
retomar várias vezes um mesmo parágrafo para destacaram-se os aspectos positivos relacionados
compreendê-lo. Uma das participantes lamentou à possibilidade de ampliar o autoconhecimento,

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

302
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Impacto do diagnóstico de dislexia

fazer tratamentos ou implementar estratégias dislexia na vida acadêmica dos participantes


mais eficazes para minimizar as dificuldades6,8,10. diagnosticados ainda na infância.
Também foram encontradas diferenças nas Contudo, outros fatores também podem ter
respostas dos participantes dos dois grupos. influenciado esses resultados, como o apoio fami­
Aqueles que receberam o diagnóstico na infân­ liar e possíveis diferenças entre os grupos quanto
cia foram mais específicos ao descrever suas à gravidade da dislexia, ao nível de habi­lidade
dificuldades de aprendizagem durante o período nas diversas funções cognitivas e aos recursos
escolar, abordando as características mais típicas psi­cológicos individuais para enfrentar as adver­
da dislexia, enquanto os participantes do outro sidades. A diferença de idade entre os grupos
grupo fizeram descrições mais generalizadas. também é uma variável importante, pois implica
Uma interpretação possível para essa diferen­ em que eles tenham frequentado o ambiente es­
ça é a hipótese de que o diagnóstico precoce te­ colar em períodos distintos, nos quais o nível de
nha permitido uma compreensão das dificuldades conhecimento dos professores e o treinamento
desde os momentos iniciais, o que levou a uma re­ para lidar com crianças com transtornos de apren­
cordação mais organizada e um relato mais apu­ dizagem podem ter variado.
rado no momento da entrevista. Entretanto, um A busca pelo diagnóstico foi feita pelos pais e
outro fator que também pode estar relacionado pelos próprios participantes, respectivamente,
com essa diferença entre os grupos é a diferença no grupo diagnosticado na infância e na vida
de idade entre eles. Os participantes diagnosti­ adulta. Foi o acesso a informações a respeito da
cados na vida adulta eram aproximadamente 15 dislexia que motivou essa busca nos dois grupos,
a 20 anos mais velhos que os diagnosticados na o que aponta para a relevância da divulgação de
infância, o que os tornava mais distantes no tempo informações sobre os transtornos de aprendiza­
de suas experiências na infância. gem nos mais diversos meios.
O impacto da dislexia na área acadêmica foi O impacto de receber o diagnóstico foi ava­
mais intenso no grupo diagnosticado na vida liado como positivo pelos participantes dos dois
adulta. Todos os participantes repetiram pelo me­ grupos, mas um deles, diagnosticado na infân­
nos um ano escolar, um interrompeu os estudos cia, comentou sobre a dificuldade no momento
no Ensino Fundamental II, outro fez supletivo inicial devido à forma como o a dislexia lhe foi
no Ensino Médio e outro relatou “ter perdido descrita (segundo ele, “como uma doença termi­
a infância e adolescência” pela necessidade de nal”). Essa fala ressalta a importância de fazer
estudar mais que os colegas. uma reflexão sobre a maneira como o diagnóstico
Por outro lado, nenhum participante diagnos­ é revelado ao indivíduo, principalmente quando
ticado na infância relatou ter repetido de ano e ocorre na infância. Mais do que estabelecer um
todos comentaram que a relação com a escola mu­ rótulo à criança, é importante verificar se ela
dou após o diagnóstico, passando a disponibilizar compreendeu o que foi dito, pois muitas vezes
apoios e recursos na realização das provas. Além as terminologias utilizadas pelos profissionais de
disso, os participantes que receberam diagnóstico saúde e educação podem ser confusas e de difícil
precocemente relataram contar com apoio fami­ compreensão para um indivíduo que já está se
liar na infância, o que foi mencionado por apenas sentindo vulnerável por suas dificuldades.
uma participante diagnosticada na vida adulta. Todos os participantes diagnosticados na vida
Uma possível interpretação para esses acha­ adulta relataram se sentirem prejudicados por não
dos está no momento do diagnóstico. Infere-se terem recebido o diagnóstico anteriormente. No
que o diagnóstico precoce tenha permitido uma período escolar, não se sentiam compreendidos
melhor compreensão das dificuldades e a busca pelos adultos, sendo julgados como “burros ou
de intervenções, estratégias, recursos e apoios preguiçosos”. Uma das participantes foi enfática
apro­priados, os quais minimizaram o impacto da em mencionar sentimentos de raiva e tristeza

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

303
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Carceres PCP & Covre P

por tudo o que passou devido ao fato de não Além disso, também não foram controlados
saber o que se passava com ela. Os participan­ nesse estudo outros fatores que podem ter influen­
tes diagnosticados na infância, por outro lado, ciado as respostas dos participantes, tais como, o
pareceram descrever com maior leveza sua re­ grau de gravidade da dislexia, o nível intelectual
lação com a dislexia. Um deles atribuiu muitas dos participantes, a maneira como foram feitos
características positivas de sua personalidade os diagnósticos e a presença de comorbidades.
ao fato de ter um transtorno de aprendizagem. Inclusive, a identificação de comorbidades com o
Esses dados estão de acordo com Riddick6, a transtorno do déficit de atenção e a discalculia
qual defende que, ainda que sejam necessários
em dois participantes levou à necessidade de
cuidados com o rótulo fornecido pelo diagnósti­
exclusão dos mesmos.
co, crianças com sintomas de dislexia, que não
recebem um diagnóstico, costumam receber
rótulos “informais”, como preguiçosas, burras ou CONCLUSÃO
desinteressadas, os quais são devastadores para Em suma, o presente estudo demonstrou que
a formação do autoconceito e para o impacto da a dislexia leva a dificuldades acadêmicas, mas
dislexia em suas vidas. também impacta aspectos relacionados ao auto­
Os dados apresentados nesse artigo são fru­ conceito. Tanto na infância quanto na vida adul­
tos de um estudo descritivo e exploratório, que ta, receber o diagnóstico de dislexia mostrou-se
per­mitiu o levantamento de algumas hipóteses útil por possibilitar uma melhor compreensão
a respeito do impacto do diagnóstico de dislexia das dificuldades, a realização de intervenções
em função do momento em que ele ocorre na apropriadas e a implementação de estratégias
vida de um indivíduo. Esse estudo apresentou para minimizar os problemas no dia-a-dia.
algumas limitações, as quais serão descritas a Quando o diagnóstico foi realizado na infân­
seguir, para que possam ser controladas ou con­ cia, houve a possibilidade de melhorar o relacio­
sideradas em estudos futuros.
namento do indivíduo com sua escola e de fazer
Os dois grupos diferiram em termos de faixa
uso de recursos e apoios que permitiram uma
etária. A dificuldade em parear os grupos por
avaliação mais apropriada do desempenho acadê­
idade se deveu à maneira como foi feito o recru­
mico. Quando o diagnóstico foi tardio, realizado
tamento dos participantes, que foram indicados
por profissionais e instituições especializadas no somente na vida adulta, o impacto da dislexia foi
diagnóstico de dislexia. Além disso, a diferença de maior sobre os fatores socioemocionais, levando
idade reflete os momentos em que os diagnósticos a repetências e evasão escolar em um dos casos.
de dislexia passaram a ser mais comuns no Brasil, De maneira geral, os dados aqui levantados in­
sendo que indivíduos cuja infância ocorreu até dicaram que o diagnóstico precoce da dislexia
o início dos anos 1980 tiveram menor tendência é relevante para minimizar seu impacto na vida
a receber seus diagnósticos, enquanto nos anos acadêmica, na autoestima e na relação do indi­
1990 esse diagnóstico já era mais comum. víduo com suas próprias dificuldades.

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

304
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52
Impacto do diagnóstico de dislexia

SUMMARY
Impact of early and late diagnosis of dyslexia -
understanding this learning disorder

Dyslexia is a learning disability that manifests itself in childhood and


persists throughout the lifespan. In general, the diagnosis is made in the
early academic years, however, many individuals with dyslexia symptoms
do not receive a diagnosis or are diagnosed only in adult life. The aim of the
present study was to compare the impact of dyslexia on the life of individuals
who were diagnosed at different moments in their lifespan, in childhood
or in adult life. Six participants, divided into two groups according to the
time of diagnosis, answered a structured interview regarding the way they
were affected by dyslexia and its diagnosis. Participants in both groups
mentioned reading difficulties, low self-esteem, and a sense of relief after
being diagnosed due to the fact that they could understand better their
difficulties. Participants diagnosed in adulthood have had the greatest
impact of dyslexia in their academic lives, with repetitions and interruption
of studies. While the participants diagnosed in childhood mentioned that
the relationship with the school changed after receiving the diagnosis,
which provided the necessary supports during academic tests. The results
of this study allowed a reflection on the importance of early diagnosis for
dyslexia, which directs interventions and the implementation of appropriate
strategies, supports and resources.

KEYWORDS: Dyslexia. Learning Disorders. Early Diagnosis.

REFERÊNCIAS exploratory study of the role of self-esteem and


1. American Psychiatric Association. Manual understanding. Dyslexia. 2009;15(4):304-27.
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos 6. Riddick B. An examination of the relationship
Mentais - DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: between labelling and stigmatisation with
Artmed; 2014. special reference to dyslexia. Disability Soc.
2. International Dyslexia Association. Definition 2000;15(4):653-67.
consensus Project, 2012. [acesso 2018 Ago 7. Gallagher JJ. The sacred and profane uses of
14]. Disponível em: https://dyslexiaida.org/ labels. Except Child. 1976;45:3-7.
definition-consensus-project/ 8. Riddick B. Dyslexia and development: An
3. Moojen SMP, Bassôa A, Gonçalves HA. interview study. Dyslexia. 1995;1(2)63-74.
Características da dislexia de desenvolvimento 9. Associação Brasileira de Dislexia, s/d. [acesso
e sua manifestação na idade adulta. Rev Psi­ 2018 Ago 14]. Disponível em: http://www.
copedag. 2016;33(100):50-9. dislexia.org.br/quem-somos
4. McNulty MA. Dyslexia and the life course. J 10. Kong SY. The emotional impact of being
Learn Disabil. 2003;36(4):363-81. recently diagnosed with dyslexia from the
5. Terras MM, Thompson LC, Minnis H. perspective of chiropractic students. J Further
Dyslexia and psycho-social functioning: an Higher Educ. 2012;36(1):127-46.

Trabalho realizado na Universidade Presbiteriana Ma­ Artigo recebido: 22/8/2018


ckenzie, São Paulo, SP, Brasil. Aprovado: 9/9/2018
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

Rev. Psicopedagogia 2018; 35(108): 296-305

305
Licensed to Tatiana José Alves - taticadebeleza@hotmail.com - 054.983.667-52

Você também pode gostar