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M. Fátima Bonifácio

APOLOGIA DA HISTÓRIA
POLÍTICA |
Estudos sobre o século XIX português

Quetzal Editores
Lisboa/1999
Capa de Rogério Petinga

OM. Fátima Bonifácio e Livros Quetzal, S. A.

Todos os direitos para a publicação em Portugal reservados por:

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Revisão de Maria Isabel Nogueira da Costa

Impresso na Tipografia Guerra, Viseu, em Maio de 1999

Depósito legal n.º 137674/99

ISBN 972-564-383-6
Preâmbulo

Décadas de marxismo e de Annales, na sua profusa varie-


dade, arreigaram o dogma de que são estruturas, vagas de fundo,
movimentos ocultos, correntes subterrâneas, forças misteriosas
que determinam os homens, empurram a história e explicam
o curso da'sua evolução. De uma penada, varreu-se o sujeito
como autor de acções demonstráveis e proclamou-se a futilidade
de procurar nos acontecimentos humanos, que são o resultado
dessas acções, qualquer princípio de inteligibilidade histórica.
Estas como aqueles não passam de uma encenação aliciante que
encobre, sob a evidência enganadora com que se oferecem, a face
invisível, e verdadeira, da realidade, oculta nas profundezas estru-
turais.
De acordo com esta visão das coisas, a narrativa política
constitui um exercício frívolo predestinado à esterilidade uma
vez que, enredada na «intriga» vivida pelos actores, nunca per-
fura a onda abaixo da crista de espuma que a adorna, sendo
por isso incapaz de penetrar nas verdadeiras causas da história
depositadas na fundura dos mares. Confrontada com estas críti-
cas, em vão tenho pedido que me esclareçam sobre os fluxos,
os meios ou os circuitos através dos quais a coacção das estrutu-
ras se transmite misteriosa e invisivelmente aos indivíduos. Por-
que, se o que realmente se quer dizer é que estes não existem
no vazio e que, pelo contrário e como não pode deixar de ser,
actuam no meio social e são limitados pelos condicionalismos
que os rodeiam; ou ainda que os homens nem sempre conhecem
e avaliam correctamente esses condicionalismos, então são estas
meramente afirmações que, de tão óbvias e banais, não passam
de um truísmo. Posto isto, que portanto ninguém disputa,
Apologia da História Política

subsiste o facto de que as acções humanas apenas podem ser


consideradas necessárias e determinadas — ou não — em relação
ao arbítrio de quem as pratica. Quanto à medida de liberdade
que assiste a esse arbítrio, essa depende — a menos que se queira
colocar a questão em termos filosóficos ou teológicos — das
circunstâncias históricas concretas em que ele se exerce.
Mas, é claro, não é isto o que a História-Ciência-Social
quer dizer. A Ciência descobre os antecedentes constantes de
fenómenos que se repetem e que são, neste preciso sentido,
determinados. Sob pena de se negar como Ciência, a história
que se pretende científica não pode então deixar de acolher a
noção de que um certo determinismo preside ao destino huma-
no. Este determinismo não é da ordem ou natureza dos condi-
cionalismos que atrás apontei. O que em linguagem científica
o distingue conceptualmente, é a ideia, nele implicada, de que
os homens são vítimas de uma falsa consciência socialmente pro-
duzida, ou seja, objectivamente determinada. Essa falsa cons-
ciência inibe-os de formarem uma percepção correcta da sua
verdadeira condição, que precisamente só à Ciência Social é
dado desvendar. O conhecimento de senso comum, ao qual
escapa a «verdadeira realidade» captada pela Ciência, não passa
então de ideologia. E, se se eliminar a acepção de saber ilusório
que lhe está associada, o conceito perderá toda a pertinência
específica, pois não se vê o que dele então sobra que não caiba,
meramente, ou no sentido vulgar de ideologia como juízo pre-
conceituoso ou falácia racionalmente desmontável, ou, num
sentido diverso mas não menos vulgar, de um ideal normativo
orientado em função de valores e que toda a gente sabe que
não é mais do que isso mesmo: um ideal de que nos queremos
aproximar, mas que nunca se há-de realizar. O que pretendo
dizer é que, ainda que invocado em «última instância», o deter-
minismo constitui o pressuposto mesmo da Ciência Social (e
portanto da História-Ciência-Social), uma vez que nele se
funda a possibilidade de tratar os fenómenos sociais como fenó-
menos físicos ou naturais: regulares e previsíveis. É por isso
que o determinismo se encontra logicamente vinculado à noção
de falsa consciência, tal como esta contamina a de ideologia.
Preâmbulo

Têm sido feitos esforços imaginosos para introduzir a liberda-


de humana neste colete de forças conceptual. Mas nem o mais
sofisticado estruturalismo, ou pós-estruturalismo, ou estrutu-
racionismo, ou relacionalismo puderam até agora resolver a
quadratura do círculo. As relações entre acção e estrutura per-
manecem, hoje como há cem anos, o insolúvel quebra-cabeças
da Ciência Social. Da Ciência Social, entenda-se, que se preten-
de uma «ciência generalizadora» segundo o modelo nomológico
das ciências naturais. Mas o problema está em que, fora deste
paradigma, ninguém ainda soube definir ao certo o que seja
científico ou deixe de o ser. Não custa admitir que, tendo o pós-
-modernismo devastado a noção de que existem factos empiri-
camente independentes das representações humanas, aquela
definição mesma se tenha tornado muito problemática de for-
mular. Só que, neste caso, as pretensões da história a um título
de cientificidade se tornam ainda mais difíceis de defender.
À história «escondida», «invisível» e «profunda» que re-
clamam historiadores inconformados com a alegada superf-
cialidade da narrativa, não é mais do que a «intriga» que liga
causalmente os episódios da história que se conta. E esta ape-
nas é escondida na medida em que se não oferece já armada
nos documentos que manuseamos ou estampada nas crónicas
que herdámos: ela resulta de um trabalho de revisão crítica da
memória, que é a tarefa especializada dos historiadores profis-
sionais e constitui o seu contributo específico para a formação
da identidade colectiva. Tal como a memória individual, tam-
bém a memória colectiva possui uma estrutura narrativa: somos
o que fizemos e nos aconteceu. Sendo assim, convirá então que
se actualize a tradição dentro do molde narrativo no qual a
recebemos, sob pena de, esquecendo o que fomos, perdermos
a ideia de quem somos. Ou será que alguém concebe que seja
possível identificarmo-nos com uma série de preços, um trend
secular, um padrão demográfico? Quem se reconhece no modo
de produção, na evolução da estrutura de classes, na progressão
do PIB?
Mas não terá importância estudar nada disto? Seria preci-
so ser muito ignorante para afirmar tal coisa. Disso se ocupam,
Apologia da História Política

como lhes compete, as Ciências Sociais, e a História-Ciência-


-Social que aplica ao passado as teorias e os métodos das Ciên-
cias Sociais. Mas a política, entendida como pensamento e acção
dos homens visando o domínio público, não é cientificamente
tratável. Apenas daqui não se segue, no entanto, que seja im-
penetrável a um escrutínio objectivo e racional. Exige o estudo
de particulares cujas causas são outros particulares, e implica
a premissa de que é possível reconstituir acontecimentos pas-
sados como o produto inteligível de uma combinação de actos
deliberados, da força das circunstâncias e de meros acasos da
boa ou má fortuna. Perante a mera sequência cronológica dos
eventos, que as crónicas registam, cabe ao historiador reordená-
-los, retrospectivamente, num encadeamento causal. Evidente-
mente que ele não aborda um mar de indícios, de fragmentos
e de factos desgarrados desprovido de alguns «pré-conceitos»,
que na Ciência a sério se elevam ao estatuto de teorias. Mas
as «teorias» do historiador são quase sempre generalizações de
senso comum, semelhantes âquelas com que interpretamos a
nossa própria experiência de vida no mundo em que vivemos.
E tal como esta pode ser explicada, isto é, narrada, em mais
ou menos palavras, também a história do passado se pode mais
ou menos resumir. Quanto mais sintético for o resumo, mais
se perde a particularidade concreta de cada situação histórica
singular, do mesmo modo que um mapa geográfico perde em
pormenor à medida que a escala encolhe.
Dada a reserva desconfiada com que nos meios académicos
geralmente se vê a narrativa política, leviana e erradamente
depreciada como um simples registo de insignificâncias eve-
nemenciais que seriam relatadas ao sabor do que calha vir nos
documentos, entendi que era necessário explicar-me. Este livro
abre pois com um ensaio cujas intenções ficam expressas no
título que lhe dei: «Apologia da história política». Não se trata
de uma «tese», nem de uma «minitese», nem de um balanço
geral ou particular da historiografia contemporânea, nem de
um exame crítico sistemático das suas variadas correntes e es-
colas. Qualquer destes projectos excede o necessário para os
meus limitados propósitos e levaria muitos anos a realizar.

10
Preâmbulo

Cingem-se estes, rigorosamente, a uma simples reflexão pes-


soal sobre o tipo de história que faço, o estatuto disciplinar
que se lhe adequa e a legitimidade intelectual que lhe assiste.
O texto que dela resultou deve pois ser julgado pelo que eu
penso, e não pelo que eu cito. As necessidades do meu argu-
mento foram o único critério de uma bibliografia cujas óbvias
lacunas, não fosse este o caso, a tornariam indefensável. E no
centro desse argumento encontra-se a afirmação de que está
longíssimo de ser líquido que a Nova História ou História-Ciên-
cia-Social se tenha tornado científica, nada autorizando, por
conseguinte, que em nome dessa cientificidade, afinal tão con-
testável e contestada, se haja proscrito a história política nar-
rativa debaixo da falsa alegação de que ela nada explicaria.
A conclusão a tirar daquele estado de coisas é que, não se tendo
conseguido criar até hoje uma Ciência unificada de tudo quan-
to existe, a história entendida como um ramo das Humanidades
conserva toda a sua razão de ser e permanece insubstituível:
querer atribuir à Ciência o monopólio do conhecimento impli-
caria a renúncia a compreender o passado como um mundo
humano caracterizado pela sua irredutível diversidade e in-
trínseca contingência).

É a um nível de grande generalidade que proponho a inter-


pretação do século XIX, em perspectiva política, como um
processo turbulento de transição entre duas legitimidades: a

1 Gerou-se no Ocidente a «convicção de uma oposição irreconciliável entre


ciência (concebida como uma espécie de visão objectiva da realidade) e ideolo-
gia (concebida como uma visão distorcida, fragmentária ou de algum modo defor-
mada, produzida para servir o interesse de um grupo social ou classe específicos.
[...] o conflito ciência-ideologia tomou, no decurso do século XIX, a feição de
uma luta maniqueísta apenas susceptível de terminar pela extirpação da ideolo-
gia e sua substituição por uma visão científica da realidade». Hayden White, The
Content ofthe Form (Narrative Discourse and Historical Representation), The John
Hopkins University Press, 1987, p. 190.

dt
Apologia da História Política

legitimidade monárquica, herdada do antigo regime, e a legi-


timidade democrática, consumada na república. De tão vaga e
banal, esta generalização nada diz sobre o caso particular do sé-
culo XIX português, cuja singularidade cabe precisamente à
história elucidar. Mas ela fornece um ponto de vista indispen-
sável para seleccionar e interpretar os factos que interessam à
história que se quer narrar, conferindo-lhes sentido de conjunto,
ou seja, unidade dramática. Outras perspectivas têm sido utiliza-
das: o desenvolvimento do modo de produção capitalista, a as-
censão da burguesia, o nascimento da classe operária, a formação
do mercado nacional, as origens do atraso económico português,
por exemplo. Mas de tudo quanto de todas elas se possa coligir
não é possível deduzir uma interpretação política da história desse
século, que por isso terá de ser abordada em si e por si mesma.
Num primeiro estudo — «O século xIX em perspectiva política»
— pretendo então dar uma interpretação global, quer dizer, um
fio condutor susceptível de conferir inteligibilidade a 90 anos
de constitucionalismo monárquico marcados por endémica de-
sordem política. Subjaz-lhe do princípio ao fim uma mesma in-
terrogação: qual era a fonte da discórdia; onde residia o fulcro
dos conflitos?
No primeiro dos subperíodos em que dividi o século xIXx,
-de 1807 a 1834, e que intitulei de «Reacção e revolução», o pro-
blema que se colocava não era ainda o de estabilizar, mas sim
o de implantar o liberalismo. Todavia, as duas fugazes experiên-
cias constitucionais que nele se fazem (1820-23 e 1826-28),
bem como as cisões políticas ocorridas durante a emigração libe-
ral, já deixam prever as desavenças que depois do fim da guer-
ra civil, em 1834, dariam lugar à frontal contestação do regime
e tornariam tão anárquica a luta dos partidos e tão precária a
vida dos governos. Negando existência política à massa do povo
pobre e analfabeto a que em grande parte devera o triunfo mili-
tar; e não podendo, por definição mesma, integrar o «migue-
lismo» rural, o regime do liberalismo monárquico censitário
assentava numa pequena oligarquia urbana que, desprovida da
força política e dos meios económicos para conciliar o radi-
calismo, existia sob a ameaça permanente da revolução, que o

12
Preâmbulo

vintismo autorizara. Desde o início, a monarquia constitucional


viveu atravessada pela tensão insolúvel entre os dois princípios
de legitimidade em que se firmava: a do rei e a do povo, a monar-
quia e a república. No segundo subperíodo, de 1834 a 1851,
intitulado «A guerra de todos contra todos», o desacordo sobre
a norma constitucional abriu caminho à luta política por meios
revolucionários, segundo o modelo de activismo político herdado
da Revolução Francesa combinado com o modelo do pronuncia-
mento militar de criação peninsular. Finalmente, no subperíodo
de 1851 a 1890, a que chamei «O separar das águas na Regene-
ração», iniciado sob o efeito traumático da derrota histórica
da Esquerda europeia em 1848-49, descobre-se o anticlerica-
lismo usado logo a partir de 1858 como arma política para
laicizar a vida pública, minar as instituições monárquicas e pre-
parar, se possível de forma consensual e pacífica, o advento da
República.
Devo acrescentar que não existe uma inteira homogenei-
dade entre as três partes que formam este primeiro estudo de
conjunto. Isto reflecte sem dúvida o desigual domínio que pos-
suo das matérias, mas também, inevitavelmente, o desigual esta-
do da investigação histórica sobre os três períodos abrangidos!.
No que toca ao primeiro, encerrado o vintismo e arrumada a
questão brasileira, está quase tudo por estudar. E com respeito
ao terceiro, em particular até à década de 70, a pobreza da his-
toriografia política contemporânea é deprimente?.
Os outros dois estudos de história política reunidos neste
livro desenvolvem episódios, temporalmente delimitados, da
história mais ampla que resumo em «O século XIX em pers-
pectiva política». Um deles, «A segunda ascensão e queda de
Costa Cabral», destina-se a explicar como se deu, e o que foi,
a Regeneração. Começa por apresentar o regresso de Costa Ca-
bral ao poder, em Junho de 1849, como um facto desfasado

2 Tendo a maior parte dos textos reunidos neste livro sido redigidos ao longo
de 1996-97, apenas foi considerada bibliografia publicada até ao final de 1995.
3 Existem valiosos estudos sobre história das ideias e da cultura. Mas falta
quase por completo a averiguação de como a mudança nas ideias e na cultura influen-
ciava a vida política concreta.

13
Apologia da História Política

do contexto europeu, em que a derrota da Esquerda já tornara


os «doutrinários» dispensáveis; e extemporâneo no contexto por-
tuguês, em que a hora de Cabral entretanto também passara.
Esta dupla circunstância tornou possível a Saldanha polarizar
a oposição anticabralista e firmar-se como chefe indiscutido de
um exército reunificado. A partir desta posição, inédita nos anais
da monarquia constitucional portuguesa, o duque de Saldanha
forçou a rainha a demitir o conde de Tomar, amputou os ex-
tremos à Esquerda e à Direita, e compeliu quem não quisesse
ficar de fora da «Regeneração» a partilhar o poder ao Centro.
Este estado de graça não tardou a ser perturbado pelo re-
nascimento da agitação radical, prenunciado desde 1853. «A re-
publicanização da monarquia, 1858-62» trata do aparecimento
de um novo radicalismo que, instruído pela experiência históri-
ca recente, pôs de parte os métodos revolucionários, mas não
abdicou da revolução. Só que planeava agora o seu advento pa-
cífico através da conquista gradual da opinião pública para a
«Ideia» da república cujo progresso, conforme se acreditava, ape-
nas era obstruído pelo domínio espiritual da Igreja, cuja exis-
tência o Estado monárquico em última análise garantia tanto
quanto nela se apoiava. Vencer este implicava começar por des-
truir aquela. Muito antes de a República ser abertamente glori-
ficada, já se trabalhava por expulsar Deus da Constituição para
fundar, depois e finalmente, a ordem social puramente laica e
racional que o iluminismo anunciara e a Ciência do século dava
como inevitável. É certo que a luta encarniçada contra meia
dúzia de irmãs de caridade e alguns padres lazaristas nem de
longe abalou as convicções religiosas da sociedade portuguesa.
Mas serviu para relançar o radicalismo e separar a Esquerda
monárquica do Centro onde a «Regeneração» a quisera amole-
cer, forçando-a deste modo a colaborar na republicanização
da monarquia.

14
APOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA
Agradeço muito particularmente a Maria Filomena Mónica e a
António Barreto o tempo e paciência que gastaram a ler e a criticar este
texto, que sem os seus comentários conteria muitas mais deficiências.
Introdução

Quando em 1972 entrei para o primeiro ano do curso de


História da Faculdade de Letras de Lisboa, ninguém queria saber
de história política. Um ou outro professor que mencionasse
as aventuras italianas de Francisco I, aludisse ao papel do infante
D. Henrique na expansão portuguesa ou evocasse o nome de
Lutero a propósito da Reforma, expunha-se à chacota genera-
lizada dos alunos e era imediatamente inscrito no rol dos igno-
rantes que ensinavam história sem ao menos saberem do que
esta verdadeiramente tratava. O 25 de Abril, ocorrido a meio
do meu terceiro ano, libertou-nos destes maçadores. Entre as
inumeráveis certezas de que se alimentava a nossa inexaurível
confiança na Ciência, constava a de que os factos, os indivíduos
e as datas não interessavam para nada. Interessavam, isso sim,
as interpretações, e os instrumentos que no-las serviam: con-
ceitos, teorias e modelos. Curiosamente, não nos ocorria que
nenhuma destas coisas se aplicava no vazio. No final da licencia-
tura, pouco ou nada sabia de história. Mas sabia imenso sobre
«modos de produção», sobre «acumulação primitiva» e «acumu-
lação capitalista», sobre «teoria das formações sociais», «sobre
o trabalho teórico», «sobre o conceito de modelo», sobre «o con-
ceito de conceito», e por aí fora, de Althusser e Balibar a Badiou
e Poulantzas. Dois ou três anos mais tarde, alguém que fez o
favor de me recomendar para a atribuição de uma bolsa salien-
tou, entre outros atributos que me qualificariam para o ofício
de historiadora, o meu «gosto pelo concreto». Levei alguns anos
a desfazer a perplexidade que esta indicação na altura me causou.
À medida que o processo revolucionário entre 1974 e 1976 ia
sulcando divisões na comunidade académica, intensificava-se

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Apologia da História Política

a «luta de classes» no «campo teórico». Os sectores estudantis


mais identificados com o PCP aferraram-se ao marxismo, sobretu-
do na versão althusseriana então em voga. O Lire le capital, vulga-
rizado em edição de bolso da Maspéro, era a última palavra
acrescentada à palavra de Marx pelo seu mais qualificado exegeta.
A esquerda comunista olhava os «Annales» com reserva e com
distância. E tinha razão: a escola do mesmo nome, tendo embo-
ra erradicado da história os factos, as datas e os nomes de que
se compunha a gesta usurpada dos poderosos, caracterizava-se
por nada prescrever quanto a doutrinas ou teorias, e apenas
contava o marxismo como uma entre muitas. Se tinha um progra-
ma, era precisamente um programa de abertura — a novos méto-
dos, novos objectos, novos problemas. Convidava a história a
investir todos os campos do conhecimento desbravados pelas ciên-
cias sociais, cujos resultados haveria de superar ao tornar-se nada
menos do que «total». Em 1974, Jacques Le Goff e Pierre Nora
resumiram o programa numa trilogia que ganhou fama imedia-
ta: «Faire Phistoire»: (1) Nouveaux problêmes; (2) Nouvelles ap-
proches; (3) Nouveaux objets. Era um mar de novidades que abria
à história um horizonte potencialmente infinito; e um mar de
liberdades que dava a cada historiador, real ou putativo, a possi-
bilidade de satisfazer a mais extravagante curiosidade. Quarenta
anos depois de Marc Bloch e Lucien Febvre, nada escapava à
«Nova História», porque tudo no passado se tornara histórico,
quer dizer, igualmente importante.
Isto bastava para garantir uma clientela de curiosos. Mas
havia mais na Escola dos Annales, ou na «Nova História», que
explica o entusiasmo, e a esperança, que suscitou entre histo-
riadores profissionais e aprendizes aplicados. No que respeita ao
contexto português, é necessário recordar por que meandros a
Ciência, a História e a Política então se ligavam. Tinha-se por
evidência inquestionável que uma história verdadeira era uma
história científica, e o inverso era igualmente dado de barato.
E que assim fosse, era por várias razões uma espécie de urgência
ou imperativo político. Com efeito, o Estado Novo utilizara
a hagiografia nacional como um meio de autoglorificação e legi-
timação do regime. Nestas circunstâncias, a história veio a ser

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Apologia da História Política

entendida por muitos como um combate político conduzido


no terreno da Ciência: a tanto equivalia desmistificar o passa-
do fabricado pela propaganda fascista, opondo-lhe uma versão
científica que fosse, como tal, a crónica verdadeira e irrefutável
de oito séculos de opressão. Aos que, no meio estudantil, desa-
gradava a hegemonia do PCP, os Annales ofereciam uma al-
ternativa à ortodoxia marxista que combinava a vantagem do
pedigree intelectual, académico e científico com a indispensável
caução de esquerda proporcionada pelos seus nomes mais
notáveis. Era então possível, fora do marxismo ortodoxo e, so-
bretudo, sem aderir à filosofia da história marxista — nem subs-
crever, por conseguinte, a hegemonia política e partidária do
PCP —, praticar uma história simultânea e indissociavelmente
«progressista» e científica: sem factos ou acontecimentos, sem
príncipes nem reis, sem batalhas nem tratados, sem cronologia
nem nações, e sobretudo sem política. Uma nova história estru-
tural e não narrativa, temática e não cronológica, quantitativa
e não descritiva, sem tudo o que era a história tradicional. Neste
ponto estava toda a gente de acordo.
Passaram os anos sobre esse optimismo dogmático e a his-
tória tradicional, identificada com a história política, conti-
nuou a ser desprezada. Frequentemente se pinta os historiadores
políticos como cronistas ingénuos ou antiquários maníacos em-
penhados em coleccionar factos e apurar datas, alegadamen-
te convencidos que estaríamos de que o que vem antes explica
o que vem depois pela cândida razão da sua anterioridade cro-
nológica. Vejam-se os textos emblemáticos da Nova História
da década de 70 e verificar-se-á não haver aqui deturpação ou
exagero. E mesmo em anos bem mais recentes, já em período
de reavaliação pessimista de uma Nova História que se chegou
a proclamar «federadora» das outras ciências sociais, subsistem
o mesmo tom depreciativo e a mesma argumentação expedi-
ta com que se tentara, e conseguira, banir a narrativa dos géne-
ros históricos respeitáveis. Nestas circunstâncias, o que se segue,
não pretendendo ser uma reabilitação académica da história
política — tarefa mais apropriadamente reservada a quem dese-
je ou possa fazer escola —, destina-se exclusivamente a justificar

19
Apologia da História Política

a minha opção, mostrando a pertinência do campo de estudo, a


validade da disciplina e a dignidade do género. O exercício im-
põe-se tanto mais quanto nos últimos anos se vem falando insis-
tentemente num retorno da narrativa e do político que, como
espero mostrar na altura própria, nada têm a ver com a história
política e a narrativa tradicionais, que são a história política
e a narrativa propriamente ditas.
Dentro dos estritos limites exigidos por este propósito,
e dentro deles somente, tenho inevitavelmente de fazer uma
alusão crítica às ambições científicas da Nova História. Os seus
êxitos não carecem de ser louvados. São muitos, são grandes,
estão à vista de todos e constituem um património historio-
gráfico de inestimável valor. Mas tenho de falar do preço que
custou porque, porventura inevitável, foi muito elevado. Impor-
tou nada menos do que na eliminação da história política e no
consequente eclipse da narrativa, em favor de uma história do
social inspirada por modelos, apoiada em quantificações e servi-
da por um discurso essencialmente analítico. Finalmente, com
a terceira geração dos Annales formada nos anos 70 em torno
de um novo fôlego da história das mentalidades!, acabou-se
de minar a unidade da história em benefício de múltiplas histó-
rias que não sabemos bem como ligar entre si.
No centro e origem da transformação da história em ciên-
cia social está, como é sabido, a abertura da primeira à segunda,
um processo iniciado pelos «pais-fundadores» em finais dos anos
20 e levado depois ao extremo da prática indistinção disciplinar.
Mais de meio século depois de Bloch e Lefebvre, a pergunta que
não se pode deixar de fazer e que me proponho aqui examinar, é
a de saber se a história se tornou científica e se, com isso, justificou
a condenação da narrativa política tradicional. Como se com-
preenderá, a sumária digressão que a seguir empreendo pelos
Annales não pretende examinar sistematicamente os seus resulta-
dos nem se destina a produzir revelações sobre um assunto com o
qual todo o historiador profissional se encontra familiarizado.

1 Para uma boa síntese crítica da história dos Annales, ver José Manuel Sobral,
«Uma leitura crítica da “história das mentalidades”», Análise Social, n.º 95, 1985.

20
Apologia da história política

Pretende apenas evidenciar o divórcio insanável que se esta-


beleceu entre a história tradicional, entendida como um campo
clássico das Humanidades, e uma história de ambição científica,
moldada pelos critérios epistemológicos, modelos teóricos e pro-
cedimentos metodológicos das ciências sociais. À conclusão não
será a de que uma é mais elevada ou proveitosa do que a outra,
mas sim de que se trata de dois saberes inteiramente distintos e
igualmente meritórios. Nisto se funda a legitimidade da história
política sem a qual, como espero vir a mostrar, o nosso conhe-
cimento do passado permanece radicalmente obliterado e empo-
brecido.

21
Impasses da história como ciência

1. Ainda no auge da interdisciplinaridade, já havia quem


exprimisse cepticismo a respeito da magnitude dos ganhos cien-
tíficos que a Nova História obtivera por meio do comércio com
as ciências sociais. Para uns, o remédio estava em intensificá-
“Jo. Para outros, em adoptar prudência e consolidar a identida-
de inequívoca da disciplina. Le Goff, alinhado com os primeiros,
lamentava que, na era da serialização, quantificação e concep-
tualização, o estatuto científico da história permanesse infeliz-
mente ambíguo, senão duvidoso. O historiador, queixava-se, não
alcançara o «prestígio dos novos heróis científicos do século XIX
[...] coroados pelo Prémio Nobel». Não sendo ainda «Einstein»,
já deixara de ser «Michelet»: ao mesmo tempo ainda demasiado
artista, e já não o suficiente2. Le Goff deixa implícita a crença
de que o impasse não deixará de se resolver a favor do cientista.
Furet, por seu turno, deplorava a «vagabundagem» da história
«por todos os terrenos» e alertava para as «insignificâncias» em
que esta arriscava afundar-se por força da «deriva sem limites
do que é histórico». Todavia, não se está a ver como a sua insis-
tência na «história-problema» pudesse travar a desfiguração da
disciplina que ele próprio denunciava. Num livro publicado
no começo dos anos 80, L'Atelier de l'histoire, conquanto com-
binasse a crença nas virtualidades da Nova História com um
juízo severo sobre os seus limites e mesmo os seus impasses,
Furet reiterava uma vez mais o desprezo pela velha história de
que a Nova se alimentara. Se havia crise de identidade provoca-
da pela «indeterminação crescente do campo» da história; se
a disciplina se tornara «polimorfa» e o seu objecto «impossível

2 Le Goff, Faire de Vhistoire, Paris, Gallimard, 1974, I, p. XIII.

2a
Apologia da história política

de definir e mesmo de apreender»?, a solução não estava certa-


mente num retorno ao passado e na reabilitação da história pré-
-científica. Perdêramos para sempre a ingenuidade que esta
supunha. Estávamos hoje mais sabidos: víamos que a gesta dos
grandes homens, reis, príncipes ou ministros, conta nada na vida
das sociedades; apercebêramo-nos de que não há um mas vários
mundos, que o tempo é múltiplo, heterogéneo, e que a história
não pode mais ser a sua «figura organizada, propondo à huma-
nidade as imagens do seu progresso»; descobríramos que a «ge-
nealogia do Estado-nação» deixa sem história a maior parte do
globo; renunciáramos «à ideia ingénua de que os factos falam
sozinhos»; deixáramos de ser convencidos pelas falsas explica-
ções dadas pela «lógica da narrativa», em que simploriamente
«o antes explica o depois»*. Sobretudo, cessáramos de nos hipno-
tizar pelo acontecimento, essa alavanca ilusória da mudança
e do progresso: através dele, a história política conta como «os
homens, e de preferência os grandes homens, pensaram, escolhe-
ram, agiram». Ela estuda então o que não é susceptível de ser
estudado pela Ciência: esse «domínio do aleatório» que é por
excelência «a liberdade dos homens».
A Nova História abdicou deste desígnio impossível e infan-
til. Desinteressou-se da acção humana, tragada pelo próprio
momento em que se consuma, e abandonou-a aos romancis-
tas, especializados no seu drama. E reservou igual sorte aos
autores dessa acção, em virtude da sua renitente singularidade.
A História-Ciência-Social substituiu a acção dos homens pelos
seus «comportamentos objectivos», tipificáveis «independen-
temente do objectivo intencional dos actores», e em vez disso
passou a dedicar-se à «procura das determinações e dos limi-
tes» que os conformam; e substituiu os sujeitos concretos pelos
«seus papéis de agentes económicos e socioculturais». Se esta
via a não eleva até ao enunciado de «leis», permite-lhe discernir
«ao menos constantes». De entre os «vestígios da actividade
humana», a Nova História eliminou por conseguinte tudo o
3 François Furet, L'Atelier de l'histoire, Paris, Flammarion, 1982, pp. 7 e 9.
4 Idem, ibidem, pp. 11-15.
5 Idem, ibidem, PASTA

2a,
Apologia da História Política

que fosse singular, para apenas reter «dados homogéneos entre


si, repetitivos e comparáveis» através do tempo e do espaço*.
É verdade que a «batalha de Waterloo» ou a «morte de Estali-
ne», conforme Furet reconhece, «transformaram a história do
mundo». Mas, tendo acontecido uma só vez e não sendo «com-
paráveis a nenhuma outra batalha, a nenhuma outra morte»,
que pode o historiador fazer com tais factos”? Tais factos, como
todos os que pertencem ao «domínio clássico das grandes mu-
tações políticas», não são tratáveis pela Nova História, cujos
factos são inteiramente diversos dos da «história evenemencial»:
são «um fenómeno seleccionado e construído em função do seu
carácter repetitivo». É certo que factos destes não acontecem
na realidade nem constam dos documentos, mas o novo historia-
dor pode e deve, como ficou dito, «construí-los». Nesta ordem
de ideias, a Nova História não versa sobre a morte de Estaline,
mas sobre a morte de ditadores; nem sobre a batalha de Water-
loo, mas sobre as batalhas pela hegemonia europeia; e assim
por diante. Quantificar, medir, comparar, serializar, padronizar,
eis a agenda da Nova História. Mau grado as reticências e até
as duras críticas que exprime, Furet não tem dúvidas em ver e
saudar aqui a ruptura decisiva com a velha história, e em ver
nessa ruptura um progresso a ser creditado à frutuosa influên-
cia das ciências sociais, o mais poderoso factor que moldou a
história desde a fundação dos Annales”.
2. Frutuosa mas também, como Furet é aliás o próprio a
alertar, duplamente perigosa: porque descaracterizou a história
através da pulverização e trivialização do seu objecto; e porque
deu origem a uma ilusão de cientificidade que lhe sugeriu, atra-
vés da miragem de uma história «total», irrealizáveis aspirações
hegemónicas. Ora para Furet, a resposta à pergunta de saber
se a história «se pode tornar uma ciência», tem de ser «indubita-
velmente negativa»1º, Por milagres que se tenham operado na

6 F. Furet, op. cit., p. 15.


7 Idem, ibidem, p. 74.
8 Idem, ibidem, p. 96 (itálico meu).
2 Idem, ibidem, p. 9.
10 Idem, ibidem, p. 89.

24
“Apologia da história política

homogeneização dos dados, no apuramento das metodologias


e no aperfeiçoamento dos processos de demonstração, a inexis-
tência de uma linguagem própria e a indeterminação do seu
objecto farão sempre da história uma disciplina «insuficien-
temente exacta» para que os próprios historiadores se ponham
de acordo «sobre os critérios que separam o científico do não
científico».
As ambiguidades da Nova História manifestam-se sobre-
tudo no mais promissor dos seus domínios, o da história das
mentalidades, que a partir do início da década de 70 não só
granjeou aos Annales renovada fortuna académica como po-
pularizou os seus produtos. Desta espécie se disse — mais longe
veremos que erradamente — que ressuscitara a narrativa e que
por esse motivo adquirira leitores junto do público culto não
especializado. Antes me quer parecer que o sucesso se deveu
a uma renovação e extensão temáticas que, na ressaca da crise
ocidental de finais de 60, foi ao encontro de um desencanto
ou descrença no progresso que despertou a nostalgia pelos ob-
jectos excluídos do mainstream mais vistoso e aparentemente
vitorioso da história. O gosto pela história rural e a expansão da
antropologia podem ser relacionados com a incerteza a respeito
do futuro que o choque petrolífero de finais dos anos 60 e a
subsequente depressão económica suscitaram no mundo ociden-
tal. A história das mentalidades veio satisfazer um leque de curio-
sidades pessoais praticamente ilimitado. Como diz Furet, tudo,
desde o esotérico ao trivial, desde a culinária ao sagrado, se tornou
igualmente Asstórico, quer dizer, igualmente importante para
explicar a conformação e transformação das sociedades ao longo
do tempo. Já assistítamos a uma primeira democratização da
história quando nela dera entrada a massa anónima dos excluí-
dos. Agora, abolia-se a hierarquia no interior dos seus assuntos,
numa operação de nivelamento que não deixa de evocar o
arrasador relativismo da chamada pós-modernidade. A história
tornou-se «bulímica», no dizer do próprio Le Goff!2, Mas Furet
não aprova estes «novos apetites» indiscriminados, induzidos por
11 FE Furet, op. cit, p. 28.
12 Le Goff, op. cit., p. XII.

25
Apologia da História Política

uma colaboração com as ciências sociais levada até ao extremo


de uma «indistinção disciplinar» que, no entanto, não con-
fere «um título automático a um aumento de conhecimento»!?.
Com a multiplicação de objectos definidos por «conceitos glo-
balizantes», tais o sagrado, o texto, a família, a morte, o código,
o poder, o corpo, a festa ou o sexo, a heterogeneidade do tempo
histórico, já revelada no contacto com a demografia ou a econo-
mia, dá lugar à crescente afirmação de um tempo não apenas
longuíssimo, como imóvel ou quase imóvel: aquele que ritma
a evolução imperceptível do clima ou das rochas. Com a desu-
manização e a entrada da «intemporalidade»!4 na história, esta
cortou os últimos laços que a tornavam reconhecível como tal.
Mas Le Goff, sempre convencido de que o bom caminho é para
a frente, saúda o que lhe parece mais um passo em direcção à
coroação científica da história: depois de eliminados os indiví-
duos, os acontecimentos, a política, e, portanto, a narrativa,
uma «história do presente» concebida como «história imediata»
estaria já a colocar «seriamente em causa a noção bem estabe-
lecida da história como ciência do passado»!5. Na sua «bulimia»,
a história estava em vias de abarcar o presente e até mesmo o
futuro: «Cabe-nos decidir se nós», declarou Le Goff recente-
mente, «somos capazes de um certo domínio do futuro enquan-
to historiadores»6.
3. Na sua terceira geração os Annales, ou a Nova História
francesa, alhearam-se consideravelmente das querelas epistemo-
lógicas e teóricas que nos países anglo-saxónicos dominaram
a pretensão da história a um estatuto científico!”. Como a orto-
doxia marxista nunca lá foi hegemónica, os Annales puderam
abster-se de colaborar empenhadamente na remaquilhagem
destinada a libertar o velho materialismo histórico do ferrete

13 F Pure, op. cit., p. 9.


1á Le Goff, op. cit., p. XII.
15 Idem, ibidem.
16 Te Goff, «Les retours dans Phistoriographie française actuelle», in Carlos
Barros ed., A história a debate (3 vols.), Santiago de Compostela, 1995, vol. 1, p. 165.
17 E.P Thompson, The Poverty of Theory and Other Essays, Londres, Merlin
Press, 1978.

26
Apologia da história política

economicista que nos anos 60 ameaçava empalidecer a sua es-


trela. Althusser e Poulantzas ganharam audiência em larga me-
dida à margem da Escola. A via científica dos Annales foi outra.
Precisamente a das mentalidades, diz Furet que «um sucedá-
neo à francesa para o marxismo e a psicanálise» cujo apelo pro-
viria de uma «prestidigitação semântica» que, embora fascine
o leitor, «não oferece ganhos reais de inteligibilidade»!8. Ora
é precisamente neste campo que a história das mentalidades
pretende ver os seus créditos firmados: pela oferta de «uma
outra universalidade»!? que não aquela que erradamente se
supunha implicada no historicismo oitocentista que, ofuscado
pela «figura evolucionista do tempo»?2º, assimilava a história do
mundo à genealogia do Estado-nação e imaginava este desti-
nado a coroar o desenvolvimento de toda a humanidade. A nova
universalidade discernida pela história das mentalidades, pelo
contrário, respeitava e acolhia a diversidade das sociedades hu-
manas, recorrendo à aplicação de conceitos aptos a reunir sob
uma luz única uma grande variedade de fenómenos no tempo
e no espaço, aparentemente sem relação entre si. Já não se tra-
tava de procurar as mediações através das quais o económico
explicaria, em última instância, o social. Tratava-se de ensaiar
uma «história total», inspirada originariamente por Marcel
Mauss, capaz de surpreender os agentes e grupos históricos no
ponto de intersecção das suas múltiplas práticas sociais. Desta
maneira, a história das mentalidades elevar-se-ia até uma «visão
unificada» do homem?!, constituindo-se como síntese superior
dos contributos parcelares fornecidos pelas diversas disciplinas
da ciência social. Marc Bloch e Lucien Febvre haviam entendido
as «mentalidades» como um aspecto de uma estrutura histó-
rica mais vasta. Nos anos 60, sob a influência de Lévi-Strauss,
relançada e renovada por Mandrou, Ariés e Ladurie, a história
das mentalidades transformou-se numa estratégia de conheci-
mento globalizante, num instrumento de explicação «total»

18 F Furet, op. cit., pp. 24-5 (itálico meu).


19 Idem, ibidem, poSZs
20 Idem, ibidem, p. 73.
21 Idem, ibidem, p. 11.

do
Apologia da História Política

das sociedades humanas. Braudel enraizara os fenómenos men-


tais na mais longa das durações. À partir daí, as mentalidades
converteram-se na estrutura profunda, englobante e quase imó-
vel que comanda os ritmos da transformação económica e
social. O seu estudo capta atitudes, pensamentos, ideias, re-
presentações, crenças, hábitos e sentimentos que condicionam
os comportamentos sociais ao nível mais elementar e permanen-
te da história humana, formando um lastro comum largamente
impermeável às ideologias e a outras formas de dominação e
conflito originadas na divisão da sociedade em classes. Assim
concebido, o estudo das mentalidades relega as determinações
económicas para a esfera mais transitória e vulnerável das con-
junturas. O que o marxismo tomara por determinante torna-
-se determinado por uma «totalidade social» iluminada pela
história das mentalidades e que, essa sim, confere um sentido
à intervenção humana que a consciência dos sujeitos históricos
em todos os tempos ignora.
«Mas esta dimensão temporal», previne Furet, «ainda que
de muito longo prazo, não implica em si mesma nenhum privi-
légio particular de “totalidade” [...] porque ela não pode con-
duzir ao que não existe, quer dizer, a um conceito que dê conta
de todos os aspectos da coisa estudada»22. Mas ainda que a
história das mentalidades não forneça a via para uma «história
total», fornecerá ao menos a via para uma história científica?
No momento em que Furet escrevia (1982), a questão estava
em aberto, e há razões para crer que assim se conserva. Para
Furet, o futuro da história, quer ele se realize ou não sob o
signo da ciência, está numa «história-problema» ou «história
conceptualizante» que construa os seus objectos — tal como o
fazem as outras ciências sociais — debaixo da severa disciplina
de conceitos e teorias rigorosos. A não ser assim — e por nem
sempre ser assim — a história tornar-se-á errática, vogando ao
sabor das modas académicas e do gosto arbitrário de simples
amadores e curiosos. Uma vez definido o objecto com máximo
rigor teórico, tudo o mais se lhe submete: fontes, métodos,

22 E Furet, Opa Cita pr:

28
Apologia da história política

estilo e cronologia. Esta, que constituía a estrutura factual fun-


damental da história, perdeu toda a pertinência com a desquali-
ficação radical dos acontecimentos. O novo historiador escolhe
os parâmetros temporais mais adequados ao objecto que cons-
truiu: «As famosas “datas” do historiador dependem do probe-
ma que lhe interessa.»22 Desaparecidos os sujeitos, os factos e
acontecimentos e a velha ordem temporal que fornecia o «mol-
de da narração», a narrativa fica sem nada para contar. Em vez
dela, o novo historiador procede por análise e demonstração?4.
«Ele deixou de ter a pretensão de contar o que se passou, ou
mesmo o que se passou de importante, na história da humanida-
de»25; o seu horror ao «empirismo dos “factos”» e o seu culto
científico das «ideias preconcebidas» (7. e., conceitos) levam-
-no a rejeitar a «história-período», a «reconstituição do vivido»,
em lugar dos quais oferece um produto intelectualmente supe-
rior, a saber, uma «interpretação do vivido através de uma teoria
ou uma ideia»26. «O facto histórico não é mais a irrupção de
um acontecimento importante que fura o silêncio do tempo,
mas um fenómeno escolhido e construído, e cuja regularidade
permite que ele seja notado e estudado através de uma série
cronológica de dados idênticos, comparáveis entre si a inter-
valos determinados»27. Já antes se observou que factos destes,
«construídos» como dados de uma série, não se encontram re-
gistados nos documentos. Nos documentos apenas se registam,
supostamente, «factos» e «datas» sem nenhuma utilidade ou
relevância. Por isso o novo historiador deve também «inven-
tar as suas fontes, que geralmente não são apropriadas, tal como
existem, ao seu tipo de curiosidade»?8.
A conclusão maior a reter desde já é a de que a Nova His-
tória não se interessa por aquilo que interessou as sociedades passa-
das. Ela não trata do que se passou de importante na história

23 Idem, ibidem, p. 16.


24 Idem, ibidem, p. 17.
25 Idem, ibidem, p. 76 (itálico meu).
26 Idem, ibidem, p. 27.
27 Idem, ibidem, p. 78.
28 Idem, ibidem, pp. 76-7 (itálico meu).

29
Apologia da História Política

da humanidade. Trata de objectos eleitos em função da perti-


nência científica que a teoria lhes atribua. Mas ter-se-á tornado,
a este preço, ao menos «total» ou «científica»? A ambas as per-
guntas Furet responde, não sem causar ao leitor alguma perple-
xidade, com uma resposta «indubitavelmente negativa». E vai
mais longe: observa que no século passado a história possuía
um «método científico, uma concepção da evolução» e «um
campo de estudos simultaneamente cronológico e espacial».
Isto fazia dela «uma matéria ensinável de pleno direito»??. Hoje
em dia, desprovida de objecto preciso, de linguagem privativa,
de teoria própria e de limites disciplinares definidos, tornou-
-se particularmente difícil pensá-la «cm termos de disciplina,
ou mais ainda de disciplina escolar30.
4. O cepticismo de Georges Duby, manifestado em livro
recente de cariz autobiográfico, também não pode deixar de
ser aqui convocado. Duby conta-se, simultaneamente, entre os
elementos dos Annales mais influenciados pelo marxismo, entre
os cultores mais brilhantes e influentes da história das men-
talidades, e entre os historiadores com maior talento literário.
É, de entre todos, o mais e o mais assumidamente artista, acei-
tando que a qualidade da história é inseparável da sua forma;
admitindo que, se ela ambiciona ter algum significado huma-
no, há-de restituir vida às «sombras» que são tudo o que resta
do passado?!; reconhecendo que, confrontado com uma incer-
teza que as fontes não resolvem, «o historiador é obrigado a
fazer uso da sua liberdade» e a «tomar partido»; e, finalmente,
confessando que «no acto da escrita é a sensibilidade que toma
a dianteira», porque ele não pretende apenas comunicar um
conhecimento mas também «partilhar com os leitores uma emo-
ção»32, À mesma emoção e o mesmo «deleite» que ele próprio
experimentou quando, «no mar, em frente a Lepanto», releu
em Braudel «essas frases por intermédio das quais penetramos
de súbito no coração do tumulto e nos turbilhões sangrentos
29 F. Furet, op. cit, p. 124.
30 Idem, ibidem, p. 125 (itálico meu).
31 Georges Duby, 4 História Continua, Lisboa, Asa, 1992, pp. 52-53.
32 Idem, ibidem, p. 54.

30
Apologia da história política

da imensa vitória». Que outra liberdade, senão a do artista,


poderia proclamar que a «história apaixonada» é talvez «mais
verdadeira» do que a «história árida, fria, impassível»34? E não
nos diz Marc Bloch que a melhor história requere intuição ar-
tística?5?
Sabe-se que história Furet quer fazer ou recomenda que
se faça; de Duby, apenas se sabe que história faz. Faz uma his-
tória que é em aparência ou à primeira vista uma contradição
nos termos: uma história «das estruturas» mediante uma aborda-
gem não estrutural. Vemo-lo datar o «acontecimento» e estabele-
cer factos que sejam «incontestavelmente verdade»36; investigar
o «político», compor a «biografia» e contar batalhas e histórias
de vida; tentar «compreender» os homens de um passado longín-
quo e «penetrar na sua consciência»; procurar «identificar-se
com os cavaleiros» e esforçar-se por «perceber como eles viam o
mundo»37; imaginar como teriam «podido conceber» o sistema
senhorial «aqueles que lhe suportavam o peso e aqueles que par-
tilhavam os seus benefícios»; prescrutar «esses seres» que ele se
«tinha limitado a classificar»?2 por categorias sociológicas. Vemo-
lo fazer tudo isto bebendo não em teorias abstractas, mas nas
descrições e «notações concretas» dos antropólogos??; não in-
ventando fontes, mas espremendo informação das existentes;
utilizando «a agilidade da imaginação» sob o controlo aperta-
do dos «documentos», que ele «muito minuciosamente testou»
para se certificar da «solidez» das suas «'provas'»4º. A observância
desta «moral, a do investigador», ou seja, da moral «positivista»

33 Georges Duby, op. cit. p. 95.


34 Idem, ibidem, p. 55.
35 «Pour bien les traduire /les faits humains/, par suite pour bien les péné-
trer [...] une grande finesse de langage, une juste couleur dans le ton verbal sont
nécessaires. [...] Niera-t-on qu'il y ait, comme de la main, un tact des mots?», Marc
Bloch, Apologie pour lhistoire, Paris, Armand Colin, 1974 (7.2 ed.), pp. 35-36.
36 Georges Duby, op. cit., p. 53.
37 Idem, ibidem, pp. 100-105.
38 Idem, ibidem, p. 75.
39 Idem, ibidem, p. 75 (itálico meu).
40 Idem, ibidem, p. 55.

51
Apologia da História Política

que «confere ao nosso ofício a sua dignidade»*!, é a única garan-


tia que o historiador deve e pode dar: uma garantia de honestida-
de. De resto, Duby afirma desassombradamente «não acreditar
na objectividade do historiador», tal como descrê em definiti-
vo «que possamos distinguir 'em última instância o factor mais
determinante que dá origem à evolução das sociedades huma-
nas»2, Le Goff diz que a história «tem ainda de se definir como
ciência da mudança»?2. Duby não acredita que isso venha a
acontecer. Para ele, a história é ofício. Como tal, no preciso
sentido em que o entendiam os antigos artesãos do mundo pré-
Industrial, possui uma técnica que se transmite, mas é uma
arte que não se ensina. É sem dúvida através desta que Duby
restitui vida aos mortos sepultados sob a poeira dos arquivos.
É graças a ela que Duby sabe que o marechal, próximo da hora
de morrer, já «não pode mais»; que o fardo que carregou du-
rante a vida «agora o esmaga»; que até se extinguir consagrou
«o seu último esforço a aliviar-se a fim de se elevar mais depressa
e mais alto»; e que, prestes a partir, a sua casa se encheu de gente
que o chorou «ternamente, dolorosamente»44. Não estaremos
perante o historiador que, como LeGoff censura a Michelet,
«exerce a sua imaginação visionária nos arquivos»?
«Deixei de empregar a palavra mentalidades», diz Duby*6.
A palavra pretendia vincar o enraizamento material de «um
conjunto impreciso de imagens e certezas irreflectidas a que
se referem todos os membros de um grupo social», libertando
o seu significado de conotações psicológicas4”. O que lhe inte-
ressa parece descrever-se mais adequadamente como uma visão
do mundo, sem o que a nossa inteligência da sociedade feudal
não estaria completa. Ora a visão do mundo dos homens medie-
vais não está contida nas «notações concretas» dos antropólogos

41 Georges Duby, op. cit., p. 52.


42 Idem, ibidem, 72!
43 Le Goff, Faire de [histoire, op. cit., p. XHI (itálico meu).
faia Duby, Guillaume le Maréchal, Paris, Fayard, 1984.
45 Le Goff, Les retours dans |historiographie française actuelle, op. cit., p. 160.
46 G. Duby, 4 História Continua, op. cit. p. 80.
47 Idem, ibidem, pp. 81-2.

52
Apologia da história política

nem se restitui mediante uma anatomia da articulação das es-


truturas. Exige, da parte do historiador, a capacidade que a tradi-
ção alemã consagrou como «Verstehen» (compreensão) enquanto
forma de conhecimento estranha ao modo de explicação causal
das ciências («Ursâchliche Erklirung»): «Devo-me esforçar por
olhar para as coisas com os olhos desses guerreiros, devo-me
identificar com eles.»48 Duby descobriu que podia ter melhor
acesso à visão do mundo medieval através da vida de persona-
gens singulares e do relato de grandes acontecimentos: Guilher-
me o Marechale O Domingo de Bouvines.
Mas o retorno do historiador à narrativa, à biografia e ao
acontecimento não traz de volta a história política tradicional.
À sua narrativa não é bem o que tradicionalmente por aí se
entende: ela segue a ordem da análise ou organiza-se em função
de uma constelação temática; não obedece à sequência causal
dos acontecimentos inscritos na cronologia; não mostra o
desenrolar de uma «intriga»é?. Quanto à biografia, é um meio
ao serviço da «história-problema»: a vida de Guilherme desti-
na-se a dar a conhecer não o que ele fez, mas o que era a cavala-
ria, e esta, por seu turno, a esclarecer «um sistema político, a
feudalidade'»50. Finalmente, o acontecimento não importa por
aquilo que ele muda ou desencadeia, muito embora no caso da
vitória de Bouvines Duby reconheça que ela contribuiu de modo
sensacional e decisivo para consolidar as bases da monarquia
francesa. Para o «historiador das estruturas» entre os quais se in-
clui!, o acontecimento apenas conta como um «revelador».
Não interessa por aquilo que em si mesmo constituiu nem pelo
que provocou, mas pelo que dele se disse e comentou, pelas «a-
tências» que pôs a descoberto, pela torrente de palavras que fez
jorrar a partir das «profundezas do não-dito»??, O acontecimento

48 G. Duby, 4 História Continua, op. cit., p. 53 (itálico meu).


49 «Expliquer, de la part d'un historien, veut dire 'montrer le déroulement
de Pintrigue'». Paul Veyne, Comment on écrit [histoire, Paris, Seuil, 1971.
50 G. Duby, 4 História Continua, op. cit., p. 125.
51 Idem, ibidem, p. 101.
52 Idem, ibidem, p. 101.
53 G. Duby, Le Dimanche de Bouvines, Paris, Gallimard, 1973, p. 9.

33
Apologia da História Política

de Duby não existe a não ser na medida em que é, «propriamente


falando, fabricado pelos que lhe divulgam o renome». Como
acontecimento político não existiu, e não é possível redigir-lhe
a crónica. Apenas se pode escrever a história da «recordação»
de Bouvines, da sua «deformação progressiva pelo jogo, rara-
mente inocente, da memória e do esquecimento». Essa his-
tória não se destina a informar-nos sobre o destino pessoal de
Filipe Augusto nem sobre o destino colectivo da França. Ela
serve como fonte para um estudo de «etnografia da prática mi-
litar no início do século XII», que por seu turno não passa de
outro prisma para abordar a sociedade feudal. Duby «aproxi-
mou-se» dos combatentes de Bouvines como de um «monte de
povo exótico», e notou a «singularidade dos seus gestos» e mesmo
«dos seus gritos» e «das suas paixões», a fim de melhor compre-
ender o que significava para essa gente uma batalha, «esse recur-
so solene, excepcional, litúrgico, ao julgamento de Deus»>6.
Tudo isto é não só legítimo e meritório, como essencial ao estu-
do do passado. Mas não satisfaz o tipo de curiosidade a que
a narrativa política procura responder.
Pelos seus temas, pelos seus objectos, pelos seus métodos,
pela sua utilização das ciências sociais e em especial da antro-
pologia, Duby permanece ancorado na Nova História. Mas pre-
cisamente o seu caso ilustra como a história de uma sociedade
passada, entendida — conforme ele sem dúvida a entende — como
a restituição de «um mundo possível», constitui um exercício
tão estranho ao procedimento científico quanto próximo de um
trabalho de criação artística. Que a história política seja incon-
vertível à ciência, ninguém duvida. Mas então, esta circunstância
não serve para justificar que haja sido proscrita.
5. Que haja sido proscrita e continue mal vista”. O que
hoje geralmente se saúda como o seu retorno é uma «nova his-
tória política» que, sobre ser, na realidade e diversamente, uma

da. Duby, Le Dimanche de Bouvines, op. cit. p. 10.


55 Idem, ibidem.
56 G. Duby, A História Continua, op. cit., p. 102.
57 Em França e em Portugal, sem dúvida: quais são as grandes obras de história
política produzidas nas últimas décadas? Com as excepções de Pulido Valente, Valentim

34
Apologia da história política

história do político, em muitos casos não se deixa distinguir de


outras disciplinas das ciências sociais como a politologia, a semió-
tica e a sociologia. Os seus cultores ou defensores consideram
que o método mais profícuo para levar o novo género a um pleno
florescimento consiste em aprofundar mais ainda a interdisci-
plinaridade da abordagem e a democratização dos protagonistas.
Trata-se em suma e em essência, na expressiva declaração de um
seu entusiasta, de uma «história social com a política restituí-
da», que em vez de celebrar os grandes homens dará «voz e vida
às gentes», sublinhando «a sua capacidade para protagonizar a
história»8. Antes porém de examinarmos o que actualmente
se quer fazer passar por história política, não é inútil ver como
este retorno, a par de outros não menos ambíguos como o do
«acontecimento» e da «narrativa», é mais um reflexo de uma crise
de identidade da história que, para além de obrigar a uma reava-
liação dos ganhos científicos obtidos pela abertura às ciências
sociais, se exprime pelo receio de uma descaracterização da dis-
ciplina tornada já irremediável. Há quem vá ainda mais longe
e alerte para o risco de a história, tendo-lhes unido o seu des-
tino, vir a ser atingida pela ameaça de descrédito que sobre elas
paira numa altura em que «as capacidades das ciências sociais
para elucidar o mundo parecem duvidosas a algumas pessoas»??.
É preciso acrescentar que estas pessoas são em grande númeroS?.
O sinal de alarme oficial proveio de origem insuspeita: nada
menos do que da revista Annales, no seu n.º 2 de Março-Abril
de 1988, cujo editorial assinalava a hipótese, simultaneamente
herética e dramática, de se estar a assistir a uma «viragem críti-
ca» nas relações entre a história e as ciências sociais. Passara a

Alexandre e Rui Ramos, o género deixou de ser cultivado entre nós. E o que existe
em França, é uma Nova História política, que oportunamente comentarei.
58 Xavier Gil Pujol, «La historia politica de la Edad Moderna europea, hoy»,
in A Historia a debate, op. cit., vol. WI, pp. 195-208.
59 «Tentons Pexpérience», editorial de Annales, E.S.C., n.º 6, Nov.-Dez. 1989,
p. 1318.
60 Sobre a actual desorientação da sociologia, manifestada pela multiplicação
de paradigmas teóricos e pelo «desregramento» do método, veja-se José Machado
Pais, «Durkheim: das Regras do Método aos métodos desregrados», Lisboa, Análise
Social, n.º8 131/2, 1995.

55
Apologia da História Política

«conjuntura intelectual fasta e optimista» em que o saldo posi-


tivo do comércio deslumbrava. Chegara o «tempo das incer-
tezas», traduzido numa «crise geral das ciências sociais» aberta
pela derrocada dos paradigmas que os estrondosos aconteci-
mentos de finais de 80, por ninguém previstos nem sonhados,
provocou. À história, que tinha ambicionado «federar» as ciên-
cias sociais, viu-se nua. Os Annales reconheceram que tinha
havido uma «multiplicação desordenada dos objectos de pes-
quisa» que, com efeito, justificava a «denúncia» de uma «pulve-
rização da história»ól. A fim de «repor um pouco de ordem
nas nossas práticas», apontam para o imperativo de compatibi-
lizar métodos e de encontrar escalas de análise que permitam,
por um lado, articular os diversos «níveis de observação» e, por
outro, estabelecer a comparação entre os resultados das diferen-
tes pesquisas. O mesmo editorial interroga-se sobre a adequação
e suficiência dos actuais modos de escrever história, sugerindo
a necessidade de encontrar «outras formas de argumentação»
que satisfaçam os requisitos de uma demonstração mais exigen-
te92, Finalmente, revela-se insatisfeito com as «alianças» tradi-
cionais da história, como a geografia, a antropologia, a economia
ou a sociologia, e reclama, com incurável fascínio pela inovação,
«outros testemunhos» e «outros estudos provenientes das perife-
rias» que permitam à história «assegurar o seu imperialismo»
(sic) em domínios negligenciados como a história da arte ou
das ciênciast2.
À pergunta insidiosa que subjaz ao texto que acabo de citar
é afinal a de saber, muito simplesmente, o que é a história en-
quanto prática científica — qual o seu objecto e qual o seu método
— e que estatuto lhe cabe entre as ciências sociais. E a preocupa-
ção indisfarçável que ele revela é a de saber que tipo de coerên-
cia alternativa se pode encontrar para o conhecimento histórico,
uma vez perdida a unidade, alegadamente ilusória, que lhe con-
feria a ingenuidade historicista. Para estas perguntas, por onde
61 «Histoire et sciences sociales. Un tournant critique?», Annales, E.S.C.,
n.º 2, Mar.-Abr. 1988, p. 292.
62 Idem, ibidem, p. 293.
63 Idem, ibidem.

36
Apologia da história política

se deveria frontalmente começar, não encontramos lá resposta,


a não ser sob a forma de um convite de fuga para a frente: que
a história desencante «novos métodos» e rebusque «novas alian-
ças». Um ano depois, assinalando o 60.º aniversário dos Anna-
les, o número de Novembro-Dezembro de 1989 reunia uma
série de textos que materializavam a reflexão a que os traba-
lhadores do ofício haviam sido exortados. O editorial que os
introduz — «Tentons Pexpérience» — repete uma vez mais a neces-
sidade de «estabelecer as bases renovadas sobre as quais fundar
o ofício de historiador e o diálogo com as ciências sociais»4, mas
explicita agora as razões do apelo com mais franqueza: «Nem
a posição cronológica dos objectos que escolhe, nem os seus pro-
cessos de análise, nem a natureza da sua documentação bastam
para fundar a originalidade da história.» A história vai buscar
às ciências sociais «muitos dos seus métodos» e, forçoso é acres-
centar, muita da sua inspiração teórica e da sua problemática.
Aquelas, por seu turno, rotinizaram a utilização do passado como
campo de observação e servem-se com total à-vontade dos dados
que lá vão colher sem licença nem ajuda de ninguém: «é então
menos a história que é federadora, do que o seu domínio de
aplicação — o passado». Só que este se tornou, entretanto, «quase
universal». O que ciosa e orgulhosamente se chamava o terri-
tório do historiador foi conquistado por «antropólogos, econo-
mistas ou sociólogos do passado» que já pouco ou nada têm a
aprender com os historiadores. E o que terão estes ainda a ga-
nhar com ciências sociais que parecem incapazes de «elucidar
o mundo»$7? Sem por um momento questionar a honrosa he-
rança do passado nem os incalculáveis benefícios que resultaram
de uma prática interdisciplinar que os Annales generalizaram,
parece todavia admitir-se que chegou o momento de uma pausa
destinada a afirmar a «especificidade» e a «irredutibilidade» de
cada disciplina. O conselho funda-se na constatação de que

64 Annales, E.S.C., n.º 6, Nov.-Dez.1989, p. 1317 (itálico meu).


65 Ibidem, p. 1318 (itálico meu).
66 Ibidem (itálico meu).
67 Ibidem.
68 Ibidem, pa 1525:

a”
Apologia da História Política

o sonho de Durkheim está hoje morto e bem morto: não tendo


surgido uma teoria do social, nem existindo, por conseguinte,
um método comum a todas as ciências sociais, «já nenhum para-
digma maior se propõe ordenar, e menos ainda unificar» o seu
campo de estudos*º.
Torna-se então ainda mais premente para a história definir
a sua identidade. A via recomendada pelos Annales parece ser
a de uma inversão de marcha. Em vez da história imóvel ou
quase imóvel; em vez das permanências que resistem sob a su-
perfície revolta das coisas; em vez das estruturas profundas que
aprisionam configurações históricas de muito longa duração,
à história competirá debruçar-se sobre «os processos através dos
quais o novo advém»7. É que, tudo somado, «o tempo é talvez
o [seu] único verdadeiro objecto específico»!. Analisar esses
processos, captar e desmontar o «movimento» em que se origi-
na a evolução e mudança das sociedades, constituirá então a
única via de afirmação para uma história-ciência que tanto rom-
peu com a «insignificância das narrativas evenemenciais» como
repudiou a «tautologia» das explicações deterministas”2. Regis-
te-se esta desistência de privilegiar qualquer instância explicati-
va da evolução social: os processos de mudança são engrenagens
que trabalham no tempo e em que todos os parafusos são igual-
mente essenciais.
A história estudará pois processos temporais que resultam
naquilo que designamos por evolução «propriamente histórica».
O que a caracteriza? O facto de ser «irreversível, imprevisível
e determinada»?2. Ora esta patente contradição nos termos —
pois se é determinada deveria ser previsível — trai a insanável
ambiguidade de uma história que se pretende redefinir como
disciplina específica sem deixar de ser ciência, quer dizer, uma
explicação científica da mudança social ao longo dos tempos. Dito
por Armando Castro em 1991: «A história como ciência é a

69 Annales, ES. Cm 6 prld20


70 Ibidem, p. 1318.
71 Ibidem.
72 Ibidem, p. 1319.
73 Ibidem.

38
Apologia da história política

disciplina das ciências do homem que teoriza as macrotrans-


formações sociais, assim se distinguindo de disciplinas afins
como a sociologia ou a antropologia.»?é Que sociólogo não diria
ser também esse o objectivo do seu labor? E como teorizar as
macrotransformações sociais sem convocar os grandes mode-
los do marxismo, do funcionalismo ou do estruturalismo, cuja
aplicação acabou por conduzir a uma reificação das categorias
analíticas e a uma concepção mecanicista da causalidade? Parece
que isso se fará realizando «análises em termos de estratégias»,
susceptíveis de revelar toda a «incerteza» que preside ao «jogo
social» e de restituir aos «objectos sociais» o seu carácter de
«conjuntos de inter-relações em mudança»? que apenas são
apreensíveis na própria dinâmica que os constitui. «Estes proces-
sos [...] formam o objecto mesmo da história. Não se pode aceitar
que eles sejam determinados a priori. A relação não é dada,
por exemplo, entre o comportamento de um grupo, a sua com-
posição social e uma consciência política que parecessem decor-
rer uma da outra. É precisamente os modos de relação entre esses
três pólos que o historiador se deve propor elucidar .»76
6. O historiador?! O que o qualifica mais para isso do que
ao sociólogo?! Estar-se-á a dizer que apenas o historiador consi-
dera os fenómenos sociais na sua dinâmica, ao passo que o soció-
logo os apreende artificialmente suspensos numa configuração
estática? Ora não só já víramos que nada impede o sociólogo
de também recortar o seu objecto de estudo na história, como
convirá notar que absolutamente nada obsta a que um fenó-
meno actual seja analisado na sua dinâmica: é o que os sociólogos
fazem todos os dias, pois já Durkheim dissera que «structure is
encountered in becoming». O presente não é mais nem menos
processo do que o passado. A diferença estará então nos objectivos.
O historiador já não procura a estrutura que comanda as rela-
ções entre «o comportamento de um grupo, a sua composição

74 Ler História, n.º 22, 1991. A «história científica», escreve A. Castro,


«procura ordenar e sistematizar um conjunto de processos e estruturas com as
suas relacionações que não são dadas ao conhecimento corrente captar».
75 Ibidem.
76 Ibidem, p. 1320 (itálico meu).

39
Apologia da História Política

social e uma [determinada] consciência política», separando-


-se neste ponto da sociologia. E que procura então? É-nos dito
que procura «elucidar» as relações entre esses elementos. Mas
não apenas não se percebe, uma vez mais, o que o distingue do
sociólogo, como não nos é dito exactamente o que por aí se
entende: se elucidar facultando a «compreensão» dessas relações,
um tipo de conhecimento de reputação duvidosa; se elucidar
através da mera descrição, uma prática «positivista» totalmente
desacreditada; se elucidar através de uma interpretação — que
não se vê como possa ser formulada sem recurso às teorias dispo-
níveis. Restaria a hipótese de elucidar através de uma «explica-
ção causal» (1. e., nomológica). Mas não ficará posta de parte
perante a reconhecida incapacidade da história — e em larga me-
dida da ciência social — em descobrir leis gerais? Aparentemente
— e contraditoriamente — não: é-nos dito que a história deve des-
lindar as múltiplas «ligações causais» se quiser, como lhe compe-
te, dar conta da «complexidade dos processos sociais».
Onde, então, está o problema típico do sociólogo, e onde
está o problema típico do historiador? Onde começa este e acaba
aquele? Não se vê como seja possível, a partir de uma fundamen-
tal comunidade de objectos, teorias e métodos, e de uma mar-
cada afinidade de estilos nos modos de escrever e demonstrar,
discernir uma distinção substantiva. Se ela existe, não respeita
à essência das coisas. À diferença estará no equacionamento tem-
poral e espacial dos problemas, que na história se faz por def-
nição, princípio e sistema. Mas por um lado os pais-fundadores
da sociologia nunca desprezaram a dimensão histórica dos pro-
blemas sociológicos; depois deles, Wright Mills defendeu que
era não só útil, mas indispensável, levá-la em conta; e Giddens
e Bourdieu, mais recentemente ainda, sustentaram, cada um
à sua maneira, a necessidade de recuperar a temporalidade
como parte integrante da teoria sociológica. Por outro lado,
ouvimos falar de uma «história imediata» ávida de integrar o
presente, e até de uma história, esta sim visionária, interessada
em prospectar o futuro””. De modo que os caminhos para a

77 Le GofF, Les retours..., op. cit., p. 165.

40
Apologia da história política

saída da indefinição disciplinar em que a história mergulhou


estão cada vez mais incertos.
E, no entanto, não é menos verdade que nenhum historia-
dor se confunde com qualquer outro cientista social. Instinti-
vamente, ele sabe que «faz» uma coisa diferente. Só que essa
diferença não ressalta primordialmente nem decisivamente da
comparação entre os objectos e os métodos de pesquisa. Ela re-
sulta, no fundamental e afinal de contas, da especificidade do
seu ofício. Quer dizer, de um tipo de actividade marcada por
um estilo pessoal e uma dimensão empírica essenciais. Os arqui-
vos do historiador e os seus documentos; as histórias e as cróni-
cas herdadas das gerações anteriores, desempenham um papel
determinante na escolha dos seus temas e na definição do seu
trabalho, por muito que «construa» os seus objectos e apure
os seus métodos; e as teorias e conceitos que acolhe hão-de
ter sempre mais um carácter sugestivo e instrumental do que
a função de «princípio selectivo e unificador»? que desempe-
nham na Ciência a sério. No ofício do historiador é difícil,
senão impossível, «desligar a reflexão sobre o objecto da prática
concreta da investigação»”?. Por aqui se começa a ver — mas
apenas começa — que a história ou há-de ter sempre algo de
«história política» ou deixará de sê-lo. François Siminad previu
isso mesmo com grande desinibição no princípio do século:
«Como ciência autónoma que seria completa por si mesma, a
história não tem razão de ser e está destinada a desaparecer.»80
À sinistra profecia tinha como pressuposto o de uma história
tornada ciência, isto é, que tratasse os factos sociais «como col-
sas», tal como Durkheim recomendava, alheando-se da sin-
gularidade e contingência das coisas humanas.
7. Talvez porque a possibilidade daquela «ameaça» de desa-
parecimento, pronunciada em 1903, não escapava inteiramente
aos historiadores que fundaram os Annalesem 1929, as relações

78 Karl Popper, 4 Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, Lisboa, 1966, vol. II,
p. 261.
79 Gérard Noirel, «Pour une approche subjectiviste du social», Annales, E.S.C.,
n.º 6, Nov.-Dez. 1989, p. 1441.
80 Cir. por Gérard Noirel, ibidem, p. 1436.

41
Apologia da História Política

entre a história e a sociologia francesas foram sempre feitas de


tensão e desconfiança. Por causa disso, a definição de história
social permaneceu vaga e ambígua. Receava-se que, deixando
o seu conteúdo ser definido pela sociologia, fosse esta que viesse
a anexar a história e a federar as ciências sociais. À sociologia
não está hoje em posição de alimentar tais ambições. Marcada
que foi, nas últimas duas décadas, «por uma verdadeira explosão
de paradigmas», «parece viver em regime de anarquismo meto-
dológico»8!. Mas na hora de refundar a sua «originalidade»,
a história francesa como que revive o dilema que a atravessou
quando há 60 anos se definiu por ruptura com a chamada his-
tória «tradicional» ou «positivista». O que aflora nos textos de
1989 que responderam ao apelo lançado pelos Annales no seu
n.º 2 de 1988, é novamente a oscilação entre o paradigma das
ciências da natureza e o paradigma das «ciências do espírito»;
entre a tradição alemã representada pela «sociologia compre-
ensiva» de Weber, e a tradição francesa representada pelo método
sociológico de Durkheim; entre o subjectivismo hermenêutico
e o objectivismo sociológico; entre o postulado da unidade de
todas as ciências, e o lugar à parte das humanidades82. Esta osci-
lação interessa-me. Ela trai as origens e por assim dizer uma
natureza irreprimível da história que me preparo para invocar
como fundamento para a apologia da história política.
Ão contrário do que tem sido dito, há quem filie Lucien
Febvre — diferentemente de Marc Bloch — na «idade hermenêu-
tica» da historiografia francesa. Também ele entendia as épocas
da história como totalidades ou conjuntos definidos, à maneira
alemã, como Zusammenhiinge e, portanto, como períodos his-
tóricos dotados de uma coerência própria e caracterizados pela
sua distinta singularidade. Havia que «compreendê-los», mostrar
como se ligavam entre si os seus elementos constitutivos, quer
dizer, «restituir o seu sentido», uma exortação que Duby por certo
não deixaria de subscrever, sem que todavia aceitasse ser acusado

81 José Machado Pais, «Durkheim: das Regras do Método aos métodos des-
regrados», Lisboa, Análise Social, n.º 131/2, pgs. 247 e 241.
82 Gérard Noirel, op. cit.

42
Apologia da história política

de empirismo ou psicologismo. Quanto a Lefebvre, «Pode-se


mesmo pensar que reside aí o centro da sua epistemologia, bem
mais próxima de Seignobos do que se quis dizer»83. Foi só na
década de 50, com Labrousse e Braudel, que a história quanti-
tativa veio destronar, e enterrar definitivamente, a tradição her-
menêutica em que ainda se filiara um dos pais dos Annales.
De então em diante o trend, as tendências de longa duração,
rompendo através dos limites cronológicos do que se pensava
serem épocas com sentido intrínseco e unidade própria, substi-
tuíram o Zusammenhang enquanto princípio de inteligibilidade
histórica. Sabe-se o que esteve por trás desta ruptura funda-
mental. Se a história quisesse ser científica, tinha de romper com
o senso comum, deixando de submeter os seus questionários à
ditadura das fontes para passar, tal como a ciência, a «construir
o seu objecto». É que o objectivo já não era compreender uma
época e os seus homens, já não era «reconstituir uma evolução»,
mas sim «explicar» (causalmente) uma e outra. A. Burguiêre qua-
lifica a mutação de «revolução coperniciana», e na verdade não
parece exagerar. Mas sem por um instante pôr em dúvida que
ela representou a exaltante passagem da história da «arte da evo-
cação à ciência da análise e da interpretação», sempre observa
que «a mutação se fez por si mesma sem que fosse claramente
designado o desafio epistemológico que ela representava para o
historiador»84. Multiplicaram-se os domínios de pesquisa espe-
cializados. Quanto mais se intensificava esta tendência para a
especialização, mais se tornava evidente que a realidade histórica
é «total»: que tudo se implica mutuamente; que o económico
é cultural, que o social é económico, e por aí fora. Só que, para-
doxalmente, quanto mais a história se especializava, menos os
saberes produzidos se revelavam cumuláveis. Como alternativa
ao determinismo marxista ou estruturalista, a história das men-
talidades de todos os matizes procurou, a partir do mundo das
significações, «criar um efeito de totalização sem ter de colocar

83 G. Noirel, op. cit., p. 1442.


84 A. Burguitre, «De la compréhension en histoire», in Annales, E.S.C.,
n.º 1, Jan-Fey 1990, pp. 124-5 (itálico meu).

43
Apologia da História Política

em relação os diferentes níveis da realidade, nem de sublinhar


as suas interferências ou hierarquizar os factores de evolução»).
Tal como antes dela a história quantitativa já tentara, sem êxito,
proporcionar uma «abordagem» ou «visão unificadora»8º.
Em resposta ao apelo lançado pelos Annales em 1988,
Gérard Noiriel sugere que se empreenda um acrobático esforço
de imaginação para «Construir o paradigma subjectivista»8”.
Na verdade, para isso não é necessária nenhuma imaginação
extraordinária: basta desenterrar a tradição oitocentista alemã,
apostada em fundar conhecimento válido «sobre o singular e
a experiência vivida» (Erlebnis)88. Esta ressurreição seria combi-
nada com uma sistemática «tradução» e «adaptação» das teorias
e conceitos das outras ciências sociais, na linha do que também
Lefebvre já recomendara, como alternativa à «utopia pluridisci-
plinar triunfante depois da Segunda Guerra Mundial»8?. Mas,
para que este retorno não signifique uma reedição dos «esque-
mas da história tradicional» que tanto repugnam a um Jacques
Le Goff, a operação tem de se amparar numa nova teoria do
conhecimento científico extraída da experiência dos praticantes,
e não produzida pelas especulações epistemológicas dos filóso-
fos. Trata-se de uma «epistemologia prática» ou «relativismo
epistemológico» segundo o qual é científico o que merecer a
aprovação consensual do «conjunto dos indivíduos que prati-
cam a mesma especialidade, que beneficiaram da mesma for-
mação, que utilizam os mesmos jogos de referências e que por
conseguinte possuem um conhecimento tácito do seu ofício,
transmitido mais pela prática do que por regras escritas»0. Mas
não só o expediente não parece possuir grande consistência
ou elevação intelectual, como o problema está em que a histó-
ria, como lembrava Furet, é uma disciplina demasiado pouco

85 A. Burguiêre, ibidem, p. 130 (itálico meu).


86 Idem, Zbidem, pp.129 e 134-5.
87 «Pour une approche subjectiviste du social», in Annales, E.S.C., n.º 6,
1989, pp. 1435-59.
88 Ibidem, p. 1437.
89 Ibidem, p. 1450 (itálico meu).
90 Ibidem.

44
Apologia da história política

rigorosa para que os próprios oficiais do mesmo ofício estejam


de acordo sobre o que é ou deixa de ser científico. E não se
esqueça que Duby ia ainda mais longe, declarando formalmente
não acreditar na objectividade do historiador.
8. Na mesma linha de um revisionismo que se assume mal
ou não mede ou não quer medir toda a extensão das suas con-
sequências, depara-se-nos no n.º 1 dos Annales de 1989 um
longo artigo de François Furet sintomaticamente intitulado
«O ano de 1789»: um artigo cujo título é uma data, uma data
que se refere a um ano apenas, e um ano que mudou a França,
e o mundo. Mil setecentos e oitenta e nove, não contendo a
revolução inteira, contém a sua parte essencial e «comporta
todos os elementos dos actos que se vão seguir»?! Em poucos
meses, a nação tomou o lugar do rei e o cidadão substituiu o
súbdito; foi destruída a monarquia e arrasada a sociedade aris-
tocrática. Esta «dupla ruptura» ficou-se a dever a uma decisão
consciente dos deputados do terceiro estado. «Os argumentos
trocados», registados nos documentos que Furet analisa, «mos-
tram à evidência» que assim foi, apesar das «dificuldades» que
se enfrentaram e dos «perigos» que se entreviram?2. Como tan-
tas vezes acontece, a história foi literalmente levada pelos acon-
tecimentos. Ou, para ser fiel à formulação de Furet, foi levada
pelo «encadeamento das ideias com as circunstâncias»?2. E não
será isto a essência da história política?
Reproduzindo com notável fidelidade o estado da discipli-
na, o revisionismo dispara em vários e contraditórios sentidos.
A crise dos paradigmas deterministas suscita adeptos de uma
«história social» entendida como «história relacional que não
concede nenhum privilégio explicativo à «instância estritamente
socioprofissional»4. Quer isto dizer que a análise das classes
e relações de produção segundo o marxismo provou a sua infe-
cundidade. Do que se trata agora é de descrever as múltiplas

21 E Furet e R. Lévi, pp. 3-24.


22 Idem, p. 20.
93 Idem, ibidem.
94 Alain Boureau, «Propositions pour une histoire restreinte des mentali-
tés», Annales, E.S.C., n.º 6, 1989, p. 1492.

45
Apologia da História Política

relações que conformam um objecto social, de discernir «uma


zona fronteiriça de intricação», uma espécie de interface, entre
as práticas individuais e as «globalidades» em que se inserem?>.
Não vale a pena hierarquizar determinações. À história terá de
se habituar a conviver com «uma forte indeterminação das causas
e dos efeitos». É o que propõe Giovanni Levi que, conquanto
o não resolva, ao menos enfrenta explicitamente o velhíssimo
problema que continua a atormentar as ciências sociais neste
fim de século, confrontadas, ainda e sempre, com o mistério
da mudança social, que não pode ser exlicada sem levar em conta
uma ordem de fenómenos impenetrável à ciência: «a existência
irredutível de uma certa liberdade em relação às formas rígidas
e às origens da reprodução das estruturas de dominação»?”.
O eterno problema das relações entre o indivíduo e a sociedade
não lhe parece bem resolvido por Bourdieu, que deixa «no vago
a actividade dos actores, concebida somente como o resultado
'de inumeráveis operações de ordenação através das quais se
reproduz continuamente a ordem social'»?8. Levi conclui que
não podemos «aplicar os mesmos procedimentos cognitivos aos
grupos e aos indivíduos»??, sem no entanto nos dizer como
poderemos conceber a unificação epistemológica desses conhe-
cimentos de natureza diversa. A narrativa biográfica elucida
percursos individuais. Ela permite «verificar o carácter inters-
ticial [...] da liberdade de que dispõem os agentes»!00. Mas nem
todas as biografias do mundo, juntas e somadas, permitem gene-
ralizar sobre a dimensão e a elasticidade desses interstícios. À li-
berdade de Rodrigo foi maior ou menor do que a de Pombal?
A de Fontes maior ou menor do que a de Cabral? Ora o historia-
dor só pode solucionar o problema da maneira que lhe é própria:
avaliando os «interstícios» empiricamente, em cada caso con-
creto — e selando com isto o seu divórcio do cientista social.

25 A. Boureau, op. cit. p. 1502.


26 Idem, ibidem, p. 1492.
27 Giovanni Levi, «Les usages de la biographie», Annales, E.S.C., n.º 6, 1989,
p. 1334.
28 Idem, ibidem, pa 1335:
29 Idem, ibidem.
100 Idem, ibidem, prisBs:

46
Apologia da história política

Porque ou se divorcia ou há-de para sempre confundir-se


com ele, para o melhor e o pior. Um artigo de Bernard Lepetit,
publicado no n.º 5 dos Annales de 1993, começa por afirmar,
com a naturalidade de quem constata uma evidência trivial, que
«História e sociologia constituem dois projectos de conhecimento
indiscerníveio1O1: a dimensão espácio-temporal de modo algum
é exclusiva da primeira, e ambas possuem uma «ambição explica-
tiva totalizante». De resto, «todas as ciências sociais são ciências
históricas» porque, visando elas «o curso do mundo», os seus «fac-
tos» só se dão ao investigador no «desenrolar temporal»!02. Ao
preço de romper com a tradição hermenêutica; de rejeitar o «senso
comum» como o seu ponto de vista próprio; de abandonar a nar-
rativa que era a sua forma natural; de renunciar aos seus assun-
tos típicos e específicos, a história, não se tendo tornado científica,
veio a confundir-se com as ciências sociais, e a hipotecar-lhes o
seu destino numa altura em que mais do que nunca é posta em
dúvida a capacidade destas para explicar — e portanto prever —
o mundo em que vivemos. A queda estrondosa do muro de Ber-
lim, concretamente e simbolicamente, há-de lembrar-nos por
muito tempo a irrisória fragilidade da nossa Ciência.
9. O historiador convertido às ciências sociais e confron-
tado, por isso, com a problemática originalidade da sua discipli-
na, ficará ainda mais perplexo perante uma invasão da história
pela sociologia que nos anos 70 buscou, a partir dos Estados
Unidos, institucionalização académica sob a designação de «so-
ciologia histórica». Dos seus praticantes diz Charles Tilly que
não se tornaram historiadores!!2. Acontece apenas que as suas
teorias sociológicas, visando «explicar os padrões e os efeitos de
estruturas sociais e da acção de grupo em termos potencialmente
generalizáveis»104, são enraizadas ou ancoradas no espaço-tempo
l01B, Lepetit, «Une logique du raisonnement historique», p. 1209 (itálico
meu).
102 Idem, ibidem.
103 Charles Tilly, As Sociology Meets History, New York, Academic Press
Inc., 1981, p. 43.
104 Theda Skocpol, «Emerging Agendas and Recurrent Strategies in Histo-
rical Sociology», in T. Skocpol (ed.), Vision and Method in Historical Sociology,
Cambridge University Press, 1984, p. 376.

47
Apologia da História Política

histórico. Todavia não se reconhecem como historiadores pela


razão, que só em aparência é simples, de que a história, isto
é, o que realmente aconteceu de importante no mundo, não
lhes interessa. Mas não escreveu François Furet que isso tam-
bém já não interessa ao novo historiador!95? Com efeito, não
há nada na agenda da «sociologia histórica» que não possa ser
adoptado como programa possível da Nova História. Tal como
esta, aquela admite toda a variedade de objectos; adapta-se a
micro e a macroanálises; conforma-se com a maior diversidade
de estilos e propósitos; tanto pode utilizar a história comparati-
va como concentrar-se na interpretação de um único contexto
ou subsumir vários contextos sob um só modelo!96,
Uma corrente desta «sociologia histórica», a «sociologia
histórica analítica», produziu uma obra de grande renome,
States and Social Revolutions, da autoria de Theda Skocpol197,
que cabe ser aqui convocada em virtude das novas perspectivas
que veio abrir à análise histórica da mudança social, mas cujos
limites, já velhos, afinal uma vez mais confirmou. Ao claudicar
perante o que Philip Abrams apontava como sendo o nó górdio
da análise social — «O problema da acção [...] do indivíduo e
da sociedade, consciência e ser, acção e estrutura»!08 — Theda
Skocpol recorda-nos, sem o querer nem admitir, aquilo que após
três quartos de século de história-ciência subsiste e resiste como
assunto central e tarefa típica do historiador: explicar o que
afinal só é explicável em termos da acção dos homens; tornar
inteligíveis comportamentos humanos passados; mostrar como
a história e a sociedade são feitas «simultaneamente e em igual

105 O historiador «deixou de ter a pretensão de contar o que se passou,


ou mesmo o que se passou de importante, na história da humanidade». F. Furet,
LAtelier de Phistoire, op. cit., p. 76.
106 Tentei resumir a agenda da sociologia histórica no artigo «A sociologia
histórica de Theda Skocpol», Análise Social, n.º 100, 1988, pp. 489-510.
107 Syates and Social Revolutions (A Comparative Analysis of France, Russia
and China), Cambridge University Press, 1979.
108 «The problem of agency [...] of individual and society, consciousness
and being, action and structure», Philip Abrams, Historical Sociology, Open Books
Publishing Ltd., 1982, pp. xIN-XIV.

48
Apologia da história política

medida» pela «constante e deliberada acção individual» e pelos


condicionalismos do contexto; como a acção individual, «em-
bora deliberada, é feita pela história e pela sociedade»!09. A obra
de Skocpol pretende ser um contributo para renovar a teoria
macrossociológica e representa mais um esforço para superar
a antinomia acção/estrutura sem no entanto, por imperativo
científico, abandonar a perspectiva estritamente estrutural que
considera como a única susceptível de fazer descobrir as «regu-
laridades causais» (nomológicas) que explicam as grandes revolu-
ções sociais que, em tempos e espaços tão afastados e diferentes
entre si, provocaram a queda do antigo regime em França, na
Rússia e na China.
À sociologia não conseguiu até hoje superar tal antinomia,
nem imagino como isso possa vir a acontecer por meio da sua
reconstituição, conforme sugere Giddens, como um processo
temporal, quer dizer, concebendo e tratando a sociedade como
um fenómeno em permanente estruturação. Esta mudança de
ângulo deslocaria o sociólogo para o terreno do fluxo contínuo
do tempo, instalando-o na diacronia e privando-o de ponto de
mira estável a partir do qual pudesse surpreender as configu-
rações estruturais que determinam as formas transitórias do
devir social, e cuja revelação permanece o desígnio irrenunciá-
vel da sociologia. Se fosse possível explicar a mudança median-
te a enumeração descritiva do que vai mudando ao longo do
tempo, então não haveria, como Giddens sustenta que já não
há, e como Abrams profetiza que deixará de haver, «distinções
lógicas ou sequer metodológicas entre as ciências sociais e a
história»! 10, Mas, em virtude dos seus próprios requisitos episte-
mológicos, aquela maneira de explicar a mudança social não está
ao alcance da sociologia. A separação, feita para fins analíticos,
entre sincronia e diacronia é algo apenas superável pela escrita
da história na sua forma tradicional, em que a narrativa é em
si mesma uma estratégia de explicação na qual ficam subsumidas
109 P Abrams, op. cit.
Ho Anthony Giddens, Central Problems in Social Theory (Action, Struc-
ture and Contradiction in Social Analysis), Londres, The MacMillan Press Ltd.,
1979;"p: 230:

49
Apologia da História Política

a teoria, a análise e a demonstração. Isto é assim, e pode ser


assim, porque, como até Charles Tilly reconhece, a história,
«enquanto fenómeno, é o efeito cumulativo de acontecimentos
passados sobre acontecimentos do presente»! ll, De modo que
apenas restam duas alternativas: ou se encara o acontecimen-
to como um resultado da acção humana, e neste caso o histo-
riador «aborda a actividade humana ao nível mais próximo da
sua liberdade de invenção»! 12; ou o sociólogo procede como
se toda a acção fosse o efeito de uma lógica abstracta da interac-
ção entre estruturas. Quer dizer, ou se opta por um tipo de
análise «objectivista» («purposive»), ou por um tipo de análise
«causal-estrutural»! 13,
É para esta última que vai a preferência de Skocpol. Não
que negue a existência de interesses racionalmente percep-
cionados pelos actores sociais. Simplesmente, não apenas são
interesses de classe — e portanto estruturalmente determina-
dos —, como a sua prossecução não depende da vontade nem
das intenções ou objectivos dos grupos e indivíduos envolvidos,
mas sim de condicionalismos objectivos que lhes são exteriores
(oportunidades, recursos políticos e logísticos, grau de mobi-
lização das massas e das elites, eficácia organizativa dos grupos
em conflito). O grau de envolvimento e as modalidades de pro-
tagonismo nas grandes revoluções sociais são exclusivamente
determinados pela lógica interna dos movimentos revolucio-
nários, a qual, por seu turno, é inteiramente alheia à ideolo-
gia e aos objectivos políticos dos actores sociais. Os limites e
fraquezas da abordagem estritamente causal-estrutural tornam-
-se particularmente evidentes na análise do desfecho das três
grandes revoluções consideradas. O tipo de regimes políticos
e de estruturas do Estado e da sociedade a que deram lugar é
visto como uma resultante das circunstâncias em que as revolu-
ções eclodiram, quer dizer, como um produto pré-inscrito nas

11 Charles Tilly, From Mobilization to Revolution, Reading, Massachu-


setts, Adison-Wesley, 1978, p. 12 (itálico meu).
12 E Furet, op. cit., p. 30.
113 M. E Bonifácio, «A Sociologia histórica de Theda Skocpol», op. cit.,
pp. 496-7.

50
Apologia da história política

modalidades de colapso das estruturas do Estado de antigo


regime, no padrão dos conflitos revolucionários que se lhe se-
guiram, nas formas de mobilização camponesa ocorrida durante
a fase de reedificação revolucionária do Estado e nos constran-
gimentos exercidos ao longo de todo o processo pelo contexto
internacional. Segundo Skocpol, a ideologia, o estilo e o método
pessoais de Robespierre, Lenine e Mao nada contaram nem mol-
daram. A Revolução Francesa resultou num regime demo-liberal;
a revolução russa no totalitarismo estalinista; e a revolução chine-
sa numa ditadura comunista por razões cuja explicação, segundo
Skocpol, dispensa a referência às ideologias e desígnios das van-
guardas que conduziram os processos revolucionários. Estas van-
guardas e aqueles dirigentes limitaram-se a conquistar o Estado
em condições que determinaram, depois, as modalidades da
sua construção e portanto da sua forma, independentemente
das orientações ideológicas e da visão política dos que nela in-
tervieram. No final do livro, sobra um rol de perguntas a que
nenhuma teoria geral pode responder. O que levou ao terro-
rismo democrático de 1792-4? o que levou à revogação da NEP
e ao holocausto de milhões de camponeses russos? o que levou
à chacina institucionalizada pela revolução cultural chinesa?
Qualquer destes acontecimentos mudou as vidas de milhões
e milhões de seres humanos e mudou o curso da história da
humanidade. Sem dúvida que os podemos apreender sob a cate-
goria de revoluções sociais. Mas apenas existe uma maneira de
os compreender na singularidade de cada um deles: narrá-los.
E apenas existe uma maneira de continuar a responder às per-
guntas que subsistem: narrar sempre mais.
10. A avaliar pelo número de Junho de 1989 da American
Historical Review, o debate sobre o estado da história, nos Es-
tados Unidos, transformou-se num combate aberta e assumi-
damente político pelo controlo da disciplina, quer dizer, pela
definição do que devam ser os seus assuntos legítimos. Por um
lado, o deliberado terrorismo epistemológico ali instalado pela
história intelectual pós-estruturalista estabeleceu como única con-
vicção positiva a afirmação de «um mundo sem origem ou ver-
dade» onde não existem «factos objectivos, verdades universais,

5
Apologia da História Política

fundações permanentes». Após anos e anos de crítica e revisão


dos paradigmas, o que ainda sobrevivia como consenso míni-
mo que justificava e possibilitava a actividade do historiador —
a saber, a existência de uma realidade histórica penetrável ao
conhecimento — foi arrasado pela lava pós-moderna, que nos
deixou literalmente soterrados sob a demonstração de que ape-
nas e somente existe «a infinita multiplicação de perspectivas,
a inesgotável proliferação de interpretações ingovernáveis»! lá,
Por outro lado, o absoluto relativismo cultural reivindicado por
minorias em guerra pela sua afirmação política na Academia,
exemplificado pela proliferação agressiva da «gender history»,
relegou o debate sobre a natureza, os meios e os objectivos da
investigação histórica para o reino das ninharias, e substituiu-
-o pela questão suprema de saber «como seria uma história genui-
namente democrática»! !5. Nesta perspectiva, toda a história
nacional e, por maioria de razão, toda a história política não
passam de uma deturpação elitista do passado, destinada a privar
de história a esmagadora maioria dos humilhados e ofendidos
que são todavia os seus únicos protagonistas legítimos. As «nar-
rativas dominantes» que as constituem são meras «justificações
teleológicas» dos actos discricionários do poder, são «histórias
que pelo que contam legitimam as acções dos que moldaram
leis, constituições e governos», são mendazes «histórias ofi-
ciais»! 6, Esta corrente basista, socialista e feminista, cujos culto-
res se intitulam «historiadores de “Outros'», dos que são ou foram
silenciados pela história dita oficial, diz-se, como não custa a
compreender, «hostil à teoria pós-estruturalista em geral»!17.
Se o não fosse, estaria embarcada numa guerra ilusória, cujo

14 David Harlan, «Reply to David Hollinger», American Historical Review,


vol. 94, n.º 3, Junho de 1989, p. 625. As peças principais deste dossier, publica-
das no mesmo número da revista, são: David Harlan, «Intellectual History and
the Return of Literature», pp. 581-609; e David A. Hollinger, «The Return of
the Prodigal: The Persistence of Historical Knowing», pp. 610-621.
115 Joan Wallach Scott, «History in Crisis? The Others Side of the Story»,
American Historical Review, vol. 94, n.º 3, Junho 1989, p. 692.
116 Idem, ibidem, p. 690.
117 Idem, ibidem, p. 691.

52
» Apologia da história política

objecto não passaria de mais uma entre as mil e uma imagens


refractadas num labirinto de espelhos: apenas mais uma «inter-
pretação ingovernável». Tudo o que reclama é que se proceda
à terraplanagem do terreno histórico, reconhecendo-se que ne-
nhuma história é melhor do que outra, que tudo são histórias
igualmente válidas e igualmente falsas ou verídicas, e que estas
múltiplas histórias do passado são irreconciliáveis entre si. Por
isso, contá-las há-de envolver sempre «lutas pelo poder e conhe-
cimento»!18.
De modo que, segundo John E. Toews! !?, se pode actual-
mente considerar a historiografia americana dividida em dois
campos políticos, opostos já não em torno do que se entende
como passado e de como este pode ou deve ser estudado, mas
sim em torno dos limites— ou ausência deles — que se opõem
— ou não se opõem — à nossa liberdade de o definir de raiz.
Um campo conservador defende que o inventário daquilo que
no passado é significativo (Z. e., histórico) nos é dado pelo que
está contido nos documentos, que seriam o registo razoavel-
mente fiel de uma selecção consensual acordada através da «inte-
racção de 'sujeitos' ou actores históricos autónomos». Um outro
campo, onde sob este aspecto os «desconstrucionistas» se jun-
tam com os «historiadores de “Outros'», defende, pelo contrário,
que a liberdade do historiador inclui a liberdade de «moldar o
registo ou documento histórico herdado»!20, No limite e ideal-
mente, o «historiador de “Outros'» deveria falar de quem não
deixou nem vestígio nos arquivos nem rasto na história. Por
trás destes dois campos historiográficos estão duas visões do
mundo antagónicas. Uma que admite a racionalidade política,
traduzida em esforços, interessados ou interesseiros e sem dúvi-
da conflituosos, mas inteligíveis, para organizar a vida pública.
Outra que vê na política apenas mais uma instância de manifes-
tação da perversa luta pelo poder que permeia todos os interstí-
cios da vida social, e privada. No primeiro caso, os documentos

118 7. W. Scott, op. cit.


1197, E. Towes, «Perspectives on “The Old History and the New'», Ameri-
can Historical Review, vol. 94, n.º 3, Junho 1989, pp. 693-698.
120 Idem, ibidem, p. 693.

53
Apologia da História Política

legados pelas gerações passadas exprimem um consenso atingi-


do através do conflito; no segundo, constituem um registo ma-
nhoso fabricado pelo Poder em benefício próprio. Naquele,
os documentos políticos exprimem uma espécie de «razão pú-
blica» que proporciona «um contexto ordenador para todos
os idivíduos numa comunidade»!21, incluindo os que nada dis-
seram ou fizeram; neste, que postula a pluralidade de perspec-
tivas radicalmente irreconciliáveis entre si, não existe nenhum
«contexto ordenador» universal, nenhuma espécie de unidade
ou coerência histórica, nenhuma possibilidade de hierarquizar
os assuntos e sujeitos da história. E o historiador, se quiser ser ho-
nesto, há-de proclamar que «a ambiguidade, o paradoxo, a incer-
teza»!22 pairam sobre tudo o que ele estuda, seja lá o que for.
Deste estado de coisas alguém tirou uma conclusão: «Como
uma ampla comunidade de discurso, como uma comunidade
de académicos unidos por objectivos comuns, regras comuns
e propósitos comuns, a disciplina da história cessou de exis-
tir»!23 Eu diria que há claramente duas disciplinas da história,
dois tipos distintos de saber histórico, divididos entre os dois
termos de uma antinomia recorrente sob designações variáveis:
história tradicional/história-ciência; história política/história
social-cultural; história evenemencial/história das estruturas;
história narrativa/história analítico-demonstrativa. À oposição
entre estes dois tipos de história origina-se e funda-se na cisão
entre o senso comum e o conhecimento científico que marcou,
no século XVII, o nascimento da Ciência e que, por conseguinte,
constituiu esta em ruptura com as humanidades. Depois, no
século XIX, as ciências sociais nasceram, conforme o nome indi-
ca, sob o signo da ciência. Na primeira metade de Oitocentos
a história, já velha de séculos, fixou uma série de regras e proce-
dimentos destinados a garantir uma rigorosa fundamentação
documental dos factos e da sua interpretação. Mas nessa altura

1217. E. Towes, ibidem, p. 696.


122 [ awrence Levine, «The Unpredictable Past», American Historical Review,
vol. 94, n.º 3, Junho 1989, p. 679.
123 Peter Novick, cit. por John E. Toews, op. cit., p. 698.

54
Apologia da história política

não lhe ocorreu desconfiar que os arquivos, ainda que devida-


mente escrutinados, lhe mentissem, tal como Galileu e Des-
cartes haviam descoberto que eram enganados pelos sentidos
quando observavam a Natureza. Esta desconfiança apenas se
instalou na viragem para o século XX. A história adoptou então
um «ponto de vista científico». Ignorou o que os contempo-
râneos de outras épocas haviam pensado e dito a respeito do
mundo e de si mesmos, e passou a «descodificar» os seus discur-
sos e a «construir» os seus problemas, tal como o físico faz as
suas experiências. Tornou-se história-ciência social. Já entrevi-
mos até onde isso actualmente a conduziu.
13. Quando Lawrence Stone, uma autoridade da Past &
Present com créditos indisputados no domínio da história social,
resolveu dizer «basta!» num artigo de 1979 intitulado «The Re-
turn of Narrative»!24, estava ainda longe de poder imaginar a
devastação da história que o desconstrutivismo literário se pre-
parava para lhe infligir nos anos 80. Mais recentemente (1991),
Stone caucionou um debate sobre «história e pós-modernismo»
nas páginas da Past & Present, mas limitou-se a dar o mote para
que outros esgrimissem uma polémica em que não parece pes-
soalmente muito empenhado. Compreende-se. Postulando que
«nada há para além do texto», que «o real é tão imaginado como
o imaginário»!25, o pós-modernismo troca a história pelo criti-
cismo literário bebido em Jacques Derrida ou pela antropolo-
gia simbólica aprendida em Clifford Geertz, e substitui o labor
do historiador, «novo» ou «velho», pela análise de textos que
remetem sempre para outros textos, numa sucessão indefinida
de remissões no termo das quais, pór definição, nunca se vem
a encontrar qualquer contexto ou referente exterior e au-
tónomo. Real e imaginário são «meramente um jogo de códi-
gos semióticos que governam todas as representações da vida;
[...] o material dissolveu-se na significação»!26. A polémica

124 Past & Present, n.º 85, 1979.


125 Lawrence Stone, «History and Post-Modernism», Past & Present, n.º 131,
Maio 1991, p. 217.
126 Idem, ibidem.

E
Apologia da História Política

sobre «história e pós-modernismo» é na realidade uma polémica


estritamente epistemológica. Não está em causa reflectir sobre
o que a história é ou pode ou deve ser, mas sim discutir as con-
dições mesmas de possibilidade do conhecimento histórico —
como de outro conhecimento objectivo qualquer. Ernest Gell-
ner, que não passava por ser uma mente simplória, explicou
que a aplicação dos pressupostos e «teorias» pós-modernas tor-
nava impossível para a antropologia «descrever o que quer que
seja de uma forma razoavelmente precisa, documentada e tes-
tável». E conclui: «Dado que as universidades já empregam pes-
soas cuja missão é explicar o porquê da impossibilidade de
conhecer (nos departamentos de filosofia), desconhece-se, ainda,
o motivo pelo qual devem os departamentos de antropologia
empreender esta mesma tarefa de forma algo amadorística.»!27
A aplicação dos pressupostos e das «teorias» pós-modernas
à história conduz exactamente ao mesmo resultado a que con-
duz em antropologia. Stone é historiador, não é filósofo. Como
tal, discute com os argumentos que lhe são próprios. Ora os
argumentos do historiador não são «em última análise epis-
temológicos, mas empíricos»!28. Estes argumentos empíricos
são nada menos do que os «factos» extraídos dos documentos,
a que agora se chama textos, dizendo-se que são ainda textos os
tais «factos» que o historiador exibia. Mas «se não há nenhuma
realidade fora da língua (texto, discurso), então não é possível
escrever qualquer espécie de história»!2?. O enjeu colocado pela
história pós-moderna, ou pelo pós-modernismo em história,

1267, Stone, zbidem.


127 Ernest Gellner, Pós-Modernismo, Razão e Religião, Lisboa, Instituto Piaget,
1994, pp. 48-49.
128 Tawrence Stone, «History and Post-Modernism — Il», Past & Present,
no 155, Mato [992 pi 98.
129 Idem, ibidem, p. 191.
«No working historian, however philosophically sophisticated, can write a
sentence of history without thinking that something in fact happened back there;
that there was a real world back then, independent ofour perception ofit, and that,
if the sources are available, one's job is to describe and analyze some aspect of
that world». Bernard Bailyn, On the Teaching and Writing of History, Hanover,
New Hampshire, University Press of New England, 1994, p. 74.

56
Apologia da história política

tanto escapa à «velha» como à «nova história», na medida em


que põe em causa a viabilidade da própria história, de qualquer
tipo que ela seja, pelo menos sob uma qualquer forma ainda
reconhecível como tal apesar das transformações sofridas pelo
contágio das ciências sociais.

gi
O]

Os «retornos»

12. Em 1979 Lawrence Stone publicou o artigo que acabo


de referir, «The Return of Narrative», aliás reeditado em 1981
e 1987. Foi o primeiro balanço crítico, extensivo e sistemático
das realizações da Nova História desde os anos 50, numa altura
em que o quantitativismo, já coroado de glória no domínio da
demografia, fizera a sua entrada triunfal numa história econó-
mica muito sofisticada e a que logo se chamou «nova», porque
já estava velha a de Labrousse e de Braudel. Como vimos, as
advertências de Stone apenas encontraram eco oficial nos An-
nales em finais da década de 80. Na realidade, já tudo tinha sido
dito por Stone dez anos antes, não só no artigo citado, que
foi o mais célebre, como até num outro escrito em 1976, «The
Future of History», também republicado em 1987 sob o título
«History and the Social Sciences in the 20h Century»!30, Os
«retornos», a que as actas do Congresso Internacional sobre o
estado da história, realizado em Santiago de Compostela em
1993, dedicam metade de um volume!3!, foram pois há muito
anunciados. Anunciados — e reclamados, em nome do im-
perativo de devolver à história, submersa nas ciências sociais,
a identidade que todos reconhecem que se tinha vindo a diluir.
Para Roger Chartier, a «tomada de consciência» pelos historia-
dores de que a história, toda ela, é sempre «uma narrativa»,

130 In The Past and the Present Revisited, Londres, Routledge & Kegan Paul,
1987 (1.º ed., 1981). Aqui se encontra igualmente republicado o artigo «The Re-
turn of Narrative».
131 Historia a debate, op. cit. Trata-se das actas do Congresso Internacional
celebrado de 7 a 11 de Julho de 1993 em Santiago de Compostela e publicadas em
1995. Três vols.: 1. Pasado Y futuro. II. Retorno del sujeto. III. Otros enfoques.

58
Apologia da história política

viera precisamente abrir caminho à recuperação dessa identida-


de perdida!32,
Mas, sintomaticamente, tanto Chartier como Stone falam
em retorno da narrativa, e não em retorno do acontecimento
e do sujeito enquanto autor de acontecimentos. Ora, com efeito,
foi em consequência de estes terem sido banidos que a narra-
tiva caiu em desuso: ela não foi, por si e em si mesma, objecto
de uma condenação específica. Por conseguinte, coerentemente,
a narrativa cujo regresso se saúda não é o da narrativa clássica
e propriamente dita. Esta descreve acções humanas passadas,
realinhando retrospectivamente os factos numa história coe-
rente, ou seja, estabelecendo-os numa sequência de relações com
pertinência significativa, ao longo de um período de tempo
suficientemente longo para que a situação em apreço, no final
do mesmo,se apresente consideravelmente modificada em rela-
ção ao que era no seu início. Ou seja, a narrativa clássica é uma
construção dramática. Ora ela continua sem ponto de aplica-
ção possível, pelo motivo de que os acontecimentos, e os autores
desses acontecimentos, continuam a não ser vistos como matéria
suficientemente nobre para com ela se fazer história. No essen-
cial, esta continua a ser entendida como um processo sem sujeito
consciente, e explicável, portanto, sem referência aos sujeitos
(individuais ou colectivos) e às acções que eles voluntaria ou
involuntariamente praticam!23. Stone diz-nos que a história
deixou de ser narrativa e se tornou essencialmente analítica
quando, desinteressando-se de saber «o que» e «como» foi ou

132 Phistoire aujourd'hui: doutes, défis, propositions», in Historia a debate,


op. cit., vol. 1, pp. 119-130. Mais precisamente, Chartier afirma que o que há
de novo é apenas essa tomada de consciência, e não propriamente o retorno da
narrativa: apoiando-se na obra de Paul Ricoeur (de que mais adiante eu própria
me secorrerei), Chartier salienta que nenhum género de história chegou a perder
todos os laços com a narrativa. Este problema será tratado no lugar próprio.
133 Para a nova história «tratava-se antes de mais de identificar as estruturas
e as relações que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos,
comandam os mecanismos económicos, organizam as relações sociais, engendram
as formas do discurso. Daí a afirmação de uma radical separação entre o objecto
do conhecimento histórico e a consciência subjectiva dos actores». Roger Chartier,
Op. etapa UA

So)
Apologia da História Política

aconteceu — perguntas que apelam à narração — passou a ocupar-


-se de explicar «porque» é que foi ou aconteceu isto ou aqui-
lo!34 — uma pergunta que apela à análise e demonstração. Não
sendo importante «o que» e «como» aconteceu — 1. €., a averi-
guação dos antecedentes de um facto singular, mas importando
sim a causa que provocou e explica o acontecimento — 1. e., os
antecedentes constantes de um facto susceptível de se repetir, a
narrativa decaiu na exacta medida em que se tornou supérfluo
falar daquele. Essas causas ou antecedentes constantes, seja qual
for o determinismo que se invoque, residem em estruturas ou
tendências longas indiciáveis através de dados serializáveis e
preferentemente quantificados. É verdade que o Renascimento,
a Reforma, o Iluminismo ou a ascensão do Estado-nação não
se deixam tratar sob esta forma. Mas nem por isso a Nova His-
tória julga impossível explicar a evolução da Europa desde o
século XIV ao XVIII sem a alusão a estes acontecimentos. Em
lugar disso, apresenta-nos essa evolução como a história imóvel
de um sistema eco-demográfico que durante quatro séculos blo-
queou o progresso técnico e a mudança social. Os Paysans de
Languedoc de Ladurie, cujo modelo se pretende aplicável a toda
a Europa Ocidental, aí estão para o provar. Os dados relativos
à demografia, aos preços dos alimentos e da propriedade, aos
regimes sucessórios, à produção, à terra arada ou abandonada,
provariam, mau grado a espectacularidade do fim da unidade
católica da Europa, da fundação da ciência moderna e do ad-
vento do Estado-nação, que nada de verdadeiramente essencial
mudou entre o século XIV e o XVIII: a longo prazo, o crescimen-
to demográfico permanece bloqueado pelos limites da produção
e produtividade agrárias. E a narrativa tornou-se desnecessária
pelo motivo de que se tornou desnecessário convocar Lutero,
Descartes ou Luís XIV para elucidar a história da Europa naque-
les séculos.
Stone, se alguma vez teve ilusões, despertou para a reali-
dade: «O modelo macroeconómico é um sonho; e a “histó-
ria científica um mito»!25, Não há actualmente, afinal, maior

134 Lawrence Stone, The Past and the Present Revisited, op. cit., p. 76.
135 Idem, ibidem, p. 85.

60
Apologia da história política

consenso entre os historiadores do que havia antes da «histó-


ria científica» em torno dos problemas centrais da história,
como as causas das grandes revoluções ou do atraso económico.
Há fenómenos demográficos que ainda nos deixam perplexos.
É para pasmo supremo começa-se a admitir que há civilizações
cuja vida dependeu de supostas frivolidades como as «flutua-
ções da autoridade política», destinos históricos colectivos que
se jogaram em «decisões políticas pessoais», em «acasos da guer-
ra» e até mesmo em golpes de «fortuna»: «É extraordinário»,
comenta Lawrence Stone, «que estes assuntos tenham sido ne-
gligenciados»!36. Ora a consideração destes assuntos exigirá
o retorno da narrativa clássica.
13. Mas a passadeira encarnada, a ala triunfal está reserva-
da a uma «nova narrativa» que «revolve dentro da cabeça das
pessoas»!37 ou que «narra» exaustivamente apenas um único
«caso selectivo» segundo o modelo da «descrição densa» criado
por Clifford Geertz. Graças a ele e a autores como N. Zemon
Davis, Mary Douglas ou Victor Turner, a partir dos anos 70
“a antropologia destronou a sociologia e tornou-se a ciência so-
cial mais influente numa «nova» nova história centrada nas
mentalidades, conquistada por um renovado e «súbito aumen-
to de interesse pelos sentimentos, emoções, padrões de compor-
tamento, valores e estados de espírito», atraída pelos meandros
através dos quais «o desejo sexual, as relações familiares e as
ligações emocionais afectam o indivíduo», curiosa de averiguar
como «as crenças e os costumes afectam o grupo»138. Estes as-
suntos e muitos outros que se poderiam referenciar, que vão
das atitudes face à menstruação e ao aborto até aos modelos de
deferência e protesto popular, não são dos que melhor se pres-
tam a uma abordagem quantitativa nem se deixam facilmente
estudar através de dados serializados. Requerem antes a utili-
zação de fontes qualitativas e procedimentos descritivos. Isto
constitui a primeira causa da revivescência da narrativa entre

136, Stone, op. cit., pp. 81-2.


137 Idem, ibidem, pa90:
138 Idem, ibidem, p. 86.

61
Apologia da História Política

alguns dos «novos historiadores»!3?. Mas trata-se, também, de


uma «nova narrativa», ou seja, de uma escrita descritiva que,
ao contrário da narrativa tradicional ou narrativa propriamente
dita, não tem por objecto proceder a um «realinhamento re-
trospectivo de acontecimentos passados», provocados por acções
humanas passadas, e que o historiador interpreta em função de
«acontecimentos ulteriores a essas mesmas acções» 140. Dito de
outro modo: a «nova narrativa» não conta uma história. À his-
tória da França de Zeldin, ou a história de Montaillou de Ladu-
rie, ou a história da morte de Ariés, ou a história do medo de
Delumeau, não contam propriamente algo que reconheçamos
como uma história — em alguns casos nem há história nenhuma.
Resta que mudou, ou que muitos autores mudaram, a ma-
neira de escrever história, e que esta mudança tanto reflecte uma
alteração nos paradigmas teóricos (determinismo económico,
demográfico ou sociológico; estruturalismo e funcionalismo)
como a moderação da crença no potencial científico trazido pela
utensilagem da nova história (conceptualização, serialização,
quantificação). E é verdade que ressurgiu o interesse pelo caso
singular, um género que popularizou Carlo Ginzburg ou Gio-
vanni Levi. Mas este indivíduo que se coloca no centro do estu-
do não é ainda, propriamente, o sujeito gramatical — e real —
de verbos de acção: ainda não é um fazedor de história, mas
apenas um seu sintoma, revelador, amostra ou caso-tipo: estas
«micro-histórias» são aberturas sobre o social!41!, Por outro lado,
a nova história dos anos 70 e 80 (história das mentalidades?
antropologia histórica? história antropológica?) ainda concede
um espaço prevalecente à análise; ocupa-se predominantemente
das vidas de gente anónima; e trata sobretudo de situações sociais
e atitudes colectivas captadas quer no muito longo prazo, quer

1391, Stone, ibidem.


140 Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa, São Paulo, Papirus editora, vol. 1,
pp. 210-11.
141 «Cada micro-história visa reconstruir, a partir de uma posição particular,
normal porque excepcional, a mâneira como os indivíduos produzem o mundo
social, pelas suas alianças e os seus afrontamentos, através das dependências que
os ligam ou dos conflitos que os opõem.» R. Chartier, op. cit. p. 120.

62
Apologia da história política

surpreendidas num momento suspenso no tempo. Estes estu-


dos visam explicar o funcionamento interno de uma sociedade
ou cultura passada, e não contar a sua história. Mas nem por
isso marcam uma diferença menos significativa ou talvez pre-
nunciatória. Stone diz que «o retorno à narrativa pelos novos
historiadores marca o fim de uma era: o fim de uma tentativa
para produzir uma explicação científica e coerente da mudança
no passado»142, Pessoalmente não creio que esteja ainda em
causa, como já disse, um retorno à narrativa propriamente dita,
mas antes aquilo que talvez o prepare num futuro próximo:
nas palavras do próprio Stone, está-se a assistir a uma passagem
«do modo analítico para o descritivo»1!$3, reveladora de um
outro retorno, menos falado e menos evidente, mas não menos
pleno de consequências: o retorno da compreensão enquanto
forma ou meio de interpretar o passado. Furet falava em inter-
pretá-lo através de uma ideia ou teoria que o explicasse; Stone
diz que se começa (ou recomeça?) a compreendê-lo através da
«observação, experiência, julgamento e intuição»44. Diferen-
temente de explicar mediante uma teoria, uma lei ou um concei-
to, «interpretar compreendendo» significará restituir o sentido
do passado a partir do modo como os contemporâneos o viam
e viviam. O retorno da «narrativa», do singular, do modo des-
critivo e da «compreensão», significará então que alguma «nova»
Nova História se está a reaproximar do «ponto de vista político»145
que caracteriza a história política ou tradicional. Já antes tinha
aflorado este aspecto. Ele será devidamente desenvolvido na ter-
ceira parte deste texto. Aquela tendência, a afirmar-se plenamen-
te, traduz uma evolução da história que Lawrence Stone sintetiza
nos seguintes termos:
«Há sinais de mudança nas questões centrais da história,
das circunstâncias que cercam o homem para o homem
nas circunstâncias; nos problemas estudados, do económico

1427, Stone, op. cit., p. 91.


143 Idem, ibidem, ps 98;
144 Idem, zbidem, p. 92 (itálico meu).
145 Rui Ramos, «A causa da história do ponto de vista político», Penélope,
np. 5, Eisboa 99:

63
Apologia da História Política

e demográfico para o cultural e emocional; nas principais


fontes de influência, da sociologia, economia e demografia
para a antropologia e a psicologia; no assunto, do grupo para
o individual; nos modelos explicativos da mudança histórica,
do estratificado e monocausal para o inter-relacionado e
multicausal; na metodologia, da quantificação de grupo para
o exemplo individual; na organização, do analítico para o
descritivo; e na conceptualização da função do historiador,
da científica para a literária. Estas alterações multiface-
tadas no conteúdo, método e estilo da escrita da história,
que estão todas a acontecer ao mesmo tempo, têm claras
afinidades electivas umas com as outras: todas encaixam
lindamente. Nenhuma palavra é adequada para as resu-
mir a todas, e até agora, e por agora, o termo “narrativa
terá de servir como uma palavra de código abreviada para
tudo o que está a acontecer.»146

Depois deste testemunho de um reputado historiador


social, talvez já não sejam suspeitos o diagnóstico e o prognós-
tico feitos em data mais recente (1992) pelo brilhante narra-
tivista J. H. Elliot:
«O estado da escrita da história no final do século xX não
é muito diferente do estado do mundo no final do século xII:
fragmentação a raiar a anarquia. Os velhos impérios, e os
velhos sistemas, ou já se desmoronaram, ou estão em proces-
so de colapso. À mais extremista história marxista está de-
sacreditada, e a “história marxisante” encontra-se sob grave
suspeição. À Escola dos Annales perdeu o seu domínio.
Os chamados 'revisionistas' rejeitam a história conceptua-
lizante da precedente geração, e substituem interpretações
socioeconómicas pela contingência dos eventos do dia-
-a-dia. Damos connosco próprios a testemunhar uma revi-
vescência da história narrativa, da biografia e da análise
da alta política. O particular substitui o geral; floresce a
história nacional e local. Há momentos, sem dúvida, em

146, Stone, op. cit., p. 96.

64
Apologia da história política

que parece que a historiografia voltou aonde estava nos


finais do século passado, mas sem o vigor (sweep), a ambi-
ção e a escala de imaginação histórica exibidos pelos gran-
des historiadores oitocentistas.»147

14. A série de comunicações ao colóquio internacional


«A História a Debate» que nas respectivas actas foram reunidas
sob o título de «Os retornos», é um bom indicador das ambigui-
dades de que estes ainda se revestem, e sobretudo das resis-
tências que se lhes opóem!48. A comunicação do emblemático
Jacques Le Goff, entrincheirado nas aquisições pretensamente
científicas da Nova História representada pela tradição dos An-
nales, passa em revista os diversos retornos que estão em curso,
e revela os curtos limites das concessões à mudança que está
disposto a fazer. Inevitavelmente, insiste na insignificância eve-
nemencial da velha história política, que «ocultava os movimen-
tos importantes da história: económicos, demográficos, sociais,
culturais»149, Reiterando determinismos duvidosos, Le Goff
interpreta o retorno «do político» como uma reacção contra o
«marxismo vulgar», esquecendo que para efeitos de história po-
lítica não existe outro, porque nenhum marxismo, por mais so-
fisticado que seja, corta com a visão instrumental do Estado
que precisamente o inutiliza como instrumento de análise dos
acontecimentos políticos. Depois, reafirma que o acontecimen-
to da história tradicional não passava da «espuma da história»,
muito embora reconheça que ele «exprime e modifica as reali-
dades históricas profundas normalmente [?!] regidas pelo ritmo
da longa duração»150. O jogo de palavras não chega para en-
cobrir a contradição nas ideias nem para iludir a dificuldade
que o «novo historiador», não podendo continuar a ignorar

147 7. H. Elliot, «Comparative History», in A História a debate, op. cit.,


E: pa 9.
148 Em rigor, apenas a minha comunicação (O abençoado retorno da velha
história, op. cit., vol. II) fazia a apologia da história tradicional.
149 Jacques Le Goff, «Les retours dans Phistoriographie française actuelle»,
op. cit., p. 157.
150 Idem, ibidem, p. 159 (itálico meu).

65
Apologia da História Política

o potencial transformador do acontecimento, encontra em «ex-


plicá-lo na sua relação com a estrutura e a conjuntura»!51.
Para Le Goff, nada está perdido e o que está em curso mos-
traria, pelo contrário, «o triunfo da problemática dos Anna-
leg152, apta a traduzir na sua própria linguagem e conceitos
velhos temas que ele julga inútil reeditar em termos comprova-
damente caducos. Nesta ordem de ideias, o que se impõe re-
cuperar da «história vivida» das sociedades não é «a política»,
que não passa de um «tecido de acontecimentos» cientificamente
intratáveis e para todos os efeitos irrelevantes, mas «o político»
tal como o define a ciência política, em que o «fundamental»
é o «conceito de poder» enquanto fenómeno de que convém
sobretudo estudar o «impacto» das suas representações e os «as-
pectos simbólicos» de que se reveste!53. O produto ideal de uma
«história política» deste tipo será por exemplo um estudo da
«realeza desde a Antiguidade aos nossos dias», ou dos «gestos
e liturgias do poder no Ocidente, na Índia, na China, etc.»!54,
Quanto ao acontecimento, Pierre Nora já indicou como deve
ser tratado o da actualidade, nada obstando a que a receita seja
estendida ao do passado. O que então importa é analisar «o
que ele integra de significação sociab. Como? Escrutinando
não o acontecimento em si mesmo, que permanece sem remé-
dio «uma espuma do tempo histórico», mas sim como os media
o reproduzem, e analisando esta (re) produção como mais uma
das «representações deformadas e parciais que ela [a sociedade]
produz de si mesma»!5. A fabricação do acontecimento, que
igualmente se verifica através das crónicas e documentos do
passado, revela assim a sua «significação social» e, por extensão,
as molas mais recônditas do funcionamento das sociedades.
Muito significativamente, o acontecimento assim concebido
dispensa inteiramente a narrativa, cujo «retorno em força [...],

1517. Le Goff, ibidem.


152 Idem, ibidem, p. 160.
153 Idem, ibidem, pp. 157-8.
154 Idem, ibidem, p. 158.
155 Idem, ibidem, p. 159.

66
Apologia da história política

mesmo sob formas renovadas, [...] comporta uma grave amea-


ça de retrocesso» da histórial56, Finalmente, sobre o incómodo
«retorno do sujeito», do «indivíduo» que, relapso e contumaz,
«emerge face não apenas às estruturas e aos modelos abstractos
mas às personagens colectivas da história social — grupos, cate-
gorias, classes, massas, etc.»!57, Le Goff diz-nos ser esta uma
questão que, levantando o problema de considerar qual é o
papel dos «actores da história», compete de facto e de direito
aos filósofos resolver!58! E. Cassirer explicou longamente que
o historiador não se podia eximir a procurar a «causalidade
individual»159, Le Goff entende que o verdadeiro historiador
deverá coibir-se de enveredar por tão dúbias especulações.
15. O que mais me interessa aqui considerar, é o apregoa-
do retorno da história política. Já sugeri o suficiente para tornar
claro que se trata de um equívoco, mas convirá agora exami-
nar a questão mais de perto. A «nova» história política foi anun-
ciada há já vinte anos por Jacques Julliard, no 3.º volume da
trilogia Faire de [histoire. Praticamente tudo se encontra ali
fixado: a agenda, os métodos, a «teoria». René Rémond, actual-
mente olhado em França como o patrão da modalidade, em
essência apenas lhe acrescentou os meios financeiros e o reconhe-
cimento institucional. Isto permitiu-lhe rodear-se de um con-
junto de historiadores que, ao cabo de alguns anos, decidiram
publicar em 1988 uma obra colectiva reunindo os resultados
mais significativos do seu labor, intitulada Pour une histoire
politiquel60. Na Introdução diz-se que a «solidariedade» que
liga esses historidores «tem a sua topografia» própria: ela cons-
tituíu-se em torno de «um eixo» geográfico que liga a Universi-
dade de Paris X-Nanterre com o Instituto de Estudos Políticos e
a Fundação Nacional das Ciências Políticas. Esta ligação geográ-
fica diz quase tudo sobre a «nova» história política. Trata-se neste

1567. Le Goff, ibidem, p. 161.


157 Idem, ibidem, p. 163.
158 Idem, ibidem.
159 Ernst Cassirer, Lidée de [histoire, Paris, Éditions du Cerf, 1988.
160 René Rémond (dir.), Pour une histoire politique, Paris, Seuil, 1988
(2.2 ed., 1996).

67
Apologia da História Política

caso, como já se verificara a respeito de outras ciências sociais


visitadas pela história, de uma espécie de politologia histórica
ou ciência política do passado, mas com uma limitação suple-
mentar: sendo o tipo de dados que utiliza de origem relativa-
mente recente — têm a idade do voto (censitário ou universal)
— torna-se difícil fazer «história política» dos séculos anterio-
res ao XIX.
Pour une histoire politique celebra a maioridade da disci-
plina, que enfim conquistou o pleno direito a ombrear com
os outros ramos da nova história na galeria da Ciência. À favor
desta pretensão ela invoca nada menos do que ter superado
os obstáculos que haviam justificado, outrora, a sua exclusão
do distinto grémio. Com isso, a história política «à nova manei-
ra» (nouvelle maniêre), democratizada nas fontes, nos métodos
e nos assuntos, está em condições de também ela proclamar que
«tem por objecto a sociedade global» e que nenhuma história
é «mais total» nem mais «científica» do que a dela!6!! Três ino-
vações refundaram o seu prestígio, perdido desde que os An-
nales a tinham banido por verem nela o resumo incarnado de
todos os defeitos de que enfermava a história tradicional. Em
primeiro lugar, a nova história política manuseia hoje em dia
uma massa impressionante de documentação que se deixa tratar
estatisticamente. As suas séries competem com as da mais exigen-
te história económica ou demográfica em extensão e exaustão.
O poder conta votos, os partidos contam aderentes, os jornais
contam leitores, as empresas contam clientes, os sindicatos con-
tam sócios. Não falta por onde contar nem que contar: «A de-
mocracia representativa inscreveu a aritmética no coração do
sistema político»1!62, Em segundo lugar, o Estado moderno es-
tende o abraço da sua burocracia até ao mais obscuro cidadão
do mais remoto buraco. Se outrora «o político» apenas dizia res-
peito às elites, actualmente é um fenómeno de massas: «Não há
história mais total do que a da participação na vida política»163.

161 R. Rémond, op. cit., p. 29; e também, para «científica» — p. 28 em cima:


«un de ses titres à prétendre à la scientificité ...».
162 Idem, ibidem, p. 28.
163 Idem, ibidem, p. 29.

68
Apologia da história política

Terceiro e finalmente, nem mesmo o tempo longo ou muito


longo está fora do alcance da nova história política, que possui
a particularidade de combinar «o instantâneo com o extrema-
mente longo»164. Ele há de facto fenómenos circunscritos a uma
hora ou dia precisos. Mas a duração dos «regimes», a perma-
nência dos «partidos», a estabilidade dos «modos de escrutínio»
designam um quadro temporal médio, o das conjunturas, e a
longevidade das ideologias por pouco desafia a longa duração
braudeliana: vivemos hoje ainda, sob este aspecto, num quadro
mental velho de quase 200 anos, e muita da história curta de
algumas comunidades apenas se torna inteligível à luz de hábitos
com profundidade secular. Os trabalhos de Paul Bois ou Mau-
rice Agulhon estão aí para o mostrar!6. Quem dirá ainda que
«o político» é verniz estaladiço, mera espuma das coisas? Ape-
nas quem ignore que ele é, embora específico e irredutível,
«uma modalidade da prática social» e, por conseguinte, reve-
lador da «interacção» entre todos os «fenómenos sociais» 166.
Os comportamentos políticos, da abstenção eleitoral à mili-
tância partidária, podem e devem ser relacionados com práticas
sociais tão diversas como a frequência da missa, tipos de socia-
bilidade, formas associativas ou participação em clubes; podem
e devem ser relacionados com o status e a classe social, o lugar
dos actores no sistema produtivo ou a sua formação cutural.
Mas nenhuma destas relações possíveis esgota o significado das
práticas políticas, apenas contribui para as elucidar. Não é pos-
sível sintetizar melhor do que René Rémond os marcos da trans-
formação por que passou a história política: «Abraçando de
braços abertos os grandes números, trabalhando na duração,
apreendendo os fenómenos mais globais, procurando nas pro-
fundezas da memória colectiva ou do inconsciente as raízes das
convicções e as origens dos comportamentos, a história política
perfez uma revolução completa»!97.

164 R. Rémond, op. cit, p. 30.


165 Idem, ibidem.
166 Idem, ibidem, PESE
167 Idem, ibidem, p. 32.

69
Apologia da História Política

O preço de uma tal revolução foi uma redefinição da polí-


tica como «o político» que, na realidade, deixa de fora tudo o
que tradicionalmente se entendia por política e por história po-
lítica. Essa redefinição, de resto, não se faz sem as maiores difi-
culdades e, a avaliar pelo esforço de René Rémond, os resultados
são duvidosos e a meu ver francamente decepcionantes. Sob o
título pouco modesto de «Du politique»168, a sugerir a profun-
didade definitiva de um tratado, René Rémond define o polf-
tico como «o lugar de gestão da sociedade global» e oferece-nos
um rol dos seus hipotéticos objectos, uma cartografia indecisa
e variável do seu campo, e sugestões provisórias de como se rela-
ciona com outros campos do social. A única certeza positiva que
nos comunica, e que, pela sua trivialidade, a ninguém surpre-
ende nem ilumina, é de que se trata de um domínio específico
e irredutível, sem que todavia chegue a dizer o que é que pro-
priamente e concretamente o constitui, caracteriza e individua-
liza «em relação a outros domínios, o social, o económico ou o
cultural» 169. O político, diz-nos então, não possui fronteiras
fixas. O «lugar de gestão da sociedade global» ora se «retrai» ora
se dilata consoante uma equação que põe em jogo as necessida-
des ou ambições do Estado e as «flutuações do espírito público».
Dependentemente das disposições participativas da população,
da liberalidade do regime, da dimensão do Estado e da extensão
das funções que este exerce, o político ora encolhe ou estica, «re-
corta» um «espaço» maior ou menor na «realidade global». Nas
«sociedades totalitárias» ou em «tempo de guerra», tudo é políti-
co, quer dizer, quase não há aspecto da vida social que não seja
regulado pelo «poder público»!/0. Presume-se que em sociedades
liberais, dotadas de um Estado pequeno, se há-de verificar o
inverso. Nesta ordem de ideias deveria então concluir-se que
estas têm menos, e aquelas mais história política. O absurdo
da conclusão serve para pôr em evidência como é inadequada
uma definição do político que o concebe, literalmente, como

168 R. Rémond, 9p. cit., pp. 379-386.


169 Idem, ibidem, p. 380.
170 Idem, ibidem.

70
Apologia da história política

uma arena delimitada onde se inscrevem as instituições e se desen-


rolam os processos formais que constituem o sistema político (par-
tidos, governos, parlamentos, eleições, actos legislativos, etc.),
à semelhança de um mapa urbano onde demarcássemos espaços
verdes, comerciais ou de habitação. Isto resulta de o autor ape-
nas considerar a política, enquanto fenómeno estudável, sob
a forma padronizada e repetitiva das suas manifestações legais-
-institucionais, quer dizer, como uma prática social formaliza-
da desprovida de sujeito, e não sob o modo do que a política é:
ideias, decisões, projectos e vontades concebidos por sujeitos con-
cretos, individuais ou colectivos, consonantes ou concorrentes
entre si, que se manifestam como acção; esta acção desenrola-se
em todos os domínios da existência social e tem por objecto
directo ou indirecto a organização da vida em sociedade — da
polis, portanto; no cerne de tudo quanto respeita à organização
da vida em sociedade encontra-se a luta pelo poder, a resistência
ao poder, o exercício do poder e a definição das relações entre
comando e obediência.
É por isso que não pode haver história política sem narra-
tiva de acontecimentos, que são o produto típico das acções
humanas. É verdade que os homens não podem controlar
inteiramente os seus resultados. Como escreveu Aron, eles «são
conscientes dos seus actos, mas inconscientes dos seus desti-
nos»!7!, No entanto, Max Weber explicou como a acção polí-
tica é «zweckrational»!72 e, por isso, inteligível, mesmo quando
provoca efeitos contrários ao cálculo do seu autor. Essa inteligi-
bilidade é dada através da narrativa, que confronta os desígnios
contraditórios dos actores e os eleva a uma história de conjun-
to que estes literalmente fizeram, mas cuja ordem não controla-
vam e cujo desfecho desconheciam. Esta passagem — dos actos
individuais para a história de conjunto — fá-la a narrativa sem
o recurso a proposições explicativas gerais ou abstractas, pelo
motivo de que nenhum facto ou acontecimento, enquanto re-
sultante da acção humana, é explicável por uma proposição geral

171 Raymond Aron, Dimensions de la conscience historique, Paris, Plon, 1964,


p. 126.
172 7 e., visa racionalmente uma finalidade.

71
Apologia da História Política

e abstracta — ao contrário dos factos físicos ou naturais, que são


explicados por referência a uma ou várias leis gerais. Por outras
palavras, nenhum facto ou acontecimento humano pode ser con-
siderado necessário, ou desnecessário, independentemente do seu
autor!73, A «necessidade» de um tal facto é sempre, inapelavel-
mente, a função de uma decisão, consciente ou inconsciente,
de quem age. Nisto que, como é óbvio, a Ciência não con-
sidera como «necessidade», esbarram todos os determinismos,
dos mais grosseiros aos mais matizados. Enquanto estratégia
de explicação a narrativa limita-se, como lhe é próprio, a pro-
ceder à reconstituição e alinhamento retrospectivo dos factos,
reordenando-os numa unidade dramática de cujo sentido ou
desfecho os actores do enredo original não podiam ter, por
definição mesma, conhecimento prévio. É por isso que a verda-
deira história política, além de envolver algo mais e diferente
de uma teoria da acção ou uma teoria psicológica, só pode ser
escrita sob a forma narrativa: trata de acções, e portanto de acon-
tecimentos, cujo significado apenas podemos apreender na sua
relação com outros acontecimentos ulteriores, todos eles irredu-
tíveis, pelas razões apontadas, a qualquer estrutura: que estru-
tura poderá ter determinado, na acepção científica do termo,
o regresso de Costa Cabral ao poder em Junho de 1849? Ou
a candidatura de Cavaco Silva às eleições presidenciais de 1997?
Conforme salienta Aron, o acontecimento é imputado, «per-
tence» ao sujeito que o provoca: «Desde o momento em que
o acontecimento é acção de um indivíduo (ou de indivíduos),
não se pode imaginá-lo necessário a menos que o desliguemos
do actor/autor»174. Os historiadores que criticam a narrativa
em nome da exigência de alegadas explicações «profundas», «es-
truturais», ignoram esta verdade. A chamada «nova» história
política, cuja ambição suprema é tratar o político depurado de
sujeitos e acontecimentos singulares, para em vez disso anali-
sar e contar comportamentos repetitivos e padronizados, consti-
tuí a negação mesma da história política. Mas é verdade que

N3R, Aron, op. cit., p. 129.


174 Idem, ibidem.

Az
Apologia da história política

esta, como diz ainda Aron, «apenas tem sentido para quem
não seja insensível àacção dos homens e ao enjeu das suas rivali-
dades»175.
16. Ora o desinteresse por aquela parte do passado dos
homens que é feita das suas acções constitui uma caracterís-
tica comum a toda a Nova História. Mas é na política, que
não só é acção por excelência como é o domínio onde essa acção
produz os efeitos imediatos mais visíveis e de maior alcance,
que aquele desinteresse mutila mais profundamente o passa-
do: imagine-se o que seria uma história do nosso tempo que
não contasse a queda do muro de Berlim e a desintegração do
império soviético. Enquanto a sociologia ou a psicologia não
nos explicam este bizarro desinteresse, veja-se no que ele mais
essencialmente e completamente se manifesta: na apreensão do
político como uma mera abertura, directa ou indirecta, para o
social. Para a história-ciência, a política é uma actividade cuja
história se resume numa «crónica» autojustificativa do Estado
ou das classes dominantes e na glorificação dos «grandes ho-
mens». O político, pelo contrário, «dilata-se à quase totalidade
dos campos da realidade colectiva», e a história que trata dele
tornou-se ««uma ciênca-encruzilhada»!76 que integrou o cine-
ma e a anedota nas suas fontes e fez seus os métodos e objectos
da «politologia», «sociologia», «direito público», «linguística»,
«lexicologia» e «psicologia social». Tornou-se, também, nada
menos do que uma «história total»!77! Na linguagem dos novos
historiadores, sabe-se o que isto quer dizer: uma história social
com base quantitativa. Para o comprovar, basta percorrer os seus
temas de eleição e atentar no que se espera que eles revelem.
Entre estes avulta o estudo dos partidos. Enquanto «foyer
de mediação política», permitiriam radiografar as «aspirações
difusas no corpo social» servindo, por isso, como «um rico es-
pelho da sociedade»!78. Indo pela via directamente sociológica,

175 R. Aron, op. cit, p. 135.


176 Pascal Balman, «Le renouveau de Phistoire politique», in Les écoles histo-
riques, Paris, Seuil, 1989, p. 373.
177 Idem, ibidem, p. 374.
178 Idem, ibidem, p. 376.

73
Apologia da História Política

mas em direcção à mesma coisa, analisar-se-ão «os militantes»,


os «responsáveis» e o «eleitorado» e, para surpreender correla-
ções ainda mais reveladoras, proceder-se-á a «uma reflexão em
termos de gerações»!7?. Modernizando e enriquecendo a via
aberta por Robert Michels em 1914 (Les partis politiques), os
partidos serão tomados como «contra-sociedades» e estudados
na perspectiva de uma «etnografia política». Através deles po-
demos ainda debruçar-nos sobre os «fenómenos ideológicos»
que permitam cingir a «cultura política» da sociedade. «No
total, os partidos são assim considerados como elementos de
“estruturação social». Deixando de fora tudo o que os partidos
fazem para conquistar e conservar o poder, o seu estudo, «tanto
pelos métodos como pelos enjeux, quer-se um estudo de história
total». De resto, podem ainda ser encarados como a instancia-
ção de um fenómeno mais geral, a saber, a «malha associativa»
através da qual se processa a «socialização política» das socie-
dades!80.
Para além dos partidos, o estudo «sociopolítico» do «pes-
soal político» derrama luz nova sobre «o funcionamento do Es-
tado e os determinantes da sua acção». Aqui abre-se o vasto reino
das prosopografias, que nos facultam uma «visão global das elites
políticas» através da recolha de informações sobre o «meio de
origem, formação, património, inserção social e cultural, cursus
político, etc.»!8!. Até mesmo um género que se supunha in-
susceptível de ser reformado, a biografia, se presta, afinal, a ser
cultivado «à nova maneira». Em lugar de um «perfil individual»
desprovido de significação geral, «a biografia “à nova maneira»,
superando a «estrita dimensão narrativa», consegue «cingir a
história colectiva através da elucidação da história singular»182.
Mais fácil de renovar foi no entanto a história das ideias. Bastou
repudiar a «história-galeria», a «histoire par les sommets», a his-
tória de «um homem», de «uma obra», de «uma corrente» ou de
«um tema», e proceder à «exumação de homens ou de correntes

179 P Balman, op. cit., ibidem.


180 Idem, ibidem, po Bm
181 Idem, ibidem, p. 378 (itálico meu).
182 Idem, ibidem, pa So!

74
Apologia da história política

mal conhecidos» com o fito de estudar, não propriamente as


ideias, e menos ainda as grandes ideias, mas «os fenómenos de
formação, de difusão e de recepção» das mesmas183, «Descen-
do do olimpo das 'grandes obras'», não desdenhando quaisquer
meios de expressão «e particularmente os que atingiam largas
camadas da população nesse primeiro século xIX: os almana-
ques, as canções, os autores de vaudevilleea imprensa»
184, cap-
tam-se as representações, penetra-se no imaginário político e
atinge-se a «cultura política» da sociedade!85, que é o verdadei-
ro objecto de uma «nova história das ideias» que rejeita o eli-
tismo das «grandes ideias» que fizeram escola. Esta nova história
encontra na utilização de um corpus imensamente alargado, nas
técnicas de quantificação e nos «instrumentos lexicológicos saí-
dos da linguística» uma garantia para a cientificidade das suas
demonstrações. Através da «semântica quantitativa» torna-se
ainda possível estudar a opinião pública em períodos anteriores
à época das sondagens!86.
Finalmente, até mesmo o «acontecimento» não escapa à
renovação. Temo-lo também «à nova maneira». Ele «materia-
liza um ponto de reorientação (rebroussement) da história» e,
por conseguinte, como já dissera Julliard em 1974, é ele próprio
«produtor de estrutura»!87. Mas ao contrário da história tradi-
cional, que tratava de acontecimentos importantes, a nova his-
tória política descobriu o enorme interesse dos faits divers.
É que, «por anedóticos que pareçam», são reveladores preciosos
de disfunções, silenciosas mas corrosivas, que questionam a nossa
imagem de uma sociedade consensual!88. Também os «grandes
dias» que mudaram a história, como o dia da tomada da Basti-
lha ou da queda de Salvador Allende, deixam de interessar em
si mesmos e pelo que neles aconteceu. Le Goff dizia que eram

183 p Balman, op. cit., p. 380.


184 Michel Winock, «Les idées politiques», in Pour une histoire politique,
op. cit., p. 241.
A 185Pascal Balman, op. cit., p. 381.
186 Jacques Julliard, «La politique», in Fairede[histoire, op. cit. vol. 1, p. 242.
187 Jacques Julliard, op. cit., p. 240.
188 Pascal Balman, op. cit., p. 382.

75
Apologia da História Política

apenas a «ponta do icebergue». A metáfora desapareceu, mas a


essência da questão não mudou. Para a nova história política,
esses grandes acontecimentos devem ser «integrados num trend
que os engloba a montante e a jusante» e que os explica. Reapre-
ciada sob esta perspectiva, cuja novidade de resto me escapa,
a presumida contradição entre o longo prazo e o evenemencial
resolve-se, alegadamente, pela consideração de ambos os termos
como «os dois pólos de uma complexa [?] antinomia pela qual,
através dos fenómenos de memória, estrutura e conjuntura,
[eles] se influenciam reciprocamente»!8?. Junte-se a tudo isto
o estudo das representações, dos símbolos, dos monumentos,
da memória, do imaginário, do inconsciente, dos círculos de
sociabilidade, da opinião pública, e veremos a largueza dos hori-
zontes por onde se espraia esta nova história do político à qual,
reconciliada com os números, as massas e a duração, já não
escapa nenhum aspecto do social — nem do cultural. Como
recentemente se escreveu, «o triunfo da história política, em
França, na segunda metade do século xx, é talvez mais precisa-
mente o triunfo da história das mentalidades políticas»190. Sen-
sível à actual voga culturalista, a nova história politica mais
recente explora o imaginário e as mentalidades, e não propria-
mente as ideias, como a localização de uma rationale para os
comportamentos políticos individuais e colectivos. A última
moda, inspirada pela antropologia cultural, consiste em inter-
pretar ideias e palavras de ordem na perspectiva de uma «etno-
grafia de mitos modernos». Ora, como se pode ver, o que a nova
história política na realidade opera, no seu afã para evacuar sujei-
tos, ideias, acções e acontecimentos, é uma radical «despoliti-
zação da política». Foi isto que bem viu Christophe Prochasson
no seu balanço de «Vinte anos de história política em França»!91,
embora não se mostre chocado com a operação e até, pelo con-
trário, a aprove.

189 p Balman, op. cit., p. 383.


190 B. Guenée e .-F. Sirinelli, «L“histoire politique», 7n François Bédari-
da (dir.), Lhistoire et le métier d'historien en France, 1945-1995, Paris, Ed. de la
Maison des sciences de "homme, 1995, p. 303.
191 4 História a Debate, op. cit., vol. HI, pp. 209-215.

76
Apologia da história política

Jacques Julliard pode-se dar por satisfeito. Quando em


1974 estabelecia novos cânones para a história política segundo
o figurino dos Annales, já estava a ser seguido o conselho de
Althusser para que se estudassem as estruturas internas do
político, não a história política. Já se abandonara não apenas
a narrativa de insignificâncias evenemenciais, mas a narrativa
tout court. O campo abrira-se aos estudos seriais e comparati-
vos e também, graças aos progressos da «lexicologia», à análise
informatizada do discurso político. Mas, como se acaba de ver,
a pergunta que Julliard então candidamente formulou continua
sem resposta: «O que é em particular a “vida política?» Mais:
«O que é propriamente a história política tout court?» Julliard
reconhece que a resposta que lhe dá René Rémond é «bem
vaga», mas ele próprio não tem, pela sua parte, solução melhor
a oferecer!?2, Nestas circunstâncias, voltam ou continuam os
refrões velhos e estafados: é preciso reunir «os elementos de
uma estrutura que o acontecimento camufla»; é preciso detectar
«uma verdadeira [?] dialéctica estrutural-evenemencial ou so-
cial-política», e por aí foral?3.
Ora o que, do meu ponto de vista, é preciso, é salientar
ainda uma vez mais a radical impossibilidade de refundar uma
história política nos moldes da história-ciência. Julliard concede
que a política diz respeito ao poder e que, na forma da história
tradicional, quer dizer, segundo o «empirismo positivista», aque-
le é identificado com o Estado e apreendido através das disputas
que o rodeiam, das decisões que produz e do impacto que estas
suscitam. Dado este facto incontornável, Julliard recomenda que
ao menos se adopte uma definição lata de poder que permita
considerá-lo à semelhança do «sistema cibernético apurado por
David Easton»!94. Ao contrário do que seria razoável e lógico
esperar, seria afinal esta perspectiva que abriria a possibilidade
de uma «intervenção específica do historiador». Compete-lhe elu-
cidar os aspectos dinâmicos do sistema, construindo «modelos»

192 Jacques Julliard, op. cit. pp. 236-7.


193 Idem, ibidem, pp. 238-40.
194 Idem, ibidem, p. 245.

fil
Apologia da História Política

susceptíveis de explicar o que parece inexplicável em termos


sistémicos: a passagem de um sistema a outro. Por esta via, Clio
recupera a sua «tarefa principal», que é a de explicar a «mudança
em profundidade» e a «mudança nas profundidades»!?5. Clio
sacode a espuma superficial das ondas, mergulha até ao fundo
do mar para se confundir com os outros cientistas sociais que
também por lá andam à pesca da mesma coisa: nem mais nem
menos do que uma teoria da sociedade que torne possível teo-
rizar a mudança social. Para que não se diga que exagero, cito
ainda Julliard: «Como uma sociedade passa de uma estrutura
a uma outra estrutura, de um equilíbrio a um outro equilíbrio,
tal é a questão essencial para o historiador de hoje no concerto
das ciências humanas.» Se a história aspira a «ser realmente a
ciência do devir das sociedades», há-de fornecer resposta para
esta questão!?6, Uma vez mais, a ânsia de definir o historiador
como um cientista apaga toda e qualquer distinção entre a his-
tória e a sociologia.

dez;
«A razão fundamental da deslocação, entre os “novos
historiadores”, do modo analítico para o descritivo,
reside numa mudança maior na atitude sobre o que é
o assunto central da história. E isto, por sua vez,
depende de assunções filosóficas prévias sobre o papel
da livre vontade humana na sua interacção com
as forças da Natureza.» 127

O que Lawrence Stone está a dizer é algo que no fundo


toda a gente sabe mas que a ideologia cientista proíbe de admi-
tir: que a «verdade», em história, e ao contrário da física ou da
biologia, é uma coisa muito, muito relativa, que depende em
última análise da visão do mundo (Weltanschauung) do historia-
dor. Era neste sentido — um sentido inescapável — que Georges
Duby dizia não acreditar na objectividade do historiador. Não

195 J. Julliard, op. cit., p. 246.


196 Idem, zbidem, p. 247.
197 1. Stone, The Past and the Present Revisited, op. cit., p. 93.

78
Apologia da história política

no sentido em que fosse impossível estabelecer factos objecti-


vos e separá-los de interpretações, e distinguir, de entre estas,
as que são plausíveis e as que são improváveis, as que são funda-
das e as que são arbitrárias. Tudo isto ensinou o velho positi-
vismo do qual Duby diz que permanece ainda hoje a moral do
historiador. Nenhum físico, nenhum biólogo, até mesmo ne-
nhum médico, considera a história como uma ciência em pé
de igualdade com a sua, nem que ela tivesse conseguido falar
apenas através da aritmética e da geometria, como quisera um
obscuro filósofo que escreveu em 1888: «O ideal da história ele-
vada à dignidade de ciência seria o de exprimir assim [por meio
de números, diagramas e cartogramas) todas as suas noções e
de apenas empregar palavras para explicar ou começar essas fór-
mulas.»!98 Mesmo sob formas menos radicais, o ideal de uma
história científica está hoje reduzido a um mito, e seguramente
que nada autoriza nem justifica que em nome desse mito se man-
tenha a interdição sobre a narrativa política. Também esta pode
chegar até ao limite máximo das aspirações «científicas» da histó-
ria-ciência: produzir afirmações empiricamente verificáveis e
interpretações racionalmente discutíveis — e, portanto, «falsificá-
veis». A «demonstração», a «prova», definitivas e irrecusáveis,
estão vedadas a ambos os géneros. É o que mostra a revisão a que
são periodicamente submetidas as grandes teses sobre as grandes
questões que ocupam o centro do debate histórico: as causas
da Revolução Inglesa de 1640, ou da Revolução Industrial, ou
da queda do Império Romano. Recentemente, depois de ter es-
crito mais de mil páginas sobre o assunto, Paul Veyne teve a ho-
nestidade de nos dizer que se enganara na explicação que dera
sobre o desaparecimento dos espectáculos de gladiadores em
Roma!??. Entre nós, há tantas teses sobre as origens do atraso
económico português quantos os autores que investigaram a
questão. E o mesmo se pode dizer sobre a Revolução de 1820
ou a queda da monarquia constitucional em 1910. Não é preciso

198 Luis Bourdeau, L'Histoire et les historiens, Paris, 1888, cit. por Jacques
Ranciêre, Les mots de Phistoire, Paris, Seuil, 1992.
199 Paul Veyne, Foucault révolutionne lhistoire, Paris, Seuil, 1978.

79
Apologia da História Política

citar mais exemplos para provar que eles são inumeráveis, nem
é preciso provar que eles são inumeráveis para mostrar que em
história, ao contrário das ciências, não existe uma autoridade
que sancione o que está certo e o que está errado, que caucione
a verdade. «A história é anárquica, não autoritária (authoritati-
ve)»200, O que John Vincent quer dizer é que não existe em his-
tória uma opinião autorizada que não possa ser contrariada por
outra opinião autorizada. E é assim porque não está apenas em
causa a verificação empírica dos conhecimentos, mas o confron-
to das interpretações — que não podem, em rigor, ser verificadas
no sentido que a ciência por aí entende. «A história não conhe-
ce uma última palavra sobre nenhum assunto.»201 A «última
palavra», em história, é sempre e apenas a última por ordem
de chegada, a última antes da próxima; não significa um juízo
definitivo (ou temporariamente aceite como tal). Dá-se até o
paradoxo de que quanto melhor conhecido é um problema mais
variam as interpretações. Depois da última palavra sobre as ori-
gens da Primeira Guerra Mundial, ou sobre a natureza política
do Estado Novo, ficamos todos à espera da versão seguinte202.
Enquanto interpretação, a história é um exercício criativo
que nenhuma técnica e nenhum método descrevem ou definem
completamente. O que sobra, é poiesis. Há quem diga que até
mesmo as grandes ideias da sociologia surgiram a partir de «um
quadro de pensamento intuitivo ou artístico» e que os grandes
sociólogos «nunca cessaram de ser artistas»203. É o que explica
que as suas obras, ao contrário de um tratado de matemática,
possam ser lidas e relidas sem que nunca esgotemos os sentidos
que contêm. Como se verá de mais perto na terceira parte, nada
disto implica arbitrariedade ou irracionalidade. Há saberes não
científicos que nem por isso são menos dignos ou instrutivos

200 John Vincent, An Intelligent Persons Guide to History, Londres, Duck-


worth, 1995.
201 Idem, ibidem, p. 20.
202 «This is because history is not about learning, or learnedness, but about
meaning, in whose domain authority has little sway.» John Vincent, ibidem.
203 Robert Nisbet, The Sociological Tradition, Londres, Heinemann, 1967,
p. 20.

80
Apologia da história política

nem menos difíceis de adquirir. Comparada com as outras disci-


plinas academicamente reconhecidas, a história não exige menor
cultura geral e especializada, nem menor domínio técnico, nem
menor profissionalismo, nem menor talento e aplicação. Nem
menor rigor: desde o século passado que a disciplina consagrou
regras para a prova documental da evidência aduzida, procedi-
mentos de pesquisa, exigências de verificação, critérios de impar-
cialidade e cânones de inferência que, se respeitados, garantem
uma protecção satisfatória contra aquilo que o senso comum
condena, e justamente, como arbitrariedade. Mas as «verdades»
a que se chega nunca serão independentes da Weltanschauung
do historiador: não há, ao contrário do que Max Weber nos quis
convencer, história livre-de-valores (wertfrei). Como Isaiah Berlin
sublinhou, a linguagem do historiador, pelo simples facto de
ter como referente a vida humana, não pode deixar de incor-
porar valores. Mas há mais. Léo Strauss, na discussão sobre a
diferença entre factos e valores, chama à atenção para que estes
estão implicados na própria designação do objecto de estudo
do cientista social. Fenómenos como a prostituição, o roubo,
o clientelismo, o autoritarismo, a manipulação, a fraude eleitoral,
e por aí fora, não são, em si mesmos, moralmente neutros204,
O historiador ou cientista social que os quisesse apresentar como
tal, cometeria afinal uma deturpação da realidade, pois estaria
a dar como «normais» fenómenos e comportamentos que, den-
tro das sociedades onde ocorrem, não são olhados como tal.
Para o velho historiador, estas limitações não são nem mais
nem menos dramáticas do que todas as coisas inevitáveis da
vida. Ele toma-as como um dado do seu problema, e não como
o problema a resolver. Ele sabe que a sua aproximação do passa-
do é sempre muito imperfeita, submetida que está à dupla dis-
torção introduzida pelo acaso que ditou a sobrevivência de
certos documentos e não outros, e pelos seus próprios valores
que determinam os objectos da sua preferência assim como o
modo de os olhar. Entre o passado tal como os contemporâneos
o viveram e a reconstituição que desse passado se faz existe sem
204 Téo Strauss, Natural Right and History, The University of Chicago Press,
1965, pp. 35-80.

81
Apologia da História Política

dúvida um abismo. Mas este abismo, como lembra Himmel-


farb, constitui a indicação de um limite, mas também a abertura
de uma possibilidade205. Dito de outro modo: uma possibili-
dade limitada de entrever imaginariamente, mas plausivelmente,
um «mundo» que já não existe. Esta tentativa supõe natural-
mente a convicção de que, mau grado todas as diferenças, existem
princípios de inteligibilidade, categorias de apreensão comuns
a uma civilização humana através dos tempos. Não sei quais são
nem a que nível cognitivo se situam. Não sendo filósofa, invoco
em abono desta convicção, porventura primária ou simplória,
a experiência que todos nós temos da vida: para comunicarmos,
aqui ou com outros seres estranhos através do mundo, não pare-
ce que seja necessário possuirmos uma percepção absolutamen-
te idêntica do que vemos e ouvimos à nossa volta. Posto isto,
toda a interpretação histórica envolve essencialmente um pro-
blema de contexto. Ora é essa possibilidade de comunicação
— com indivíduos que a todos os títulos nos são estranhos —
que tem de ser mobilizada na restituição dos contextos em que
determinados acontecimentos adquirem o significado particular
que se pretende extrair. Ela deverá permitir, não «descodificar»
ou traduzir a experiência passada em termos da linguagem e
das teorias das ciências sociais, mas, pelo contrário, apresentar
essa experiência, na medida do possível, em termos dos valores
e das categorias de entendimento dos que a viveram. Isto requer
sem dúvida a imaginação do historiador. Mas uma imaginação
destinada a reconstituir aproximadamente «um mundo» como
ele se via e compreendia a si mesmo a partir das descrições
muito fragmentárias e parciais que chegaram até nós. Não uma
imaginação, hoje em dia muito em voga, orientada para a «des-
codificação» e «reconstrução» desse mundo a partir de princí-
pios de inteligibilidade que os contemporâneos inteiramente
desconheciam. «Os contemporâneos podem ter pensado que
a sua história era moldada por reis e homens de Estado, política
e diplomacia, constituições e leis»206, uma ideia desacreditada

205 Gertrude Himmelfarb, «Some Reflections on the New History», Ameri-


can Historical Review, vol. 94, n.º 3, Junho 1989, p. 666.
206 Idem, ibidem, p. 667.

82
Apologia da história política

pela Nova História mas que é afinal muito parecida com o que
nós próprios pensamos, vendo muito sensatamente na consti-
tuição política da sociedade e nos actos do governo a origem
das decisões que afectam de forma mais palpável a nossa exis-
tência colectiva e individual. Recusar esta evidência implica
sustentar o paradoxo de que toda a vida política não passa de
uma futilidade pateticamente absurda. Todavia a ciência social,
e portanto a história-ciência, desconfiam por definição da expe-
riência consciente dos indivíduos, tendendo a encará-los como
sonâmbulos perdidos num eterno jogo de sombras. Aqui reside,
segundo Himmelfarb, a diferença que essencialmente separa a
nova da velha história: «A nova história coloca-se fora da opinião
recebida — a opinião dos contemporâneos tal como de historia-
dores tradicionais — e dispõe-se a declará-la simplesmente falsa.
A velha coloca-se dentro da opinião recebida, procurando com-
preendê-la como os contemporâneos a compreenderam, tentan-
do descobrir porque é que eles acreditavam no que acreditavam»;
a velha história aspira a fornecer «uma interpretação fiel das ex-
periências deles»207. Muito simplesmente, toma os nossos ante-
passados tão a sério como nós nos tomamos a nós próprios.
E, na verdade, cabe perguntar em nome de que particular pri-
vilégio gnoseológico reclamaríamos para nós uma lucidez que
lhes negamos a eles208. Cumpre no entanto observar que não
há uma «opinião recebida», mas sim várias opiniões recebidas,
tantas quantas as diversas visões do mundo dos nossos antepas-
sados. À de José Estêvão era por certo muito distinta da de Costa
Cabral, como a deste divergia da de Palmela. Como historiadora,
cabe-me ser o mais fiel possível a cada uma delas, e considerá-
-las igualmente válidas, em pé de igualdade com a minha própria.

207 G. Himmelfarb, op. cit., p. 669-70.


208 «Tal como o marxista, o novo historiador acusa com a maior facilidade
os seus sujeitos de falsa consciência”, de não compreenderem a sua própria reali-
dade. Se por acaso chega a pensar na discrepância entre a interpretação que dá do
passado e a que davam os contemporâneos, assume que é mais sábio do que eles,
que as vantagens de hindsighteas últimas técnicas analíticas — econometria, prosopo-
grafia, psicologia ou seja o que for — lhe dão uma visão mais objectiva, mais rigorosa
da realidade social. A dele é a “verdadeira” consciência, a deles a falsa». Himmelfarb,
The New History and the Old, Harvard University Press, 1987, p. 17.

83
Apologia da História Política

Os «retornos» anunciados por Stone desde 1979 e muito


falados a partir do final da década de 80 são pois hesitantes e
ambíguos, quando não um puro equívoco. Entre eles, o mais
enganador é sem dúvida o da história política. Ou seja, o retorno
do sujeito, do acontecimento e, por consequência, da narrativa
e da compreensão narrativa. Constituindo esta um tipo de expli-
cação causal logicamente distinto das explicações nomológicas,
implica na realidade uma ruptura epistemológica em relação
à história analítica. Com efeito, indicar «os factores responsáveis
por uma ocorrência particular» constitui uma operação radical-
mente diversa de estabelecer uma «conexão inavariável entre
tipos de acontecimentos ou de propriedades»20?. Não ignoro
que um retorno destes implica a renúncia formal à história
como ciência. Mas, depois de ter mostrado que a história-ciên-
cia ainda não se tornou científica, espero poder mostrar que
a velha história narrativa não só não possui menor mérito inte-
lectual como pode ser igualmente instrutiva. Finalmente, have-
rá que reconhecer que é apenas sob a sua forma tradicional que
a história cobra existência como disciplina autónoma com uma
identidade própria, dotada de objecto típico e específico, episte-
mológica e metodologicamente diferenciada das ciências sociais.
Este retorno inicia-se pela recuperação da política, cuja evacua-
ção foi o primeiro acto fundador e palavra de ordem da Nova
História; e implica a reabilitação da razão como factor da histó-
ria, tanto no sentido em que as acções do passado nos são inteli-
gíveis nos termos dos seus autores — que não eram meros joguetes
de forças obscuras — como no sentido em que a política consti-
tui um esforço para organizar racionalmente a vida em socieda-
de, e não unicamente uma dimensão pública de torpes egoísmos
privados — embora estes inegavelmente avultem entre as moti-
vações humanas.

209 Paul Ricoeur, Tempo e narrativa, op. cit, p. 286.

84
HI

A história política narrativa

«What are the roots that clutch, what branches grow


Out of this stony rubbish? Son of man,
You cannot say, or guess, for you know only
À heap of broken images, where the sun beats [...)»
T. S. Eliot, The Waste Land

18. A reabilitação da razão como factor da história significa


que se toma esta, enquanto objecto de estudo, como um pro-
duto inteligível da actividade humana e, por conseguinte, como
algo essencialmente distinto dos fenómenos naturais e de tudo
quanto constitui o mundo exterior no qual essa actividade se
desenrola. Nesta perspectiva os homens fazem, propriamente,
a sua história. E porque a fazem — ao contrário das pedras, do
movimento dos astros ou do crescimento das plantas, em que
não intervêm — devem conhecê-la melhor do que podem conhe-
cer os processos e os objectos ou entidades naturais. Foi sobre
este pressuposto que Giambattista Vico fundou, com a sua Szen-
za Nuova (1725), uma interpretação do processo histórico
derivada de um tipo de saber (conhecimento) especificamente
aplicável a tudo o que é obra dos homens, desde a moral ou
as artes à própria história humana. Este era «o domínio do que
se sabia por dentro» e o reino do verum; o mundo natural era
o domínio «do que se sabia por fora» e o reino do certum?10.
«Este mundo civil foi certamente feito pelos homens, pelo que
se podem e devem encontrar os seus princípios nas modificações

210 Isaiah Berlin, «The Sciences and the Humanities», in Against the Cur-
rent, Oxford, Clarendon Press, 1989, p. 94.

85
Apologia da História Política

da nossa própria mente humana»2!1. Vico, diz Berlin, des-


cobriu um «sentido de saber que é básico em todos os estudos
humanos», «uma espécie de saber» que se desenvolveu separa-
damente do saber científico e que, depois de apropriado pelo
historicismo alemão, veio a ocupar o centro da «sociologia com-
preensiva» de Max Weber. A validade deste saber não derivava
de uma conformidade entre a nossa percepção e o mundo exte-
rior da qual se pudesse dizer que estava «certa»; nem resultava
de um processo indutivo ou dedutivo; nem era uma fantasia
nem uma certeza. Era uma «espécie de saber» à parte, nunca
antes identificada, e cuja afirmação contrariava o «ideal de uma
ciência unificada de tudo quanto existe». Os alemães chamaram-
-lhe Verstehen, um tipo de compreensão que envolve «penetração
empática, simpatia intuitiva» (empathetic insight, intuitive sym-
pathy) e, em particular no que respeita ao estudo das sociedades
passadas, «historical Einfihlung»"2. É esta aptidão que permite,
justamente, recuperar o passado não como uma série cronológica
de factos ou acontecimentos tratados como coisas, «mas como
um mundo possíveb 213. Ou seja, como uma recriação plausível
que procede da nossa capacidade de sabermos o que é ser ro-
mano no século III, ou florentino no século XVI ou lisboeta no
século XIX. Isto, que é um exercício impensável a respeito da
estrela de uma galáxia ou de um átomo do universo, é um exer-
cício indispensável se quisermos «saber» o que os homens
fizeram, pensaram, sonharam, ambicionaram, isto é, se qui-
sermos penetrar «os motivos, propósitos, esperanças, medos,
amores, ódios, invejas, ambições, perspectivas e visões da reali-
dade» dos nossos antepassados?214. Esta é a única maneira de

211 Giambattista Vico, «A interpretação do processo histórico», in Patrick


Gardiner ed., Teorias da História, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1995 (4.2 ed.), pro
2121, Berlin, «Vico's concept of knowledge», in Against the Current, op. cit.,
p. 116; e The Sciences and the Humanities, op. cit., p- 96. O original inglês utiliza
a expressão alemã Einfiihlung, praticamente intraduzível. A tradução mais aproxi-
mada será «sentido histórico», mas perde-se o significado do prefixo ein, que indi-
ca «para dentro».
213 7. Berlin, «Vico's concept of knowledge», op. cit., p. 117.
2147, Berlin, «The Sciences and the Humanities», op. cit., p. 95.

86
Apologia da história política

comprendermos as suas acções e a história que fizeram: «O pas-


sado pode ser visto através dos olhos — as categorias e modos
de pensar, sentir, imaginar — de, pelo menos, possíveis habi-
tantes de possíveis mundos»215. Deste modo, cada época apare-
cerá como um mundo caracterizado por uma Weltanschaung
típica, dotado de unidade interna e coerência própria — for-
mando esse tal Zusammenhang?16 (conjunto) do historicismo
alemão em que alguns vêem ainda o princípio de inteligi-
bilidade histórica subjacente à obra de Lucien Febvre.
Isaiah Berlin qualifica como um autêntico «cisma» a sepa-
ração operada por Vico entre as ciências da natureza e os estudos
humanos ou humanidades?!”, acrescentando que, ao fundar esta
dualidade de saberes, Vico inaugurou uma polémica cujo fim
ainda hoje em dia se não avista2!8, Desde então, àquelas estaria
destinado o que se conhece «por fora», o que é universal e se
repete, e a estas o que é único e específico e se sabe «por dentro».
Aquele conhecimento seria certo ou errado; este saber, verda-
deiro ou falso. Mas Hannah Arendt mostra-nos como Vico,
ao mesmo tempo que fundou uma via específica para o estudo
das humanidades, tornou possível o entendimento da história
como processo e, portanto, como uma matéria apropriável pelo
conhecimento científico2!9. Galileu e Descartes ensinaram ao
homem moderno que os sentidos eram falíveis e o senso comum,
com que interpretavam a experiência quotidiana, uma fonte
perene de ilusões. Esta decepção inspirou a Descartes o célebre
preceito de omnibus dubitandum est, que mandava duvidar me-
todicamente de todos os meios de conhecimento, da experiência
sensível à «verdade inata” do espírito». Precavida contra as suas

215 1, Berlin, «Vico's concept of knowledge», op. cit., p. 117.


216 À letra: o que está ou pende junto.
217 1. Berlin, «The Sciences and the Humanities», 0p. cit., p. 109.
218 Idem, ibidem, p. 110.
219 Cf, também, E. P Thompson, The Poverty of Theory, Londres, Merlin
Press, 1978, pp. 276-8. «Each historical event is unique. But many events, wide-
ly separated in time and place, reveal, when brought into relation with each other,
regularities of process. Vico, confronted with these regularities, struggled to define
process in ways which foresaw simultaneously the anthropological discipline and
historical materialism» (p. 276).

87
Apologia da História Política

armadilhas, a ciência divorciou-se do senso comum e desenvol-


veu-se por ruptura com ele, dado como incapaz de nos revelar
verdades «certas». Mas a desconfiança nas capacidades cogniti-
vas do homem levou Vico não a procurar um novo «método»
para o conhecimento, mas a procurar um campo a que essas
capacidades se pudessem aplicar com adequação e eficácia. Santo
Agostinho dissera que os homens apenas podiam conhecer o que
eles próprios faziam220, Vico concluiu que a história, enquan-
to tecido feito das acções dos homens, era o domínio que se ofere-
cia por excelência ao conhecimento humano. Ora «O primeiro
resultado de que o homem age na história é que a história se
torna um processo»221, Segundo Arendt, a descoberta da realida-
de natural e histórica como um processo constituiu um marco
fundamental na história do Ocidente: «O conceito moderno
de que um processo penetra tanto a história como a natureza
separa a Idade Moderna do passado mais profundamente do
que qualquer outra ideia.»222
O que está contido na ideia de processo é a noção de que
as acções humanas desencadeiam reacções em cadeia, constituí-
das por outras tantas acções cujas consequências os respectivos
autores, por conseguinte, não controlam nem prevêem. E os
homens, que aparecem soberanos no acto de fazer, surgem
afinal enredados numa teia de acontecimentos que baralha e
desfaz os seus cálculos, e a que apenas conseguem impor alguma
— maior ou menor — orientação. Não existe, na prática e em con-
creto, um momento de virgindade inicial em que se daria verda-
deiramente uma primeira acção. A vida humana não se escreve
sobre páginas em branco. Todas as acções são já e sempre res-
postas provocadas por acontecimentos resultantes de outras
acções. Isto é assim porque o mundo humano, marcado pela
«pluralidade humana»22 que a natureza das coisas assegura
pelo facto do contínuo nascimento de novos homens, é ele

220 1, Berlin, «The Sciences and the Humanities», op. cit., p. 94.
221 Hannah Arendt, «Le concept d'histoire», in La crise de la culture, Paris,
Gallimard, 1972, p. 85.
222 Idem, ibidem, p. 86.
223 Idem, ibidem, p. 83.

88
Apologia da história política

próprio e por definição mesma o lugar da contingência. Mas


precisamente porque o mundo humano é largamente imprevi-
sível pelos sujeitos que o animam, e porque as acções destes
se apresentam como um encadeamento que, como tal, se revela
estranho às determinações intencionais de grupos e indivíduos,
torna-se tentador apreender a história humana como um proces-
so objectivo, desprovido de sujeito preciso e movido por forças
sem rosto, sejam elas as do acaso, da fortuna, destino ou provi-
dência, ou as da demografia, das mentalidades, da economia
ou geografia. Uma tentação tanto mais irresistível quanto no
meio da característica incerteza humana se deixam discernir in-
trigantes regularidades que justificam supor a intervenção de
determinações cuja exacta natureza continua no entanto por
definir: «O materialismo histórico, desde o tempo de Vico, tem
procurado um termo que dê conta das uniformidades de costu-
mes, etc., as regularidades das formações sociais, e que analise
estas nem como necessidades nomológicas nem como coinci-
dências fortuitas.»224 O problema das relações entre acção e es-
trutura, reconhecido como o «fulcro inamovível da análise
sociológica»225, é então velho de séculos. Foram as ciências sociais
que o expuseram à luz do dia, mas ele achou-se na realidade pre-
nunciado desde que foi inventada a categoria do «processo».
Cada um dos elementos de um processo não conta nem
vale por si. Todos apenas cobram significado na sua relação com
os outros. «O processo, a única coisa que torna significativo
tudo o que lhe acontece arrastar, adquiriu assim um monopólio
de universalidade e significação»226. O acontecimento, na sin-
gularidade que o individualiza, perdeu relevância, e a sua causa
particular deixou de ser investigada. A causalidade alojou-se no
próprio processo e ascendeu com isso, por assim dizer, a «uma
existência independente da qual o acontecimento seria a expres-
são mais ou menos acidental, se bem que adequada»227: segundo

224 E. P Thompson, The Poverty of Theory, op. cit., p. 278.


225 Philip Abrams, Historical Sociology, Open Books, 1982, p. XV.
226 H. Arendt, «Le concept d'histoire», op. cit., p. 87.
227 Idem, ibidem.

89
Apologia da História Política

uma metáfora em moda, o acontecimento não passa da «ponta


do icebergue». Apenas interessam constelações e tipos de aconte-
cimentos, as conexões constantes que os ligam, as propriedades
comuns que possuem e as causas gerais (7. e., os antecedentes
constantes) que os explicam. Na medida em que tanto a história
como a natureza são concebidas como processos, fica estabelecida
entre ambas uma «similitude fundamental» que tem sido ofus-
cada pela oposição entre ciências históricas e naturais, mas que
explica e justifica a ambição de incluir a ambas num sistema cien-
tífico unificado. A desqualificação do particular e do factual,
escreve Arendt, deve-se ao maior crédito conferido à «validade
aparentemente mais alta de 'sentidos» gerais”, em nome dos quais
veio a ser minada «a estrutura factual fundamental de todo o
processo histórico, 1. e., a cronologia»228.
19. Ao contrário do que levara Vico a tomá-la como ter-
reno de eleição do conhecimento humano, o ponto de vista
científico sobre a história considerada processo liquidou os in-
divíduos como portadores da mudança histórica; evacuou os
homens enquanto sujeitos de acções deliberadas e bem assim
os acontecimentos que presumidamente resultavam dessas ac-
ções. As regularidades e os padrões (patterns) tornaram-se os
novos «factos» das ciências sociais, quer sejam constituídos por
comportamentos tipificados quer por relações constantes entre
tipos de acontecimentos. Nem aqueles nem estas são imputáveis
a motivações individuais e verificam-se, pelo contrário, à reve-
lia dos desígnios subjectivos dos homens. Os «factos» das ciên-
cias sociais escapam-lhes por completo. Não são apreensíveis
pelo senso comum com que interpretamos o mundo em que
vivemos. Por conseguinte, de um ponto de vista científico não
interessa realmente averiguar qual era a percepção que os con-
temporâneos tinham da sociedade em que viviam. O «discurso
do método» ensinara que essa percepção acrítica, não filtrada
pela «dúvida metódica», era falsa, e este ensinamento era con-
firmado pela observação de que «a acção humana, projectada

228 H, Arendt, op. cit., pp. 108-9.

90
Apologia da história política

num tecido de relações em que são prosseguidos fins múltiplos


e opostos, quase nunca realiza a sua intenção original»229.
Mas era precisamente essa percepção de senso comum,
como explica Léo Strauss, que interessava e constituía o ponto
de partida da filosofia política antiga: «a compreensão das coisas
políticas própria da vida política», quer dizer, a compreensão
«das coisas políticas de acordo com a experiência que delas têm
o cidadão e o político», ou ainda «a forma plenamente cons-
ciente da compreensão de senso comum das coisas políticas»230.
Este deveria ser também, segundo Strauss, o ponto de partida
da ciência social, sob pena de esta «não poder alcançar uma
plena clareza sobre as suas próprias operações»23! nem chegar
a dotar-se de um objecto que lhe seja exterior, isto é, com exis-
tência empírica independente das suas próprias construções
teóricas. Por aqui se vê o que Rui Ramos salientou num artigo
luminoso: que a filosofia antiga é política, não porque trate dos
meios de atingir o bem comum -— tarefa especificamente po-
lítica de que Aristótoles se ocupou na Política — mas porque,
procurando determinar o que é o Bem, começava por se interro-
gar sobre o bom governo, que era o problema prático que inte-
ressava ao cidadão real. «Era só a partir da situação concreta
que o filósofo elaborava perguntas sobre os princípios», aceitan-
do «as categorias da vida política tal como tinham sido postas
pelo senso comum. À opinião era o seu ponto de partida para
a teoria»222, Vê-se agora mais exactamente onde Himmelfarb
queria chegar quando dizia que a história ou era política ou
não era. Não se tratava propriamente de um determinado con-
teúdo (político) que ela lhe queria atribuir em exclusivo, mas
sim de um determinado ponto de vista ou atitude que a história
devia adoptar. Em seu entender a história não deveria fazer-
-se por ruptura com o senso comum, mas sim colocar-se «dentro
da opinião recebida»: ocupar-se não dos problemas sugeridos

229 H. Arendt, op. cit., p. 113.


230 Léo Strauss, La Cité et 'homme, Paris, Agora, 1987, p. 20.
231 Idem, ibidem.
232 Rui Ramos, «A causa da história do ponto de vista político», Lisboa,
Penélope, n.º 5, 1991, pp. 40-1.

91
Apologia da História Política

pelas teorias sociais elaboradas na actualidade, mas sim daqueles


que preocupavam as sociedades passadas e que se encontram
formulados nos documentos e nas crónicas que legaram. Para
Himmelfarb, a objectividade histórica consiste precisamente
nisto: no respeito pelo entendimento que os contemporâneos
tinham das coisas e na máxima fidelidade possível à visão do
mundo que era a deles233. Este ponto de vista é de resto a solução
dada por Aron ao problema de saber com que critério devemos
seleccionar a realidade histórica que nos propomos investigar.
Se esse critério são os nossos valores actuais, como Weber sus-
tentava que eram, podiam ou deviam ser, como podemos estar
seguros de que a nossa escolha é pertinente? Aron aconselha
a que se estude o passado em função dos valores das sociedades
passadas?34. Todos os assuntos, portanto, são ou podem ser
históricos, das guerras às procissões ou da nupcialidade à econo-
mia. Tudo depende de terem ou não sido valorizados pelos con-
temporâneos e de terem ou não sido considerados no legado
documental que chegou até nós. Ora acontece que, entre as ma-
térias que os documentos registam, predominam largamente
as que se relacionam com política, que notoriamente era vista
como a mais importante e decisiva para a vida em sociedade.
Por isso, e só por isso, a história se definia tradicionalmente
como «past politics». Presentemente, querendo fazer da raça,
da classe, do sexo, da idade, da exclusão, da cor, da piedade,
do sofrimento, do amor, o assunto central da história, esta veio
a definir-se como «present politics», quer dizer, transformou-
-se numa disputa política pela definição de quais sejam os seus
assuntos legítimos. O editorial do n.º 41 de 1996 do History
Workshop Journal diz tudo a este respeito: «A nossa tese nesta
colecção é de que as histórias de sexo e gender e de sabedoria
popular são parte dessa história socialista do povo trabalhador
que o History Workshop Journal sempre defendeu, e que as im-
plicações políticas de tais histórias não são questões que possam

233 É este o argumento comum a todos os ensaios reunidos em The New


History and the Old (op. cit.).
234 R. Aron, «La philosophie de Phistoire», in Dimensions de la conscience
historique, op. cit., p. 17.

De
Apologia da história política

ser resolvidas com legislação sobre direitos humanos, antes


implicando as lutas radicais que prosseguem em torno da cul-
tura, das origens do poder e da possibilidade de mudança.»
J. Wallach Scott vai ainda mais longe nas páginas da Ameri-
can Historial Review?35, sustentando que a história não reza
do que aconteceu, não se refere a uma realidade passada ou a
um objecto empírico com existência independente do historia-
dor. Ela acabaria por apenas designar a própria actividade do
historiador que, a partir de materiais politicamente viciados
na sua origem, «constrói» a história em função das suas próprias
opções ideológicas e segundo «convenções politicamente pro-
duzidas»236. Nesta perspectiva, toda a discussão histórica não
passaria de uma discussão política, e seriam argumentos polí-
ticos que decidiriam uma questão histórica.
20. Como não custa a compreender, a eleição pela velha
história da política e dos «grandes homens» como seu assunto
central não se deve a nenhuma espécie de preconceito sexista,
classista ou elitista. Essa eleição resulta largamente dos próprios
documentos. À história, quer se queira quer não, reza de uma
minoria constituída pelos homens, pelos famosos, poderosos,
ricos, letrados e cultos. Isto não é dizer que não existissem mu-
lheres, crianças, pobres, oprimidos, analfabetos e gente obscura.
Quer apenas dizer, como escreve John Vincent, que «A história
trata de evidência empírica» («History is about evidence»)237:
mau grado todos os esforços em contrário feitos pelas diversas
variedades de Nova História, o objecto da história tout court
depende intimamente do que se acha registado nas fontes de
que o historiador se serve, e acontece que estas são tremenda-
mente parciais?28. As fontes dizem pouco sobre o sofrimento
dos velhos, as frustrações das mulheres, as manhas das crianças
ou o esforçado labor dos pobres. Os humilhados e ofendidos
apenas dão entrada na história quando assustam os poderosos
235 Vol. 94, n.º 3, Junho 1989, pp. 680-1.
236 «A minha premissa é que a história não é puramente referencial, antes
é construída (não re-construída) pelos historiadores.» Op. cit., p. 681.
237 J. Vincent, An Intelligent Persons Guide to History, op. cit. p. 14.
238 «One-sidedness lies at the heart of historical knowledge». Idem, ibi-
dem, p. 15.

99
Apologia da História Política

e ameaçam a ordem estabelecida. Por isso há mais estudos sobre


os judeus do que sobre os inquisidores. Também as jacqueries
medievais ou as revoltas populares que abalaram o século XVII
estão bem documentadas: D. Francsico Manuel de Melo dedi-
cou mais de duzentas páginas às «Alterações de Évora» de 1637.
Isto significa que a massa geralmente ignorada dos explorados
apenas deixa rasto quando faz acontecer qualquer coisa. Em
primeira e última análise, é disso que a história trata: das acções
e dos acontecimentos que mudam a história, dos esforços feitos
para a impelir num determinado sentido ou das resistências
desenvolvidas para a impedir de mudar. A mudança é o seu do-
mínio típico e específico, e no centro desse domínio está inevi-
tavelmente a política, uma actividade que apenas se presta a ser
tratada sob a forma narrativa pelo motivo de ser esta a forma
adequada à descrição das acções humanas passadas. Mais adian-
te se verá que, descrevendo, a narrativa faz muito mais do que
meramente descrever. Mas antes disso examinemos mais de
perto o problema prévio que se coloca, a saber, o da eleição
do ponto de vista a partir do qual se narra.
Este problema não aflige apenas a história narrativa. A his-
tória-ciência social também não lhe escapa, como de resto lhe
não escapam todas as ciências sociais e naturais. Devido à
«infinita riqueza e variedade dos possíveis aspectos dos factos
do nosso universo»239, toda a descrição é forçosamente selec-
tiva. Nas ciências exactas, o «ponto de vista» (Popper) é forneci-
do pelas suas teorias, que são verificáveis com factos e unificam
os respectivos saberes. Em história o caso muda de figura. Todas
as teorias que a possam orientar na formulação dos seus proble-
mas — 7. e, fornecer um «ponto de vista» — se encontram sujeitas
a contestação inevitável e permanente. Haverá umas mais plau-
síveis e melhor fundamentadas do que outras. Mas, como expli-
ca B. Lepetit, a pertinência da argumentação empírica a favor
de um determinado modelo explicativo apenas é válida rela-
tivamente aos termos em que o problema foi equacionado nesse
modelo, quer dizer, no quadro da hipótese, do contexto e das

239 K. Popper, À Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, op. cit. vol. 1, p. 257.

94
Apologia da história política

variáveis escolhidos. Assim, «entre grupos que falam do mundo


numa linguagem diferente, a prova empírica não muda nada
[...]. Desta incomunicabilidade lógica resulta que nenhum
enunciado «pode pretender ser uma “expressão da realidade
que desqualificaria todos os outros 'enunciados de base descre-
vendo a mesma realidade»240, Enquanto se não descobre solu-
ção para este quebra-cabeças epistemológico, subsiste o facto
de que tanto é aceitável a teoria que afirma que o capitalismo
é fruto de dinâmicas económicas inter-regionais de pequena
escala, como a que sustenta que ele resulta de uma única dinâmi-
ca global interna ao gigantesco sistema social que nasceu no
século xvI com a economia-mundo europeia24!. Os factos — a
evidência empírica — então, não valem por igual e por si mes-
mos. No limite, e ao contrário do que se passa nas ciências natu-
rais, são as teorias que os validam ao adoptá-los como «provas»
delas mesmas. Como diz Popper, «estas teorias históricas não
testáveis podem (então) com razão ser qualificadas como circula-
res»242, Assim se compreende que os conhecimentos produzidos
pela investigação histórica não sejam rigorosamente cumuláveis:
falta uma teoria — um «ponto de vista» — que os unifique.
Ora sem dúvida que a história narrativa também opera com
uma ou várias teorias implícitas. Mas trata-se de teorias muito
rudimentares, que em rigor não merecem tal nome pois não
passam de generalizações de senso comum que integramos no
nosso comportamento quotidiano. Por serem banais ou dema-
siado genéricas, «As leis universais que a explicação histórica
utiliza não fornecem qualquer princípio selectivo unificador,
nenhum “ponto de vista! para a história»243. Servem para deter-
minar e hierarquizar a traço grosso os factores que à partida,
provisoriamente, parecem relevantes para o estudo de um dado
problema. Depois disso podem ser esquecidas, uma vez que o

240 Bernard Lepetit, Annales, E.S.C., n.º 5, Set./Out. 1993, pp. 1211--1213.
241 Trata-se, respectivamente, das teses da proto-industrialização de Peter
Kriedte e Hans Medick, e da tese do sistema mundialde I. Wallerstein.
242 K. Popper, op. cit, vol. 1, p. 261.
243 Idem, ibidem.

95
Apologia da História Política

que importava era explicar fenómenos singulares e não, como


nas «ciências generalizadoras», entre as quais Popper inclui a
sociologia, «testar hipóteses universais» ou «predizer aconteci-
mentos específicos»244. As «leis» e «teorias» possuem uma mera
função heurística e, como tal, sem dúvida que orientam o histo-
riador na eleição dos aspectos críticos para os quais há-de
orientar a sua investigação. Mas para a história política o «ponto
de vista» forte é-lhe dado, na medida do possível, pelo dos
próprios contemporâneos, o que, sobre uma garantia de fideli-
dade como atrás foi entendida, fornece um critério de escolha
mais objectivo do que aquele que nos leva a optar entre várias
teorias (actuais) igualmente admissíveis e que não passam, em
rigor e por contraste com as teorias científicas, de várias «inter-
pretações gerais »245. Estou consciente de que afloro aqui o Aisto-
ricismo que Popper se propõe precisamente demolir. Mas apenas
afloro: porque bem sei que «não pode haver uma história “do
passado tal como efectivamente ocorreu”; pode apenas haver
interpretações históricas, e nenhuma delas definitiva»246. Sei
igualmente que «somos nós quem selecciona e ordena os factos
da história»247. Mas recuso-me a admitir a radical impossibilida-
de de essa selecção e ordenação respeitarem, ainda que de forma
imperfeita, as «interpretações gerais» dos contemporâneos que
viveram a história que agora se narra. E ao contrário do que afir-
ma Popper, não vejo que esta tentativa implique a crença in-
génua de que, «contemplando a história, possamos descobrir
o segredo, a essência do destino humano»248. A «Miséria do his-
toricismo» vergasta a ambição profética implicada na presunção
científica que supõe possível formular as leis do devir histórico
e, por conseguinte, ler o sentido do futuro24?. Mas o «histo-
ricismo» que aqui defendo é mais modesto e mais sensato: não
reclama nenhuma prerrogativa científica nem, por conseguinte,

244 K Popper, op. cit., p. 259.


245 Idem, ibidem, p. 261.
246 Idem, ibidem, p. 263.
247 Idem, ibidem, p. 264.
248 Idem, ibidem.
249 Karl Popper, Misêre de |”historicisme, Paris, Plon, 1956.

96
Apologia da história política

nenhum privilégio de previsão. Limita-se a recusar a brutal opa-


cidade do passado.
21. Também sob este aspecto, e como acaba de se ver, a his-
tória-ciência social não oferece nenhuma vantagem sólida. Não
só as teorias que utiliza não são rigorosamente verificáveis e
não passam, por isso, de «interpretações gerais», como os resulta-
dos a que chega, mesmo quando atingem a escala e sofisticação
do sistema mundial de Wallerstein, não são mais do que interpre-
tações cuja sustentação depende inteiramente do ponto de vista
que ditou a hipótese de partida, recortou o contexto analisado,
ditou as variáveis utilizadas e seleccionou a evidência empírica
aduzida. Isto reconduz-nos ao ponto de vista da história política
e ao tipo de inteligibilidade histórica que ela faculta.
Escrevi uma história da guerra civil da Patuleia da qual
se conclui ter-se tratado de uma guerra em que nenhuma das
partes quis verdadeiramente vencer nem, menos ainda, esma-
gar o adversário. À guerra terminou sem vencidos ou vence-
dores nítidos. Expliquei este bizarro desfecho à luz dos dilemas
em que tanto o duque de Saldanha como o conde das Antas
se encontravam enredados: uma clara vitória do governo de
Lisboa aplanaria o regresso triunfal do conde de Tomar, e uma
clara vitória da junta do Porto abriria as portas à revolução.
Em rigor, eu não expliquei coisa nenhuma: limitei-me a tornar
inteligível o que aconteceu. Em história, a causalidade escapa
ao modelo nomológico e, por consequência, a explicação não
possui a estrutura lógica exigida pela ciência. Relembremos a
definição que dela dá Karl Popper a fim de tornar o contraste
bem evidente: «Dar uma explicação causal de determinado acon-
tecimento significa extrair dedutivamente um enunciado (cha-
mar-lhe-emos uma prognose) que descreve esse acontecimento
usando como premissas da dedução algumas (eis universais jun-
tamente com certas proposições singulares ou específicas a que
podemos chamar condições iniciais.»?50 Carl G. Hempel, con-
siderado o autor da versão clássica do modelo nomológico?51,
250 K. Popper, A sociedade aberta, ... op. cit. vol. 1, p. 257-8.
251 C, G. Hempel, «A função de leis gerais em História», in P Gardiner ed.,
Teorias da História, op. cit., pp. 421-435. Ver, na mesma obra, o artigo igualmente

o
Apologia da História Política

sustenta que todas as explicações, qualquer que seja o campo


de saber considerado, contêm ao menos implicitamente uma
referência, ainda que indirecta, a uma lei geral. Mas o facto é
que a história está repleta de explicações que, sendo convincen-
tes — satisfazendo-nos intelectualmente — não resultam de ne-
nhuma dedução de uma lei geral252, E quando estão neste caso
trata-se, como atrás se salientou, de meras generalizações de
senso comum. William Dray nota que as explicações históricas
são tipicamente explicações «sobre 'o quê”» (e não sobre «o por-
quê»), que são dadas «mediante um conceito geral», quer dizer,
organizando os acontecimentos de maneira a que formem «uma
configuração concreta do conceito abstracto sob o qual ou à
luz do qual os interpretámos e os pretendemos iluminar»253.
Assim, por exemplo, explicar os acontecimentos de 17/89 «como
uma revolução» não supõe subsumi-los sob nenhuma lei que os
explique— 1. e., que indique a sua causa por referência a uma ou
várias leis — e que, explicando-os, permitisse prevê-los. De igual
modo, o tipo de «explicação-por-conceito» que nos diz que a
guerra da Patuleia deve ser entendida como uma guerra civil,
ou que a revolta de Torres Novas de 1844 deve ser interpretada
como um pronunciamento militar, supõe de facto uma generali-
zação — a que está implicada nos conceitos gerais utilizados. Mas
este é apenas um dos «dois sentidos diferentes em que os filósofos
falam de generalizar»254. Quando explicamos 1789 como uma
revolução, estamos a proceder a uma generalização que não
implica o enunciado das condições necessárias e suficientes que
a produziram; não estamos a afirmar, como afirma o modelo
nomológico, que sempre que X, Y e Z se verificam, acontece
Q. Limitamo-nos a registar que no caso em apreço os eventos X, Y
e Z «acarretaram» Q. E conclui Dray: «os historiadores verificam

clássico de Morton White, «A explicação histórica» (pp. 436-456), cuja conclusão


vai no mesmo sentido: se o historiador «se interessa antes de mais pelo compor-
tamento social do homem», então, «de um ponto de vista lógico, a explicação históri-
ca e a explicação sociológica não são fundamentalmente diferentes» (p. 453).
252 William Dray, «Explicando “o quê” em história», in R Gardiner ed.,
Teorias da-História, op. cit., pp. 494-501.
253 Idem, ibidem, p. 495.
254 Idem, ibidem, p. 499.

98
Apologia da história política

que é intelectualmente satisfatória a possibilidade de represen-


tarem os eventos e as condições que estudaram relacionados desta
maneira»255. Podem e devem estabelecer-se factos com base em
provas documentais; quanto a relacioná-los causalmente, resta
ao historiador a arma da persuasão.
Mas, uma vez que a história se não repete, e não poden-
do por isso submeter as nossas «teorias» (explicações) à prova
da experiência, o que será que nos garante que X, Y e Z de
facto e realmente «acarretaram» Q? Sobre isto, Dray diz-nos
que é o juízo intelectual do historiador que decide. Portanto
não nos ajuda grande coisa, e a pergunta subsiste: o que é que
me permite afirmar que X foi a «causa» de Y? Em que me baseio
para sustentar que a mudança de governo de 5 para 6 de Outu-
bro de 1846 foi a «causa» da guerra civil de 1846-7? Não era
a primeira vez que se operava uma mudança ministerial por
processos que equivaliam a um golpe de Estado palaciano. Assim
acontecera em 26 de Novembro de 1839 sem que a oposição
tivesse reagido de forma violenta. Indagar a «causa» desta dife-
rença significa comparar contextos e procurar o que ocorreu
num caso que não ocorreu no outro. Resta ver como se proce-
de nessa procura.
Procede-se analisando as circunstâncias e o encadeamento
dos acontecimentos. Mas os acontecimentos, em rigor e por
si só, não desencadeiam outros acontecimentos. O que os desen-
cadeia é a mediação ou acção humana (que os produz). Por isso
a explicação em história política consiste essencialmente em
imputar as causas dos acontecimentos aos sujeitos — indivíduos
ou grupos — que, agindo, os provocam. Essencialmente, mas
não exclusivamente: as circunstâncias, a sorte ou a coincidência
também moldam a vida de homens que, parafraseando Aron,
sabem dos seus actos, mas ignoram o seu destino. Como diz
Paul Veyne, a história constitui «uma mistura muito humana
e muito pouco “científica” de causas materiais, de fins e de aca-
sos»256, E porque nem tudo é intencional, e muitas vezes os

255 W. Dray, op. cit., p. 499 (itálico meu).


256 Paul Veyne, Comment on écrit Vhistoire, Paris, Seuil, 1978, p. 36.

Bo)
Apologia da História Política

cálculos não saem certos, fazer história requer mais do que uma
teoria da acção e supõe, por definição mesma, uma visão ex
post facto que os contemporâneos evidentemente não possuem.
Ainda que, idealmente, tivéssemos acesso aos processos men-
tais dos homens que agiram no passado, isso não nos permiti-
ria, por si só, apreender o alcance e o significado das suas acções.
Isso apenas nos tornaria seus contemporâneos e, como tal, far-
-nos-ia tão pouco sábios quanto eles foram pouco prescientes:
«para compreender o significado histórico de acontecimentos
no momento em que eles se dão, é necessário saber com que
acontecimentos posteriores eles serão relacionados» por futu-
ros historiadores?>7. Não pode existir uma história do presente
porque ela só pode ser feita depois de consumada. O que a
«distância» faculta ao historiador não é a apregoada objecti-
vidade de um olhar desapaixonado. G.H. Elliot nunca ocultou
a sua paixão por Olivares, e Duby afirma que a história apaixo-
nada é superior a uma história expurgada de emoções. O que
a distância faculta é um conhecimento daquilo que aconteceu
depois de algo já ter acontecido e que seria inacessível ao mais
presciente contemporâneo. Por aqui se vê que o historiador não
é um mero testemunho, e que por esta mesma e precisa razão
também não é um mero cronista. Através da narrativa, ele faz
mais e diverso de simplesmente descrever por ordem cronológi-
ca acontecimentos que ele estivesse a presencear: ele reordena
retrospectivamente os factos em função de uma lógica que lhe
é revelada a posteriori pelo conhecimento que possui tanto do
jogo contraditório dos actores como das obras emaranhadas
do acaso. «A história é uma descrição de acontecimentos ante-
riores sob a descrição de acontecimentos ulteriores, desconhe-
cidos dos actores dos primeiros.»258 Ninguém, no dia 6 de
Outubro de 1846, poderia ter afirmado com certeza que come-
çara ali a guerra civil da Patuleia. (Como ainda hoje se não
pode afirmar que o fim da carreira política de Cavaco Silva ficou

257 Arthur Danto, Analytical Philosophy of History, Cambridge University


Press, 1965, p. 169.
258 P Ricoeur, Tempo e Narrativa, op. cit., vol. 1, nota 46, p. 225.

100
Apologia da história política

selado com o anúncio da sua candidatura à Presidência da Re-


pública, por exemplo.) Por outras palavras, no momento em
que se dá um acontecimento, nenhuma testemunha pode des-
crevê-lo como causa de outros acontecimentos futuros, por
definição ainda não verificados. Ora o tipo de enunciados que
estabelecem retrospectivamente uma conexão entre aconteci-
mentos separados no tempo constituem «frases narrativas», cuja
utilização «sugere um traço distintivo do conhecimento histó-
rico»259 e representa um recurso característico do historiador.
Além disso, à superioridade do seu conhecimento dos factos,
que lhe vem da vantagem de conhecer o futuro dos antepassa-
dos, o historiador pode acrescentar «técnicas de conhecimento»,
1. e., conceptualizações modernas que eram ignoradas pelos
agentes históricos260, o que lhe permite apresentar o passado,
mediante o tipo de «explicação-por-conceito» já referido, a uma
luz que estes não podiam ver — por exemplo, à luz do «subdesen-
volvimento», da «anomia», da «periferização» ou da «proletariza-
ção». Mas, em qualquer caso, o que caracteriza a história é o
facto de ser sempre uma descrição post eventum, inacessível ao
mais lúcido cronista ou jornalista contemporâneo, e é isto que
lhe confere uma inteligibilidade específica.
22. Porque só post eventum é que se torna possível, na exac-
ta medida em que se narra o que aconteceu, ir implícita ou
explicitamente indicando o que é que foi que provocou o quê.
Mantém-se, todavia, o problema de definir o estatuto ou natu-
reza da causalidade em história. Ao contrário de Carl Hempel,
William Dray sustenta que existem conexões causais cuja força
explicativa não deriva de nenhuma lei. Derivam então, como
já vimos, de o historiador as estabelecer de forma intelectual-
mente satisfatória. Mas com que base as estabelece? Estabelece-
-as com base num juízo (e não numa indução) em consequência
do qual atribui uma causa X a um determinado acontecimento
ou sequência particular de acontecimentos. Este tipo de impu-
tação causal, logicamente distinta da causalidade nomológica

259 Arthur Danto, op. cit., p. 143.


260 P Ricoeur, Tempo e narrativa, op. cit., vol. 1, nota 46, p. 225.

101
Apologia da História Política

estabelecida pela Ciência, constitui apenas o mais alto grau de


probabilidade, aquilo a que Weber chamou «adequação» ou «cau-
salidade adequada», a fim de a distinguir daquelas causas que
têm a força de uma necessidade lógica ou física inexorável.
À operação mental que conduz a formular uma «imputação cau-
sal (particular)» equivale ao que P. Ricoeur designa de «diagnós-
tico individual de causalidade», ou seja, um tipo de «juízo» muito
pouco científico que remete para «uma analogia entre a argumen-
tação histórica e a argumentação jurídica». Esse juízo envolve
«a pesagem” e a “apreciação” das causas, a 'prova dos candida-
tos ao papel de causa»261. É esta «faculdade de julgar» que o histo-
riador mobiliza quando relaciona causalmente factos particulares
— quando faz imputações causais — ou trata de identificar os au-
tores das acções e de averiguar a responsabilidade que tiveram
nelas.
À história política, então, e por meandros que se verão me-
lhor mais adiante, insere-se na tradição interpretativa do Ver-
stehen. Inaugurada por Vico no século xviII e celebrada pelo
romantismo alemão como o único processo cognitivo apto a
desvendar o Zusammenhang de cada época e a revelar a origina-
lidade aliás insondável de cada Volk, essa tradição inspirou o
individualismo metodológico de Georg Simmel e a sociologia
compreensiva de Max Weber. Simmel desconfiava das expli-
cações nomológicas em sociologia. À seu ver, as regularidades
empíricas observáveis ao nível macrossociológico, longe de expri-
mirem leis, estruturas ou trends, seriam, pelo contrário, «efeitos»,
isto é, «o produto da combinação de acções individuais»262,
Por trás do método está uma ontologia: tais regularidades não
se fundam em nenhuma ordem transcendente, seja ela a Socie-
dade (Durkheim), a Humanidade (Comte), a História (Marx),
ou ainda a Modernização, as Estruturas, a Evolução ou o De-
senvolvimento. «Lá onde, em 1950, se falava de “consciên-
cia-reflexo”, diz-se em 1980 “habitus”, mas as duas expressões

261 P Ricceur, op. cit., p. 184.


262 Raymond Boudon, Introdução a Georg Simmel, Les problêmes de la
philosophie de [histoire, Paris, PU.E.,, 1984, p. 30.

102
Apologia da história política

comportam uma raiz idêntica: ambas postulam uma relação fun-


damental de imanência entre o indivíduo e a sociedade»263,
Max Weber afirmou que as regularidades observáveis no
comportamento humano se deixavam «interpretar de maneira
compreensíveb264, e que «compreender por interpretação» («deu-
tend verstehen») a actividade social equivale a «explicar cau-
salmente» («ursãchlich verstehen») o desenvolvimento dessa
actividade265. Explicou mais: que a compreensão apenas se
aplica às «acções orientadas significativamente», àquelas a que
o agente comunica um «sentido subjectivo» e «visado/intencio-
nal» (gemeinter Sinn), ou seja, àquelas acções que são «subjec-
tivamente determinadas/motivadas»266. Weber não achava que
elas fossem impenetráveis a um escrutínio racional nem disse
que era necessário, para as compreender, reviver o estado de
espírito dos sujeitos históricos ou dar deles uma explicação psi-
cológica. Exemplificou que não era preciso ser César para com-
preender César. Bastava «estabelecer o seu estado subjectivo»207,
quer dizer, demonstrar «o carácter adaptativo de um compor-
tamento relativamente a uma situação»268. Compreender acções
humanas dotadas de sentido e racionalmente orientadas para
um fim («zweckrational»), não exige a entrada em comunhão
mística com os agentes sociais. Vimos no entanto que para Isaiah
Berlin, menos optimista a respeito da capacidade objectiva dos
homens e mais céptico acerca da possibilidade de o estudo das
coisas humanas se tornar científico, a compreensão exigia, para
além da reconstrução racional do cálculo dos actores, uma cêrta
dose de empatia que os alemães designam pela palavra intra-
duzível de Einfiiblung. Seja como for, quer lá se chegue por meio
de «simpatia intuitiva» quer por meio de uma análise racional
dos cálculos e motivações, quer pelas duas coisas combinadas,

263 Raymond Boudon, La place du désordre, Paris, BU.F, 1986, p. 78 e


nota 43 da p. 70.
264 Max Weber, Sociologie compréensive, Paris, Plon, p. 327.
265 Max Weber, Économie et société, Paris, Plon, p. 4.
266 Idem, zbidem, pp. 4 e 7.
267 R. Boudon, La place du désordre, op. cit.p.54.
268 Idem, ibidem, pe Gilk

103
Apologia da História Política

«descortinar ou extrair a rationale» do comportamento de um


indivíduo de modo a compreendê-lo equivale sempre a «justifi-
car» as suas acções — «com o matiz de avaliação que justificar
implica»269, Por outras palavras: a compreensão, da qual diz
Weber que é o «modo típico» da «imputação causal» em socio-
logia compreensiva?70, e portanto em história?71, comporta um
elemento central de avaliação que o historiador executa como
uma função e numa qualidade análogas à do juiz. Isto con-
duz-nos tanto à eficácia como aos limites da «faculdade de jul-
gar», uma aptidão do entendimento humano dirigida para a
apreciação do particular: julgar ou avaliar é o que fazemos a
respeito de coisas que não podemos entender por dedução de
um conceito ou lei geral. Essa aptidão depende em alto grau
do que se poderia chamar a nossa competência compreensiva,
que por seu turno não se pode exercer sem o recurso ao senso
comum, do qual diz Hannah Arendt, interpretando Kant, que
nele se manifesta «a própria humanidade do homem», pois que
dele depende a possibilidade mesma da comunicação verbal?2/2,
23. Na raiz da imaginação, da imaginação que intervém
no estudo das coisas humanas e nos permite saber o que o conhe-
cimento positivo dos factos e das verdades lógicas não revela,
está o senso comum, que a orienta e disciplina. Trata-se, con-
forme a expressão indica, de um «sentido comum a todos», que
estabelece uma ponte de comunicação entre os redutos da sub-
jectividade individual, na qual ficaríamos de outro modo en-
capsulados. Vico referiu-se-lhe como uma «linguagem mental
comum» que explicaria as regularidades históricas mau grado
a singularidade irredutível de cada evento e as dissemelhanças
entre as nações?72. Kant encarou-o como uma «capacidade
269 P Ricoeur, Tempo e narrativa, op. cit, vol. 1, p. 185.
270 Max Weber, Sociologia compreensiva, op. cit., p. 327.
271 Max Weber, Economie et société, op. cit., p. 10.
272 Hannah Arendt, Juger, Paris, Seuil, 1991, pp. 107-8.
273 Cir. por E. P Thompson, op. cit, p. 277. CE Vico, op. cit., pp. 15-22:
«o senso comum é um juízo sem qualquer reflexão, sentido de modo comum por
toda uma classe, povo ou nação, ou por todo o género humano», que explica que,
apesar de «o humano arbítrio» ser «tão incerto por natureza», haver «coisas em
que os homens concordam e sempre concordaram».

104
Apologia da história política

mental adicional» e chamou-lhe «Menschenverstand» (enten-


dimento próprio do ser humano)2/4. Sem ele, a nossa capaci-
dade de julgar ficaria comprometida, uma vez que esta se define
como um «modo de pensamento alargado», quer dizer, como
a possibilidade de uma pessoa «pensar colocando-se no lugar
de qualquer outro ser humano»275. É então o «senso comum
a todos» que orienta a nossa imaginação quando sondamos o
«comportamento intencional — 1. e., a acção»2/6 dos sujeitos
históricos, permitindo avaliá-los de modo a justificar as suas
acções. Através do senso comum é possível imaginarmo-nos no
lugar dos outros, adoptar o ponto de vista deles, conceber como
eles vêem uma determinada situação, e julgar abstraindo dos
nossos próprios interesses e preconceitos pessoais. Não é neces-
sário despersonalizarmo-nos. Basta, como diz Aron, submeter
a nossa «personalidade aos rigores da crítica e aos escrúpulos da
prova»277. Graças ao senso comum, que nos permite exercer o
tal «pensamento alargado», acedemos a uma relativa imparcia-
lidade, que é a qualidade ou característica de um ponto de vista
que, sendo nosso, é «o nosso próprio 'ponto de vista geral'»278,
Temos então que o senso comum orienta e disciplina a imagina-
ção, que esta ajuda a compreender e compreender torna possí-
vel julgar. Todas estas operações, conceptualmente distintas, se
misturam na formulação prática de uma imputação causal par-
ticular. Particular porque o juízo nela implicado respeita estri-
tamente ao objecto particular considerado. Como diz Arendt
citando Kant: «a faculdade de julgar trata do particular que,
“como tal, contém algo de contingente em relação ao geral,
sendo deste que o pensamento normalmente se ocupa»???.
Como se pode ver, sendo certo não haver ciência do particular,

274 H. Arendt, Juger, op. cit., p. 107.


275 Kant citado por H. Arendt, Quest-ce que la politique?, Paris, Seuil, 1995,
p. 105.
2761. Berlin, The Sciences and the Humaníties, op. cit., p. 96.
277 R. Aron, «Évidence et inférence», in Dimensions de la conscience histori-
que, op.-cit.; p. 61.
278 H. Arendt, Juger, op. cit, p. 72.
279 Idem, ibidem, p. 32.

105
Apologia da História Política

nem por isso este se revela intelectualmente intratável ou apenas


tratável sob a égide da pura arbitrariedade. Todo o julgamento
que aspira a ser verdadeiro está exposto não apenas ao controlo
da evidência empírica e das regras da lógica, como além disso
solicita mais ou menos explicitamente o assentimento dos outros,
«e este apelo potencial fornece aos julgamentos a sua validade
específica». Esta validade específica «nunca atinge a [validade]
das proposições cognitivas ou científicas, que propriamente fa-
lando não são julgamentos»280. É uma validade, como diz
William Dray, intelectualmente satisfatória.
Weber reconhecia que a imputação causal em história não
pode ser propriamente comprovada e que muitas vezes não é
possível transformá-la em «mais do que uma hipótese»281. Por
isso a validade de um juízo requer, em última análise, o reconhe-
cimento da «comunidade». Julgar nunca é um acto puramen-
te subjectivo e inteiramente solitário. Supõe um diálogo virtual
com os outros destinado a convencê-los de que são boas as ra-
zões em que fundamos um juízo. «E nesta actividade persuasi-
va, de facto faz-se apelo ao senso da comunidade»282, um apelo
que é particularmente flagrante no caso dos historiadores, cujo
trabalho apenas tem sentido se reconhecido pelos seus pares.
Como poderei «provar» que em 1847 o conde das Antas traiu
os radicais?
Torna-se necessário operar aqui a distinção, introduzida por
Kant, entre dois tipos de julgamento, o «determinante» e o
«reflexivo». Em ambos está em causa pensar o particular, mas
«pensar um particular significa, evidentemente, relacioná-lo com
[ou subsumi-lo sob] um conceito geral»283, ou seja, generalizar.
No primeiro caso temos que o geral, sob a forma de um concei-
to, uma regra ou uma lei, nos é dado à partida, «de modo que
o julgamento subsume simplesmente o particular»284. Mas o

280 H, Arendt, Juger, op. cit. p. 110.


281 Weber, Economic et société, op. cit., p. 10.
282 H. Arendt, Juger, op. cit., p. 110.
283 Ronald Beiner, Hannah Arendk et la Jaculté de juger, apêndice a H. Arendt,
Juger, op. cit., p. 167.
284 H, Arendt, Juger, op. cit., p. 115.

106
Apologia da história política

problema complica-se quando «apenas o particular nos é dado»


e temos de a partir dele «encontrar o universal»285. O exemplo
do conde das Antas ilustra este segundo caso. Não foi um concei-
to geral de «traição» que forneceu o ponto de partida da minha
pesquisa, e mediante o qual eu teria verificado que o conde era
uma espécie particular do género «traidor». Pelo contrário, foi
a avaliação do comportamento concreto do conde que me trouxe
ao espírito a ideia (universal) de «traição»286. Em rigor, não posso
provar que disso se tratou. Posso apenas, como tentei fazer, mos-
trar que as suas acções, aliás incompreensíveis, se justificavam
pelo oculto desígnio de negociar um acordo nas costas dos radi-
cais. O exercício envolveu analisar a evidência documental à
base de uma mistura de imaginação e senso comum — o mesmo
ponto de vista a partir do qual os contemporâneos tentavam,
também eles, decifrar a enigmática conduta do chefe da junta
do Porto. É claro que o mundo em que me movo é diferente
do deles. Mas isso não é em absoluto impeditivo de penetrar
nos «conteúdos intencionais das suas experiências de vida»287,
Às categorias de entendimento continuam a ser as mesmas, e
as mudanças culturais «não são incompatíveis com a estabilidade
do homem biológico, nem das funções propriamente lógicas
ou dos mecanismos psicológicos»288.
Quase tudo do que vive a história na sua versão tradicional
há muito que foi deitado para o caixote do lixo da Ciência.
O seu objecto é um particular concreto. Consta de sujeitos,
acções, acontecimentos e sequências de acontecimentos que
não se repetem: a batalha de Waterloo, e não uma categoria
de batalhas; a morte de Estaline, e não uma categoria de ditado-
res. O seu objectivo é esclarecer fenómenos singulares, e não

285 H. Arendt, Juger, op. cit., p. 115.


286 Ronald Beiner, op. cit., p. 167. Beiner reproduz o exemplo dado pelo
próprio Kant: «No acto de subsumir uma rosa particular sob a categoria universal
de “belo”, eu não a julgo tal porque disponho de uma regra do género 'todas as
flores deste tipo são belas”. Pelo contrário, a rosa particular engendra de alguma
forma diante de mim o predicado “belo”.»
287 R. Aron, «La philosophie de Phistoire», op. cit., p. 21.
288 R. Aron, «Évidence et inférence», Op-eft:, ip. 9%

107
Apologia da História Política

construir modelos explicativos gerais ou predizer evoluções.


Entre os seus procedimentos cognitivos avulta o raciocínio de
bom senso, o mais desprezado pela Ciência. E até mesmo a
imaginação desempenha em história um papel rejeitado pelas
ciências naturais. Serve nestas para forjar hipóteses e experiências
que aumentem a certeza do conhecimento sobre o real. Serve
em história para compor, como diz Berlin, «um mundo pos-
sível» e, como tal, inteligível, mesmo que não inteiramente «ver-
dadeiro». Ou, na formulação de Aron, para dar do passado
«uma imagem válida», embora não definitiva?8?. Se das várias
histórias que a história conta sobressai por acaso algum padrão
geral ou o esboço de alguma regularidade, fica em aberto a ques-
tão de saber se tal se deve a uma qualquer ordem transcendente
que configura a traço grosso, mas com mão de ferro, o compor-
tamento humano, ou se tal resulta do efeito agregado de acções
individuais. Nesta hipótese, a regularidade detectada não seria
imputável ao determinismo das estruturas, mas à feição congé-
nita da natureza humana que faz dos homens, mau grado a
sua infinita diversidade, seres relativamente previsíveis.
24. À história política trata de homens e de factos consi-
derados como acontecimentos, quer dizer, dos que sobressaltam
ou interrompem o fluir do tempo e mudam o curso da história.
Aron salienta que a nuance é decisiva: «Considerar um facto
como um acontecimento, é admitir a possibilidade de que ele
não tenha ocorrido. De outro modo, não nos perguntaríamos
porque é que ele aconteceu, em lugar de não ter acontecido.
A noção de acontecimento implica, pois, a noção de autoria, de
intenção, de decisão humana» 2ºº Aron nota que, por isso, a pro-
cura das causas se confunde muitas vezes com a procura das
intenções, observando, tal como Ricoeur, que a investigação das
motivações ou móbiles da acção humana é «comparável à do juiz
de instrução». Mas acrescenta que, para além da busca do que
se terá passado «nas consciências» dos sujeitos, existe um mé-
todo complementar de investigação causal que é logicamente

289 R. Aron, «Évidence et inférence», op. cit., pp. 61-2.


290 Idem, ibidem, p. 62 (itálico meu).

108
Apologia da história política

diferente: «dado um determinado acontecimento, o historiador


remonta ao passado para estabelecer até que ponto esse acon-
tecimento derivava ou não, inevitavelmente, do que tinha sido;
depois o historiador desce na direcção do futuro a fim de seguir
as consequências do que pode ter sido o acto voluntário de
um só»22! — mas também, acrescente-se, do que pode não ter
sido o acto voluntário de ninguém, no caso em que decorra
«inevitavelmente do que tinha sido». Tomemos o exemplo do
5-6 de Outubro de 1846. Como reacção a uma mudança de
governo que equivalia a um golpe de Estado palaciano, a junta
do Porto constituiu-se a 9 de Outubro e declarou-se formal-
mente em desobediência a Lisboa. Era a partir daqui a guerra
civil inevitável? Não basta sondar as consciências dos que se
decidiram pela resistência armada; não chega saber quem deci-
diu e quem apoiou, reconstruir os cálculos em que se fundou
a decisão e averiguar que objectivos ou ganhos precisos se es-
perava alcançar. Fazendo isto estaremos apenas em posição de
compreender, e portanto de justificar, o passo dado pela junta.
Mas não estamos ainda em posição de determinar se, no caso
em que a junta se não tivesse constituído, a guerra seria à mesma
inevitável. Para tanto é necessário olhar para trás, examinar e
pesar as circunstâncias antecedentes, quer dizer, apreciar a situa-
ção criada pelos acontecimentos anteriores que conduziram
ao volte-face do 5-6 de Outubro. Dadas as circunstâncias ante-
cedentes, a minha conclusão foi a de que a guerra seria, com
toda a probabilidade, inevitável. Não me parece que ela tenha
resultado apenas de um acto voluntário de uns poucos. Este
acto decorreu logicamente de uma situação, já anteriormente
criada, em que toda a oposição ao cabralismo, a menos que es-
tivesse na disposição improvável de se resignar a um exílio in-
terno por prazo indefinido, não dispunha de outra alternativa
à guerra civil como meio de resistência eficaz contra uma res-
tauração cabralista. É verdade que a necessidade também presi-
de às coisas humanas, embora seja de uma espécie diferente
da necessidade inexorável que rege a lógica ou a física. Mas o

291 R. Aron, «Évidence et inférence», op. cit., p. 63.

109
Apologia da História Política

facto de os homens se lhe curvarem não significa que não este-


jam conscientes dos seus actos e que não sejam responsáveis por
eles. A história seria impensável num mundo de inimputáveis.
A história política, então, é mais do que a compreensão
dos actores. Na explicação dos acontecimentos por «imputação
causal», o papel que aqueles desempenharam, a medida de liber-
dade que tiveram, têm de ser avaliados em conjunto com a força
da necessidade e com a força do acaso. Não será inútil salientar
quanto já estamos afastados da história como simples teoria da
acção e bem assim da história como colecção de factos brutos
cronologicamente ordenados: a quem interessaria meramente
saber que César foi assassinado nos idos de Março de 44? Mas
tão logo se vai para além dos factos brutos, certezas não as pode
o historiador oferecer, apenas probabilidades de alto grau, e fre-
quentemente não mais do que hipóteses plausíveis. Por muito
que repugne ao cientista social, a história não ofecece muito
maiores certezas do que a nossa própria vida, pelo motivo de
que trata afinal da vida humana, ferida em todas as épocas da
mesma contingência, exposta em todos os tempos ao misterio-
so cruzamento do acaso e da necessidade e repleta, dantes como
hoje e para sempre, de ambiguidades e equívocos. Mas, ao passo
que nós somos meros testemunhos da nossa vida, em virtude
de desconhecermos o futuro, o historiador possui a vantagem já
assinalada de olhar para o passado post eventum. Conhece o
presente e o futuro das suas personagens. Vê como facto consu-
mado o que na altura era apenas uma possibilidade entre ou-
tras2?2, Por isso mesmo ele deve, na história que conta, restituir
essa incerteza que paira sobre todo o presente e faz deste em to-
dos os tempos — como acontece no nosso próprio — uma situação
aberta. À chamada «necessidade histórica» pertence ao domínio
do ex post facto. Para os contemporâneos, a história desenrola-
-se como presente, e portanto como incógnita. Ainda assim, vista
a posteriori, cada situação tem várias leituras, possui múltiplas

292 Recorde-se a definição de Ricoeur já citada: «A história é uma descrição


de acontecimentos anteriores sob a descrição de acontecimentos ulteriores, desconhe-
cidos dos actores dos primeiros.»

110
Apologia da história política

significações e por isso, escreve Aron, o historiador «não conse-


gue dar uma versão única, obrigatória para todos, das socieda-
des, das épocas, das culturas desaparecidas, mas esta significação
única nunca existiu nem na terra nem no céu»273. Qual será,
afinal, o estatuto dessa versão? Será o estatuto de uma proba-
bilidade tanto maior quanto mais concludente for a evidência
documental aduzida, quanto mais rigorosa for a lógica das in-
ferências, quanto maior for a consistência dramática do argu-
mento. À «verdade» de uma interpretação histórica não dispensa
a verosimilhança da narrativa.
25. Seguindo Max Weber, defini a política, da qual trata
a história política strictu sensu, como as ideias, decisões, pro-
jectos e vontades concebidos por sujeitos concretos (individuais
ou colectivos), em harmonia ou competição entre si, que se
manifestam como acção; esta acção desenrola-se em todos os
domínios da existência social e tem por objecto directo ou in-
directo a organização e direcção da vida em sociedade — da polis,
portanto; no cerne de tudo quanto respeita à organização e
direcção da vida em sociedade encontra-se a luta pelo poder, o
exercício do poder, a resistência ao poder e a definição das re-
lações entre comando e obediência??4. Como salienta ainda
Aron, não sendo a política o único domínio em que se dão acon-
tecimentos, visto que eles se verificam, por definição, em todos
os campos da actividade humana, é na política que eles possuem
maior alcance. Eric Hobsbawm estimou que neste século, até
ao momento, morreram 183 milhões de pessoas «por causas po-
líticas»2?5. Por muito que se tenha a cultura na conta de uma
dimensão fundamental da existência humana, e por muito que

293 R. Aron, «La philosophie de Phistoire», op. czt., p. 19.


294 Tudo isto está em essência contido na sucinta definição dada por Weber:
«Nous entendons uniquement par politique la direction du groupement politique
que nous appelons aujourd'hui “Étar, ou Pinfluence que Pon exerce sur cette direc-
tion». Le savant el le politique, Paris, Librairie Plon, 1959, p. 112. É claro que a
maior ou menor latitude desta definição está dependente de quem se compreenda
dentro daquele «agrupamento político» e de quem se considere que influencia a
direcção do Estado.
295 Eric Hobsbawm, Age of Extremes, Tone Michael Joseph, 1994.

111
Apologia da História Política

nos emocionemos com um acontecimento que revolucione a


arte, por exemplo, é difícil sustentar que este seja de maior conse-
quência para a humanidade do que o têm sido as decisões e as
acções, alegadamente fúteis, de reis, generais e governantes. Pare-
ce de facto extraordinário, para usar a expressão de Lawrence
Stone, que estes não tenham captado o interesse da história-
-ciência social, a não ser pelo lado dos «rituais de poder» que pro-
porcionam à descrição etnográfica ou pela parte dos «dispositivos
de controlo social» que oferecem à dissecação sociológica. Peran-
te a violência-que tem dizimado o nosso século, não parece
razoável desprezar a história política como uma crónica de trivia-
lidades. No entanto, as razões da sua importância não são apenas
de ordem pragmática. Mas é verdade que elas nada dirão a quem
não seja sensível à dimensão épica da história humana.
É de facto extraordinário — mas já se viu que não é incom-
preensível — que a nova história tenha irradiado a política dos
seus temas, uma dimensão primordial — senão a dimensão pri-
mordial — de toda a vida colectiva. A. J. P. Taylor comentou um
dia que «a história com a política excluída» («history with poli-
tics left out») lhe parecia ser exactamente o que a história deixara
de fora. No entanto, olhando para o índice dos seus principais
livros, logo se verifica que o historiador político nunca deixou
de se preocupar com a demografia, com a técnica, com a econo-
mia, com os transportes, com o voto das mulheres ou com o
mundo do trabalho. Taylor não desprezava nenhum aspecto
da existência histórica. O que fazia dele um grande historiador
era a capacidade de os ligar organicamente entre si sem toda-
via anular a autonomia parcial de cada um deles. O segredo disto,
como veremos com mais desenvolvimento na etapa final deste
texto, está na utilização da narrativa como «síntese do hetero-
géneo» (Ricoeur) ordenada a partir do ponto de vista político.
Resta que a política em sentido estrito era o mais proeminente
dos assuntos de A. J. P. Taylor porque também ele considerava
que dela dependiam, na'expressão de Aron, «a existência, a pros-
peridade ou o declínio das colectividades»296.
296 R. Aron, «Thucydide et le récit historique», in Dimensions de la cons-
cience historique, op. cit., p. 131.

VEZ
Apologia da história política

Mas a política segundo Arendt é algo mais e diverso de


mera acção instrumental, é uma característica intrínseca da hu-
manidade. Não é o homem que é por natureza político: é o
mundo humano que é político, em virtude da sua congénita
diversidade. «A política repousa sobre um facto: a pluralidade
humana»2?7, e a acção constitui «a única actividade humana
que corresponde à condição humana da pluralidade» porque
só ela «coloca os homens em relação uns com os outros»298.
À política seria dispensável num mundo em que todos os ho-
mens fossem idênticos. Mas um tal mundo não existe, e neste
que habitamos, a radical diversidade de todos e a radical singu-
laridade de cada um asseguram a perenidade do conflito e, por-
tanto, a eterna inevitabilidade da política. Ela desenrola-se
como acção «no-espaço-que-está-entre-os-homens»2?? no qual
estes «penetram em primeiro lugar como actores»200, um espa-
ço que se abre às suas iniciativas permanentemente expostas
ao contra-efeito de outras iniciativas, numa cadeia de acon-
tecimentos sem princípio determinável nem fim previsível.
A política é a forma da «coexistência mundana dos homens»301.
No mundo antigo ela era idêntica à liberdade e esta equivalia
a agir, o «Aom» humano através do qual os homens, provocando
acontecimentos em cadeia, ascendiam a «taumaturgos» do
processo histórico?02. Arendt lamentava já na década de 50 que
nas universidades se tivesse perdido o gosto pela história do
mundo entendida como a gesta, cronologicamente ordenada,
dos feitos humanos, e que essa história tivesse sido substituída
pelo estudo dos «comportamentos sociais» e dos «comporta-
mentos humanos» cometido, respectivamente, à sociologia e
à psicologia. Em seu entender, a exclusão do homem «enquanto

297 H. Arendt, Quest-ce que la politique?, op. cit., p. 31.


298 Idem, ibidem, p. 11-12.
299 Idem, ibidem, p. 33.
300 Idem, ibidem, p. 36.
301 Idem, ibidem, p. 89.
302 Idem, ibidem, p. 52. Sobre a equivalência entre liberdade e agir-começar-
-algo-de-novo, ver da mesma autora, «Qu'est-ce que la liberté?», in La Crise de
la culture, op. cit., pp. 186-222.

113
Apologia da História Política

autor de acontecimentos que podem ser demonstrados no


mundo» significava «rebaixá-lo ao estatuto de um ser reduzi-
do a comportamentos susceptíveis de serem submetidos à
experimentação»303,

26.
«A história não pode romper todo o
laço com a narrativa sem perder,
ipso facto, o seu carácter
propriamente histórico.» (P. Ricoeur)

«A explicação histórica não é


nomológica, é causal.» (P. Veyne)

A história, então,:põe em jogo a sorte e o azar, O acaso e


a necessidade, o plano e o improviso, o acto reflectido e o impul-
so instintivo, a ditadura dos factos e o triunfo da acção, o deter-
minismo da matéria e a liberdade da escolha. Como é possível
existir, interroga Berlin, «uma czência de uma tal amálgama04?
Já se viu que de uma tal amálgama não existe ciência propria-
mente dita. Mas desde que se admita, na esteira da sugestão
de Vico, que a ciência não detém o monopólio do conhecimento
e que há maneiras não científicas de saber, vimos igualmente
que tal amálgama não constitui uma matéria intelectualmen-
te intratável. O problema que agora se coloca, embora conexo
com o do estatuto epistemológico da história, é o problema, já
atrás aflorado, de saber como se podem ligar organicamente os
vários aspectos do devir histórico, por um lado; e, por outro,
o de saber como se pode unificar logicamente as diversas moda-
lidades da inteligibilidade histórica. Alguém chamou a estas di-
versas modalidades uma «miscelânea lógica» que, para além da
utilização implícita de «leis gerais», combina a interpretação atra-
vés de conceitos com a explicação por causas heterogéneas («im-
putação causal particular»).

305 H. Arendt, «Qu'est-ce que la politique», op. cit, p. 44.


304 1, Berlin, «Vico's Concept of Knowledge», op. cit., p. 115.

114
Apologia da história política

Daqui em diante Paul Ricoeur é o meu principal guia,


muito embora eu me guie a mim mesma num sentido diferente
daquele em que ele pretende conduzir o leitor. Partindo da tese
de Arthur Danto segundo a qual «as frases narrativas se relacio-
nam tão peculiarmente com o nosso conceito de história que
a sua análise há-de forçosamente indicar quais são os principais
traços definidores do conceito [de história)»305, Ricoeur está em-
penhado em demonstrar que até mesmo a Nova História mais
fundamentalista mantém laços indirectos com a narrativa sal-
vando, deste modo, a sua qualidade de história. Esses laços indi-
rectos verificam-se ao nível do tempo histórico, que mesmo no
caso do tempo multissecular acaba ainda por remeter para o
tempo do acontecimento inscrito na cronologia e visa por isso,
«ainda que obliquamente, o tempo da acção humana». Verif-
cam-se ao nível dos agentes históricos, entidades colectivas (como
as classes ou o Mediterrâneo) ou construções intelectuais abstrac-
tas (como as estruturas ou o trend) que, antropomorfizadas pelo
historiador, equivalem a «quase-personagens» ou sujeitos da
acção histórica306, Verificam-se ao nível dos factos, mesmo dos
factos «massivos», pois são elaborados como «quase-acontecimen-
tos» na medida em que (a) são imputados às entidades que fazem
as vezes de «quase-personagens»; (b) evoluem num longo prazo
que, por muito longo que seja, é, ainda assim, um prazo: não
se perde, pois, a qualidade temporal própria da história; (c) pre-
servam pelas duas razões anteriores, ainda que indirectamente,
uma relação intrínseca com a narrativa, quer dizer, possuem o
«estatuto narrativo» que diferencia os acontecimentos humanos
dos eventos naturais. Finalmente, seria ainda possível articular
indirectamente as explicações históricas dadas pela Nova História
com a «compreensão narrativa». Destas sucessivas verificações,
Ricoeur extrai a conclusão de que a Nova História não rompe
inapelavamente com a narrativa continuando a merecer, por isso,

305 Arthur Danto, Analytical Philosophy of History, op. cit., p. 143 e em


especial todo o cap. VIII: «Narrative Sentences».
306 P. Ricceur classifica as classes, os Estados, as sociedades, etc., de «enti-
dades históricas de primeira ordem», dizendo que elas funcionam como «sujeitos
lógicos de verbos de acção e paixão». Op. cit., vol. 1, p. 283.

115
Apologia da História Política

que se lhe chame história. Mas o que me interessa na tese de


Ricoeur não é a conclusão sobre o estatuto historiográfico da
Nova História, mas sim o facto de ele demonstrar que toda a
verdadeira história possui necessariamente um estatuto narrativo.
Torna-se agora inadiável explorar a narrativa como a forma
natural da explicação causal, que é o tipo de explicação próprio
da história, por oposição à explicação nomológica na Ciência:
«há um abismo lógico entre a explicação causal, que se refere
sempre aos factores responsáveis por uma ocorrência particular,
e a enunciação de uma lei, que se refere à conexão invariável
entre tipos de acontecimentos ou de propriedades»307. Já vimos
como, não havendo antecedentes constantes de fenómenos que
se repitam, a causalidade em história é heterogénea ao ponto
ter sido qualificada de «miscelânea lógica». Nessa miscelânea
entram explicações «monológicas» (relativas às «leis gerais» im-
plícitas na argumentação histórica), «teleológicas» (relativas às
intenções e objectivos dos sujeitos), «interaccionais» (relativas
ao jogo interactivo dos sujeitos), e entram ainda o acaso, as cir-
cunstâncias e os determinismos materiais. «As relações causais
[em história] são dispersas, não se organizam em sistema, de
tal maneira que não se explicam umas às outras como leis hie-
rárquicas de uma teoria física.»208 Formulado pela positiva:
«Tal é o mundo sublunar da história, onde reinam lado a lado
liberdade, acaso, causas e fins, por oposição ao mundo da ciên-
cia, que apenas conhece leis.»30? Ora é o acto de narrar que con-
voca essas causas heterogéneas em simultâneo, facultando a sua
inteligibilidade conjunta. A narrativa dá-nos uma visão global
dos acontecimentos, quer dizer, permite-nos «apreendê-los jun-
tos» através de uma espécie de «juízo sinóptico»210 que abarca,
«num único acto mental, coisas separadas no tempo e no espa-
ço, e até separadas de um ponto de vista lógico»3!1. Tal é possível

307 P Ricceur, op. cit., p. 286.


308 R. Aron, «Introduction à la philosophie de Phistoire», cit. por Ricceur,
op. cit., p. 267.
309 p Veyne, Comment on écrit |'histoire, op. cit., p. 69.
310 P Ricoeur, Tempo e narrativa, op. cit, p. 224.
311 Idem, ibidem, p. 230.

116
Apologia da história política

graças à «dimensão configurante» da narrativa (que não se esgota


numa dimensão meramente «episódica»), a qual resulta na «in-
triga», que constitui a estrutura causal da história narrada?!2,
Antes, porém, de analisarmos a intriga enquanto estrutura cau-
sal da narrativa, consideremos as propriedades distintivas desta
última enquanto discurso sobre a acção passada, a fim de salien-
tarmos o que distingue a narrativa histórica tanto do depoi-
mento de um testemunho como da narrativa literária.
Arthur Danto, em cujo estudo da frase narrativa Ricoeur se
baseia, define-a como «uma das descrições possíveis da acção
humana» e das mudanças por ela produzidas. Segundo Danto,
as frases narrativas «referem-se pelo menos a dois eventos, dis-
tintos e separados no tempo, embora descrevam (digam respeito
a) somente o primeiro evento a que se referem»2!3. Elas usam
geralmente verbos no tempo pretérito, dado que «ambos os mo-
mentos são passados em relação ao enunciado narrativo», impli-
cando, portanto, três posições temporais distintas. Daqui resulta
que, por definição mesma, apenas se pode narrar acções cujo desen-
lace ou consequências se conhece de antemão. Por isso, diz Ricoeur,
«O factor que discrimina a frase narrativa em relação ao discurso
ordinário sobre a acção é o realinhamento retrospectivo do passa-
do». O discurso ordinário sobre a acção é o de um «testemunho».
Ora o historiador não conta uma história tal como ela foi pre-
senciada pelos contemporâneos. Por um lado ele procede a uma
recomposição dos factos em função da destrinça, que o conheci-
mento post eventum torna possível, entre as intenções que se con-
cretizaram e aquelas que se frustraram, explicando deste modo
um desenlace que os actores não previram nem desejaram; por
outro ele «reconhece acções passadas em relação a acontecimentos
ulteriores a essas mesmas acções [...], iluminando acontecimen-
tos passados em função de acontecimentos subsequentes»3!4.

312 «We have defined a story as a narrative of events arranged in their time-
sequence. A plot is also a narrative of events, the emphasis falling on causality.
[...] Ifitisin a story we say: And then? Ifit is in a plot we ask: Why?», E. M.
Foster, Aspects of the Novel, Penguin Books, 1974, p. 87.
313 A, Danto, op. cit, p. 143.
314 P Riceeur, op. cit., pp. 210-11.

117
Apologia da História Política

Como já foi sugerido atrás, nenhuma destas operações é acessível


aos testemunhos do passado. Graças a elas, e ao contrário do
que a caricatura da história narrativa faz supor, a ordem episódica
não obedece necessariamente à sequência cronológica pela qual
os acontecimentos realmente tiveram lugar. O que se passa é que
a reordenação dos episódios se processa num quadro cronológico
entendido como demarcação da totalidade ou estrutura temporal
no interior da qual a história decorre. O desprezo pela chamada
história-evenemencial tem origem na ignorância deste entendi-
mento. Mas direi também desde já, antecipando, que ele se funda
na suposição errada de que a estrutura lógica da explicação nar-
rativa, que Aristóteles descreve como «acontecer uma coisa por
causa de outra», implicaria ou seria equivalente a que essa coisa
acontecesse «meramente depois de outra», no que Aristótoles não
reconhece expressamente qualquer conexão215, dado que neste
caso «a relação entre um e outro episódio não é necessária nem
verosímil»316, Por outras palavras: a narrativa de uma história
conjuga a ordenação dos acontecimentos numa sequência tempo-
ral, com a simultânea disposição desses acontecimentos em fun-
ção de uma intriga que os relaciona causalmente?17. Estas são as
duas dimensões fundamentais da narrativa, a que Ricoeur cha-
mou dimensão «episódica» e dimensão «configurante». À primei-
ra suscita a curiosidade de saber o que aconteceu; a segunda, a de
saber porquê. Torna-se agora evidente que o motivo pelo qual a
narrativa incorreu no desprezo dos novos historiadores decorre
também de estes a confundirem com a mera crónica, que é o
relato típico de uma testemunha.
Não é pelo facto de ser obrigatoriamente uma história ve-
rídica que a narrativa histórica se distingue da literária: pode
haver, e há disso numerosos exemplos, narrativas literárias de
factos verdadeiros. O que discrimina a história é que ela resulta
de perguntas previamente escolhidas, cuja pertinência tem de

315 Aristóteles, Poética, Lisboa, Imprensa Nacional, 4.º ed., 1994, pr.
316 Idem, ibidem, p. 116.
317 Esta sequência pode ser discontínua. O segmento temporal dentro do qual
o acontecimento Al está relacionado com AS (por exemplo) constitui a «estrutura
temporal» dentro da qual ambos estão situados. Cf. A. Danto, op. cit., pp. 166-7.

118
Apologia da história política

ser demonstrada dentro dos parâmetros da disciplina, e de uma


investigação especificamente destinada a produzir a informação
necessária a responder-lhes. Isto significa que a narrativa do his-
toriador está sujeita a interrupções em que se inserem vários
corpos estranhos: a justificação do tema, a formulação expressa
dos problemas, a definição do contexto, o enunciado dos pres-
supostos, a explicitação dos conceitos, a produção das provas
materiais, a crítica dos documentos. Ao contrário do romance,
a história possui «um estatuto crítico». Embora explique narrando,
o historiador, diversamente do romancista, tem de justificar a
objectividade dos seus argumentos, mostrar a pertinência dos
seus conceitos e citar a base documental em que se apoia. Por
tudo isto, diz Ricoeur, a narrativa histórica é «epistemologica-
mente diferente» de uma narrativa literária?18: a explicação his-
tórica, sem deixar de ser narrativa, transforma-se num «desafio
distinto enquanto processo de autentificação e justificação»
12.
«É por aí que um historiador não é um simples narrador: dá
as razões pelas quais considera tal factor, mais que tal outro,
causa suficiente de tal curso de acontecimentos.»)20 Há no en-
tanto um limite ao volume de corpos estranhos comportáveis.
Uma montagem de citações ou uma sobrecarga de análises, quan-
tificações e descrições não constitui uma narrativa. Esse limite
é da mesma natureza do que Aristótoles define para a máxima
extensão admissível na tragédia: é aquele para além do qual já
não é possível «apreender o conjunto» e se perde de vista a uni-
dade dramática221. Quer dizer, o limite para além do qual, dei-
xando de ser possível seguir o fio à história, se destrói a narrativa.
27. O segredo da capacidade que a narrativa possui de por
si mesma explicar (no sentido de tornar compreensível) reside
na intriga que, como já foi atrás assinalado, constitui a sua estru-
tura causal. Em rigor, é desta que se pode com propriedade dizer
que realiza a «síntese do heterogéneo». Toda a intriga repousa
num esqueleto causal em que «o sentido de um acontecimento

318 P Riceeur, op. cit., p. 212.


319 Idem, ibidem, pp. 251-2.
320 Idem, ibidem, p. 266.
321 Aristóteles, Poética, op. cit. p. 114.

119
Apologia da História Política

resulta do sentido de outro acontecimento a que está ligado»322,


mas que pode não lhe suceder imediatamente. As mais das vezes
e pelo contrário, a intriga derroga a ordem cronológica dos acon-
tecimentos, no interior de uma totalidade ou unidade tempo-
ral. Por isso eu pude intuir que a narrativa constitui a forma
natural da explicação histórica?22, querendo com isso dizer que
narrar e explicar se não distinguem. Ricoeur vai ainda mais longe
e afirma que «uma narrativa que fracassa em explicar é menos do
que uma narrativa»?24, Daí que explicar melhor consista sim-
plesmente em narrar mais. Se quisermos traduzir a terminologia
weberiana que utilizei, dir-se-á que a «explicação causal» ou «im-
putação causal particular», um procedimento explicativo que,
como vimos, resulta de um 7uíz0 que associa fenómenos parti-
culares de natureza heterogénea, corresponde logicamente à
«compreensão [ou causalidade] narrativa», que por seu turno
deriva e não é mais do que o esqueleto causal da intriga. Mas
é indispensável notar que o motivo pelo qual a explicação causal
coincide com a «armação da intriga» (Ricoeur) reside no facto
de esta ser construída a partir do ponto de vista do narrador,
que sabe mais do que qualquer dos personagens envolvidos. Nar-
rando, por definição, ex post facto, ele está em condições de ilumi-
nar acontecimentos anteriores em função dos ulteriores e de fazer
a destrinça entre acções intencionais e resultados imprevistos ou
indesejados. Do que agora se trata, é de mostrar como o esque-
leto causal da intriga, qualquer que seja a narrativa (literária ou

322 P Ricoeur, Opa Cit. pu lZ.


323 «O abençoado retorno da velha história», in A História a debate, op. cit.,
vol. II, p. 153.
Para uma opinião autorizada sobre esta questão, ver Paul Veyne, op. cit.,
pp. 68-79. «A explicação histórica [...] não merece tantos elogios e não se distin-
gue do género de explicação que se pratica na vida de todos os dias ou em qualquer
romance onde se conta essa vida: ela não é mais do que a claridade que emana de
uma narrativa suficientemente documentada; ela oferece-se por si mesma ao his-
toriador no acto de narrar e não é uma operação distinta deste» (p. 69, itálico meu).
Para uma cabal explanação epistemológica desta questão, ver especialmente
o capítulo x1: «Historical Explanation — The Role of Narratives» da obra citada
de Arthur Danto.
324 P Ricoeur, op. cit., p. 212.

120
Apologia da história política

histórica), procede à integração de factores heterogéneos sem


todavia perder a coerência que o torna inteligível e sem que seja
necessário autonomizar a explanação desses factores?25.
Para compreender a possibilidade, que a intriga oferece,
de sintetizar causas heterogéneas, é preciso ter presente que
essas «causas», sejam elas causas materiais, finalidades, acasos,
intenções, fortuna, coincidência, se dão como factos e aconteci-
mentos, ou seja, como episódios26 de uma intriga completa.
«As causas», escreve Paul Veyne, «são os diversos episódios da
intriga»227, especificando que a palavra «causas» não faz mais
do que designar os próprios acontecimentos que antecederam
aquele acontecimento específico que pretendemos «explicar».
Tudo o que o historiador faz é «mostrar o desenrolar da intri-
ga»328, É neste sentido que a «explicação» da Revolução Francesa
consiste exactamente no seu «resumo», e «nada mais»229. En-
quanto tal, o procedimento explicativo que aplicamos à Revolu-
ção Francesa (o procedimento por imputações causais) não é
diferente do que empregamos nas trivialidades da nossa própria
existência. Esta singeleza pode chocar pela sua banalidade os
que pretendem ver na história uma Ciência com letra grande.
Mas a verdade é que ela «nunca ultrapassa este nível de explica-
ção muito simples» 230, e já vimos os impasses em que se enreda
quando procura elevar-se ao nível dos paradigmas das ciências
generalizadoras. Cumpre também notar que a «imputação cau-
sal» é aplicável a situações que escapam ao «campo de decisão

325 Vimos que o historiador, sem deixar de explicar narrando, problema-


tiza explicitamente, e portanto autonomiza, a explicação. Mas o que agora está
aqui em causa são as propriedades de toda a narrativa, e não especificamente da
narrativa histórica, da qual já se tratou acima.
«O poeta cria uma intriga que também se mantém em virtude do seu es-
queleto causal. Mas este não constitui o objecto de uma argumentação.» Ricoeur,
op. cit., p. 266.
326 «Episódio: [...] 2. Facto notável relacionado com outro». CF. Novo
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2.º ed., 1986.
327 Paul Veyne, op. cit., p. 70.
328 Idem, ibidem, p. 68.
329 Idem, ibidem.
330 Idem, ibidem, p. 67.

121
Apologia da História Política

individual» 231; é assim que o «individualismo metodológico»


interpreta as regularidades sociais observáveis como efeitos agre-
gados de comportamentos adaptativos individuais?)2. A única
diferença, então, está em que há intrigas mais complexas do
que outras. Mas em qualquer caso o que a intriga liga são episó-
dios, e liga-os sempre da mesma maneira, quer dizer, a natureza
lógica dessa ligação é idêntica em todas as intrigas. À questão
crítica, que Veyne já não aborda, reside neste acto de /igar. Na
linguagem não científica da história narrativa, chama-se «causa»
a essa «ligação». Mas Aristóteles explica-nos que «causa», aqui
e em rigor, é a presunção de «necessidade» transmitida pelo efeito
de «verosimilhança», o que não deixa de evocar a tese de Hume
acerca das origens psicológicas da noção de causalidade?22. Não
é nenhuma necessidade inexorável empiricamente verificável.
Quando «resumimos» a Revolução Francesa, não incluímos
no resumo todos os episódios de que temos notícia «Porque,
de haver acontecido uma dessas coisas, não se seguia necessária
e verosimilmente que a outra houvesse de acontecer». Para testar
se realmente existe entre elas uma necessidade objectiva, Aris-
tóteles recomenda um exercício contrafactual: «todos os acon-
tecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez
suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou
mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que,
quer seja quer não seja, não altera esse todo»234. E como se
pode definir, abstractamente, aquilo que, suprimido ou deslo-
cado, alteraria o todo? O critério de relevância de Aristóteles
diz que está nesse caso a acção que «efectua mudança de fortu-
na». Numa intriga adequadamente construída, em que os epi-
sódios, ligando-se necessária e verosimilmente, formem um
331 P Ricoeur, op. cit., p. 274. Ricoeur cita o exemplo da Etica protestante,
de Weber.
332 R. Boudon, La place du désordre, op. cit.
333 «“The mind is carried by habit, upon the appearance of one event, to
expect its usual attendant, and to believe that it will exist.” It's, then, in this con-
nexion which we feel in the mind [...)' that Hume discovers “the sentiment or
impression from which we form the idea of power or necessary connexion'». A. J.
Ayer, Hume, Oxford University Press, 1980, p. 66.
334 Aristóteles, Poética, pi terio po US.

Jo
Apologia da história política

todo, verifica-se «acontecer uma coisa por causa de outra»335,


Ora esta necessidade, não sendo demonstrável, não é garan-
tida nem previsível, e por isso não constitui, cientificamente
falando, uma causa. Ela resulta do efeito de verosimilhança
dramática que uma correcta armação da intriga produz. Trata-
-se, pois, em rigor, de uma necessidade relativa, porque na vida
humana, tal como no «mundo sublunar da história» (Veyne),
as causas têm apenas o estatuto de uma probabilidade. Dize-
mos que António perdeu o comboio porque chegou atrasado.
Mas o facto é que ele poderia chegar atrasado sem no entan-
to perder o comboio: bastaria que este não tivesse saido à hora;
ou que António tivesse o relógio adiantado. A experiência não
comprova uma lei segundo a qual quem se atrasa perde invaria-
velmente o comboio. Acresce que além de atrasos os comboios
também sofrem cancelamentos.
28. A intriga, então, estabelece «causas» através do enca-
deamento necessário e verosímil de acontecimetos: estamos
irremediavelmente afastados tanto do mundo da sequência vivi-
da dos acontecimentos próprio dos cronistas, como do mundo
dos antecedentes constantes em que se movemos cientistas.
Já acima se disse que o que separa os eventos naturais dos acon-
tecimentos humanos é o estatuto narrativo dos últimos, isto
é, a sua relação intrínseca com a narrativa. Diz Ricoeur que «o
facto de figurar numa intriga é o que qualifica um aconteci-
mento como histórico». Quer dizer, «um acontecimento his-
tórico não é apenas o que acontece, mas o que pode ser narrado
ou que já foi narrado nas crónicas ou nas lendas». Porquê?
Porque «existe entre a actividade de narrar uma história e o
carácter temporal da experiência humana uma correlação que
não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de neces-
sidade transcultural»336.
Este ponto é da maior importância, pois prende-se directa-
mente com a tese de Paul Ricoeur e de Arthur Danto segundo

335 Aristóteles, ibidem, p. 117.


336 Ricceur, Temps et récit, Paris, Seuil, t.I, p. 85, cit. por Carlos Reis e Ana
Cristina Lopes, Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 1994, 4.º ed., p. 282.

:23
Apologia da História Política

a qual a história não pode perder toda a relação com a narrativa


sob pena de deixar de ser história. Com efeito, há acontecimen-
tos históricos que, não sendo acontecimentos humanos, não
podem ser propriamente narrados: descreve-se uma explosão vul-
cânica, não se narra — a menos que se antropomorfize o vulcão.
Por isso a descrição de uma explosão vulcânica faz parte da geo-
logia ou da história geológica e não, propriamente, da história
humana. De facto, é apenas graças à antropomofização artificial
de estruturas, trends, etc. (a fabricação das tais «quase-perso-
nagens»), que se torna possível criar uma espécie de narrativa
das estruturas, quer dizer, transformar estas em sujeitos histó-
ricos como se fossem sujeitos humanos?37.
Portanto, «é a intriga, e não o tempo curto, que é a medida
do acontecimento»238. Quanto ao tempo dos acontecimentos,
a composição narrativa reconfigura-o, expandindo-o ou abre-
viando-o, embora sempre, necessariamente, por referência ao
tempo do «vivido prático»23?. O historiador, tal como o roman-
cista, dispõe da possibilidade de conjugar vários tempos, abar-
cando-os numa única perspectiva — quer dizer, unificando-os
pela intriga —, não se achando de modo algum subjugado ao com-
passo trepidante do tempo curto «evenemencial»340. De resto,
uma simples reflexão de senso comum permite interrogar o que

337 Este «passe mágico» é particularmente notório por exemplo em Braudel,


quando nos conta tudo o que o trend secular faz — cf. Civilization matérielle,
économie et capitalisme (3 vols.), Paris Armand Colin, 1979, t.3: Le temps du monde,
pp. 61-62. Aliás, Braudel diz expressamente que o trend secular constitui «um
actor importante» (p. 61).
338 Ricoeur, op. cit. p. 244.
339 Idem, ibidem, p. 294.
340 A explanação das relações entre temporalidade e narratividade obrigaria
a uma incursão longa e séria pela teoria da narrativa, para o que não sou competen-
te. Para o presente efeito bastará que se considere, com Ricoeur, que a temporali-
dade constitui uma estrutura da existência humana «que atinge a linguagem na
narratividade'»; e que a narratividade constitui uma estrutura da linguagem «que
tem na temporalidade o seu fundamental referente'». Cit. por Carlos Reis e À. €.
Lopes, op. cit., p. 282. Acrescentam estes autores que «a experiência do tempo estru-
tura-se em acções cujo desenvolvimento numa intriga coesa traduz uma espécie
de dialéctica entre a sucessividade de eventos pontuais — e a possibilidade de globa-
lização inerente, por exemplo, ao resumo dessas acções».

124
Apologia da história política

é, afinal, o tempo longo. Seria este um tempo liberto da refe-


rência ao tempo do «vivido prático»? É claro que não. O tempo
longo é uma unidade, uma estrutura ou uma totalidade tem-
poral dentro da qual acontece qualquer coisa: a formação da estru-
tura económica da economia-mundo europeia ou a desagregação
da estrutura política do feudalismo, por exemplo. Ora quando
dizemos que algo acontece a uma estrutura, ou que uma estru-
tura faz ou provoca algo, estamos na realidade a proceder a uma
transposição da experiência humana para o domínio de uma pura
construção intelectual. estamos a socorrer-nos de uma linguagem
metafórica.
A multiplicidade de recursos oferecidos pela narrativa per-
mite também, pelo encaixe de episódios hierarquizados em fun-
ção das suas conexões mais ou menos directas com a acção
principal, elucidar, na extensão e com a minúcia necessárias,
todos os aspectos do contexto que interessam à compreensão
da intriga. Mas para além disso, a narrativa comporta trechos
ou segmentos não episódicos (não «evenemenciais»). Da econo-
mia às cerimónias fúnebres, das «mentalidades» às técnicas agrí-
colas, das colheitas às intempéries, do comércio ao crescimento
urbano, do desemprego à ruralização, da natalidade às migra-
ções, todos os aspectos da realidade histórica tidos como perti-
nentes para compor o «mundo» em que os sujeitos se movem
e conferir sentido às suas acções são integráveis na narrativa sem
prejuízo da sua unidade dramática. Tal como nos romances, em
que a intriga é suspensa para dar lugar ao comentário sobre as
personagens, à descrição da paisagem, à anatomia das emoções,
à caracterização de um ambiente, à particularização de um local,
à evocação do passado, assim também a intriga histórica pode
ser interrompida para dar lugar à descrição e análise dos aspectos
da realidade histórica relevantes para a sua compreensão. Como
diz Ricceur, a narrativa «incorpora à unidade da intriga as cir-
cunstâncias da acção». Ora o facto de segmentos não narrativos
ajudarem à compreensão do todo retira-lhes o carácter de excres-
cência apendicular e faz deles, pelo contrário, parte integrante
da narrativa na exacta medida em que, esclarecendo a intriga,
contribuem para a sua progressão.

125
Apologia da História Política

Compreende-se melhor, agora, de que maneira a história


narrativa resolve o problema, deixado em aberto pela história-
-ciência social, de ligar organicamente os vários aspectos da rea-
lidade histórica — as «circunstâncias da acção». A narrativa
(«síntese do heterogéneo») entrelaça os factores X de natureza
demográfica, e Y de natureza política, como causas de um acon-
tecimento Z de natureza económica: no caso particular em
apreço, as causas de Z foram imputadas a X e Y. Do ponto de
vista da história-ciência social, a explicação causal dependeria
de uma teoria da sociedade, quer dizer, muito precisamente uma
teoria geral sobre a articulação das várias práticas e níveis sociais.
Mas a este respeito, o que existe são várias «teorias» contraditórias
e abertas a contestação. A solução que a história narrativa dá
ao problema é uma solução dramática. Consiste na armação
da intriga do ponto de vista do historiador/narrador que, saben-
do mais do que sabiam os actores da história no momento em
que ela decorria, e possuindo mais informação sobre as circuns-
tâncias em que agiam, tem no entanto a respeito dessa história
o mesmo tipo de conhecimento (de senso comum) com que
eles interpretavam a experiência que viviam. Regressamos aqui
à história «do ponto de vista político», quer dizer, do ponto de
vista da compreensão que os contemporâneos tinham das coisas
públicas, o mesmo é dizer, o ponto de vista do «senso comum
a todos» os cidadãos sobre a sociedade ou o «mundo». Ora eles
viam-se — tal como nós nos vemos — como sujeitos desse «mundo»,
e não como agentes portadores de papéis sociais ou como agen-
tes debaixo da determinação das estruturas. Na qualidade de
sujeitos conscientes, o que lhes interessava — tal como o que
nos interessa a nós — era a política entendida como o «bom go-
verno», e por isso olhavam para a sociedade como um todo,
da mesma maneira que os governos olham: «como um objecto
do senso comum»241. Como a política diz respeito a todos os

341 Rui Ramos, op. cit., p. 40. Na mesma página, o autor escreve, inter-
pretando Léo Strauss: «As ciências sociais são saberes especializados. Para com-
preender a sociedade, desmantelam-na em elementos, os quais são definidos
segundo princípios de relevância que não são os dessa sociedade. Ora este para-
digma científico, impede as ciências sociais de reconstruírem o seu objecto — pois

126
Apologia da história política

domínios da vida social, todos podem desse ponto de vista ser


integrados, organicamente ligados, na narrativa: eles formam
as circunstâncias da acção.
Estas «circunstâncias» podem incluir, e incluem na me-
lhor história, trechos de análise e descrição estrutural. Ray-
mond Carr, na sua obra Spain, 1808-1975342, que narra a
história espanhola desde as invasões napoleónicas até à morte
de Franco e à coroação do rei D. Juan Carlos, introduz capí-
tulos sobre «A estrutura económica do “antigo regime», sobre
«As bases de uma economia moderna» ou sobre «A sociedade,
1870-1930». Mas estes capítulos não quebram a unidade de
uma narrativa cuja acção — 1. e., intriga — se desenrola, com
princípio, meio e fim, entre 1808 e 1975. No seu interior, os
parâmetros temporais mudam em função dos assuntos trata-
dos. O tempo longo de «A terra» no «antigo regime» alterna
com o tempo conjuntural da «Prosperidade e crise de 1870 a
1898», e ambos se combinam com o tempo curto de «À crise
do “antigo regime” de 1808 a 1814» ou de «A revolução de 1868
a 1874». Se tomarmos como exemplo outra grande obra de
história, German History, 1770-1866, de James J. Sheehan3$3,
verificamos a mesma inclusão na narrativa de capítulos temá-
ticos ou estruturais. «A política da Restauração, 1815-1830», por
exemplo, alterna com «Crescimento e estagnação na sociedade
alemã». O mesmo se passa com a recente obra de Eric Hobs-
bawm, Age of Extremes. The Short Twentieth Century I914-
-1997344, ou ainda com o que é considerado um dos melhores
livros de A. J. P. Taylor, English History, 1914-1945345,
Todas estas obras são, inequivocamente, obras de história
narrativa. Olhados de perto, também os capítulos mais analíticos

que implicitamente definiram esse objecto — o todo da sociedade — como um objec-


to de senso comum (que elas rejeitaram). Daqui decorre uma fissura: entre a ciência
social e a política. “O cientista social está preocupado com regularidades de compor-
tamento; o cidadão, com o bom governo.»
342 Oxford University Press, 1982 (2.º ed.).
343 Oxford University Press, 1989.
344 Londres, Michael Joseph, 1994.
345 Oxford University Press, 1965.

127
Apologia da História Política

e argumentativos, descritivos e estruturais, guardam laços, ainda


que indirectos, com a narrativa, e conservam, portanto, o seu
carácter propriamente histórico. Esses laços são particularmente
evidentes ao nível da temporalidade. Embora esta seja construída
artificialmente em função da natureza do assunto em estudo,
a sua medida é fornecida em última análise pelo tempo do acon-
tecimento inscrito na cronologia, quer dizer, esse tempo artificial
«visa sempre, ainda que obliquamente, o tempo da acção huma-
na»346, É que até às estruturas acaba sempre por acontecer algu-
ma coisa: elas desagregam-se ou transformam-se, não escapando,
por isso, a serem investidas pelo tempo narrativo. O carácter
«obliquamente» dramático de tais capítulos é reforçado pela sua
inclusão numa intriga completa demarcada por limites crono-
lógicos que assinalam o seu início e o seu termo. Não é por acaso
que as quatro obras citadas indicam logo no título o período
cronológico ocupado pela narrativa: não há intriga sem princí-
pio, meio e fim. «É necessário», diz Aristóteles, «que os mitos
bem compostos não comecem nem terminem ao acaso»247. Já
vimos que o historiador abarca vários tempos numa única pers-
pectiva, unificando-os pela intriga. E o tempo da intriga, esse
é, não obliqua mas sim directamente, o tempo do acontecimento
dramático, ou seja, o tempo da acção humana inscrito na crono-
logia, que é a sua divisão convencional em horas, dias, meses,
anos, séculos e milénios. Por isso toda a narrativa, por maior que
seja a liberdade de reconfiguração episódica e temporal, vive em
última análise das «prefigurações temporais do vivido prático»,
isto é, remete para uma dimensão cronológica que a história-
-ciência compreensivelmente despreza. Não poderia, por defini-
ção, ser de outra maneira, dado que, como diz ainda Aristóteles,
o que importa na intriga é a «imitação» de «acções e de vida»348:
pois também a história humana apenas pode ser compreendida
em termos da experiência humana.

346 P Ricoeur, op. cit., p. 260.


347 Aristóteles, Poética, op. cit, p. 113.
348 Idem, ibidem, p. 111. O que vale para a tragédia vale igualmente para
a epopeia, que essencialmente difere daquela pelo número de episódios e extensão.
Cf p. 140.

128
Apologia da história política

A pluralidade dos géneros históricos é hoje em dia uma


realidade incontestável e inevitável. Uma vez respeitados os
cânones da disciplina, nenhum deles pode reivindicar superio-
ridade sobre os outros. Debates sobre o mérito comparativo
dos géneros são tão velhos quanto a historiografia moderna?4º.
À escolha do género e do objecto depende da curiosidade inte-
lectual do historiador e dos valores em função dos quais apre-
cia e hierarquiza a importância dos assuntos mundanos. Uma
rua, um restaurante, um prato fabuloso e um cozinheiro genial,
podem originar uma história urbana, uma história comercial,
uma história dos preços, uma história empresarial, uma história
culinária, uma história ritual ou uma história sociológica. Pes-
soalmente, colhendo embora o necessário em qualquer delas,
hei-de sempre preferir a história do cozinheiro, com o seu prato,
com o seu restaurante, na sua rua, e no seu tempo. Ele é o perso-
nagem central da minha intriga. Cabe lá tudo o que ajudar a
esclarecer o seu êxito — ou o seu fracasso. Se essa história for
bem feita, ela há-de facultar uma abertura sobre o mundo em
que o meu cozinheiro se movia e, inescapavelmente, sobre o
mundo de hoje tal como eu o vejo250.

349 Veja-se o que aconteceu no século passado com a polémica em torno


dos méritos comparativos da história cultural e da história política: Felix Gilbert,
History, Politics or Culture? Reflections on Ranke and Burckhardt, Princeton Uni-
versity Press, 1990.
350 Esta história do cozinheiro foi um exemplo dado por António Barreto
e de que eu não resisti a apropriar-me.

129
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idos e ips neta cias
O SÉCULO XIX
EM PERSPECTIVA POLÍTICA
(1807 — 1890)
1807-1834: reacção e revolução

Não fosse a circunstância de as guerras da Revolução e do


Império (1792-1814) terem conduzido à fuga da corte para o
Brasil, e, em breve prazo, à prática emancipação da mais valio-
sa das nossas colónias, e seria difícil especular quanto tempo
demorariam ainda as ideias e doutrinas proclamadas em 1789
a corroer as bases do absolutismo português. Não se quer com
isto dizer que Portugal tenha permanecido inteiramente à mar-
gem do iluminismo europeu. Quando cá chegaram, as teorias
heréticas dos direitos do homem e da soberania dos povos, con-
sagradas em 1789, foram acolhidas com entusiasmo por aqueles
que já tinham lido os «filósofos» no original e se orgulhavam
de apenas seguirem «as caprichosas máximas» da sua «cega
razão». E apesar da ditadura sangrenta dos jacobinos, a Repú-
blica não deixou de seduzir por cá meia-dúzia de espíritos. Con-
tudo, «a paisagem das origens do liberalismo em Portugal»,
conquanto possa não ter tido «as limitações que Albert Silbert
lhe assinalou»2, apresenta-se irremediavelmente desolada. Em
finais do século XVIII não havia no País, fora de círculos muito
restritos desprovidos de influência social ampla, uma «opinião
iluminada» susceptível de abrir uma crise de legitimidade da
ordem de antigo regime. Mesmo nos meios urbanos, nos pou-
quíssimos que podiam merecer este nome, essa opinião apenas
permeara uma amostra ínfima da população. O antigo regime
não obstruía os horizontes da pequena burguesia do pequenino
comércio local, que não alcançava para além do burgo em que

1 Luís Oliveira Ramos, «Reflexão sobre as origens do liberalismo em Por-


tugal», in Sob o signo das «Luzes», Lisboa, 1988, p. 140.
2 Idem, ibidem, p. 158.

133
Apologia da História Política

residia ou da feira mais próxima que frequentava. O grande


comércio, estabelecido sobre o monopólio colonial, acomoda-
va-se bem a uma sociedade hierarquizada pelo privilégio, de que
as suas próprias concessões eram uma extensão lógica e natu-
ral. Sobre a indisponibilidade da massa do povo das províncias
para acolher os ideais revolucionários bastará referir a rapidez
com que os poderes tradicionais confiscaram os levantamentos
populares de 1808 contra a ocupação napoleónica?. O debate
sobre o impacto ideológico das invasões francesas continua em
aberto, mas do que se tem escrito é lícito concluir que foi des-
piciendo o seu contributo imediato para a difusão do libera-
lismo. De resto, até à Paz Geral de 1814 os liberais domésticos
fizeram-se o menos notados que era possível, podendo-se dizer
que, até 1820, apenas a imprensa portuguesa em Londres irra-
diava as suas ideias. Por último, a aristocracia portuguesa era
a mais iletrada da Europa e, por conseguinte, na sua maior parte
impermeável à «filosofia». Isto não significa, obviamente, que
a Revolução não tenha fornecido as doutrinas filosóficas, políti-
cas e constitucionais invocadas em 1820. Apenas quer dizer que,
dada a exígua audiência que mobilizavam, nenhum efeito te-
riam produzido a breve prazo, não fora a oportunidade e neces-
sidade da sua aplicação resultantes da crise aberta pela ausência
do rei e da corte, pela virtual ocupação inglesa e pela crescente
autonomização do Brasil.

Não obstante a celebração, em 1703, dos tratados de Met-


huen, Portugal nunca perdeu de vista, ao longo do século XviII,
que a neutralidade ou pelo menos o «distanciamento» em re-
lação às questões europeias era a atitude que melhor protegia

3 Vasco Pulido Valente, «O Povo em armas: a revolta nacional de 1808-9»,


Análise Social, n.º 57, 1979.
4 Veja-se Ana Cristina Araújo, «Revoltas e ideologias em conflito durante
as invasões fancesas» in Revista de História das Ideias, n.º 7, 1985, e Albert Silbert,
«Révolution Française et tradition nationale», Revista Portuguesa de História,
TONE, ISSA

134
O século xIx em perspectiva política

a independência da metrópole, a segurança das rotas para o Bra-


sil, África e Índia, e a integridade das colónias. Apesar da aliança
preferencial com a Inglaterra, Portugal conseguiu, a partir da
década de 70, recompor as suas relações diplomáticas com a Es-
panha e com a França. Assinou com a primeira o tratado de
St.º Ildefonso de 17775, a que a França se associou, e empe-
nhou-se em diversificar as suas relações comerciais, intensifican-
do os tráfegos com Hamburgo e assinando em 1784 um tratado
comercial com a Rússia, para onde iniciámos exportações regu-
lares de vinho. Finalmente, a boa vizinhança com a Espanha foi
selada pelo casamento do futuro D. João VI com a irmã de Fer-
nando VII, D. Carlota Joaquina. No entanto, com o início e
propagação das guerras da Revolução e do Império, e, mais dra-
maticamente, a partir da solidificação da aliança franco-espa-
nhola em 1796, Portugal veio a achar-se confrontado com a
escolha inescapável entre a aliança britânica e a cooperação com
a Espanha e a França.
O dilema era dramático. Se resistisse à «continentalização»º,
Portugal expunha-se a um ataque do país vizinho sem que pu-
desse contar, conforme ensinara a experiência durante a guer-
ra da independência americana, e conforme voltaria a ensinar
durante a «guerra das laranjas», com a pronta ajuda inglesa. Se
não resistisse, expunha-se a uma ruptura da aliança britânica,
uma aventura impensável pois poria em causa «o complemento
marítimo em que sempre tem assentado a força e a função in-
ternacional da independência portuguesa»”. Assim, e até Agosto
de1807, Portugal esforçou-se desesperadamente, contra ven-
tos e marés, por ver a sua neutralidade reconhecida. Mas o equi-
librismo diplomático que com esse fim desenvolveu deu em
resultado acabar Portugal «em estado de guerra (formalmente)
com duas potências entre si inimigas». A invasão francesa, que

5 Portugal aceita as aquisições espanholas no Sul do Brasil, reavendo contu-


do St.2 Catarina.
6. Borges de Macedo, História Diplomática Contemporânea, Lisboa, 1987,
po525
7 Idem, ibidem.
8 Valentim Alexandre, Os Sentidos do Império, Porto, 1993, p. 159.

135
Apologia da História Política

tudo se fizera por evitar, viria afinal a verificar-se «qualquer que


fosse a posição do governo de Lisboa»?; e a Inglaterra, em lugar
de nos oferecer protecção, deu pelo contrário a invasão como
certa. Por isso se antecipou e nos impôs a convenção de 22 de
Outubro de 1807, pela qual se regulava o destino da Madeira
e das restantes colónias portuguesas em termos que praticamen-
te colocavam Portugal à mercê da Grã-Bretanha. Não só con-
tinha estipulações destinadas a tornar irreversível a transferência
da corte para o Brasil como consagrava a adopção de providên-
cias comerciais que haveriam de transformar Portugal num sim-
ples «feitor» da Inglaterra.
Em 27 de Novembro de 1807, quando a corte embarcou
para o Brasil sob a protecção naval britânica, quase toda a gente,
em Portugal e na Europa, se tinha persuadido de que a hora
era de Napoleão e que não seria possível travar-lhe a roda da
fortuna. Perante a iminência do colapso nacional, quase todos
os olhos se voltaram para o Brasil, que era a parte mais valiosa
do Império a que a metrópole, velha e exaurida, devia se neces-
sário ser sacrificada. Dada esta como perdida por um prazo
imprevisto e imprevisível, D. João VI abriu o Brasil ao comércio
directo com as nações estrangeiras e tomou outras medidas des-
tinadas a promover a emancipação económica da colónia. Para
«gerar uma indústria nos centros e espalhar a agricultura por
todo o país»10, abriram-se comunicações, alargou-se a malha
administrativa e judiciária e fez-se do Rio o centro político capaz
de unificar um Estado que até ali existira retalhado em várias
capitanias praticamente autónomas.
À abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional
foi completada em 1810 pela celebração de um tratado de comér-
cio com a Inglaterra negociado em simultâneo com um tratado
de «aliança e amizade» que resumia, reiterava e reactualizava a
secular aliança luso-britânica, agora mais do que nunca reque-
rida para garantir a integridade de um reino que o rei abando-
nara à frágil autoridade de uma regência. Ao abrigo da aliança

? Valentim Alexandre, op. cit., p. 163.


10 Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, Rio de Janeiro, 1945, vol. 1, p. 229.

136
O século xIx em perspectiva política

inglesa, o exército britânico não só evitou que os levantamentos


nacionais antifranceses, iniciados em Junho de 1808, degene-
rassem numa completa subversão da ordem estabelecida, como
protegeu eficazmente a independência da metrópole contra as
invasões subsequentes. A coberto dos privilégios concedidos pelo
tratado comercial, os mercadores ingleses continuaram a for-
necer o Brasil com os géneros e manufacturas de que este ne-
cessitava mas não produzia, ao mesmo tempo que asseguravam
a venda na Europa, que a simples abertura dos portos não esti-
mulava, dos seus produtos agrícolas e naturais. Ambos os tra-
tados, o de aliança e o de comércio, foram negociados a partir
da corte do Rio de Janeiro — não de Lisboa — num contexto em
que, sendo o único dado certo a ocupação napoleónica da
Europa, o que se procurava assegurar era a soberania nominal
de D. João VI sobre a metrópole, e o que não se podia deixar
de garantir era a viabilização económica do Brasil.
Foi apenas a partir do momento em que se adivinhou a
Paz Geral, em 1814, que as disposições do tratado comercial
de 1810 se descobriram «ominosas» e a presença de Beresford
se revelou opressiva e ofensiva. A derrota do Império napoleó-
nico acordou o desejo de ressuscitar o monopólio do mercado
brasileiro e de em simultâneo sacudir o jugo político e militar
que a Inglaterra viera a exercer sobre o País. Todavia, esta aspira-
ção não era partilhada pela corte do Rio de Janeiro, cuja «opção
americana» ditava pelo contrário o interesse de manter em Por-
tugal a protecção inglesa contra eventuais desordens internas
e uma possível agressão externa!l. Por outro lado, nas condições
da frágil paz europeia, a Grã-Bretanha não podia abrir mão
da tutela sobre Portugal; e, no contexto do previsível renasci-
mento da concorrência colonial, não podia renunciar ao mono-
pólio de facto que entretanto conquistara no Brasil. Abordado
por Palmela durante o Congresso de Viena, Castlereagh opôs
uma intransigência invencível à revisão do tratado de comér-
cio de 1810, que foi mantido 77 toto. Esta atitude deu origem
a um persistente azedume contra a influência e presença inglesas

11 Valentim Alexandre, op. cit., p. 392.

H37
Apologia da História Política

em Portugal, e tornou a prepotência de Beresford mais dura


de engolir.
Com respeito às relações com o Brasil, as coisas também
não melhoraram. Em lugar de ser reconduzido à condição de
colónia subordinada aos interesses da metrópole, foi por D. João
elevado à condição de reino logo a seguir à morte de D. Maria 1.
Lá longe, o rei parecia esquecido do «berço originário» da mo-
narquia. Confirmou e ampliou o aparato institucional reque-
rido pelo lustroso estatuto a que elevara a colónia, e deu luz
verde à ocupação de Montevideu, que à custa dos recursos finan-
ceiros e militares de Portugal mais comprometeria o Brasil numa
política de expansionismo imperial sem fim à vista. Nos anos
que medeiam entre o Congresso de Viena e as revoluções de
1820 na Europa, agravou-se o mal-estar nas relações de Portu-
gal com o Brasil, e com a Inglaterra: com a velha colónia e com
a velha aliada que, com papéis diferentes mas complementares,
tinham funcionado como base da prosperidade económica e
da independência política do reino de Portugal. Por causa do
expansionismo brasileiro, as relações com a vizinha Espanha
tornaram-se mais tensas, exigindo um investimento em defesa
que, conjugado com as responsabilidades militares que havia
a cumprir no Brasil, o orçamento nacional não podia suportar.
E o tratado de comércio luso-britânico de 1810 seguia sendo
a factura pesada que o País continuava a pagar por uma aliança
que a Paz Geral parecia já não justificar. Não admira, pois, que
a deterioração das relações luso-brasileiras e luso-britânicas
tenha estado no centro dos agravos e conflitos que conduziram
à revolução portuguesa de 1820.
Ora um dos aspectos mais negativos dessa deterioração
residiu no crescente agravamento da nossa dependência econó-
mica da Grã-Bretanha, provocado precisamente pela ruína do
comércio colonial. Em finais de Setecentos e início de Oitocen-
tos, o peso da ligação comercial à Inglaterra, conformada pelo
tratado de Methuen de 1703, era consideravelmente atenuado
pela ampla autonomia das relações económicas luso-brasileiras,
que alimentaram uma relativa prosperidade mercantil e dinami-
zaram algumas actividades industriais domésticas. Mas se não

138
O século xIx em perspectiva política

custa a imaginar que a preservação do mercado brasileiro teria


sido insuficiente para vencer a rotina artesanal e proto-indus-
trial do País!2, tal não significa que a posse desse monopólio
não fosse da maior importância para a economia nacional como
um todo, para os negócios dos particulares e para as finanças
do Estado. Em 1812 os impostos cobrados nas alfândegas ti-
nham diminuído 21% relativamente a 180013. Do lado do País
e dos particulares, o golpe vibrado nas reexportações brasileiras
recaiu quase por inteiro sobre Lisboa, o que se traduziu não só
numa redução drástica do valor das transacções como num
enorme défice permanente do comércio da capital. Por via de
Lisboa, foi duramente afectado todo o comércio externo portu-
guês, dado que se perderam, essencialmente, tráfegos onde a
capital actuava como intermediária entre o Brasil e a Europa.
Perdidos estes tráfegos, agigantou-se a proporção do comércio
inglês no conjunto do comércio externo nacional, uma vez que
se continuaram a exportar as mesmas quantidades de vinho
do Porto em troca de têxteis e bacalhau. A recuperação do mo-
nopólio brasileiro foi um dos programas obsessivos do vintis-
mo. E o saneamento das finanças públicas, considerada uma das
suas urgências.
Em vésperas da revolução de 1820, o orçamento do Estado
acusava um défice claramente desproporcionado em relação aos
meios para o reduzir a uma dimensão sustentávell4. Ora após
o «colapso» de 1806-715, os valores do comércio externo conti-
nuaram em queda, numa altura em que Portugal não se podia
furtar ao esforço bélico exigido pelas guerras napoleónicas,
tendo sido obrigado a continuá-lo para além de 1814 em virtu-
de das relações tensas com a Espanha e das responsabilidades
militares contraídas com a defesa do Brasil, contagiado pelas
ideias liberais e autonomistas e ameaçado pela alternância entre

cf Jorge Pedreira, Estrutura Colonial e Mercado Colonial. Portugal e Brasil


(1780-1830), Lisboa, 1994, pp. 261-295.
13 Espinha da Silveira, «Aspectos da evolução das finanças públicas por-
tuguesas (1800-1827)», Análise Social, n.º 97, 1987.
1á Idem, ibidem.
ISA expressão e a datação pertencem a Valentim Alexandre, op. cit.

139
Apologia da História Política

guerra latente e real que a partir de 1812 se instalou ao Sul do


Rio Grande, na região platina. O recurso aos empréstimos pú-
blicos, uma prática iniciada em 1797, produziu uma dívida
pública fundada que em 1817 se cifrava em 6083 contos e cujo
serviço sobrecarregava ainda mais o défice orçamental do Esta-
do. Além de homens e de remessas extraordinárias, enviava-
-se anualmente para o Brasil uma soma de 500 contos de réis,
enquanto por cá o pagamento de soldos e prés aos militares
andava com seis meses de atraso, e o de tenças e juros era ainda
muito maior!6, Não havia reforma do «sistema de fazenda» que
valesse, porque o problema ultrapassava em muito um âmbito
meramente fiscal e administrativo. A punção do Estado sobre
a economia esbarrava nos limites que a organização económica
e social de antigo regime traçava às possibilidades de expansão
do produto. Em 1820, os ensinamentos de Adam Smith e o
exemplo da Europa indicavam que para aumentar a criação de
riqueza era necessário libertar a terra, o capital e o trabalho.
E concluía-se que a saúde financeira do Estado dependia da
prosperidade do país, a qual, por seu turno, reclamava uma com-
pleta «regeneração nacional».
Ora os meios para atingir este fim achavam-se indicados
pelos «séculos venturosos em que Portugal tinha um governo re-
presentativo nas cortes da nação»1”. E pela Europa fora, apesar
da vigilância das potências, as forças liberais, organizadas mais
ou menos clandestinamente, trabalhavam para repor a soberania
dos povos, negando a dos reis. Encorajados pelo exemplo da Es-
panha, os membros do Sinédrio, vendo «que a revolução tomava
ali maior corpo, de maneira que jamais poderia retrogradar»!8,

16 F Pereira Marques, Exército e Sociedade em Portugal, Lisboa, 1980, p. 215.


Segundo Espinha da Silveira, op. cit. em 1817 o atraso das tenças e juros rondava
os cinco anos.
17 Manuel Fernandes Tomás, «Manifesto aos Portugueses» de 24.8.1820,
in 4 Revolução de 1820, recolha, prefácio e notas de J. M. Tengarrinha, Lisboa,
1974, p. 42.
18 José da Silva Carvalho, «Memorandum sobre os acontecimentos do dia
24 de Agosto de 1820», in Maria João Mogarro, José da Silva Carvalho e a Revo-
lução de 1820, Lisboa, 1990, p. 127.

140
O século XIX em perspectiva política

decidiram levar a cabo o pronunciamento de 24 de Agosto no


Porto. À astenia do povo rural punha de parte a possibilidade,
outrora verificada em França, de uma «revolução camponesa»
empurrar e radicalizar uma «revolução burguesa». Por outro lado,
a fraca politização do povo urbano, de resto ainda económica
e culturalmente ligado ao campo, excluía a clássica aliança entre
a plebe e as classes médias das cidades que esteve por trás das
revoluções liberais. Em Portugal, o antigo regime seria deposto
“por um conluio, equívoco e efémero, entre conspiradores civis
e chefes militares que apenas as circunstâncias haviam torna-
do sensíveis ao apelo sedicioso.
Essas circunstâncias incluíam uma fissura aberta na legi-
timidade de D. João VI, que fugira com a corte para o Brasil
sem que ao menos tivesse deixado no reino um príncipe de san-
gue para dar corpo à continuidade da dinastia. Depois, o regres-
so à paz na Europa não excitou o desvelo do rei pelo «berço
originário da monarquia». Pelo contrário, logo em 1815 elevou
o Brasil a reino, dando lugar a um reino-unido não previsto nas
antigas leis e costumes portugueses, as quais ele todavia jurara
preservar. À legitimidade maculada de D. João VI abriu cami-
nho à legitimidade nacional que o exército reivindicou no 24 de
Agosto. À conspiração de Gomes Freire de Andrade, em 1817,
não fora além de um golpe militar «corporativo»!?, «sem apoio
no mundo civil e sem penetração à escala nacional no mundo
militar»20. Agora, o pronunciamento de 1820 culmina um
gradual processo de politização do exército, que vem a identi-
ficar-se como a «nação em armas», inaugurando a regular inter-
venção dos militares na vida política portuguesa ao longo de
toda a primeira metade do século xIx. Oficiais superiores,
inferiores e soldados tinham os soldos e prés vários meses em
atraso, e os primeiros sofriam, sobre privações económicas e
preterições nas carreiras, os vexames a que os seus colegas ingle-
ses, seguros com a protecção de Beresford, tinham o mau gosto

19 F Pereira Marques, op. cit., p. 182.


20 Silva Dias, cit. por A. Silbert, «Révolution française et dit nationale:
le cas portugais», op. cit., p. 44.

141
Apologia da História Política

de os expor. Mas o descontentamento militar não produz por


necessidade uma revolução, para mais de conteúdo liberal. Pro-
duziu-a desta vez porque o peculiar estado político do País, a
ausência do rei, a situação do Brasil, a condição do exército,
o exemplo dos militares espanhóis, a instigação de civis e o con-
tágio da revolução na Europa, criaram e justificaram a oportu-
nidade.
Os primeiros sinais da insuprível rivalidade entre civis e
militares que vai dividir o vintismo dão-se ainda antes e durante
a eclosão do pronunciamento. Depois, durante a marcha dos
revoltosos sobre Lisboa, os chefes militares nunca desistiram
de querer «preponderar». Na sua ideia, «o governo do Povo era
ilegítimo, como feito à força das baionetas», e as baionetas eram
deles. Por conseguinte, viam grande incongruência em que não
fossem eles a mandarZ!. Esta rivalidade exprime o conflito entre
duas legitimidades em disputa pela direcção política dos aconte-
cimentos. À legitimidade da soberania popular ou nacional,
que se presumia depositada nos chefes civis do movimento até
à convocação de Cortes Constituintes que lhe conferissem con-
sagração legal e definitiva; e a legitimidade dos militares, derivada
da suposta força moral inerente ao exército enquanto institui-
ção nacional representativa da unidade da pátria e enquanto de-
tentor único da força necessária para efectivar uma mudança
política. Na perspectiva «civil», quer dizer, liberal, tais agumen-
tos não conferiam ao exército qualquer título de soberania
própria. Enquanto «braço armado» da nação, devia-lhe pelo
contrário obediência. À «corrente civil», representada por Ma-
nuel Fernandes Tomás e José Ferreira Borges, acabará por triun-
far após o golpe abortado da Martinhada (11-16 de Novembro
de 1820). O triunfo, todavia, foi efémero. Daí em diante e
até meados do século xIx, nenhuma força política civil dispen-
saria a caução e o concurso dos militares quer para alcançar o
poder quer para lá se conservar. Mas a inversa também se reve-
lou verdadeira: os militares não precisariam menos dos civis, e
nem mesmo o golpe de Saldanha, em 1851, escapou em absoluto

21 «Memorandum» de Silva Carvalho, op. cit., pp. 139-140.

142
O século XIX em perspectiva política

ao figurino habitual. Na medida em que a Martinhada criou


um precedente, convém deslindar sumariamente a sua história.
Depois da fusão da junta do Porto com a de Lisboa (27
de Setembro), o «partido militar» julgou prudente meter o juiz
do povo da capital na conspiração destinada a impor a «supre-
macia das espadas». Em plena voga da soberania popular, não
era conveniente alienar a simpatia e o concurso do nóvel sobera-
no. Que o tradicional juiz do povo, uma figura típica da socie-
dade corporativa de antigo regime, fosse chamado a representar
o povo soberano da Revolução Francesa, era sem dúvida um
clamoroso equívoco, mas que por isso mesmo servia à maravi-
lha os propósitos dos conjurados. Próximo do fim de Outubro
estava pois em preparação a «Martinhada», um golpe contra-
-revolucionário também apoiado pela esquerda militar, que
calculou utilizá-lo para radicalizar o processo através da procla-
mação da Constituição de Cádis e consequente adopção do su-
frágio universal para a eleição das Cortes Constituintes22. Para a
contra-revolução militar, necessitada de uma «causa» popular
e da colaboração das patentes intermédias do exército, o impor-
tante era «derribar» o «partido civil». O que depois se faria da
Constituição e das eleições directas por sufrágio universal logo
se veria. De resto, embora ao certo se soubesse pouco sobre
os pormenores da legislação de Cádis, admitia-se que o método
espanhol tivesse a vantagem de dificultar a eleição de deputados
afectos ao governo.
O caso deu lugar a um braço de ferro entre a Junta Provi-
sória do Supremo Governo do Reino, na qual eram visados os
liberais na pessoa de Manuel Fernandes Tomás, e os chefes dos
corpos militares da capital, tendo à cabeça o marechal do exérci-
to Gaspar Teixeira de Magalhães, e tendo por trás o futuro chefe
do radicalismo militar, Bernardo de Sá Nogueira. O capitão
Bernardo de Sá tinha recentemente terminado os seus estudos
em Coimbra e estava sem dúvida imbuído do maior entusias-
mo pelo ideais liberais cujo futuro, nesse ano de 1820, se estava
a jogar em Nápoles, na Espanha e em Portugal. No governo

22 Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, Lisboa, 1986, vols. II, p. 214.

143
Apologia da História Política

pontificavam personagens conspícuas do liberalismo português,


mas Sá tinha também ele dificuldade em compreender, e aceitar,
que só «advogados e magistrados» fossem tidos pelos legítimos
depositários da soberania nacional. Por ora e até ver, a nação,
de facto, ainda nada dissera, e era sem a sua licença expressa
que em nome dela se falava. A Bernardo de Sá a realidade indica-
va pelo contrário, a avaliar pelos factos que a constituíam, que
a soberania residia «na força militar»22, Isto mesmo explicou
a Fernandes Tomás, numa carta em que lhe asseverava «que
o movimento do 11 de Novembro era tão legal como o do
Porto de 24 de Agosto, pois tanto um, como outro, foram pura-
mente militares»?4.
O argumento não era fácil de destruir e apenas exprimia,
afinal, o vazio de legitimidade que se tinha criado desde que
fora riscada a soberania de D. João VI. É este vazio, que por
força das coisas faz depositar a soberania em quem tenha a força
material para a exercer, que explica a aliança espúria que na
«Martinhada» uniu militares contra-revolucionários e radicais
contra a Junta Provisória do Supremo Governo do Reino.
À Junta representava a afirmação da supremacia do poder civil,
e as instruções eleitorais por ela produzidas em 31 de Outubro
foram interpretadas como um expediente urdido para impedir
a eleição de militares. Tanto bastou para que estes se irmanas-
sem na exigência do sistema eleitoral prescrito na Constituição
de Cádis. Comandada por Drago Cabreira, no dia 11 de No-
vembro a tropa ocupou os pontos estratégicos da cidade, e Gas-
par Teixeira, acompanhado à varanda do palácio do governo
pelo infatigável juiz do povo, mandou jurar a Constituição espa-
nhola, ordenou a remodelação da Junta de Governo e recomen-
dou que as futuras Cortes nunca fossem menos liberais do que
o haviam sido as de Cádis em 1812. A encerrar o patriótico dis-
curso com que «proclamou» aos habitantes de Lisboa, Gaspar
Teixeira declarou-se pronto a «derramar a última gota de sangue

23 Luz Soriano, Vida do Marquês de Sá da Bandeira, Lisboa, 1887, vol. 1,


p. 52.
24 Idem, ibidem, p. 48-9.

144
O século XIX em perspectiva política

pela religião de nossos pais, pela pátria e pelo rei»25. Apesar da


retórica melodramática, o propósito não deixava de exprimir
o seu verdadeiro estado de espírito. «O governo, aterrado, ace-
deu a tudo.»26 Mas dois dias depois Fernandes Tomás demi-
tia-se, e com ele demitiram-se também os restantes «vintistas»:
Braamcamp, Sobral, Frei Francisco de S. Luís e Ferreira de Moura.
Atrás deles manifestaram-se o corpo de comércio, «muitas ou-
tras entidades importantes» e a opinião pública, quer dizer,
as sociedades secretas e a imprensa periódica?”. O «partido mili-
tar» dividiu-se. Vendo que o feitiço se virava contra o feiticeiro,
os radicais aliaram-se aos civis e organizaram a «contra-marti-
nhada», que se desenrolou a 17 de Novembro. Consumou-se
nesta data uma cisão no exército português que apenas seria sol-
dada em 1851.
No 24 de Agosto no Porto, bem como no 15 de Setembro
em Lisboa, o encenamento popular dos acontecimentos apenas
se destinara a encobrir o facto essencial de que o povo não pas-
sava de simples «comparsa» num jogo previamente combinado
por meia-dúzia de civis com a cumplicidade dos chefes milita-
res. Agora, na «contra-martinhada», a esquerda do exército,
sem o saber, inaugurava uma tradição. Durante as décadas se-
guintes e até 1851, os militares não interviriam abertamente
na política sem o apoio de civis e o concurso de paisanos. No 17
de Novembro, a contra-revolução militar foi batida por «ma-
gotes de cidadãos bem trajados com as armas na mão» 28. Joel
Serrão bem detectou aqui a primeira manifestação de uma alian-
ça entre o radicalismo urbano e militar que por mais de uma
vez, no futuro, decidiria do curso dos acontecimentos. Os vin-
tistas regressaram ao governo, os chefes mais notórios da «mar-
tinhada» foram expulsos de Lisboa, e a 26 de Janeiro de 1821
as Cortes Constituintes ficaram definitivamente instaladas.
O destino do movimento vintista seria selado, no ime-
diato, pela reacção da corte brasileira aos acontecimentos em
25 Marques Gomes, Lutas caseiras, Lisboa, 1894, p. XVII.
26 Idem, ibidem, p. XX.
27 Idem, ibidem, pp. XX-XXI.
28 Luz Soriano, Varões Ilustres das Três Épocas viii patos:

145
Apologia da História Política

Portugal; a prazo, pela solução que o Soberano Congresso viesse


a dar à questão brasileira. No primeiro caso, a polémica que ali
se instalou entre os que advogavam terminante resistência ao
atrevimento revolucionário da metrópole (D. Tomás Vilanova),
e os que recomendavam prudente cedência a alguns princípios
constitucionais (Palmela), foi afinal abruptamente liquidada
pelos movimentos revolucionários que, ocorridos em Fevereiro
de 1821 em Pernambuco, no Pará e no Maranhão, ganharam
o próprio Rio de Janeiro, onde na madrugada do dia 26 a divi-
são portuguesa «apareceu formada no Rossio» e «ditou a lei
como quis»??, Exigiu o reconhecimento da Constituição que
viesse a ser feita em Lisboa e reclamou a demissão do governo
de D. João VI. O príncipe herdeiro, D. Pedro IV, anuiu em
nome do pai e este, perante a crua eloquência dos factos, capitu-
lou em toda a linha: jurou a Constituição que houvesse de ser
aprovada pelo Soberano Congresso, nomeou um novo gover-
no e encetou preparativos para O regresso ao reino.
À pressão e precipitação dos acontecimentos em várias ca-
pitanias e sobretudo no próprio Rio; a súbita «turbulência» e
«insolência» da plebe «desde que se inteirara dos primeiros acon-
tecimentos de Portugal»; o generalizado descrédito no «resta-
belecimento da ordem e das formas» 30; e, por último, o decisivo
pronunciamento da tropa, resolveram em poucas horas o im-
passe que durara na corte brasileira durante os meses de Outu-
bro de 1820 a Fevereiro de 1821. O regresso do rei a Portugal
foi formalmente decidido em 7 de Março de 1821. Não se esta-
va a vergar a um destino incontornável. D. João VI bem poderia
abandonar o Congresso à duvidosa alternativa ou de aclamar
uma nova dinastia de Cadaval, ou de enveredar por uma união
ibérica em que o vintismo português seria fatalmente engolido
pelo liberalismo espanhol. Mas D. João tinha um conceito dife-
rente dos seus deveres e dos seus métodos. Por isso, inclinou-
-se, vendo no regresso ao reino «a melhor forma de preservar

29 Carta de Palmela para Linhares, 3.3.21, cit. por Valentim Alexandre, op.
cit., p. 528.
30 Oliveira Lima, op. cit, vol. 1, p. 1070.

146
O século xIx em perspectiva política

a autoridade régia face ao Congresso de Lisboa e de manter a


unidade dos reinos de Portugal e do Brasil»3!.
Enganou-se. O Congresso fez pouco caso da sua autori-
dade, e, quanto à questão brasileira, entendeu resolvê-la com
base na legitimidade da soberania nacional, e não monárquica.
Segundo as doutrinas que sustentavam a primeira, a soberania
era una e indivisível, o que implicava tratar o Brasil como qual-
quer outra parte da monarquia, submetendo-o ao poder supre-
mo do Congresso e reintegrando-o no Estado português em
pé de igualdade com a metrópole e demais províncias. A reas-
sunção dos elementos de soberania de que o Brasil abusiva-
mente se apossara durante o absolutismo incluía medidas como
a extinção dos tribunais ali criados, a criação de juntas gover-
nativas de província na dependência das Cortes, a subordinação
da força militar no Brasil ao comando em Lisboa, e o regresso
do regente D. Pedro, a substituir por quem fosse oportunamen-
te indicado. Se necessário, o Congresso usaria de mão de ferro
para submeter a colónia rebelde às suas leis. Se a colónia as não
quisesse e a mão de ferro não resultasse, que então se «desli-
gasse», e «passasse bem o sr. Brasil»! Perdia-se a colónia, mas
salvavam-se os princípios constitucionais. Sobre as suas virtu-
des intrínsecas, os princípios ofereciam a vantagem prática de
justificar a autoridade com que se pretendia sujeitar o Brasil
ao restabelecimento do exclusivo do seu mercado em proveito
da metrópole. Nenhuma outra via que não fosse a drástica apli-
cação dos princípios — a integração nacional — seria susceptí-
vel de arrancar aos brasileiros concessões comerciais em nosso
benefício, nem de os demover a.aceitar uma subordinação
política que na prática já tinham sacudido.
Mais do que sacudido: o movimento de 26 de Fevereiro
de 1821 tinha na realidade encetado a marcha imparável do
Brasil para a independência. De longe, os brasileiros protesta-
vam contra o que por cá se tramava em representações que o
Congresso acusava de conterem «tudo quanto pode haver de
mais negro, mais pérfido e mais vil em calúnias e infâmias»32.
31 Valentim Alexandre, op. cit., p. 532.
32 António Viana, 4 Emancipação do Brasil, Lisboa, 1922, p. 130.

147
Apologia da História Política

Os deputados pelo Brasil explicavam que «o sistema de unida-


de inteira dos dois reinos era de quase absoluta impossibili-
dade»?3, denunciando que as medidas tendentes a estabelecê-la,
tomadas embora em nome da soberania nacional, levavam em
mira habilitar o governo de Lisboa para «erigir de novo Por-
tugal em depósito privativo dos géneros do Brasil e fechar quase
aquele reino à indústria estranha»34. Para os deputados brasilei-
ros, os artigos da Constituição especialmente aplicáveis ao
Brasil mostravam bem que os congressistas estavam «atascados
no pegajoso lodaçal das máximas do despotismo velho»25. Para
impor tais artigos, Borges Carneiro nenhuns meios enjeitava,
fossem eles «cães de fila» ou «espadas de boa têmpera»20. Borges
de Barros devolveu o desprezo a Fernandes Tomás: «Adeus sr.
Portugal, passe por cá muito bem.»37
No princípio de 1822, culminando os movimentos de
resistência antiportuguesa que se tinham intensificado e multi-
plicado no Brasil ao longo do ano anterior, D. Pedro toma a
decisão de permanecer no Brasil contrariamente às ordens do
Congresso. Tornou-se então patente o irremediável fracasso da
linha dura a que continuaram aferrados os regeneradores mesmo
depois de já esfriado o empenho recolonizador do chamado
«patriotismo mercantil», preferindo o risco de uma ruptura
com a ex-colónia à transigência com as suas pretensões autono-
mistas. Esta obstinação provaria a resistência do «nacionalis-
mo vintista» a servir de mera câmara de eco dos negociantes
nacionais28. Mas o desígnio drástico da integração nacional
apenas não aparece como puro lunatismo se o supusermos funda-
do na convicção dos regeneradores de que nenhum poder branco
subsistiria no Brasil sem a ajuda e a protecção de Portugal. Seja

33 António Viana, op. cit., p. 125.


34 Idem, ibidem, p. 167.
35 Idem, ibidem, p. 141.
36 Idem, ibidem, p. 140.
37 Idem, ibidem, p. 59.
38 Valentim Alexandre, «O nacionalismo vintista e a questão brasileira», in
O Liberalismo na Península Ibérica na 1.º Metade do séc. x1x, Lisboa, Sá da Costa,
1982, vol. 1, pp. 292-302.

148
O século XIX em perspectiva política

como for, a proclamação da independência de facto, em Se-


tembro de 1822, aniquilou toda a esperança de forçar o Brasil
a integrar-se no Estado nacional português. Com este desaire
ficou desde logo selado o destino da primeira experiência libe-
ral portuguesa — e ficou aberta a possibilidade de no futuro
uma «questão sucessória» vir a dividir o País.
Com efeito, a contra-ofensiva reaccionária oficializada no
Congresso de Verona (Outubro-Dezembro de 1822) veio já en-
contrar o liberalismo português minado pelas divisões suscitadas
pela questão do Brasil. Desde Março de 1822 que se proclamara
nas Cortes que a «dignidade do Congresso» era de menor consi-
deração do que o superior imperativo de deixar «a nação unida»
tal como os deputados a tinham encontrado??. Sobre as ruínas
do maximalismo regenerador, uma ala moderada chefiada por
Trigoso de Aragão Morato começara a inclinar-se para uma
solução do problema brasileiro que era muito semelhante ao que
se advogava em círculos absolutistas e em meios próximos do
marquês de Palmela: «A reunião dos dois reinos sob a égide dos
princípios dinásticos.»4º A concretização deste arranjo implicava
naturalmente alguma cedência dos princípios constitucionais,
um sacrifício que os moderados achavam justificado pelo supre-
mo imperativo de conservar a «nação unida» e que, de resto, a
próxima invasão da Espanha pela França, previsível desde o Con-
gresso de Verona, não deixaria de impor em toda a Península.
Depois da Vilafrancada, D. João VI procurou abrir a porta
a uma união dinástica entre Portugal e o Brasil através da re-
conciliação com D. Pedro, a quem se julgava que a fórmula
interessaria a fim de segurar o Império contra as tendências re-
publicanas e federalistas que o ameaçavam. Mas o princípio que
presidia ao acordo proposto era o de que a soberania de D. Pedro
constituía uma derivação da soberania de D. João VI sobre o
Brasil, que voluntária e magnanimamente dela abdicava a favor
do herdeiro. À chegada ao Rio (Novembro de 1823), a embaixada

39 y. Alexandre, «O nacionalismo vintista ...», 0p. cit, p. 298.


40 Esta interpretação segue de perto a hipótese formulada por V. Alexan-
dre no artigo supracitado, pp. 300-302.

149
Apologia da História Política

encarregada de transmitir a proposta régia foi sumariamente


expulsa por D. Pedro, que de Portugal apenas pretendia o re-
conhecimento incondicional da independência decretada pela
soberania das Cortes brasileiras. Entretanto, é certo que no Bra-
sil a guerra civil continuava, ou parecia continuar, iminente,
o que trazia tanto Palmela como Subserra firmemente conven-
cidos de que D. Pedro não tardaria a implorar, ou a aceitar,
o auxílio português. Em conformidade com esta expectativa,
a 12 de Abril de 1824 publicou-se a ordem do exército que
definia a organização de um corpo expedicionário incumbido
de dominar a rebeldia da ex-colónia e de viabilizar a reunião
das duas coroas. À decisão fundou-se num errado cálculo sobre
o estado de espírito da sociedade portuguesa. Diferentemente
da situação verificada até 1808 ou mesmo 1820-22, agora «o
reino unido nada traria de substancial aos absolutistas por-
tugueses», e o exército não queria «uma nova guerra colonial»
que ele sabia «de antemão perdida». E aos interesses mercantis
deixara de interessar a união formal com o Brasil uma vez que
este se encontrava já, de facto, comercialmente ligado à In-
glaterraf!. Sintomaticamente, uma proclamação dirigida por
D. Miguel na madrugada da Abrilada condenava a projectada
expedição militar ao Brasil, denunciada como um «pérfido
plano, forjado nos clubes maçónicos». Era a promessa de que,
«com ele, o exército ficava em casa»42.
O tratado de reconhecimento da independência do Bra-
sil, negociado em 1825 pelo embaixador britânico Charles
Stuart, nenhumas disposições continha sobre matéria suces-
sória. O governo português insistira em que nele se consagrasse
que D. Pedro herdaria a coroa de Portugal, com o que se verifi-
caria, por morte de D. João VI, o restabelecimento do reino-
-unido na pessoa do mesmo soberano). Como a herança não

41 Vasco Pulido Valente, Portugal, 1823-24, «working paper» apresentado


ao Seminário sobre História Contemporânea de Portugal que decorreu quinze-
nalmente no I.€.S. entre Janeiro e Maio de 1993, p. 49.
42 Idem, ibidem, p. 54.
43 Valentim Alexandre, «A desagregação do Império. Portugal e o reconheci-
mento do Estado brasileiro (1824-26)», in Análise Social, n.º 121, 1993.

150
O século xIx em perspectiva política

agradasse aos brasileiros, que desconfiavam de toda a aproxima-


ção com a ex-metrópole, D. Pedro esquivou-se ao compromisso,
e D. João VI veio a morrer deixando em aberto a pergunta vital
de saber quem lhe sucederia legitimamente no trono. No dizer
de Oliveira Lima, a questão sucessória abriu-se ainda antes
da morte do rei. Assim que foi conhecido o teor do tratado de
29 de Agosto de 1825, «a grita foi geral». Os absolutistas pre-
tenderam de imediato que fosse afastado da sucessão o pedrei-
ro-livre que eles responsabilizavam pela independência de uma
colónia. A guerra civil começou virtualmente aqui.
De facto, a partir deste momento era inevitável a contes-
tação da autoridade de D. Pedro IV e, por inerência, da Carta
Constitucional por ele outorgada depois da morte do pai. Quer
no que a prelúdiou — os levantamentos absolutistas de 1826-
-27 — como na sua eclosão, desenvolvimento e desfecho, a guer-
ra civil foi directa e decisivamente condicionada pela evolução
do contexto europeu e peninsular. Marcado, a partir de 1830-
-33, no primeiro destes planos, pela incontornável divisão da
Europa em dois campos, liberal e absolutista; e, no segundo,
pela inextinguível rivalidade anglo-francesa, esse contexto aca-
bou por determinar a formação da Quádrupla Aliança de 1834
que permitiu a rápida liquidação de D. Miguel em Maio deste
ano. Mas também o próprio partido liberal foi influenciado
pelo contexto internacional. Com efeito, a revolução de Julho
de 1830 em França precipitou a cisão pública e ruidosa do li-
beralismo português, que as circunstâncias até então haviam
mantido abafada ou contida dentro dos limites de agravos e
desagravos pessoais &. Mas logo a partir de Março de 1831 os
irmãos Passos desencadeiam o primeiro de uma série de ataques
políticos contra D. Pedro e a regência de Terceira por ele nomea-
da, num «memorial»4º em que aos direitos do herdeiro opõem

44 Cir. por V. Alexandre, «A desagregação do Império ...», op. cit. p. 330.


45 Por exemplo, a polémica em torno de saber quem fora o responsável pelo
desaire da «Belfastada», ou as acusações por causa da distribuição injusta de dinhei-
ros aos emigrados, etc.
46 Primeiro memorial sobre a necessidade e meios de destruir prontamente o
tirano de Portugal e de restabelecer o trono de D. Maria II e a Carta de 1826, Paris,
Ls popiGo jo Ale

151
Apologia da História Política

o poder constituinte da soberania nacional, e em que em nome


desta afirmam a legitimidade da insurreição popular.
O «Primeiro memorial» dos Passos contém já a exposição
da doutrina constitucional e até do programa político da futura
«oposição constitucional» ou «patriota». O «princípio da omni-
potência parlamentar», dizem, deveria «enxertar-se na árvore
das nossas constituições». A aplicação deste enxerto purificaria
o pecado original da Carta, tornando-a venerável até por «de-
mocratas incorrigíveis», pois que uma vez admitida a sua refor-
ma pelo poder constituinte da nação ela se transformaria numa
«constituição popular». Ao abrigo deste artifício político, a es-
querda liberal preparava-se para submeter a Carta a uma série
de reformas que não só a tornariam irreconhecível, como des-
truiriam pela base toda a filosofia em que assentava a sua arqui-
tectura constitucional. «O que em poucas palavras pedimos»,
explica-se, «é o trono de D. Maria com os princípios de 91».
Era difícil formular uma rejeição mais formal da Carta outor-
gada por D. Pedro IV em 1826.
Dali a pouco, em Dezembro de 1831, Rodrigo Pinto Pi-
zarro publica a «Norma das regências de Portugal, aplicada à
menoridade de D. Maria Il», um opúsculo que indirectamente
apresentava DD. Pedro como um usurpador do trono português,
e que equivalia a uma declaração antecipada da guerra que o 7a-
dicalismo estava decidido a mover contra a Carta e o seu «Dador».
Em Novembro, os irmãos Passos voltam à carga, afirmando-se
determinados a continuar a revolução contra os «apóstatas» e
«traidores» que tramavam apunhalar a liberdade. Ao contrário
dos «heróis das barricadas» das «três gloriosas» de Paris, não se
deixariam «domar». À revolução, explicam, «não sacode o pó
dos sapatos para sair quando a não querem: até os seus próprios
filhos devora». Depois, em Abril de 1832 surge o primeiro produ-
to do radicalismo puro, «Gerente e não regente, ou veto à dou-
trina anticonstitucional do $ 4.º do manifesto do sr. D. Pedro
de Alcântara, ex-imperador do Brasil», um panfleto tipicamente
violento, maniqueísta e insultuoso que, não se distinguindo
dos anteriores textos pela exposição de doutrinas substancial-
mente diferentes, no entanto se diferencia deles por assumir

1
O século xIx em perspectiva política

um discurso de implacável ruptura com o liberalismo dos «ami-


gos de D. Pedro». No mar de traições, conspirações, roubos
e subornos e da geral corrupção em que o autor vê os liberais
afogados, «a Carta», com reforma ou sem ela, parece-lhe irrele-
vante. Está já aqui em germe a ideologia da futura «cauda de
descamisados» do setembrismo.
Os velhos vintistas — José da Silva Carvalho, Agostinho
José Freire, José António Guerreiro, Cândido José Xavier e ou-
tros — estão agora do lado de D. Pedro, inteiramente curados
do seu democratismo de outrora, desacreditado pelo fracasso
da primeira experiência liberal. É uma geração nova a que em
princípios dos anos 30 reclama o vintismo como matriz do 7a-
dicalismo português, e essa matriz foi afinal a única coisa sólida
e duradoira que sobrou do regime de 1820-23. Na segunda
metade do século, os republicanos veriam nela o futuro, e na
monarquia constitucional uma mera «instituição interina»4”,
uma «transacção entre os princípios absolutos da legitimidade
e os princípios absolutos do republicanismo»%8, que a evolu-
ção histórica faria naturalmente triunfar. Por ora, nos começos
da década de 30, tal triunfo ainda não gozava da caução cien-
tífica em que se basearia o optimismo republicano. O que o
vintismo irradiava era uma esperança fundada na bondade in-
trínseca dos ideais então proclamados; e o que ele fornecia, era
a legitimidade histórica e o fundamento doutrinário da contes-
tação a que o constitucionalismo monárquico não mais deixaria
de estar sujeito. Foi esta a herança essencial, senão única, de
1820. Porque no plano governativo, a sua acção foi irremedia-
velmente tíbia e superficial.
Os vintistas foram os próprios que disseram que a sua obra
seria uma obra de regeneração nacional. À insistência na palavra
«regeneração» para descrever o espírito, a missão e o programa
do vintismo, seria indicativa da relutância em expressar uma

47 Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, Lisboa, 1983,


p: 193:
48 António Vidal em sessão da Câmara dos Deputados de 19.3.59, cit. por
J.M. Tengarrinha, Estudos de História Contemporânea de Portugal, Lisboa, 1983,
p. 274.

153
Apologia da História Política

vontade de ruptura revolucionária com o passado/?. Tratava-


-se de restaurar os nossos velhos «foros e direitos», as nossas an-
tigas «franquezas e liberdades», e de repor em uso os nossos
«louváveis costumes que nos caracterizaram sempre desde o es-
tabelecimento da monarquia»>0. Borges Carneiro resumiu o
carácter dos acontecimentos de 1820 no título da obra que lhes
dedicou: Portugal regenerado. E Fernandes Tomás, no relató-
rio que em Fevereiro de 1821 apresentou às Cortes sobre o «es-
tado e administração do reino», tanto evoca a «nossa revolução
venturosa» como se refere à nossa «feliz regeneração». Aliás,
a Praça de St.º Ovídio, onde a tropa se reunira no Porto na me-
morável madrugada de 24 de Agosto, fora de imediato rebapti-
zada de Praça da Regeneração.
Anunciando-se regenerador pela voz cautelosa dos seus
mais autorizados ideólogos, o vintismo traía a essencial ambi-
guidade que teria constituído desde o início a sua característica
fundamental. Com isso, mais não faria do que ter prudente-
mente em conta a frágil base burguesa sobre a qual se sustenta-
va, receando vir a achar-se isolado num país esmagadoramente
rural, que respeitava os fidalgos por subserviência e temia os
padres por superstição. Tolhido por esta circunstância, o Sobe-
rano Congresso teceu compromissos dúbios com a ordem e os
interesses de antigo regime, não tendo ousado destruir o seu
mais tenaz fundamento, a saber, o regime senhorial. Entre nós
o liberalismo tocou, mas não aniquilou a «feudalidade», embora
Fernandes Tomás tivesse exortado os representantes da nação
a meter ombros a essa «obra verdadeiramente grande e majes-
tosa», garantindo-lhes que ela haveria de «imortalizar» os seus
nomes>!. Mas à glória da imortalidade os deputados preferiram
a prudência das meias reformas. Ficaram-se pela abolição do
relego, das lutuosas e dos direitos banais, e apenas reduziram
para metade as rações ou quotas incertas consignadas nos forais,

49 Joel Serrão, «Vintismo», in Dicionário de História de Portugal, vol. IV.


50 Fernandes Tomás, in J. M.Tengarrinha, 4 Revolução de 1820, op. cit.,
pp. 41-42.
51 Idem, ibidem, pSga

154
O século xIx em perspectiva política

declarando expressamente que a medida se não aplicava a «quais-


quer foros, pensões ou rações» que fossem pagos em virtude
de qualquer «contrato ou título particular»2. Para além da aca-
nhada reforma dos forais, o Soberano Congresso deu início à
desamortização, aboliu as coutadas abertas, criou uma comis-
são para fiscalizar e reformar o terreiro público, proibiu a impor-
tação de cereais e de outros produtos agrícolas, projectou a
introdução de cadeiras de Economia Política em Lisboa, Porto
e Coimbra, nomeou uma comissão encarregada de imaginar
a forma de liquidar a dívida pública e fundou o Banco de Lisboa.
A ambiguidade culminou na invocação da Santíssima e Indivi-
sível Trindade que precede a Constituição de 1822, interpretada
como um testemunho irrefragável da prudência conservadora
que animava'as Cortes Constituintes de 1821-2253.
Custaria então a compreender como pôde o vintismo trans-
formar-se na matriz do radicalismo português e no episódio direc-
tamente fundador da tradição democrática que viria a culminar
na República proclamada em 1910. Na realidade, o que aconte-
ceu foi que a moderação política e a retórica «regeneradora»
do vintismo ofuscaram o facto explosivamentemente subversi-
vo que foi a proclamação da soberania nacional, e a negação
da soberania régia. O Soberano Congresso não atacou «as par-
tes estáveis da monarquia: a “religião santa de nossos pais e a
'propriedade individual». Mas «os direitos da monarquia», que.
Fernandes Tomás fingiu prometer que seriam «solidamente»
garantidos>*, saíram logicamente reduzidos a pó do trabalho
dos constituintes. Nisto residiu uma ruptura indelével com o
antigo regime, a partir da qual estava aberto o caminho às mais
devastadoras reformas do «edifício social» que as subsequentes
Cortes ordinárias decidissem empreender. Quando estas abri-
ram, em 1 de Dezembro de 1822, não deram mostras de que-
rer ir por aí. Mas nessa altura já a questão brasileira as dividira

51 J. M.Tengarrinha, A Revolução de 1820, op. cit., p. 57.


52 Joel Serrão, «Vintismo», op. cit.
53 Idem, ibidem.
54 Fernandes Tomás, «Manifesto aos Portugueses» de 14.8.1820, in J.M.
Tengarrinha, 4 Revolução de 1820, op. cit., p. 44.

155
Apologia da História Política

e enfraquecera, e já a contra-revolução ameaçava de Verona e


em Trás-os-Montes, deixando prever o fim próximo da expe-
riência liberal portuguesa. Nem por isso foi destruído o ca-
rácter fundador do vintismo. Mil oitocentos e vinte inaugurou
a Revolução em Portugal. Popularizou a doutrina, criou o pre-
cedente depois invocado por todos os revolucionários, estabe-
leceu o pronunciamento militar como «a fórmula liberal de
conquista do poder» e legou o modelo de constituição demo-
crática que ao longo do século XIX serviu de referência e funda-
mento às pretensões populares ao poder. Com a Constituição
de 1822, Portugal retomava a história no ponto em que a deixara
em França a Constituição de 1791. E tal como a França, se bem
que com desfecho diferente e sem os episódios sangrentos nem
a intensidade trágica a que ali deu lugar, Portugal iniciava com
ela a luta entre o princípio da soberania nacional e o princípio
da soberania régia que estaria no centro do combate político
ao longo de todo o século XIX.
A Constituição portuguesa de 1822 entroniza, tal como
a francesa de 1791 e a espanhola de 1812, uma assembleia legis-
lativa omnipotente, e subordina-lhe os outros dois poderes do
Estado, embora declare os três separados e cada um deles inde-
pendente. Não era bem este o espírito da separação dos poderes
que Montesquieu ensinara no «Espírito das Leis». Mas a teoria
política do velho mestre, para quem o executivo permanecia
a mola por excelência do poder, acabou enviesada pela voga
crescente das teorias contratuais do poder, originadas no jusna-
turalismo moderno combinado com a filosofia política antiga,
e que tiveram no Contrato Social de Rousseau (1762) a sua
expressão mais sistemática e popularizada. A preocupação «libe-
ral» pela liberdade, fundada em 1789, que se queria uma garan-
tia contra o poder arbitrário dos reis e a discriminação legal
dos cidadãos, foi cedendo o lugar à preocupação «democrática»
pela participação no poder, uma actividade com a qual a pró-
pria liberdade se veio a confundir. Gradualmente, esta deixou

55 E. Christiansen, Los origenes del poder militar en Espania, 1800-54, Ma-


drid, Aguilar, 1974, p. xIX.

156
O século xIx em perspectiva política

de consistir na protecção contra os excessos da autoridade do


Estado e no exercício dos direitos civis garantidos pela lei, para
ir sendo assimilada ao exercício dos direitos políticos implica-
dos no princípio da ilimitada soberania nacional. Através da
recuperação do sentido que tivera na Antiguidade Clássica, ser
livre acabou por corresponder a agir politicamente.
O «amor da liberdade», a que Tocqueville atribui tudo o
que houve de «mais precioso e mais nobre nas conquistas de
89»56, foi em breve superado pela «paixão da igualdade», mais
ardente e sedutora. Depressa se descobriu que sem esta não havia
aquela. Conforme explicava por cá Almeida Garrett, «Os ho-
mens são iguais porque são livres; e são livres porque são iguais
[...]. À natureza que nos doou estes preciosos bens [...] lhes
deu uma correlação [...] que um sem outro não podem exis-
tir»7, A liberdade, tinha bastado decretá-la para que existisse.
Mas a igualdade, que era condição dela, resistia a deixar-se esta-
belecer. O Estado se encarregaria de nivelar o que não se nivela-
va naturalmente, por forma a fazer todos os homens iguais em
direitos, e em poderes. «Este estado forma o que se diz, e o que
é a igualdade.» Para Garrett esta era, no século XIX, uma verdade
«de simples intuição»,
Talvez por isso, foram muitos os que a discerniram e dese-
jaram com ardor levar à prática, dando lugar ao nascimento
de uma corrente ideológica de essência igualitária e estatista,
para a qual o poder político devia ser posto ao serviço de um
ideal cívico com que toda a sociedade havia de viver identificada
e comprometida. Para isso era necessário conquistar o Estado,
purificá-lo e usá-lo plenamente, a fim de reabilitar os homens
e as instituições desvirtuados por governos corruptos. Esta cor-
rente radical, saída do caldo ideológico de 1789, constituiu-se
e desenvolveu-se em oposição ao liberalismo, mais empenhado
nas liberdades do indivíduo do que na felicidade da nação (o

56 Tocqueville, L'Ancien régime et la révolution, Paris, Gallimard, 1967, p. 48.


57 Almeida Garrett, in Joel Serrão (selecção, introdução e notas), Liberalismo,
Socialismo e Republicanismo. Antologia do Pensamento Político Português, Lisboa, 1979,
p. 51.
58 Idem, ibidem.

157
Apologia da História Política

«bem comum»), mais preocupado em proteger a autonomia da


sociedade do que em prescrever-lhe um fim colectivo, e mais
interessado em limitar os poderes do Estado do que em estabe-
lecer as condições de um ilimitado poder legítimo. O radica-
lismo nutria uma insuperável repugnância pela imperfeição das
coisas e acreditava na infinita capacidade de aperfeiçoamen-
to humano guiado pela razão. Achava que esse aperfeiçoamento
valia todos os sacrifícios, incluindo o da liberdade e, portan-
to, o do indivíduo. Este, de resto, com os interesses e inclina-
ções particulares que essencialmente o definiam, revelava-se
um obstáculo ao exercício das virtudes cívicas que fazem dos
verdadeiros cidadãos servidores heróicos da res publica. A re-
pública triunfou sob a ditadura jacobina de 1792-94. Apesar
do terror que para isso empregou, morreu sem dar à luz a pro-
metida comunidade de cidadãos abnegados e virtuosos, inteira-
mente curados das suas paixões materiais e desligados dos seus
interesses privados, e apenas definidos pela sua pertença e dedica-
ção a um tipo sublime de «sociedade abstracta, exclusivamente
civil, estranha aos vínculos da consanguinidade e da tradição»).
A República jacobina morreu no dia em que Robespierre
e mais 115 correligionários foram executados pela guilhotina
(27.7.1793). Mas não a essência do que lhe presidira, que era
a «ideia fundamental da sociedade democrática»), bebida atra-
vés de Rousseau na república antiga, onde a liberdade enquanto
fenómeno político se não distinguia praticamente da igualdade:
onde os que mandavam eram os mesmos que obedeciam, a pró-
pria sociedade se constituía em Estado. A ideia democrática
continuou a alistar adeptos, fascinados pela visão de uma socie-
dade inteiramente laica e racional, ordenada por leis deduzidas
de verdades eternas e universais, expurgada de privilégios e livre
de superstições, constituída por cidadãos inteiramente iguais
e soberanos. A memória do Terror jacobino impediu por muito
tempo que alguém se dissesse republicano. Em França, os que

59 Oliveira Martins, História da República Romana, Lisboa, 1987, vol. 1,


pp. 259-60.
60 Idem, ibidem.

158
O século xIx em perspectiva política

a experiência histórica não levara a descrer da bondade do ideal,


designavam-se por radicais. Por cá, diziam-se simplesmente de-
mocratas. Depois da revolução de Setembro de 1836, chama-
ram-se setembristas e continuaram a reclamar-se do «vintismo»,
que fizera, nas palavras de Oliveira Martins, «Absoluta a Cons-
tituição Republicana» de 18221.

61 Oliveira Martins, «Cinquenta anos de monarquia constitucional», in


Política e História, Lisboa, 1957, vol. 1, p. 90.

159
NJ

1834-1851: a guerra de todos contra todos

No Portugal Contemporâneo», Oliveira Martins chamou ao


período iniciado com a implantação definitiva do constitu-
cionalismo monárquico o «reinado da frase e do tiro». Ele pro-
longa, de facto, a guerra de panfletos desencadeada durante a
emigração. Essa guerra fora o aspecto revestido em Portugal
pela luta entre o princípio monárquico e o princípio electivo;
entre o liberalismo e a democracia; entre a ordem, como a en-
tendiam os que viam na desigualdade dos direitos políticos o
reverso necessário da desigual capacidade social; e a liberdade,
como a entendiam os que a assimilavam à participação plena
de todos os cidadãos na «coisa pública». Nestes últimos se tinha
alojado o «vírus revolucionário» libertado pela Revolução Fran-
cesa. Mais do que as doutrinas concretas por ela proclamadas
— que foram sendo reinterpretadas em função das circunstâncias
históricas ulteriores — o seu legado permanente consistiu na
popularização da ideia de que a revolução era simultaneamen-
te legítima e possível. A principal herança da Revolução Fran-
cesa foi pois a própria ideia moderna de revolução, e a figura
do revolucionário moderno. Familiarizados que estamos no
nosso tempo com uma e com outro, talvez nos seja difícil apre-
ender a aterradora novidade que o fenómeno então constituiu.
Mas se não conseguirmos imaginar o tremendo susto vivido
pelos nossos antepassados, condenamo-nos a não entender o
objecto dos seus esforços nem o ardor das lutas em que se envol-
veram.
O termo «revolução» fora até ali uma categoria ex post facto
de entendimento histórico: designava acontecimentos que ti-
nham sobrevindo aos homens, retrospectivamente avaliados

160
O século xIx em perspectiva política

como uma revolução, mas que se apresentavam como algo des-


provido de autoria humana precisa e identificável. Foi durante
o início da Revolução Francesa (1790) que o termo passou a
designar, pela primeira vez, «uma experiência humana criada
pelos próprios homens»º2. Hannah Arendt diz que esse momen-
to assinala a redescoberta da política como acção colectiva, no
que afinal consistia e se esgotava o sentido grego, esquecido
durante séculos, da palavra liberdade. Ao afirmar que «a palavra
revolucionário” só se pode aplicar àquelas revoluções cujo ob-
jectivo é a liberdade», Condorcet explicitou uma coincidência
histórica entre a ideia de liberdade como acção política e a ideia
de revolução como um começo radicalmente novo. A mistu-
ra revelou-se explosiva. O que ele e os corrreligionários tinham
em mente, não era apenas aquela liberdade pela qual nós enten-
demos os direitos civis e que são, essencialmente, «liberdades
negativas»o*. No que principalmente pensavam era no con-
teúdo substantivo e «positivo» da liberdade, que implica e
se confunde com a participação nos assuntos públicos, ou seja,
que consiste na acção política. A Revolução Francesa não liqui-
dou meramente o poder arbitrário dos déspotas: instituiu o
poder colectivo do povo. Fundou a liberdade enquanto modo
de vida político e, por conseguinte, inscreveu a criação de um
governo democrático na ordem do dia. Alguém logo viu, e disse,
que a verdadeira e fundamental controvérsia que agitou a época
por ela inaugurada era a que se estabelecera entre república e
monarquia. A primeira seria no futuro a dedução lógica das
doutrinas democráticas da soberania popular, tal como a segunda
fora no passado a dedução lógica das doutrinas autocráticas da
soberania régia de direito divino. Entre uma e outra veio inter-
por-se, após a queda e abdicação final de Napoleão, a doutrina

62 F Furet & M. Ouzouf, eds., The French Revolution and the Transfor-
mation of Modern Political Culture, 3 vols., Oxford, Perganon Press, 1985.
63 Hannah Arendt, Essai sur la révolution, Paris, Gallimard, 1967, Pso7
64 Isaiah Berlin, «Two Concepts of Liberty», in Four Essays on Liberty, Ox-
ford University Press, 1969.
65 Idem, ibidem.
66 T. Jefferson, cit. por H. Arendt, op. cit.

161
Apologia da História Política

intermédia do «juste milieu», que viveu da promessa de as con-


graçar a ambas. Mas como Tocqueville logo viu talvez melhor
do que ninguém, o «desenvolvimento gradual da igualdade de
condições» era um processo universal e inelutável, movido pela
força irreprimível das coisas e esquivo ao «controlo dos homens».
«Poder-se-á imaginar — interrogava Tocqueville profeticamen-
te — que após ter destruído o feudalismo e vencido os reis, a de-
mocracia recuará diante dos burgueses e dos ricos?»97
Também em Portugal não recuou. E, se não levou «os bur-
gueses e os ricos» de vencida, o radicalismo conseguiu pelo menos
impedi-los de governar tranquilamente. Morto D. Pedro IV,
abriu-se no País uma crise de legitimidade que a monarquia
constitucional talvez nunca tenha completamente resolvido.
Até 1851, em todo o caso, jamais houve indivíduo, grupo ou
coligação de grupos cujo governo não fosse visto como uma
rotunda usurpação, e nem aqueles mesmos que detinham o
poder se consideravam possuidores de um título puro ao seu
exercício. D. Pedro, ex-imperador do Brasil, filho de D. João VI,
«dera» a Carta como um acto espontâneo da soberania que her-
dara, e sobrepusera-se às facções reunidas e contidas sob a sua
autoridade política e militar. D. Maria, uma adolescente filha
de D. Pedro IV e herdeira da Carta, foi desde o início envolvida
na luta entre as facções, o que deu em resultado a partidarização
da monarquia e do regime. Transformada em «bandeira» de
«partido», a Carta Constitucional, que os radicais já de si repe-
liam por atentatória da «sã doutrina democrática», velo a cons-
tituir-se, de 1834 a 1851, num redobrado pomo de discórdia
política. Faltando a aceitação consensual do regime, faltavam
igualmente regras de jogo político reconhecidas e respeitadas.
A «frase e o tiro» substituíram-se às modalidades regulares de
competição pelo poder.
A agenda política marcada durante a emigração foi ime-
diatamente reaberta em 1834. Muito compreensivelmente,
o «povo» rejeitava um regime que, excluindo-o do «país legal»
através do censo, lhe recusava existência política, reservando-a

67 Alexis de Tocqueville, 4 Democracia na América, Lisboa, 1972, pp. 11-12.

162
O século xIx em perspectiva política

aos «burgueses» e aos «ricos». Uma tão flagrante injustiça, que


atentava contra o santo princípio da igualdade dos cidadãos,
provinha sem dúvida de a Constituição vigente ser «filha» da
soberania régia. No interesse dos «ricos» e dos «burgueses», que
a monarquia acolhera no seu seio, as ominosas prerrogativas
do rei reduziam a pó os poderes da representação nacional, «so-
fismando» pela base todo o «sistema representativo» e privando
a nação de usufruir das maravilhosas vantagens daquela forma
de governo. Aos olhos dos radicais, a Carta era incompatível
com a «felicidade» do País. Ela desenhava uma arquitectura
dos poderes de Estado inteiramente desequilibrada a favor do
elemento régio, em detrimento do elemento popular. Nos jor-
nais, nas ruas, nos clubes, nos cafés, nas esquinas, este reivindi-
cava a soberania de que fora esbulhado pela nova oligarquia
liberal instalada ao abrigo do rei e da Carta. Ora muita gente
respeitável achava aquela exigência do radicalismo inteiramente
razoável. Era dela que se formava um «partido popular» que ale-
gava apenas ter jurado a Carta na condição de ela vir a ser refor-
mada e sancionada por Cortes Constituintes convocadas para
o efeito. Passos Manuel e Sá da Bandeira eram os seus chefes
mais notórios. O primeiro há muito que se declarara «demo-
crata incorrigível», ou seja, «adepto intransigente da soberania
popular»º8. Como não se corrigira, não se tornara transigente.
O «partido popular», a «oposição constitucional», assumiu a
defesa do radicalismo. Mas depressa se revelou impraticável
desalojar do poder a oligarquia que D. Pedro lá deixara entroni-
zada e, sem uma maioria no Parlamento em duas legislaturas
consecutivas, não havia maneira de-reformar a Carta legalmente.
À ironia estava em que, tal como esta mesma Carta regulava as
coisas, a vitória eleitoral e a requerida maioria eram inacessíveis
à oposição. «Por mais que trabalhem os verdadeiros patriotas,
como poderão vencer nas eleições?», interrogava-se O Nacional
com justificado desânimo”. Abrigados nas disposições constitu-
cionais, que faziam do rei o árbitro da vida política portuguesa,

68 Breve Razoamento a favor da liberdade lusitana, Eaubonne, 1.1.1832.


69 O Nacional, 22.7.1836.

163
Apologia da História Política

todos os governos «fabricavam» invarivelmente as eleições, não


havendo memória de algum as ter perdido.
Eis uma suficiente razão pela qual a doutrina constitucio-
nal se converteu em motivo de antagonismo político entre a
Esquerda e a Direita liberais. Para além de ser uma outorga régia
e, por conseguinte, uma afronta à soberania popular, a Carta
instituía através do censo o chamado «país legal», que deixava
de fora a imensa maioria dos pobres e analfabetos, privados
do direito de eleger e de serem eleitos. Depois, consagrava uma
lista de prerrogativas régias que igualmente violavam a pureza
da doutrina democrática. Atribuía ao rei o «poder moderador»;
concedia-lhe a faculdade de vetar as decisões dos deputados
eleitos pela nação; conferia-lhe poderes arbitrários de convoca-
ção, prorrogação, adiamento e dissolução das Cortes; previa
a existência de uma segunda Câmara («Alta») composta por
pares hereditários de nomeação régia e sem número fixo; insti-
tuía um Conselho de Estado cujos membros vitalícios eram
igualmente indicados pelo rei; este, em suma, mandava no Esta-
do. Por coerência ideológica e por legítimo interesse político,
a Esquerda reclamava uma constituição menos monárquica,
e mais democrática. Basicamente e em essência, isto queria dizer
quatro coisas: o alargamento do corpo eleitoral e a introdução
de eleições directas; a redução dos poderes do Estado não electi-
vos; a limitação das prerrogativas régias; a clara subordinação
do executivo ao Parlamento. Enquanto o rei fosse o árbitro da
política em Portugal, a oposição não se sentaria nas cadeiras
ministeriais: era o rei que nomeava o governo, e era o governo
que fazia as eleições. Mais ainda: com a anuência régia, os go-
vernos faziam eleições sempre que lhes convinha. Quando se
viam em apuros com um Parlamento anarquizado por cisões
facciosas e desprovidos; por conseguinte, de uma maioria segu-
ra, o rei usava do poder de dissolução e, com a sua majestática
assinatura, despedia de uma penada a garbosa representação na-
cional. De seguida, a salvo de qualquer fiscalização, o governo,
dono e senhor de toda a administração, tratava de preparar as
eleições o que, na época, significava, muito cruamente, organi-
zar a fraude eleitoral. Com isso obtinha (transitoriamente) uma

164
O século XIX em perspectiva política

nova maioria «servil e obediente», disposta a «santificar todos


os erros do ministério» 70,
Apesar de lutarem contra as «tramas», os «ardis» e os «vis
manejos» do governo, os «verdadeiros patriotas» alcançaram
bons resultados nas eleições realizadas entre 1834 e 1836. Mas
por óptimos que fossem não produziam frutos e menos ainda
lhes davam o poder. O «povo» nada ganhou com a lei das in-
demnizações e nada lucrou com a lei da venda dos bens nacio-
nais; também não se distribuíram empregos suficientes porque,
alegadamente, se conservaram neles os miguelistas, enquanto
muitos «comilões» acumulavam vários vencimentos sem pudor;
finalmente, a nova oligarquia, expressivamente alcunhada de
«devorista», esbanjava os dinheiros públicos em proveito próprio,
donde resultava o défice orçamental que engordava a agiotagem
na exacta medida em que arruinava o País. Por tudo isto os bons
resultados eleitorais, em vez de acalmarem os «patriotas», exci-
taram a sua impaciência e encorajaram-nos a conquistar o poder
pela via revolucionária. Publicamente, os chefes respeitáveis
da «oposição constitucional» protestavam apego à legalidade;
nos bastidores, alternavam entre negociar e conspirar. Depois
de várias coligações e «transacções» falhadas, em 9 de Setem-
bro de 36 deixaram as bases avançar. Rebaptizado de «setem-
brista», o «partido popular» tomou o poder.
As bases eram a versão local do jacobinismo francês, em-
bora amansada pelos costumes domésticos e pelo clima político
antidemocrático da Europa pós-napoleónica. Não pediam a re-
pública mas, exigindo democracia, representavam uma con-
testação virtual do liberalismo monárquico. Compunham-nas
os militantes radicais que arengavam nos clubes, conspiravam
nas sociedades secretas, espiavam embaixadas, enxameavam as
redacções dos periódicos, subvertiam o exército e dominavam
as guardas nacionais, por meio das quais enquadravam e politi-
zavam a plebe lisboeta. Esta espécie de tropa de choque formava
a «cauda de descamisados» (O. Martins) do setembrismo, um
apêndice simultaneamente incómodo e indispensável. Incómodo

70 O Nacional, 26.7.1836.

165
Apologia da História Política

porque, insaciável de liberdades que assimilava a direitos polí-


ticos, fazia exigências «irracionais» que comprometiam a ima-
gem respeitável que os chefes queriam dar ao partido, tornando
este temido pelas pessoas de bem e obnóxio à rainha. Mas indis-
pensável porque a força do setembrismo provinha principalmen-
te da gestão da ameaça revolucionária, prometendo dominá-la
em troca do poder. Prometia, mas não podia. O setembrismo
acabaria às mãos do radicalismo que em 9-10 de Setembro de
1836 lhe oferecera o governo.
Os acontecimentos do 9-10 de Setembro confirmaram o
que em Novembro do ano anterior já se tornara patente e cons-
tituiria uma chaga permanente do regime até 1851. O exército,
espelhando as divisões políticas dos civis, estava também ele
fraccionado em «cartistas» e «setembristas». Havia portanto dois
exércitos, um liberal e outro radical, que constituíam uma reser-
va de força armada dos partidos. Em lugar de obedecer à cadeia
de comando interna e, através desta, ao governo estabelecido,
o exército estava dependente das inclinações partidárias dos ofi-
ciais que comandavam os regimentos e que em última análise
seguiam as indicações de um chefe militar ao qual se achavam
ligados por espúrios motivos de afinidade ideológica. O mare-
chal duque da Terceira foi invariavelmente o chefe político do
exército cartista. O marechal marquês de Saldanha foi até 1835
o chefe político do exército setembrista, sendo depois substi-
tuído por Sá da Bandeira, Antas e Bonfim. Até 1851, nunca
os partidos puderam dispensar os seus soldados, os seus sargen-
tos, os seus oficiais e os seus generais. Eram eles que em última
análise detinham a força e, por conseguinte, que decidiam a
política. As «frases» dos políticos feriam, mas os «tiros» dos mi-
litares é que matavam. Apoiada no seu frágil trono, D. Maria
ia-se inclinando para o lado do qual esperava que menos a in-
comodassem. Desprovida de autoridade terminante para domi-
nar as facções e arbitrar sem apelo os seus conflitos, restava-lhe
contemporizar com elas, o que, na circunstância, significava
fazer causa comum com uma ou com outra. Em Novembro de
35, cerca de duas centenas de oficiais reunidos em Alcântara
tinham obrigado D. Maria a anular o castigo com que o governo

166
O século xIx em perspectiva política

os punira por flagrante insubordinação. Em Setembro de 1836


nem foi preciso tanto para obter muito mais. Bastou ao exérci-
to recusar-se a reprimir o povo e os batalhões nacionais que
ao longo do dia 9, entre «morras» à Carta e «vivas» à Constitui-
ção de 22, foram afluindo à cidade baixa para à noite se con-
centrarem no Rossio. O Batalhão de Caçadores 5, expedido para
reprimir a sublevação popular, irmanou-se com os sediciosos
em entusiástica confraternização. Acompanhado por vários ofi-
ciais do exército, Soares Caldeira, um obscuro ex--coronel de
milícias que se oferecera para dar direcção ao movimento revo-
lucionário, pediu à rainha que mudasse o regime e demitisse
o governo. À rainha anuiu cordatamente. No dia 10 a Consti-
tuição de 1822 era proclamada Lei Fundamental do Estado,
e Passos Manuel e Sá da Bandeira entravam para o ministério.
O infausto reinado do setembrismo durou pouco. Depois
de terem conquistado o poder de Estado, os novos ministros
viram-se apanhados entre duas correntes que os empurravam
para lados opostos. À reacção saiu a campo logo a 3-5 de No-
vembro. Mas, não dispondo de força militar para impor nada
de drástico, contentou-se com ser a Carta, a par do texto consti-
tucional de 22, tomada como base de trabalho para as próximas
Cortes Constituintes. Durante os meses seguintes a Direita
optou por se abster de toda a participação política, esperando
que o isolamento do setembrismo produzisse a sua queda.
Como esta não se verificasse, Saldanha e Terceira empreende-
ram em Julho de 1837 a chamada «revolta dos marechais», que
o governo dominou com relativa facilidade. À Esquerda, as
hostes radicais revelaram-se muito mais difíceis de contentar.
Tinha-se-lhes prometido empregos, existência política e um
futuro, e o radicalismo queria o futuro no presente. No entanto,
esse futuro tardava. A Constituição de 4 de Abril de 1838 con-
sagrava a nação como fonte única de soberania, mas omitia todas
as consequências que daí deveriam brotar e, pelo contrário, dei-
xava o básico como estava na Carta. Quer dizer que formalmen-
te limitava os poderes do rei, mas em substância os mantinha
idênticos. O que significava que o poder legislativo da represen-
tação nacional seguiria sendo um poder de Estado subalterno

167
Apologia da História Política

e sujeito à vontade largamente arbitrária do monarca. Ao mesmo


tempo que o setembrismo exibia brandura nas reformas, Passos
Manuel proclamava que, tendo aceite dirigir uma revolução ge-
nerosa e clemente, não haveria «persigangas».
A moderação não serviu para aliciar a Direita e excitou a
ira dos radicais, cujos chefes, respeitáveis e moderados, se tinham
afinal posto à frente da revolução para precisamente a liquidar.
Em Março de 38, estando a preparar-se uma remodelação mi-
nisterial destinada a remover o que do radicalismo restava no
governo (José Alexandre Campos e Sá da Bandeira), as guardas
nacionais revoltaram-se e acabaram esmagadas pelo exército
no Rossio, às ordens do conde de Bonfim e do visconde de Re-
guengo. Sá da Bandeira, que assistia à cena, foi agredido à baione-
ta por populares. Com este episódio sangrento expirou o reinado
do setembrismo que, tendo apanhado o poder da rua, sem ela
não metia medo e nada era. Com ela, também não: apenas metia
medo. O enterro do setembrismo foi oficializado em 26 de No-
vembro de 1839 com a ascensão do ministério Bonfim-Cabral-
-Rodrigo que a rainha, ofendendo as praxes parlamentares,
nomeou durante o encerramento das Cortes. Antes da próxi-
ma restauração pura e simples da Carta Constitucional (Janeiro
de 42) vinha aí, ainda, o breve e atribulado reinado da «Ordem»,
uma amálgama centrista que significou a derradeira tentativa,
ainda mais precária do que o setembrismo, para conter a revo-
lução sem a vencer. No Parlamento, Almeida Garrett explicou
demoradamente que ser «ordeiro» significava «cooperar», denun-
ciando que apenas não queriam cooperar os «anónimos conspi-
radores» que viviam «covardemente agachados» em «escondidas
águas-furtadas»/!. Garrett, que pretendia que os radicais coope-
rassem com a elevação do censo eleitoral, demonstrou que esta
medida proposta pelos «ordeiros» era um bem para o País, e
de modo nenhum dirigida a «tirar os direitos ao Povo» excluin-
do-o da «urna». O «povo» entendia a coisa de maneira muito
diferente. Saído dos «obscuros sótãos» em que o tribuno o su-
punha escondido protestou nas ruas e nos clubes, ameaçou nos

71 Discurso de 8.2.1840, in Obras Completas, Lisboa, 1899, t. XXIII.

168
O século XIX em perspectiva política

jornais e instigou motins. Em Agosto de 1840 organizou tu-


multos em Lisboa e um pronunciamento em Castelo Branco.
Mas o radicalismo, e com ele o setembrismo, tinham mor-
rido, de facto, em Março de 38. Ao que agora se assistia era
a um fervilhamento revolucionário que já nada justificava de-
pois que fora jurada a Constituição de 1838. Costa Cabral,
um ex-radical desiludido com a falta de convicção revolucio-
nária dos revolucionários portugueses, entendeu chegada a hora
de pôr um ponto final na revolução. A ordem que tinha em
mente era uma ordem radicalmente diversa da que tivera Rodrigo
por mentor e Garrett por corifeu. Era a ordem como a entendiam
os «doutrinários» franceses e como depois a impuseram os «mo-
derados» espanhóis. Começava na «doutrina» e acabava na prá-
tica. À primeira proscrevia o poder constituinte da nação e
colocava limites à soberania popular; a segunda proscrevia toda
a Esquerda do poder. Não ensinara a experiência que atrás de
Rodrigo vinha Passos, atrás de Passos vinha Campos, e atrás
de Campos vinham «os machados do arsenal»? O setembrismo
procurara moderar a revolução; a ordem quisera suprimi-la
a bem; o cabralismo decidiu que havia de a vencer a mal e de
a manter vencida.
Liquidar de vez o estado revolucionário implicava gover-
nar contra toda a Esquerda respeitável atrás da qual se abriga-
vam o «sr. Caldeira», o «sr. França» e «os machados do arsenal»?2.
O radicalismo não era um pior inimigo do que as forças dispo-
níveis para negociar e pactuar com ele. Atrás da Esquerda, mesmo
da Esquerda moderada, monárquica, liberal, amante da ordem
e veneradora das hierarquias, vinha sempre, infalivelmente, a de-
sordem, a insubordinação, a anarquia, numa palavra, a revolução.
Costa Cabral apostou que quebraria este encadeamento fatídico.
A sua política era a do «juste milieu». Mas este meio termo não
se aferia relativamente a um centro geométrico no interior do
leque partidário liberal e monárquico. Era um centro equidistan-
te dos extremos exteriores ao regime monárquico-constitucional,

72 Discurso de 5.2.1839, in D. José de Lacerda, Costa Cabral. Apontamentos


Históricos, Lisboa, 1844, vol. II, p. 196.

169
Apologia da História Política

a revolução e a reacção, o radicalismo e o miguelismo. Depois


de Évora-Monte o último já não assustava ninguém. O primeiro
encarnava a «hidra revolucionária» e constituía o verdadeiro foco
desestabilizador do regime. Por conseguinte, o «juste milieu»
de Costa Cabral definia-se como liberalismo conservador e situa-
va-se na extrema-direita do leque político liberal. Dadas estas
premissas, o cabralismo configurava-se, não como consenso, não
como síntese, mas como exclusão de todos os que não aderis-
sem à pureza da «doutrina». O essencial do seu programa con-
sistia em restabelecer a autoridade do Estado e fundar a ordem
política e social necessária ao progresso material do País.
Isso não se faria sem que fosse liquidada a causa, a origem,
o pretexto de todas as pretensões revolucionárias. Ora a Consti-
tuição de 1838 era ela própria uma constituição revolucionária,
porque «filha» daquele poder constituinte sagrado em 1789 em
nome do qual a «nação» se arrogava o libérrimo direito de dar
a Lei Fundamental à sociedade, atropelando os costumes, os
direitos, os vínculos preexistentes e remodelando arbitraria-
mente o edifício social com a mesma liberdade com que Deus
fizera a obra da Criação. Guizot qualificou esse poder de «extra-
ordinário» e «inconstitucional» e Royer-Collard equiparou-o
à barbárie das «conquistas», sempre conducente, por uma fatali-
dade inelutável, ao crime da «usurpação». Segundo a doutrina
cartista, um tal poder, possuído da desmedida soberba de ser
o verdadeiro soberano, não tinha existência reconhecida”?2. Até
mesmo o poder constituinte dos reis se esgotava, e terminava,
no acto e no momento da outorga da Carta. Jurada esta, nenhu-
ma potência mundana, quer fosse o rei quer fosse o povo, tinha
o direito de tocar na Constituição — a não ser segundo as regras
e preceitos para esse efeito estatuídos na própria Carta. Tudo
o que beliscasse este estrito mandamento era «revolução», era

73 A.G.P Barante, La vie politique de mr. Royer-Collard, Paris, 1863, 2.2


ed., vol. IL, pp. 458-525; e François Guizot, France Under Louis-Philippe (from
1841 to 1847), Londres, 1865, pp. 24-26.
Sobre a teoria cartista da soberania, ver M. Fátima Bonifácio, «Costa Cabral no
contexto do liberalismo doutrinário», Análise Social, n.º 123/4, 1993, pp. 1043-91.

170
O século XIX em perspectiva política

«usurpação». Ao contrário do que Herculano pretendeu, o car-


tismo não morreu em 184274. Morreu sim no momento em que
os próprios cartistas, na sessão parlamentar de 9 de Fevereiro
de 1849, admitiram à discussão uma proposta de revisão do
sistema eleitoral que violava o art. 63.º da Carta Constitucional,
deste modo ressuscitando o poder constituinte que esta preci-
samente banira/>.
Apoiada na Constituição de 1838 — «uma mistura informe
e contraditória de disposições ora conservativas ora desorgani-
zadoras»76 — a monarquia portuguesa, «filha» da volúvel vonta-
de popular e não do direito hereditário dos reis, assentava em
bases demasiado frágeis para sustentar um governo forte. Em
Janeiro de 1842, Costa Cabral dirigiu a partir do Porto um pro-
nunciamento militar à frente do qual aparecia o marechal duque
da Terceira, e em 10 de Fevereiro um decreto régio repunha
em vigor a Carta Constitucional de 1826. A 20, Cabral torna-
va-se o chefe de um governo apenas nominalmente presidido
por Terceira. Não haveria também nisto «usurpação» ou «con-
quista»? «A Carta — respondeu — um decreto a suspendeu, outro
decreto a deve inaugurar». À «restauração», ao contrário de um
«acto anárquico», limitara-se a restaurar a ordem legítima. «Se
obrássemos o contrário, [...] cairíamos no erro e no crime em
que caíram os homens de Setembro.»??
Cabral governou firmado num trono cujos poderes a Carta
reforçava e que era ainda, no dizer de Oliveira Martins, a única
instituição que sobrevivera com algum prestígio ao terramoto
revolucionário. Dispunha além disso do apoio mais substantivo
do exército, sofrivelmente disciplinado pelo marechal duque da
Terceira, enquanto o marquês de Fronteira, nomeado governa-
dor civil de Lisboa, garantia o sossego da capital com os batalhões

74 Introdução de 1867 à «Voz do profeta», in Opúsculos, Lisboa, Liv. Ber-


trand, 1983, t. 1, pp. 33-47.
75 DCD, sessões de 9, 10, 12 e 13 de Fevereiro de 1849.
76 Manifesto da junta provisória aos portugueses, Porto, 27.1.1842, cit. por
D. José de Lacerta, op. cit., p. 380.
77 Extraído do órgão da restauração cartista no Porto, citado por D. José
de Lacerda, op. cit., p. 371.

Rá]
Apologia da História Política

naciónais do seu comando e com uma polícia secreta que for-


mava, em conjunto com a guarda municipal chefiada pelo irmão
D. Carlos, um intrumento muito prestável de repressão. A rai-
nha converteu-se completamente ao novo «homem forte» que
a poupava às impertinências democráticas e parecia finalmente
dirigir a nau do Estado para porto seguro. Condecorou-o, no-
meou-o conselheiro de Estado, elevou-o a conde de Tomar e não
escondia de ninguém a predilecção pelo seu ministro. Enquan-
to esteve no governo, Costa Cabral foi dando execução ao que
era um típico programa «doutrinário»: centralizou o poder, pu-
blicou um código administrativo e um código judicial, resta-
beleceu as relações com Roma, ocupou-se da instrução pública,
converteu a dívida externa, consolidou a dívida interna e conce-
beu um vasto plano de obras públicas. Depois de ordem pública
e estabilidade política, o dinheiro era a sua primeiríssima neces-
sidade. Decretou reformas fiscais e pediu-o emprestado às com-
panhias a quem concedeu a construção de estradas. O plano
sumiu-se entre os malabarismos financeiros das companhias e
a irreprimível inclinação perdulária do governo. No final de 45,
a indisfarçável bancarrota do Estado e a declarada insolvência
das companhias provocaram a ruína do «sistema», arrastando
o cabralismo na sua queda. Em Abril de 46, a Maria da Fonte
derrubou o que já não passava de uma sombra do «colosso» que
parecera o cabralismo.
Um «colosso» que na base sempre fora vulnerável. No exér-
cito, onde não tinha sido soldada a fractura entre cartistas e
radicais, não se podia inteiramente confiar. No «partido», ainda
menos. Às intrigas e rivalidades semearam cisões facciosas que,
mantidas embora privadas, nem por isso deixavam de minar a
coesão da «maioria»?8. A tentativa de governamentalizar os juí-
zes, isto é, de os fidelizar ao «partido», realizada através do decre-
to de 1 de Agosto de 1844, semeou forte descontentamento na
magistratura. À elevação do irmão José Bernardo a ministro da

78 Carta de Moura Coutinho para B. M. Dias de Sousa, 7.7.47, em que se


faz o historial das divergências que desde 1843 minavam o partido cabralista. ANTT,
Arquivo da Família Costa Cabral, Arquivo B, II (docs. diversos), m. 29.

172
O século xIX em perspectiva política

Justiça, em 1845, foi vista como um descarado nepotismo e


nunca mais foi perdoada. Nas eleições desse ano Cabral substi-
tuiu nada menos que dois terços da Câmara, dando a pública
medida das defecções entretanto verificadas no seu campo.
A oposição, essa renovou-se e aumentou. Onde dantes apenas
existia o setembrismo com a sua «cauda de descamisados», havia
agora, além disso, figuras gradas do cartismo de 34 e conspícuos
miguelistas, todos unidos contra o governo na «Coalizão» for-
mada em Março de 42, e contra o regime: Cabral acabou por
se identificar com este e por isso só fora deste deixou alterna-
tiva ao cabralismo.
Em 4 de Fevereiro de 1844 a oposição revoltou-se contra
a «facção traidora e perjura»??. Invocou que a rainha estava «coac-
ta» e exigiu o cumprimento do decreto de 10 de Fevereiro de
1842, pelo qual D. Maria repusera em vigor a Carta Constitu-
cional com a promessa de convocar Cortes dotadas de poderes
(constituintes) para procederem à sua reforma. O pronuncia-
mento militar, encabeçado por Bonfim e José Estêvão, acabou
vencido em Almeida, em 8 de Abril. Ao abrigo da suspensão
das garantias e da liberdade de imprensa, o governo prendeu
dois deputados e um número indeterminado de suspeitos cul-
pados ou inocentes e deportou uns poucos para a Madeira.
Quando depois se apresentou a pedir à Câmara o bill de indem-
nidade, a oposição atacou em força. Passos Manuel falou durante
144 páginas para dizer que achava a revolta justificada pelas
nobres intenções dos seus fautores, apenas fanatizados pelo irre-
primível desejo de fazerem a Pátria feliz. Para Cabral, a felicida-
de da Pátria fazia-se com o respeito pela Carta, que «só pode
ser alterada pelos meios que ela marca»80. Desconhecia o que
fossem as «promessas reais» alegadamente contidas no decreto
de 10 de Fevereiro. Uma vez que a Carta, em conformidade
com a «doutrina», declarava o rei «irresponsável», as tais pro-
messas não passavam de «actos ministeriais» feridos de flagrante
ilegalidade. A revolta não se achava pois legitimada e os seus

79 Manifesto dos sublevados, cit. por D. José de Lacerda, op. cit., p. 562.
80 Discurso de 18.10.1844, transcrito por D. José de Lacerda, op. cit., p. 617.

173
Apologia da História Política

autores tinham de ser punidos pelo «crime» cometido. Apon-


taram-lhe «arbitrariedades», «opressões», «desvios dos princí-
pios». Cabral respondeu que em circunstâncias extraordinárias
usara de poderes extraordinários concedidos pelo Parlamento,
porque era «necessário mostrar uma vez rigor e fazer ver a quem
se revolta que não tem a esperar generosidade nem perdão, mas
sim castigo». E acrescentou: «Ponhamos o sentimentalismo de
parte e tomemos o lugar que nos compete»8l.
Era uma linguagem nunca ouvida num País em que, em
nome da condescendência devida à fraqueza humana (Passos),
ou em nome do radical cepticismo a respeito da genuinidade
das convicções humanas (Rodrigo), ou em nome ainda da uni-
versal dúvida a respeito da legitimidade do poder (Taipa), todos
se tinham habituado a esperar perdão e tudo acabava bran-
queado pelo «véu do esquecimento». «Em política, em Portu-
gal, estamos todos desacreditados», declarara um dia o conde da
Taipa no Parlamento, sem que ninguém se atrevesse a desdizê-
-lo82, Se nem: todos se tinham revoltado, todos tinham pelo
menos conspirado. Quem se atrevia a atirar pedras? Mas Cabral
tinha resolvido acabar com o «direito de desobediência ao go-
verno». «Não há — disse — não pode haver desculpa em matérias
tais»83. Dados os costumes domésticos, isto foi tomado por
ditadura.
Cabral podia gabar-se de governar constitucionalmente.
Em 1845 completou uma legislatura, proeza até ali não igua-
lada. Mas nas eleições de Agosto deste ano, não apenas subs-
tituiu a grande maioria dos seus candidatos, como fechou ainda
mais a entrada à oposição no Parlamento, deixando-a reduzida
a meia-dúzia de deputados. Na realidade, tanto «exclusivismo»
já não revelava força, mas fraqueza. Nos Pares, e apesar da forna-
da de uma quinzena deles que D. Maria lhe concedera em 42,
a maioria ministerial era magra ou mesmo incerta. De resto, e
como se provaria em 49-50, a aristocracia, com raras excepções,

81 Discurso de 18. 10.1844, transcrito por D. José de Lacerda, op. cit., p. 642.
82 DCD, 1.6.1840, p. 80.
83 Discurso de 18.10.1 844, transcrito por D. José de Lacerda, op. cit., p. 615.

174
O século XIX em perspectiva política

odiava o plebeu içado aos píncaros do poder de Estado e coberto


com o favor da rainha. Quanto à oposição, coligada e radical,
esbravejava na Coalizão, na Revolução de Setembro e no Patrio-
ta, mas sem produzir estragos irreparáveis. À real, a invencível
oposição de Costa Cabral era o défice do orçamento de Estado.
Em Janeiro de 46, a recusa formal da Companhia Confiança
em emprestar mais dinheiro tornou claro que a falência finan-
ceira do governo estava iminente. Depois, a Maria da Fonte
revelou a sua falência política: o exército não se prestou a sufo-
car o levantamento camponês, e o duque da Terceira, ministro
da Guerra e comandante da 1.2 divisão militar, contou-se entre
os que aconselharam a rainha a demitir o ministério (20.5 46).
Palmela formou um governo que, através de sucessivas remode-
lações, acabou dominado pela Esquerda e, através desta, pelos
radicais. Dissolvida a Câmara eleita em 45, convocaram-se pelo
decreto de 27 de Julho, com flagrante inconstitucionalidade,
eleições directas para Cortes extraordinárias munidas de poderes
constituintes. Vinha aí, finalmente, o cumprimento das famosas
«promessas reais» contidas no decreto de 10 de Fevereiro de
1842. A começar pelo próprio Palmela, toda a gente percebeu
que vinha aí, de novo, a revolução. Palmela reconheceu-se inca-
paz de se lhe opor, e Saldanha, regressado de Viena de Áustria
em 23 de Julho, ofereceu-se para salvar a dinastia, o trono e a
Carta — mas não para restaurar os «Cabrais».
Na noite de 5 para 6 de Outubro de 1846 a rainha, repe-
tindo o procedimento pouco constitucional de 26 de Novembro
de 1839, despediu Palmela e nomeou Saldanha para a presidência
de um novo governo. O caso foi interpretado como um golpe
de Estado palaciano destinado a preparar, em tempo oportuno,
o retorno dos «Cabrais», e supôs-se, erradamente, que Saldanha
se prestaria a abrir-lhes o caminho de regresso ao poder. Nada
era mais estranho às intenções do duque, que logo numa «Procla-
mação» publicada no dia 7 se declarou solidário com os nobres
ideais da «revolução nacional do Minho», apenas condenando
os excessos a que tinha dado lugar. Simplesmente, depois de
ter passado o Verão à procura de um «centro» sobre o qual pu-
desse estabelecer o seu poder autónomo, não encontrou tal

175
Apologia da História Política

coisa. Os campos encontravam-se irremediavelmente extrema-


dos, e ao centro havia nada. À esquerda, 4 Coalizão estava cola-
da aos radicais; e à Direita, o que havia era o cabralismo. Para
conter a revolução e salvar a dinastia, o trono e a Carta, Salda-
nha foi forçado a aliar-se provisoriamente com este último.
A 9 de Outubro de 46 formou-se no Porto a «Junta Provi-
sória do Supremo Governo do Reino». Outras juntas se forma-
ram em várias cidades do País, todas elas se proclamando sob
a autoridade da junta do Porto e em rebelião aberta contra o
governo de Lisboa. A 27 de Outubro foi suspensa a legalidade
constitucional, e a 7 de Novembro Saldanha saiu de Lisboa com
o exército. Começava a chamada guerra civil da Patuleia, termi-
nada no final de Junho de 47 com a intervenção estrangeira.
Dessa guerra apenas cabe convocar aqui a moral da história.
A fim de reconquistar o poder donde fora expulsa pela
«emboscada» do 5-6 de Outubro de 46, a Esquerda liberal es-
tendeu as mãos aos radicais, parecendo ter estabelecido com
estes uma aliança para ser levada às últimas consequências. Mas
os chefes liberais, que temiam a revolução e não a desejavam,
estavam decididos a impedir que lá se chegasse. Em Portugal,
a Esquerda, que apenas conseguia chegar ao poder por meios
revolucionários, via-se inavariavelmente confrontada com o
mesmo dilema: travar a revolução depois de a ter despertado,
como um suicida arrependido que acaba por chamar uma am-
bulância. Graças à «traição dos liberais», 1848 não se verificou
em Portugal.
Militarmente, tudo o que a junta do Porto pretendia — ex-
cluída a sua parte radical — consistia em adquirir posições no
terreno que lhe permitissem negociar com Lisboa numa relação
de forças favorável. Em essência, não queria vencer nem ser ven-
cida: as suas ambições políticas cingiam-se a obter uma presença
sólida e autónoma no poder. Alcançado isto, os radicais seriam
dispensados por supérfluos e incómodos. Saldanha, pelo seu
lado, explorou a duplicidade da junta em proveito próprio. Do
princípio ao fim, apostou em atrair a sua parte moderada, sepa-
rando-a dos radicais e deixando estes isolados. Logo que o pro-
jecto vingasse, edificaria o poder sobre um centro amplo a partir

176
O século xIx em perspectiva política

do qual reduziria os «Cabrais» à nulidade. Liquidados os extre-


mos à Esquerda e à Direita, os homens «razoáveis» e «tolerantes»
de todas as opiniões poderiam finalmente unir-se na devoção
ao «interesse nacional».
O equívoco das alianças em ambos os campos explica o que
na guerra da Patuleia pareceria inexplicável: a pressa em negociar
um acordo, a urgência de precipitar uma intervenção estrangeira,
a condução errática das operações militares, a notória falta de
vontade, de parte a parte, de combater e de vencer. Saldanha
necessitava de poupar a junta: caso a esmagasse, a vitória seria
confiscada pelos fiéis do conde de Tomar, e ele apeado do poder.
À junta necessitava de poupar Saldanha: a derrota do governo
arrastaria a vitória da revolução e o triunfo dos radicais. Mas a
semelhança das suas posições respectivas termina aqui. Saldanha
pretendia construir um centro hegemonizado pela Direita;
a Junta queria-o hegemonizado pela Esquerda. Por isso, embora
não vencendo, ninguém se dava por vencido. Com os olhos pos-
tos na intervenção estrangeira, as duas partes acabaram por esta-
belecer o mais completo impasse militar, fiadas, e com razão,
em que a defesa dos interesses britânicos na Península e na Eu-
ropa obrigariam Palmerston a ditar uma paz sem vencedores
nem vencidos. Ao abrigo da Convenção de Gramido (29.6.47),
e com os radicais forçados ao sossego, a Esquerda preparou-se
para disputar eleições e reingressar na vida política. Com os «Ca-
brais» mantidos na sombra, Saldanha continuou na presidência
do governo e persistiu em realizar os seus sonhos de «fusão».
Obrigados pelo «Protocolo de Londres», que vigorava para
além da intervenção armada até ao restabelecimento da norma-
lidade constitucional, os «Cabrais» saíram da boca de cena mas,
no dizer de observadores contemporâneos, o País continuou go-
vernado pelo seu «poder oculto». Os instrumentos desse «poder
oculto» eram variados. À diplomacia estrangeira desunira-se des-
de o fim da guerra, e as cortes de Madrid e Paris, tendo sacudido
a tutela britânica, apadrinhavam ostensivamente esse «poder
oculto» que, segundo entendiam, era o guardião da monarquia
em Portugal e, por extensão, na Península e na Europa. Outro
instrumento residia no próprio governo, inteiramente falho de

7
Apologia da História Política

força própria e desprovido, por conseguinte, de ponto de apoio


contra os «Cabrais». A validação dos recenseamentos organizados
em 1845 constituía uma prática garantia de que os colégios elei-
torais sairiam largamente favoráveis ao conde de Tomar cujo par-
tido, depois de ter ganho as eleições municipais de Lisboa de
Outubro de 47, averbou uma vitória estrondosa nas eleições le-
gislativas de Dezembro. Os batalhões nacionais, incluindo os
que tinham sido criados durante a guerra com carácter excep-
cional e transitório, foram mantidos e continuaram confiados
ao marquês de Fronteira, cujo irmão conservou igualmente o
comando da guarda municipal. Quanto ao exército, e apesar da
atitude vacilante do duque da Terceira, por ora seguia sendo
maioritariamente cartista84. Por último, o que na circunstân-
cia era decisivo, a rainha estava plenamente satisfeita com uma
situação dominada pelo «poder oculto» dos «Cabrais». Enquanto
a revolução assustasse na Europa e Narváez mandasse em Espa-
nha, o conde de Tomar tinha o tempo a seu favor. No entanto,
por uma ironia da história, regressou já fora dele: não regres-
saria antes de Junho de 1849.
Mas nem o Costa Cabral nem o cabralismo que sobrevive-
ram à Patuleia e ao Protocolo de Londres de 21 de Maio (incluí-
do na Convenção de Gramido) eram os mesmos de antigamente.
O partido cindira-se irremediavelmente logo em 19-20 de Maio
de 1846, entre os que defendiam que se deveria propor à rai-
nha um novo ministério saído da maioria (cabralista) da Câmara
na altura existente, e os que se deram por vencidos pelo terramoto
da Maria da Fonte. Depois, durante o exílio dos chefes combi-
nado com a incerteza a respeito do futuro, o partido mergu-
lhou em guerrilhas pessoais de invulgar truculência que a ruptura
entre os dois irmãos, ao criar dois pólos de fidelidade concor-
rentes entre si, ainda mais acirrou*>. José Bernardo regressou
em 17 de Abril de 1847, mas o conde de Tomar só tornou à

84 Apenas cerca de um terço do exército regular se tinha passado para o lado


da junta do Porto. Ver M. Fátima Bonifácio, História da Guerra Civil da Patuleia,
1846-47, Lisboa, 1993.
85 Ampla e minuciosamente documentadas na correspondência particular
de Costa Cabral conservada no Arquivo da Família Costa Cabral, ANTT.

178
O século xIx em perspectiva política

pátria em 28 de Agosto. O primeiro transformara-se entretanto


no real chefe do conservadorismo de extrema-direita, uma nova
espécie de «irracionais» que tinham muito em comum com os
seus inimigos do extremo oposto: o fanatismo faccioso, a viru-
lência verbal, a paranóia persecutória, a demagogia e o populis-
mo. Era uma extrema-direita plebeia, nacionalista, xenófoba e
não menos sequiosa, à sua maneira, de «movimento». O conde
não ignorava que o irmão, mais tarde ou mais cedo, lhe disputaria
o poder.
Durante o mês de Fevereiro de 48 rebentara e triunfara a
revolução em Paris, em Praga distribuíam-se panfletos de apoio
à sublevação italiana, a Alemanha era varrida por uma onda
de distúrbios revolucionários. Durante o mês de Março, a agi-
tação revolucionária alastrou e cresceu de intensidade cul-
minando, real e simbolicamente, na demissão de Metternich
provocada pela insurreição de Viena. No país vizinho, Narváez
suspende as Cortes para impor a ordem. Em Portugal, onde o
radicalismo acusava o efeito tonificante dos acontecimentos em
França, debatia-se nos jornais e no Parlamento a melhor ma-
neira de opor um «dique» à revolução. A opinião moderada
advogava concessões ao espírito do século. Saldanha concorda-
va com ela e Tomar pendia para Saldanha. A partir de 1 de Abril,
António Bernardo e José Bernardo passam a guerrear-se publi-
ca e oficialmente nas páginas, respectivamente, de O Popular
e de O Estandarte. Com a Direita polarizada pelo irmão, Tomar
inclinou-se a cooperar com Saldanha. Com os «coligados» pre-
sos ao radicalismo, o duque aproximou-se do conde. O conde
de Tomar conservava influência nos meios conservadores a
quem repugnava a estridência vulgar de O Estandarte, possuía
votos em ambas as Câmaras que Saldanha não podia dispen-
sar, e contava com a lealdade dos irmãos Fronteira, que man-
davam na guarda municipal e nos batalhões nacionais. Com
o apoio tácito do conde, o duque mantinha cativa a presidên-
cia do ministério, mas não conseguia governar. À aliança cir-
cunstancial de dois homens que a força das coisas condenava
à colisão estabelecera uma espécie de empate que mantinha o
governo paralisado. À medida que o tempo ia passando o seu

179
Apologia da História Política

presidente, a pretexto de doença ou sem pretexto algum, retira-


va-se para Sintra deixando os «negócios públicos» ao abandono.
Em 19 de Junho de 49 a rainha desempatou. Aceitou a demis-
são de Saldanha e nomeou o conde de Tomar presidente de um
novo ministério. Era ela, agora como dantes, a sua principal
fonte de poder.
Pouco depois de uma trégua fugaz, O Estandarte declarou-
-se formalmente na oposição (Agosto de 49). O «exclusivismo»
pertencia agora a José Bernardo, e era contra ele que Cabral
tinha de governar. Começou por anunciar uma amnistia para
todas as ofensas políticas, uma medida que, embora geralmente
aplaudida, não bastou para remover a muralha de ódio que
na rua, nos jornais e nas Câmaras se erguia contra ele. Depois
de 1849, o «ano da caleche», em 1850 a oposição fustigou-o,
na imprensa e nos Pares, com uma campanha de acusações de
uma violência sem precedentes. O País inteiro, com a pura inér-
cia, opunha ao governo uma resistência invencível. Como que
traumatizadas pela memória da Maria da Fonte, as autoridades
locais toleravam a desobediência às leis e a fuga ao fisco%6.
À ruptura das relações com o Banco de Portugal, onde ponti-
ficava José Bernardo da Silva Cabral, agravou a asfixia finan-
ceira do governo, engrossando o descontentamento de todos
os que, militares ou civis, dependiam de salários do Estado para
viver. Por último, velhos amigos e antigos partidários evitavam
agora o epíteto de «cabralistas». Ninguém se queria comprome-
ter com uma situação que se pressentia condenada. No fundo,
todos julgavam o conde liquidado e temiam ser arrastados na
sua quedas”.
Foi quando já estava literalmente cercado — pela resistência
passiva do País, pela desmoralização das autoridades, pelo aban-
dono dos antigos partidários, pelo desânimo dos amigos, pelo

86 Conforme os relatórios que o marquês de Fronteira recebia da polícia


e dos governadores civis, e remetidos ao ministro do Reino. ANT'T, Arquivo Cen-
tral das Secretarias de Estado do Ministério do Reino.
87 Fenómeno amplamente documentado na correspondência particular de
Costa Cabral, Arquivo da Família Costa Cabral, ANTT.

180
O século XIX em perspectiva política

fogo cruzado das facções, pela sedição dos militares, pela opo-
sição do Banco de Lisboa, pela guerra de O Estandarte, pela ronda
dos escândalos difamantes — que o conde de Tomar empreendeu
a luta frontal contra Saldanha que, contrariando as promessas
de amparo feitas em Junho de 49, o atacara nos Pares e andava
a espalhar a cizânia no exército. Demitiu o duque sucessiva-
mente de conselheiro de Estado, de vogal do Supremo Tribunal
de Justiça Militar e de ajudante-de-campo de D. Fernando. Salda-
nha esperou que a partida de Narváez, em Janeiro de 51, dissipas-
se a ameaça de uma intervenção espanhola, e em Abril decidiu
remover Costa Cabral pela força. No dia 7 saiu de Lisboa acom-
panhado do filho e dos ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se para
Sintra e Mafra, por onde decidira iniciar o pronunciamento.
O aparecimento em campo do rei D. Fernando retardou as
adesões prometidas. Mas o próprio D. Fernando depressa re-
conheceu que a vitória de Saldanha, mais tarde ou mais cedo,
era inelutável. Durante a sua digressão forçada pela província,
o rei registou a frieza da população, observou o descontenta-
mento de funcionários e notáveis, e verificou a indisciplina da
tropa que ele próprio comandava. Convenceu-se de que o
conde de Tomar era insustentável e em 26 de Abril, com o pro-
nunciamento já triunfante no Porto, escreveu a D. Maria que
«toda esta família» (dos «Cabrais») deveria ser «banida do País»,
recomendando-lhe «instantemente» que procedesse com urgên-
cia à organização de um novo ministério88. Saldanha termina-
ra vitorioso, mas a Regeneração ainda não podia começar.

88 Carta de D. Fernando para D. Maria, 26.4.51, ANTT, Cartório da Casa


Real.

181
HI

1851-1890: a separação das águas na «Regeneração»

A guerra civil da Patuleia, tendo terminado sem vencedo-


res nem vencidos nítidos, nada resolvera definitivamente. Sob
mais de um aspecto se apresentavam, no período a seguir, fla-
grantes semelhanças com a disposição das forças políticas no
Outono de 46: ao centro não havia nada. José Bernardo da
Silva Cabral, tendo suplantado o irmão, tornara-se o verda-
deiro chefe do ultraconservadorismo e polarizava a direita car-
tista, roubando espaço de manobra ao conde de Tomar, que
por isso se via forçado à colaboração com Saldanha. À esquerda,
a Patuleia, prolongando a aliança da guerra civil, permanecia,
apesar de rebaptizada de «Partido Nacional», firmemente an-
corada ao radicalismo e, portanto, indisponível para cooperar
com Saldanha. Este estado de coisas era impossível de alterar
enquanto a extrema-direita dominasse a situação política. Quan-
do o duque em 1850 rompeu finalmente a aliança circunstan-
cial com o conde, era no exército que tinha de se apoiar para
vencer o rival se não quisesse, como não queria, ficar refém de
uma aliança partidária com a esquerda.
Costa Cabral entrara para o governo em Junho de 1849
chamado por D. Maria. Mas o «doutrinarismo» do conde de
Tomar, se bem que já não fosse puro e duro como outrora,
tornara-se anacrónico. O conde de Tomar representava ainda
a luta contra a revolução quando na Europa ela já fora derro-
tada. Em Portugal, de resto, a «Primavera dos Povos» não dera
mais do que a caricata «revolta das hidras», que o governo em

* Uma primeira versão desta terceira parte do presente ensaio circulou como
working paper num seminário de História de Portugal realizado no 1.C.S. em
Fevereiro de 1997.

182
O século xIX em perspectiva política

pouco tempo e com meia-dúzia de prisões neutralizou. Passara


o medo da anarquia revolucionária, o pavor da subversão social,
e passara também, por conseguinte, a hora de Cabral. O homem
tornou-se dispensável e, com a excepção decisiva da rainha, pas-
sou a ser visto por toda a gente como um estorvo à pacificação
da política portuguesa. «Tenho visto homens», dizia Carlos
Bento nas Cortes, em Janeiro de 50, «tornarem-se impossíveis
à força de serem indispensáveis»8?: Costa Cabral convertera-
-se, ele próprio, no pomo de todas as discórdias. Por isso a sua
remoção suscitou um entusiasmo generalizado pela «reconci-
liação dos partidos» e mesmo pela sua «fusão» num amplo bloco
central «progressista» inteiramente votado a regenerar o País.
Amputados os extremos pela espada de Saldanha, nenhum obs-
táculo parecia dever erguer-se contra tão generoso propósito.
E a própria natureza exclusivamente militar e suprapartidária
do pronunciamento devia fazer supor que o interesse pátrio, e não
o egoísmo partidário, seria daí em diante o único critério político
e governativo.
Não foi um pronunciamento inteiramente igual aos outros
a que já se assistira em Portugal. Desta vez, e pela primeira vez,
os civis não seriam convidados a participar. Em momento algum
do pronunciamento se verificou a mistura de paisanos armados
com tropas regulares?º, e a onda de adesões de oficiais superiores,
embora retardada, foi inequivocamente um movimento de res-
posta ao apelo do chefe militar, e não um sinal de obediência
ao líder partidário. A experiência mostrara que a intromissão
de civis contribuía para manter e reforçar as divisões políticas
dentro do exército, minando a disciplina militar e impedindo
o estabelecimento de uma cadeia de comando hierárquico unifi-
cado. A obediência no interior do exército não podia continuar
dividida entre duas lealdades contraditórias, a hierarquia interna
por um lado, e as facções políticas externas pelo outro: impunha-
-se acabar com a existência de dois exércitos, um cartista e outro

89 DCD, 21.1.1850, p. 78.


90 A. L. de Sousa Henriques Secco, Memórias do tempo passado e presente
para lição dos vindouros, 2 vols., Coimbra, 1880-89, p. 295, II, p. 319, Ile nota 4)
pp. 319-20, II.

183
Apologia da História Política

setembrista-radical. O «Partido Nacional» foi deixado de fora,


e os serviços de José Bernardo foram também dispensados. Sal-
danha queria ouvir do exército, e só do exército, um grito unísso-
no em seu favor. Apoiado num exército unificado e nada devendo
aos políticos, estaria em condições de ditar o destino do País.
O alto pedestal da independência suprapartidária com que so-
nhara desde o Verão de 1846 parecia estar aí.
Mas não estava. Cálculos errados e adesões falhadas ou tar-
dias impediram Saldanha de vencer inteiramente só. A luz verde
para a sublevação do Porto acabou por ser dada pelos chefes
do «Partido Nacional» e pelo chefe do partido de O Estandarte.
José Bernardo não retiraria daí nenhum benefício: tornara-se
demasiado obnóxio ao país para que Saldanha o pudesse con-
templar com qualquer mercê ou lugar. Mas a dívida aos primei-
ros teria a seu tempo de ser paga. O «Partido Nacional» aparece
em força no ministério de 22 de Maio: Jervis de Athouguia, Luís
Filipe de Soure, Marino Miguel Franzini e Loulé, que na altura
já era uma figura emblemática do setembrismo. Estaria então
Saldanha de novo refém da velha esquerda de sempre? Ainda
no Porto, iniciou preparativos para se libertar dela. Precisava
de firmar o seu poder autónomo, e o exército era a única base
sólida para o efeito. O triunfo do pronunciamento, por si só,
não bastava para o unificar. Recompensar apenas os mais leais
produziria até o efeito contrário. Ora os costumes domésticos
não autorizavam «seguir o exemplo de Narváez», que fuzilava
expeditamente os inimigos. Restava, pois, «adoçar a situação
por meio de promoções». Antes de regressar à capital decretou
a «promoção-monstro». Contemplou os «oficiais de merecimen-
to» e graduou os da terceira secção, onde em virtude das «nossas
dissenções políticas» se acumulavam há muitos anos «oficiais
privados de acesso» e com «os seus soldos consideravelmente
diminuídos». Finalmente, reformou a pedido dos próprios os
«oficiais velhos, cansados, e até alguns decrépitos»?!. Com isto,
escreveu a Lavradio, se «antes tínhamos três exércitos, cartista,

21 Carta de Saldanha para Lavradio, 28.12.51. ANTT, Arquivo de Costa


Cabral, Parte C — Miscelânea, doc. n.º 84.

184
O século xIx em perspectiva política

miguelista e setembrista», podia agora proclamar «que hoje temos


Ecs
um único».
À partir desta posição, inédita nos anais da monarquia cons-
titucional portuguesa, Saldanha pôde então negociar livre-
mente com os «partidos». Nem por isso era fácil contornar a
Patuleia. Meteu o «Partido Nacional» no governo de 22 de Maio.
Tipicamente, logo começaram os saneamentos de indivíduos
alegada ou realmente conotados com o cabralismo. Depois veio
a lei eleitoral de 20 de Junho, prevendo a organização de comis-
sões de recenseamento em moldes que garantiam a vitória do
governo e, portanto, da Esquerda?2. Saldanha demitiu o mi-
nistério em 7 de Julho, alegando que uma deputação de oficiais
lhe participara que «era impossível tolerar a queda que os ne-
gócios iam mostrando para o lado da Patuleia» e que, como
«os generais o tinham abandonado»??, ele não tinha meios para
sustentar a situação. Em 7 de Julho, com a entrada de Rodrigo
e Fontes, começou uma situação nova. O Patriota, órgão dos
«irracionais», acusou Saldanha de ter perpetrado «um golpe de
Estado contra o partido liberal, expulsando-o violentamente
do poder»?4. Mas a esquerda razoável rendeu-se, e, pela primei-
ra vez, separou-se enfim dos radicais, conformando-se com
ter de para futuro disputar o poder ao centro, em que assenta-
va o regime. Pela voz de 4 Revolução de Setembro de 9 de Julho
ofereceu a «abstenção de uma guerra activa» ao novo gabinete,
e prometeu-lhe «confiança» desde que fosse «liberal». Con-
sequentemente, nas eleições de Novembro de 51 o governo pa-
trocina listas multipartidárias em que Rodrigo, Fontes e Aguiar
ombreiam com Loulé e Leonel Tavares?6. Todas as «parcialida-
des» que tinham apoiado o golpe militar de Abril coalescem mo-
mentânea e aparentemente num bloco único «progressista».

22 CL. J.M. Sardica, À regeneração sob o signo do consenso (a política e os par-


tidos entre 1851 e 1861), vol. 1, p. 243 (diss. de mestrado policopiada, FCSH/UNL,
1997
23 Idem, ibidem, pp. 243-4.
94 O Patriota, de 5.7.51, cit. por J.M. Sardica, op. cit., p. 244.
95 Idem, ibidem.
96 Idem, ibidem, p. 255.

185
Apologia da História Política

A unidade deste bloco progressista era puramente ilusória,


conforme a forçada demissão de Loulé já deixara adivinhar e
o decurso da nova legislatura se encarregaria de confirmar. No
Parlamento, como explicou 4 Reforma com algum humor,
havia, para além de «uma direita» e «uma esquerda» minori-
tárias, nada menos que «dois centros»?7. Um «centro» maior,
formado pela Patuleia convertida ao regime e que constituía
a oposição; e um «centro» menor, formado pelos ministeriais
e futuros regeneradores, que apoiava o gabinete. Como facil-
mente se compreende, a Regeneração não podia começar en-
quanto os verdadeiros regeneradores estivessem em minoria e
a maioria os não deixasse governar. Do que se tratou a seguir
foi de inverter esta aberrante situação. Culminando as tensões
entre o governo e a oposição que se foram adensando ao longo
do primeiro semestre de 1852, o decreto vital de 3.12.51, que
convertia a dívida pública, foi chumbado em 23 de Julho de 52.
No dia seguinte, sem surpresa para ninguém, era publicado o
decreto de dissolução das Cortes. Aqui se completava o proces-
so, iniciado em Julho do ano anterior, de germinação da dissi-
dência progressista que nos anos seguintes seria designada por
partido histórico. Mas as divergências políticas não invalida-
vam o essencial acordo sobre o regime, e ambos os «partidos» se
proclamaram irmanados na Regeneração. Deixar-se-ia o País
enfim governar?
Compunham esses partidos basicamente ainda os mesmos
homens, baptizados na emigração e endurecidos na guerra civil,
que formaram a geração da Patuleia. Renunciavam agora às «eti-
quetas», aos «rótulos» que nessa época os haviam dividido, e
consideravam-se todos regeneradores, porque todos «decididos
fomentadores» e, portanto, «chapados progressistas»?8, Tinham
divergido sobre os meios de fazer a felicidade dos Portugueses
porque haviam suposto, erradamente, que tais meios seriam

PEA Reforma, de 13.12.51, cit. por J.M. Sardica, op. cit., p. 260.
28 Cunha Sotto Mayor, cit. por Marques Gomes, História de Portugal Popu-
lar e Ilustrada, de Pinheiro Chagas, vol. xII, p. 22. (Obra daqui em diante referida
simplesmente por História de Pinheiro Chagas).

186
O século xIx em perspectiva política

eminentemente políticos. Agora Lopes de Mendonça, expri-


mindo um desengano geralmente reconhecido, proclamava aos
quatro ventos que nenhuma reforma constitucional valia um
quilómetro de via férrea. A liberdade, que antes se fora rebus-
car nos artigos da Constituição, transitara para o domínio mais
palpável das realizações materiais: a liberdade era o fomento.
Tratava-se de chegar à primeira pelo segundo. Só este podia ar-
rancar um povo rude e analfabeto às rotinas seculares que o apri-
sionavam num marasma perene, e prepará-lo para assumir de
facto a sua teórica soberania. Talvez que depois, chegado aí, o
povo decidisse fazer por sua conta e risco a revolução. Logo se
veria. Para já, o que se impunha era pôr comboios a circular,
tornar os rios navegáveis, calcetar estradas, difundir o telégrafo,
numa palavra, desenvolver. E à Direita este programa convinha
igualmente, porque as suas previsões assentavam num cálculo
oposto. Os benefícios do progresso derramar-se-iam com equa-
nimidade por toda a população, das cidades e da província, das
classes baixas e das altas, fundando a coesão social sobre o esteio
seguro do interesse comum. O fomento era o antídoto contra
a revolução.
Estava aberto, ou parecia estar, o caminho para uma nova
«Ordem», cheia de desenvoltura e verdadeiramente progressista.
Outrora esta apenas fora um desejo, um mero projecto, um par-
tido tímido com alguns generais (Rodrigo, Sabrosa, Garrett)
e nenhuns soldados. De 1838 a 1842, durante o simulacro de
concórdia estabelecida pela Constituição de 1838, a Esquerda
e a Direita furtaram-se à colaboração para que Rodrigo as quise-
ra atrair. À primeira por se recusar a fazer a figura patética do
«louco do Pireu»; a segunda por fundado temor de se ver engo-
lida numa derrapagem revolucionária. Mas agora que os extre-
mos estavam vencidos, supunha-se, ou esperava-se, que mais
nada viesse perturbar a pax regeneradora, governada por Rodrigo
sob a tutela benevolente de Saldanha. Com a «promoção-mons-
tro» de Saldanha, o exército estava unificado, e nos tempos a
seguir não se disponibilizou para aventuras sediciosas urdidas
por facções civis. A Regeneração dispunha assim de um elemen-
to de ordem fundamental. Depois, com o «Acto Adicional» à

187
Apologia da História Política

Carta fizera-se a paz constitucional. Por ora não se discutiria


o regime e, se e quando houvesse de discutir-se, isso seria feito
em sede própria e de acordo com os procedimentos legais. Anos
e anos de guerra improfícua deixaram os partidos cansados e
melhor predispostos para encarar os problemas pátrios com es-
pírito cooperante.
Com efeito, as décadas posteriores a 1851 não registam
o clima de sedição permanente que fora característico do perío-
do anterior, e os homens que se sucedem no poder deixam de
ser olhados pelos seus pares meramente como vis usurpadores.
É certo que os governos nem sempre mudam com a desejável
transparência constitucional; que por vezes se pressionou o uso
da prerrogativa régia com legitimidade duvidosa; que numa ou
noutra ocasião as exigências da rua consituíram o motivo in-
confessável das decisões do poder; e que em diversos momen-
tos a agitação popular tomou proporções inquietantes. Mas
ninguém actuou abertamente disposto a romper revoluciona-
riamente com os delicados equilíbrios que sustentavam o statu
quo, e, à excepção da desastrosa «Saldanhada» de 1870, o exérci-
to absteve-se de arbitrar as dissenções políticas dos civis.
Mas não é menos certo que os governos caíam, ainda assim,
com impressionante frequência. De 1851 a 1890 houve 21 go-
vernos e um sem-número de remodelações. Mas a média é ilusó-
ria. Se descontarmos os onze anos preenchidos pelas mais longas
administrações de Fontes Pereira de Melo (1871-77, 1881-83
e 1883-86), vemos que a duração média de um governo não
chegava a ano e meio. E uma vez mais a média é enganadora.
Não leva em linha de conta nem as frequentes remodelações
nem a sucessão rápida de governos que marcou alguns períodos
particularmente instáveis. Finalmente, também encobre o facto,
significativo, de que as administrações da Esquerda eram as
mais conturbadas e menos duradoiras. As sucessivas remodela-
ções do governo Loulé de 1860-65, no termo das quais apenas
o próprio Loulé restava do primeiro elenco ministerial, bem
como a fugacidade do governo Sá da Bandeira que se lhe seguiu
(Abril a Setembro de 1865), ilustram precisamente a precariedade
das situações «históricas», feridas de incapacidade para absorver

188
O século XIX em perspectiva política

o velho e o novo radicalismo que as desestabilizavam tanto de


dentro como de fora do partido. Numa reedição dos dilemas
que no passado haviam dilacerado — e perdido — o setembrismo,
a velha esquerda histórica, reverdecida pela Regeneração, conti-
nuava dividida entre duas necessidades opostas: exibir a respei-
tabilidade requerida para o exercício do poder, e satisfazer a
sua base plebeia para continuar a ser Esquerda. A «unha branca»
e a «unha preta» encarnavam, respectivamente, cada um destes
desígnios. Como se vê, a essência do problema não mudou.
Mas mudaram, e muito, os métodos, as estratégias e os objecti-
vos dos parceiros políticos envolvidos na luta pelo poder.
De 1834a 1851,o0 radicalismo pretendera e procurara de-
mocratizaro liberalismo no quadro da monarquia constitucional.
Julgava que alcançaria este fim por meio da extensão da sobera-
nia popular e da simultânea limitação da soberania régia. Que-
ria o rei reduzido a ornamento, a Câmara dos Pares electiva, o
Parlamento omnipotente e o direito de voto concedido ao gran-
de número. Queria por isso a reforma da Carta que, não lhe
sendo concedida a bem, ele estava disposto a conseguir a mal.
Estava bem infiltrado no exército e nas guardas nacionais, pos-
suía algumas vozes no Parlamento, fazia-se ouvir na imprensa,
mobilizava gente miúda da capital ligada aos ofícios, ao peque-
no comércio e ao baixo funcionalismo, e contava com a adesão
espontânea da população desempregada. Como em toda a parte
na Europa, os mentores provinham das profissões liberais e da
intelectualidade. Na boa tradição jacobina, o radicalismo dedi-
cava-se à propaganda e aplicava-se a conspirar aberta ou secreta-
mente, buscando sempre a cumplicidade de militares. A crença
tanto na possibilidade como na eficácia da revolução mantinha-
-se intacta. No imediato, o importante era conquistar o poder,
e depois de conquistá-lo tratava-se de o purificar colocando o
Estado ao serviço do bem comum, que se tinha por sinónimo
de democracia. A revoada das revoluções de 48 suscitou entre
nós a primeira expressão franca de republicanismo. Mas dadas
as circunstâncias, muito poucos se assustaram realmente, e a
grotesca «revolta das hidras» apenas serviu para demonstrar a
insignificância da adesão republicana. Protegida a Península

189
Apologia da História Política

pela mão forte de Narváez e esmagada a revolução na Europa,


o radicalismo sumiu-se por cá durante algum tempo, e foi sobre
a acalmia por ele deixada que inicialmente se estabeleceu a
equívoca concórdia partidária da Regeneração.
Tinha-se desistido da democracia? Não tinha. Apenas se
desistira de provocar o parto revolucionariamente, porque, na
lógica das novas aspirações radicais surgidas a partir da década
de 50, era tido por certo que mais cedo ou mais tarde o parto
haveria de dar-se espontânea e naturalmente. À mudança de
táctica traduzia a influência de inspirações ideológicas ainda
confusamente articuladas — socialismo humanitário, repu-
blicanismo, federalismo — mas que convergiam na previsão
unânime de que a futura sociedade, ilustrada e esclarecida, en-
veredaria pelo único caminho coincidente com o fim último
que o Progresso lhe prescrevia: a República, a Federação Ibérica,
e, em prazo incerto mas infalível, a Federação de todos os Povos
do Mundo e, portanto, a Paz Universal. A República, forma
plena e consumada da democracia, não seria pois o resultado de
uma violência revolucionária, mas sim o fruto amadurecido da
progressiva evolução da sociedade, impulsionada pela contínua
difusão de uma mentalidade laica e pelo processo concomitante
de laicização da vida pública. Esperava-se que o desenvolvimento
económico, gerando uma massa de trabalhadores emancipados,
criasse as condições sociais da «revolução»; e esperava-se que o
simultâneo desenvolvimento cultural dispensasse a violência
política, fazendo surgir a República como culminação natural
e necessária, pacífica e consensual da evolução humana??.
A partir da década de 50, por um aparente paradoxo, a Repúbli-
ca, em si mesma revolucionária, era a alternativa à Revolução.
Seria assim porque o progresso inexorável da Razão, abrindo
o seu caminho radioso sobre os escombros das passadas su-
perstições, daria lugar a essa forma de sociedade inteiramente
laica, racionalmente ordenada, alheia por conseguinte a laços

99 Sobre a escatologia republicana ver, por todos, Fernando Catroga, O Re-


publicanismo em Portugal (da Formação ao 5 de Outubro de 1910), 2 vols., Coimbra,
1991. Especialmente vol. Im.

190
O século xIx em perspectiva política

de parentesco e liberta de preconceitos e tradições. A Repúbli-


ca, mais do que um programa e até mesmo do que um regime
— «uma Ideia, simultaneamente política, social e até religiosa»100
— uma «mundivivência»!0! — preparava-se pelo esclarecimen-
to das consciências. O anticlericalismo seria portanto o seu motor,
e constituiu a manifestação primitiva da Ideia republicana. Isto
porque a Igreja e a Religião, que o liberalismo confundira, se
erguiam como o grande entrave — ideológico, político e institu-
cional — à realização dessa Ideia. A partir da Regeneração — mais
precisamente, a partir de 1858 — o anticlericalismo substitui o
democratismo jacobino enquanto inspiração subversiva comum
a todos os radicalismos que, contestando e combatendo o regime,
obrigaram o «fomento» a tornar-se, na expressão de Oliveira Mar-
tins, «solidário da conservação»102. O «fomento» era monárquico
e os «fomentadores» sabiam instintivamente que a completa lai-
cização da sociedade e da vida pública terminaria por ferir de
morte a própria monarquia. E mais tarde, na viragem do século,
muitos monárquicos já vencidos pelo cepticismo nem por isso
se tornaram republicanos, porque inevitavelmente a República
seria anticatólica ou mesmo ateia. Isto explicará por que moti-
vo, tendo assistido ao 5 de Outubro de braços caídos, não aderi-
ram depois à nova ordem.
A famosa questão das irmãs de caridade, nascida em 1857-
-58, deve ser entendida como o primeiro sintoma de uma
ofensiva anticlerical que rompia os limites tradicionais do an-
ticongreganismo liberal-monárquico e começava a envolver
tanto a Igreja como a própria Monarquia num mesmo e único
manto de hostilidade. A propósito daquela questão, em si
mesma inócua ou em todo o caso menor, despontou na realida-
de um anticlericalismo de tipo novo, corrosivo dos fundamentos
da ordem estabelecida porque era, na raiz, irremediavelmente an-
tiaristocrático e antimonárquico. Ora as irmázinhas francesas,
que tinham vindo para Portugal com o beneplácito do rei e o

100 Basílio Teles, Memórias Políticas, Lisboa, 1969, p. 128-30.


101 FE Catroga, op. cit. vol. 11, p. 170.
102 Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Lisboa, 1977, vol. 11, p. 296.

191
Apologia da História Política

consentimento legal de Loulé (9.1.57), foram carinhosamente


acolhidas pelas senhoras da alta sociedade e suscitavam o louvor
e a admiração dos círculos aristocráticos. O povo acusava-as
de apenas tratarem dos ricos, e por isso as detestava. No enten-
der de O Português, órgão onde a ala esquerda dos históricos
se exprimia, a simples presença das irmãs de caridade deixava
antever «graves transtornos [...] no futuro para a liberdade»O3.
Devemos levar a sério os homens que assim pensavam. Os seus
temores não eram infundados. No dizer de Oliveira Martins,
a piedade religiosa que agora renascia nada tinha a ver com
«a religião vencida em 1834». Tratava-se da incursão de «uma
religião nova, aristocrática, afrancesada», que as irmãs tinham
vindo para missionar: uma religião fina, antidemocrática, e
antinacional porque ultramontana. Levados pela cólera, em
1 de Agosto de 58 os populares apedrejaram as irmãs à saída
de uma igreja. O episódio serviu para mostar por onde as águas
se separavam. Em 4 Revolução de Setembro Rodrigues Sampaio,
falando pelos liberais, condenou a agressão contra «mulheres
indefesas», ao passo que O Português, falando pelos radicais,
«declarava guerra a todas as irmãs de caridade, quer francesas
quer portuguesas» 104, Era a reacção ao decreto de 3.9.58 com
que Loulé, sob o fogo dos pares que condenavam, horrorizados,
as heresias da imprensa histórica, procurara aplacar a fúria dos
seus próprios correliginários, que intimavam o ministério a
coarctar «qualquer espécie de reacção religiosa» que de perto
ou de longe, velada ou ostensivamente, ameaçasse o regime
liberal!05, O decreto limitava-se a interditar a vinda de mais
irmãs francesas para Portugal, e proibia às que já cá estavam
que misturassem o ensino com a assistência. Com esta limita-
ção, todavia, podiam dedicar-se à santa caridade em paz e sosse-
go. Previsivelmente, o decreto desagradou a gregos e a troianos.

1030 Português, de 20.6.58, cit. in História de Portugal, dir. Damião Peres,


Barcelos, 1935, vol. vil, p. 351. (Obra daqui em diante referida simplesmente
por História de Portugal de Barcelos).
104 9 Português, de 7.9.58, cit. in História de Portugal de Barcelos, vol. VII,
poSdos
105 Idem, ibidem.

192
O século XIX em perspectiva política

Em 31 de Dezembro Herculano presidiu ao primeiro de uma


série de comícios anticlericais. Entretanto corriam abaixo-assi-
nados pela capital: 36 313 assinaturas a favor das irmázinhas,
7654 contra. À «reacção» engrossava a olhos vistos.
Em 4 de Março de 1859, um grupo de deputados, entre
os quais José Estêvão e Vicente Ferrer, apresentou na Câmara
de Deputados uma moção em que intimava o governo a respei-
tar os «princípios liberais inaugurados pela restauração» e a
opor-se «com firmeza às demasias e abusos de influência de
qualquer espécie de reacção religiosa que os tente invadir e pre-
judicar»106, A Câmara (saída de eleições feitas pelos históri-
cos havia menos de um ano, em 2.5.58), como não podia deixar
de ser, mostrou o seu pendor rasgadamente liberal, aprovando
a moção com apenas sete votos contra!07. A moção apenas afir-
mava princípios gerais e era omissa quanto a medidas concretas,
mas não era difícil de prever que em breve estas seriam reclama-
das. Dali a poucos dias, a 16 de Março, o gabinete histórico caía,
«gasto» pelo cortejo de dificuldades que o tinham assolado.
Começara por herdar os resultados do péssimo ano agrícola de
56 e tivera de enfrentar os motins, saques e incêndios com que
o povo exigira pão barato (Agosto de 56). Em 57 viu-se a braços
com duas violentas epidemias de cólera e de febre-amarela. Em
Outubro de 58, ao tempo em que crescia a agitação por causa
das irmãs de caridade, expusera o País à afronta da França por
causa do incidente «Charles et Georges». Finalmente, irreme-
diavelmente dividido e fragilizado pela questão religiosa, su-
cumbiu à votação de uma proposta sobre caminhos de ferro
em que alguns «amigos» se juntaram à oposição.
A questão religiosa esmoreceu ligeiramente durante os mi-
nistérios de Terceira e Aguiar mas, não por acaso, reacendeu-
-se com o regresso de Loulé em 4 de Julho de 1860. Neste ano,
às investidas de O Português somaram-se os clamores da Associa-
ção Patriótica. O governo expediu a portaria de 5 de Março de
1861 para que as irmãs abandonassem o edifício que ocupavam

106 Gir. in História de Portugal de Barcelos, vol. VII, p. 353.


107 Idem, ibidem.

195
Apologia da História Política

no prazo de 40 dias, e apresentou uma proposta de lei para a


nacionalização do instituto. Nas Cortes, a oposição católica inter-
pretou a proposta como um atentado contra a propriedade priva-
da. O governo não caiu, mas o Parlamento teve de ser dissolvido
(27.6.61). As irmãs, entretanto, resistiam, apesar de outro decreto
de 22.6.61 que dissolvia a corporação. Depois da morte conse-
cutiva do rei e dos infantes D. Fernando e D. João (Novembro-
-Dezembro), o ano de 61 fechou com os famosos «tumultos de
Natal». Em Lisboa, bandos de populares, «com archotes e arma-
dos», percorriam as ruas da cidade atacando casas e pessoas e
desejando a morte, entre outros, a Loulé, o presidente do gover-
no e o chefe institucional da Esquerda. Era a demonstração mais
eloquente da existência de um movimento popular que não se
reconhecia nas augustas personalidades que tradicionalmente
o tutelavam.
No princípio de 1862 (21 de Fevereiro), sem dúvida para
se colocar em sintonia com a «opinião pública», Loulé remodela
o ministério profundamente. Com a entrada da «unha negra»,
representada por Lobo de Ávila (Fazenda) e Mendes Leal (Mari-
nha), e do velho e do novo progressismo histórico, representa-
dos, respectivamente, por Sá da Bandeira e Anselmo Braancamp,
forma-se um governo da mais ampla unidade histórica. Logo
revive a questão das irmãs de caridade. Por pressão dos radicais,
o governo apresenta uma proposta de lei proibindo todas as
congregações de ambos os sexos introduzidas depois de 1833-
-34, e vedando aos membros das que tivessem existência legal
toda e qualquer actividade docente tanto em instituições públicas
como privadas. Igualmente lhes interditava a prestação de «ser-
viços hospitalares em estabelecimentos pios do Estado»!08, talvez
porque, como já explicara O Português, era costume abusar-se
da «missão santa de caridade para fazer prosélitos para o jesuitis-
mo»109, O relatório da proposta de lei deixa claro que se visava
mais longe do que meramente sustentar «os direitos e a legítima

108 História de Portugal de Barcelos, vol. vI, p. 361.


109 9 Português, de 20.6.58, cit. in História de Portugalde Barcelos, vol. vII,
p: So.

194
O século xIX em perspectiva política

influência do Estado»!10. Tratava-se de impedir que a religião,


através da Igreja, seduzisse a consciência dos pobres e ignorantes,
«apoderando-se do espírito e da inteligência da infância e da
juventude» e comprometendo, deste modo, o «futuro»!1,
Que «futuro» era este que a Esquerda via ameaçado pela
religião da Igreja? Esse futuro era nem mais nem menos do que
a realização da Utopia. E era ele que cavava a linha divisória
entre partidos cuja semelhança, em tudo o mais, os contempo-
râneos denunciavam, lamentando que despiciendas questões
de método servissem de alimento a rivalidades pessoais que o
comum interesse da paz e do fomento, publicamente professa-
do, deveria obrigar a pôr de lado. Era então a existência de dois
partidos uma criação artificial do capricho dos indivíduos? Uma
reminiscência de hábitos facciosos ainda não extirpados? Esta
visão superficial das coisas não resiste à contemplação dos factos
que revelam opiniões inconciliáveis acerca do destino para o
qual o País deveria ser encaminhado. Esses factos incluem não
apenas a crónica instabilidade governativa e o abuso das «forna-
das» e da dissolução parlamentar, mas sobretudo a persistência
de um radicalismo que a espaços irrompe na cena política, amea-
ça as instituições, baralha as combinações dos políticos oficiais,
obriga à demissão de governos e força o poder a conceder refor-
mas que habilitem o regime a absorver o protesto popular. Ora
acontece que este não era, em parte, susceptível de ser absorvido.
Na parte, precisamente, em que se alimentava, directa ou in-
directamente, consciente ou inconscientemente, da «Ideia» repu-
blicanal!2. O «futuro» que o radicalismo idealizava residia na

O pistória de Portugal de Barcelos, vol. vil, p. 361.


111 Idem, ibidem.
112 Basílio Teles explicou como o republicanismo, enquanto «espírito», «ideia»
e «esperança» era algo que permeava largamente a sociedade portuguesa e cuja in-
fluência não se pode aferir em função do número de adeptos do partido republica-
no: Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, Lisboa, 1968, p. 55.
Também nas suas Memórias, Basílio Teles retoma, a propósito da França, o
tema da Democracia (República) como algo que transcende um determinado parti-
do ou regime e que deve ser entendido como «uma Ideia, simultaneamente política,
social e até religiosa, e uma Ideia, demais disso, proselítica de sua essência». Memórias,
Lisboa, 1968, p. 131.

195
Apologia da História Política

coroação do Progresso Humano pela República. O «futuro» que


os liberais projectavam, no progresso material dentro do libe-
ralismo monárquico. Dois futuros que mutuamente se excluíam.
Ao segundo chegava-se pela produção de riqueza. Ão primeiro,
pelos «progressos intelectuais dos cidadãos»! !3. Aquele tinha
de vencer o atraso e a pobreza. Este, a superstição e a ignorân-
cia. Um esbarrava na falta de comunicações e na escassez dos
capitais. O outro, na falta de escolas e na escassez de ilustrações.
Os históricos representavam a Esquerda dentro do regime
monárquico. Mas a dedução lógica e consequente dos seus prin-
cípios, mais «avançados» que o dos regeneradores, estabelecia
entre eles e a «rua» uma contiguidade inevitável, uma atracção
irresistível, tornando as fronteiras entre o interior e o exterior do
regime porosas e movediças. Eram monárquicos e entusiastas
do «fomento», mas gabavam-se do seu «programa democrático,
descentralizador, radicalista»! 14.O povo, então, não compreen-
dia por que motivos de lógica ou de justiça haveria um tal progra-
ma de ficar a meio. E não era apenas a ignorância simplificadora
do povo que tinha um entendimento subversivo das coisas. Ro-
drigues de Freitas, ao apresentar em 1878 a sua candidatura re-
publicana no Porto, explicou que os princípios da República
se «deduziam da doutrina aceite pelo partido liberal»!
15. Mas

Na historiografia recente, Fernando Catroga foi o primeiro a analisar longa-


mente o republicanismo como uma «mundivivência», como uma «proposta de
matriz ontológica», como «um ideário que, conscientemente, se apresentava como
a própria concretização histórica da razão humana». O Republicanismo em Portu-
gal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 2 vols., Coimbra, 1991, p. 168, II.
Este entendimento do republicanismo está de resto já presente em obras anterio-
res do mesmo autor.
Rui Ramos também chamou à atenção para «a enorme influência que o
republicanismo — a cultura republicana! — teve em Portugal, influência que trans-
cendeu, e em muito, a do Partido Republicano Português, organizado em 1876,
e a do regime de 1910». «A ideia republicana e a história da república em Portugal»,
Análise Social, n.º 115, 1992.
113 Rodrigues de Freitas, cit. in História de Portugalde P. Chagas, vol. xII,
p: 519: «a república havia de vir tanto mais depressa “quanto mais rápidos fossem
os progressos intelectuais dos cidadãos portugueses'».
114 Basílio Teles, Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, op. cit., p. 50.
115 História de Portugal de P. Chagas, vol. xII, p. 483.

196
O século XIX em perspectiva política

já desde 1859 que isto mesmo fora proclamado no Parlamento:


«todo o liberal é republicano na sua essência; todo o liberal
segue o sistema republicano por convicção», disse nessa altura
um deputado! 6. O instinto popular não afirmava outra coisa.
Verificava que a liberdade autêntica — e portanto a verdadeira
igualdade, condição da justiça — não se acomodava com o pre-
domínio notório dos aristocratas, que achavam protecção na
monarquia legitimada pela Igreja, graças ao domínio que através
da superstição religiosa esta exercia sobre os crentes. Na segunda
metade do século, foi-se popularizando a ideia de que a democra-
cia autêntica era incompatível com o regime monárquico. Uma
vez que este se apoiava na Igreja, era então esta o primeiro e o
último sustentáculo de um edifício político viciado pela heredita-
riedade do pariato e pela vontade arbitrária do rei, e por ela teria
de começar a demolição. Seria inútil tentar ou pregar revoluções
enquanto o povo não fosse desenganado. E o primeiro passo para
o desenganar consistia em subtraí-lo à influência perniciosa das
freiras e dos padres.
Por conseguinte, o problema político resolvia-se por meio
da educação. Os políticos e intelectuais pediam escolas e exi-
giam que o clero fosse proibido de ensinar. O povo pedia a «justa
repartição do imposto» e exigia, por isso, a «expulsão das corpo-
rações reaccionárias»! 17. Em Outubro de 58, na mesma reunião
pública em que Herculano, um histórico, denunciou «inten-
ções reservadas de reacção» por trás do acolhimento prestado
às irmãs francesas, foi lançada a «Associação popular promotora
da educação do sexo feminino». Em Dezembro de 59, estando
os regeneradores no governo, a Associação dirige ao «partido
liberal português» um manifesto, redigido por Herculano, em
que exprime repulsa pelas tentativas reaccionárias dos que pre-
meditavam «transviar a educação popular, entregando-a a cor-
porações religiosas»!!8. Na Primavera de 61, estando já os
históricos de volta no poder, a Associação Patriótica promoveu

N6cir. por. M. Tengarrinha, Estudos de História Contemporânea de Portu-


gal, op. cit., p. 274.
N7 História de Portugal de P. Chagas, vol. xIL,p. 170.
118 Thidem, p. 149.

1957
Apologia da História Política

meetings em Lisboa cujos temas reivindicativos revelam a ine-


quívoca inspiração de um republicanismo difuso. O livreiro
Marques dos Santos, que foi orador, não tinha dúvidas de que
era necessário expulsar as irmãs de caridade para que os solda-
dos fossem aumentados, para que houvesse justiça fiscal, e para
que o Parlamento fosse dissolvido e a Câmara dos Pares refor-
mada!!?. Mas para que tudo isto, que «o voto popular ardente-
mente desejava», se verificasse, era não menos necessário um
«chefe de confiança» e um «governo popular»120. É verdade
que Loulé não era tal chefe e que o seu governo não era popu-
lar. Quando a Patriótica anunciou novo meeting para 10 de
Junho de 61, o ministério proibiu a sua realização. A Associação
não desarmou. Dirigiu uma longa representação ao governo
em que estabelecia um significativo nexo político entre tópicos
que se diriam sem relação lógica entre si: a reforma da Câmara
alta; a «demora no reconhecimento do novo reino de Itália»;
a «subserviência do governo português para com a corte de
Roma»; e a expulsão das irmãs de caridade!21. A sinistra perma-
nência das irmãzinhas em Portugal era a prova de que o gover-
no não se encontrava nas mãos do partido popular, o que por
si só explicava uma longa lista de calamidades: a subserviência
perante Roma; a exiguidade dos soldos; a inexistência de igual-
dade perante a lei; «a impunidade dos grandes criminosos»; a
corrupção da justiça; «a parcialidade dos tribunais a favor dos
ricos e dos nobres»; a injusta repartição do imposto; e a recusa
das reformas políticas reclamadas!22,
José Estêvão, que ao tempo se distanciara dos regenerado-
res sem aderir aos históricos, por não encontrar nuns e noutros
os sãos princípios de uma genuína «política liberal», levou a re-
presentação da Patriótica à Câmara dos Deputados, cujo presi-
dente lhe recusou a leitura por havê-la considerado uma ofensa
ao «poder judicial» e uma ameaça à «ordem pública». Mas o

19 História de Portugal de P. Chagas, vol. XII, p. 170.


120 Ibidem.
121 Ibidem, pala
122 Ibidem.

198
O século xIx em perspectiva política

escaldante assunto das irmãs de caridade não morreu. Até que


Loulé se decidiu, em 22 de Junho de 61, a decretar a dissolução
da polémica ordem, motivando uma discussão na Câmara dos
Deputados que tomou «proporções gigantescas»!23. As gale-
rias encheram-se «por completo». José Estêvão, discursando
no dia anterior a professar mais uma «virgem», lançou ao go-
verno uma pergunta embaraçosa: «Pergunto aos srs. ministros
se sabem desta profissão, se a autorizam [...] e se é permitido
nesta terra dar profissões religiosas»!24. Segundo rezam os anais,
o debate concitou atenção «superior a tudo o que até então se
tinha dito dentro e fora do parlamento»!25.
Eram então republicanos os deputados que tomaram o
partido da Associação Patriótica? Não eram, ou não eram neces-
sariamente:
mas no clima de reacção católica que se adensava
na viragem da década de 50 para 60, os campos estavam extre-
mados, e não tomar partido, ou não tomar um partido nítido,
equivalia a fazer o jogo do ultramontanismo e implicava cair em
irremediável descrédito perante a opinião popular. É de resto
esse clima, e a reacção anticlerical que suscitava, que explica
a dificuldade em ultimar as negociações com Roma de uma nova
concordata, bem como as vicissitudes que rodearam a tardia pu-
blicação do código civil e os entraves erguidos à adopção do re-
gisto civil. A cobertura e protecção que a aristocracia dava às
congregações religiosas era um facto público e notório!26, Nestas
circunstâncias, os liberais não se podiam eximir à reafirmação
clara dos seus princípios de política religiosa; e os históricos,
prisioneiros da sua necessária cumplicidade com o «partido po-
pular», eram obrigados a ir mais longe para se demarcarem do
conservadorismo regenerador, que o povo incluía indistinta-
mente na reacção neocatólica. Ora esta não era inventada. Her-
culano, que por certo não era permeável à obsessão persecutória

123 História de Portugal de P. Chagas, vol. x11, P. 173.


124 Thidem, p. 174.
125 Ibidem, p. 173.
126 Veja-se a correspondência publicada nas Memórias do Marquês de Fron-
teira e Alorna (op. cit.), Apêndice: Parte II, especialmente pp. 182, 184, 185, 187,
188, 210, 211.

199
Apologia da História Política

dos jacobinos, insurgira-se publicamente contra o avanço das


forças ultramontanas, avisando que a liberdade estava ameaçada.
As raízes desse avanço remontavam ao infausto convénio cele-
brado por Costa Cabral com Roma em 1848, que o escritor
qualificou de «verdadeiro monumento de subserviência»!27. De-
pois, a crescente afirmação do centralismo romano e do absolu-
tismo papal encorajou mais ainda uma «ofensiva clerical» que,
«esboçada» nos anos 50, se «acelerou» na década de 60 e não
mais abrandaria até aos finais do século!28, À época em que
rebenta e se desenrola a questão das irmãs francesas, essa ofensi-
va manifestava-se em factos bem palpáveis. Subsistiam 112 con-
ventos de religiosas, dos quais 80 se encontravam em situação
ilegal!22, Ao mesmo tempo que se assistia a «uma reintrodução
progressiva das congregações», entrava em Portugal o padre
jesuíta Rademaker, um «ilustrado eclesiástico» que pronunciou
o «discurso fúnebre» pela marquesa de Fronteira!30 e que aqui
meteu ombros à reorganização da execrada companhia. À partir
de 1860 foram chegando mais jesuítas que, além de fundarem
um noviciado em Lisboa, criaram colégios e residências em várias
terras do País. Enquanto isto se dava, com a sintomática «protec-
ção de alguns sectores da aristocracia»!3!, por cá se iam instalan-
do, perante a passividade cúmplice das autoridades, franciscanos,
doroteias, padres do Espírito Santo, beneditinos e redentoris-
tas, que não escondiam o proselitismo que os animava e incluíam
invariavelmente o ensino nas suas actividades caridosas.
À reacção ultramontana provocou, simetricamente, uma
reacção anticlerical. Uníssona? Nem por isso. O liberalismo
oficial e oficioso tomou partido, como lhe competia, pela tradi-
cional concepção regalista das relações entre o Estado e a Igreja,
reguladas por concordata. Ainda dentro da tradição, apoiou a
contestação das ordens religiosas. Na prática, porém, ia cedendo

127 Cir. por Vítor Neto, História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. v,
prado
128 Idem, ibidem, pp. 271-2.
129 Idem, ibidem, po 279:
130 Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, op. cit., p. 185 e p. 182.
131 Cf Vítor Neto, op. cit. p. 277.

200
O século xIX em perspectiva política

às pressões contraditórias a que era submetido. Fechava os olhos


às dezenas de conventos que subsistiam ilegalmente assim como
ignorava as profissões que continuavam a ter lugar à revelia
da lei. Por outro lado, ia minando a propriedade religiosa. A in-
ventariação dos bens das ordens religiosas foi decretada em
1857 e as avaliações iniciaram-se em 1858. Finalmente, a carta
de lei de 4 de Abril de 1861 determinava a expropriação desses
bens e a respectiva conversão em títulos da dívida pública!32.
Mas o liberalismo nunca pôs em causa que a religião católica
fosse, e devesse ser, a religião oficial do Estado, e que a Igreja
tivesse, e devesse ter, uma deferência especial entre as institui-
ções civis. Defendendo integralmente o princípio da confes-
sionalidade do Estado, mantinha-se intacta a legitimidade da
Monarquia, que segundo a Carta Constitucional possuía cau-
ção divina. Se havia abusos, se a Igreja disputava ou invadia
«os direitos e a legítima influência do Estado», cabia ao Estado
apertar a vigilância que sobre ela exercia, submetendo-a a uma
acrescida estatização. Nunca o liberalismo estabelecido renun-
ciou a uma religião oficial nem dispensou a instituição ecle-
siástica enquanto fonte de autoridade e garante da coesão social.
Muito mais tarde, quando em 1884 se discutia a reforma cons-
titucional, ainda José Luciano de Castro havia de defender o
art. 6.º da Carta e de combater a neutralidade do Estado em
matéria religiosa.
Mas já na viragem da década de 50 para 60 apareceram
outras ideias. Atrás delas viria fatalmente a defesa da separação
entre a Igreja e o Estado, a trave mestrado programa republi-
cano. Ora esta ideia estava implicitamente contida na insistência
com que se exigiu que os religiosos de ambos os sexos, nacionais
ou estrangeiros, se não imiscuíssem no ensino, público ou priva-
do. Mas não foi apenas esta nota anticlerical e laicista que con-
feriu à campanha de 58-62 o seu cunho de novidade. Tão ou
mais importante e decisivo quanto isso foram dois factos novos
que então se deram. Um deles diz respeito à centralidade assumi-
da pelo tema do anticlericalismo e à sua transformação em arma

132 y. Neto, História de Portugal, op. cit., p. 279.

201
Apologia da História Política

de combate político. O outro, aliás interligado com este, foi


o facto de durante esses anos se ter verificado «a transferência
das campanhas anticlericais para a rua», «para o domínio da
opinião generalizada»!23. O potencial subversivo desta po-
pularização de temas anticlericais não escapou a todos os que
estavam do lado da ordem monárquica estabelecida. Não disse
Loulé que lera «com horror» os artigos heréticos de O Portu-
guêsl34? Em 1861 O Português trata o tema escaldante da liber-
dade de cultos, apresentada como o corolário lógico da liberdade
de consciência. Seguia-se, como corolário não menos lógico,
que a religião oficial devia ser abolida e o Estado declarado
neutro em matéria de fé. Em 1864 um deputado propôs nada
menos do que isto, preparando o terreno para a máxima mais
tarde adoptada por Emídio Garcia — «religião livre no Estado
indiferente». O liberalismo resistiu. Logo se percebeu que por
tais caminhos se chegaria ao Estado ateu e, por conseguinte, ao
enterro da monarquia. É sem dúvida neste veio de anticlerica-
lismo laicizante, virtualmente ateu, manifesto desde o final da
primeira década da Regeneração, que se deve procurar a história
inicial da «Ideia republicana». Não do partido, que não exis-
tia ainda, mas daquilo que o republicanismo começou por ser:
«um facto moral considerável», uma «esperança»!25, uma alter-
nativa utópica em relação à qual eram apreciados os méritos
e deméritos do presente, e que conquistara as massas popula-
res mais politizadas. Uma aspiração que, quando foi chegada
a década de 70, os políticos, monárquicos ou não, eram obriga-
dos a levar em linha de conta. Depois da morte de Loulé, foi
isto mesmo que tornou «os promotores do pacto da Granja»
tão radicais e que levou os oradores progressistas a nos seus comí-
cios «excitar as paixões revolucionárias do auditório»!36, com-
pelidos a dizer o que o público queria ouvir. A longa «ditadura»

133 Jorge Borges de Macedo, «O anticlericalismo em Portugal no séc. xIX»,


in Communio, n.º 5, 1985, pp. 446-7.
134 Sessão da Câmara dos Pares de 22.6.58, cit. in História de Portugalde
Barcelos, p. 351.
135 Basílio Teles, Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, op. cit., p. 55.
136 Idem, ibidem.

202
O século xIx em perspectiva política

de Fontes (71-77 e 78-79), alegadamente inamovível pelo favor


do rei, empurrou os progressistas para uma colaboração perigo-
samente estreita com as massas democráticas. Nesta altura já
o apego popular à dinastia se encontrava abalado por duas
décadas de campanha anticlerical intermitente, reanimada em
meados da década de 60 pela polémica sobre o casamento civil
e relançada na década de 70 no âmbito de uma propaganda
já abertamente republicana. A partir das Conferências do Ca-
sino, o anticlericalismo implantou-se «como forma corrente
dominante de pressão política», tendo-se tornado «um lugar-
-comum»!37. Em resposta à criação da Associação Católica, em
1872, liberais e republicanos uniram-se a partir de 1874 num
«movimento de fundação de associações liberais» que impri-
miu novo fôlego à cruzada anticongreganista. Depois do Cente-
nário de Camões, a que a cobertura oficial não conseguiu retirar
o carácter de manifestação antidinástica, o movimento associa-
tivo culminou com a celebração, em 1882, do centenário do
marquês de Pombal, que redundou numa enorme «manifesta-
ção antijesuítica», e com as romagens anuais ao túmulo de Joa-
quim António de Aguiar, que eram «puras manifestações de
anticlericalismo»138. Após de ter contribuído para engrossar
a corrente anticlerical, o monárquico partido progressista, por
um paradoxo trágico ou patético, via-se forçado a aliciar adep-
tos a troco da promessa de preparar a República: em finais da
década de 70, «Nos comícios, nas reuniões do centro progres-
sista do Porto, o orador sugeria uma ameaça revolucionária,
e logo a audiência se entusiasmava com a perspectiva da sua con-
cretização. E o orador prometia que '/í chegariam”; 'que a função
e o dever do Partido Progressista eram ir adiante, a preparar o
terreno para esse acontecimento inevitável'»!39.
Desde finais da década de 50 que os históricos, por natu-
reza mais permeáveis à opinião da rua, e por necessidade mais

137 Borges de Macedo, «O anticlericalismo em Portugal no séc. XIX», op. cit.,


p. 448.
138 vítor Neto, op. cit., p. 278.
139 Basílio Teles, Do Ultimatum ao 31 Ff op. cit., p. 55.

203
Apologia da História Política

disponíveis para a promover, acolhiam ou veiculavam reivin-


dicações democráticas que feriam, directa ou indirectamente,
os fundamentos da monarquia. Até 1884-85, quando as refor-
mas políticas de Fontes Pereira de Melo vieram não só viabi-
lizar e constitucionalizar o rotativismo como garantir que o
partido da oposição, qualquer que ele fosse, teria sempre uma
representação parlamentar satisfatória, este risco permanente
de derrapagem para terreno subversivo era inelutável. Por um
lado a democracia era dedutível dos princípios francamente
liberais do Partido Progressista. Por outro, a esquerda dinástica
era nada se não representasse a «rua». Era esta que produzia a
existência de uma Esquerda e uma Direita dentro do regime, e que
continuava a impedir, dantes como agora, que os partidos se abra-
çassem ao Centro. Quando o progressismo oficial não pudesse
aplacá-la através de concessões suficientes, a «rua» ameaçava
voltar-lhe as costas e procurar chefes adequados noutras pa-
ragens. Foi isto que Loulé bem viu em 1867, e por isso deu luz
verde, a partir da Câmara dos Pares, para derrubar a «Fusão» 140.
Estando a opinião excitada com a presença das irmãs de caridade,
como sem dúvida o estava na viragem de 50 para 60, os histó-
ricos eram levados pela força das coisas a radicalizar as suas po-
sições para deixar as águas claramente separadas, sob pena de
se tornarem indistinguíveis da «reacção». Assim foram contri-
buindo para engrossar a corrente do proto-republicanismo den-
tro da própria monarquia.
As águas voltaram a separar-se claramente quando a ques-
tão das irmãs de caridade, depois de já ter contribuído para pro-
vocar a queda do primeiro governo histórico (16.3.59) e de ter
levado o segundo a dissolver o Parlamento (27.3.61), se encami-
nhou penosamente para o fim. O decreto que ordenava a dissolu-
ção da ordem, de 22 de Junho de 61, ficara sem cumprimento.

140 No Outono de 67, vendo o descontentamento nas cidades e nos cam-


pos atingir proporções de «insurreição latente», Loulé «declarou-se finalmente
em oposição na Câmara dos Pares». V. Pulido Valente, Dores de Crescimento (1864-
-1871), «working paper» apresentado ao seminário «Portugal Moderno, 1834-
-1934», que decorreu quinzenalmente no I.C.S. entre Outubro de 1988 e Julho
de 1990, pp. 57-58.

204
O século xIx em perspectiva política

Em Janeiro de 62, no rescaldo dos «tumultos de Natal» do ano


findo, Mendes Leal acusa o governo (histórico) de «reaccioná-
rio»», porque deixava a «reacção» «campear triunfante»!4!, Para
insuflar vontade política no governo, Loulé empreende a remo-
delação de 21 de Fevereiro, dando origem ao ministério mais
histórico de sempre. Logo em 11 de Março aparece uma pro-
posta de lei para «proibir o ensino em todos os estabelecimentos
públicos ou particulares de instrução, a quaisquer membros de
corporações religiosas estrangeiras», salvo autorização por lei
aprovada nas duas câmaras; e para «proceder à reforma do ensi-
no e da educação da infância nos estabelecimentos de benefi-
ciência, tanto públicos como particulares»!42. A comissão eleita
para dar parecer saiu de maioria oposicionista. Declarou que
a proposta dó governo prejudicava a liberdade de ensino e be-
neficência e que ofendia «o foro da consciência». A discussão
do parecer «foi uma das mais acaloradas e violentas que há muito
se presenciava no Parlamento»143. O governo venceu a votação
por uma margem de 20 votos, um indício seguro de que hou-
vera defecções na maioria. A separação das águas passava pelo
interior do próprio partido histórico.
Porque não havia dúvidas do que estava em causa. Quando
as irmãs finalmente embarcaram em 27 de Maio de 62, «dife-
rentes damas da aristocracia» da capital acompanharam-nas a
bordo do navio que Napoleão III enviara ao Tejo para as levar
de volta para França. A seguir, imitando o exemplo da impera-
triz viúva de D. Pedro IV, as ilustres senhoras demitiram-se
de todos os cargos que desempenhavam nas associações de cari-
dade da capital. Logo o duque de Ávila propôs que uma grande
comissão de Pares lhes fosse agradecer os relevantes serviços que
no exercício desses cargos tinham prestado à sociedade. O episó-
dio era mais uma prova evidente de que a «reacção» estava do
lado das irmãs, e aconselhava todos os sinceros liberais a que
se demarcassem da sua causa. Mas muitos liberais sinceros não

141 Gir. in História de Portugal de P. PRECE vol. xi, p. 195.


142 Thidem, p. 200.
143 Thidem.

205
Apologia da História Política

o fizeram: Fontes Pereira de Melo, Casal Ribeiro, Carlos Bento,


eo próprio Ávila, entre muitos outros, preferiram que se lhes
aplicasse a «pecha de reaccionários»!44, Os regeneradores,
e aqueles dos históricos que neste particular se lhes uniam,
achavam sem dúvida que era perigoso ceder a uma onda anti-
clerical que, encorajada, os conduziria à democracia. Não se
sentiam inclinados a colaborar na «republicanização do país»
14
ea promover, por esta via mais amena e discreta do que os mé-
todos abertamente revolucionários de outrora, a revolução polí-
tica e social. Mas a Esquerda histórica não tinha alternativa.
Pelo menos não a teve até 1884, quando se transformou em
mero parceiro rotativo.
Antes da pax regeneradora iniciada em 1851, a Carta Cons-
titucional era a barreira, real e simbólica, que separava as águas
entre a Direita e a Esquerda do regime, entre Conservação e
Revolução. De um lado estavam os que, através da integridade
do texto outorgado por D. Pedro, queriam manter o privilé-
gio da riqueza e excluir a democracia do liberalismo censitário.
Do outro os que, querendo abrir o regime ao «maior número»,
lhe forçavam a entrada por meio de conspirações revolu-
cionárias. Com o Acto Adicional de 1852 a reforma da Carta
perdeu, realmente e simbolicamente, o significado emblemático
de outrora: deixou de ser um «grito revolucionário». Mas passa-
dos escassos anos de acalmia, a democracia ressurgiu à tona
da sociedade. Mudara entretanto de rosto e de métodos. A ex-
periência de 48-51 obrigara a mudar os últimos. E pelo menos
na capital o fomento segregara, contrariamente aos cálculos dos
regeneradores, uma população urbana nova, um proletariado
moderno engrossado pela indústria, pelos serviços e, sobretudo,
pela imigração, desigual da gente dos ofícios tradicionais que
fora predominante até à década de 50146. Esta renovação popu-
lacional produziu um zadicalismo novo sem eliminar o velho,

144 História de Portugal de P. Chagas, vol. x11, pp. 200-202.


1450 programa do republicanismo durante a monarquia consistia na repu-
blicanização do país.» F. Catroga, op. cit., vol. 11, pp. 171-72.
146 Teresa Rodrigues, Nascer e Morrer na Lisboa Oitocentista, Lisboa, 1995,
pp. 137-143 e pp. 155-161.

206
O século xIx em perspectiva política

criando espaço tanto para um conde de Peniche como para um


Lobo d' Ávila ou um Oliveira Marreca. A proliferação de cen-
tros, associações e clubes políticos, especialmente nos anos que
antecederam a Janeirinha (Janeiro de 1868), reflecte por certo
a maior diversidade sociológica de um universo urbano em vias
de crescimento e modernização. De igual modo também a «Sal-
danhada» de 1870, pelo tipo de apoios que mobilizou e de rei-
vindicações que expressou, não deixa de lhe estar associada. Desse
universo saiu um movimento popular que nunca se deixou
unificar nem gerou uma alternativa coerente de poder, mas que
impedia que os «burgueses» e os «ricos» governassem em paz.
Porém, quaisquer que fossem as tendências ou os chefes pelos
quais se repartisse, oferecia-se como terreno permeável à ideo-
logia anticlerical, indistintamente secularizadora e laicizante,
que insidiosamente carreava a «Ideia republicana»: quanto à
«coisa», lá se chegaria gradualmente, pela evolução. Na segunda
metade do século, o anticlericalismo representou a barreira divisó-
ria entre Esquerda e Direita, entre Revolução e Conservação. Entre
os que queriam conservar a monarquia e a ordem social que
ela supunha, e os que pretendiam corroê-la pela acção crítica
da Razão. À medida que esta se exercia, foi-se gerando e difun-
dindo um «cepticismo religioso» que, atingindo o catolicismo
oficial, viria a derrubar «o mais forte dos esteios em que assenta-
va o bolorento conservantismo português»!47. Entre uns e ou-
tros, como dantes, estavam os «loucos do Pireu». Muita gente
bem intencionada, como Herculano, que supunha possível con-
ter a contestação dentro dos limites do secularismo liberal, do
mesmo modo que o ordeirismo na primeira metade do século
havia suposto que a reforma da Carta aplacaria a Revolução.

147 Basílio Teles, Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, op. cit. p. 30.

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Em Junho de 1849, nem o Costa Cabral nem o «cabralis-
mo» que sobreviveram à Maria da Fonte e à Patuleia eram os
mesmos de antigamente. Até ao princípio de 46, a união dos
dois irmãos (António Bernardo e José Bernardo) e a solidarie-
dade de interesses criada pelo poder foram permitindo assegu-
rar a coesão do «partido» e tornaram possível a digestão das
dissenções internas. Todavia, já em 1845 tinha sido preciso
aplacar a rivalidade de José Bernardo, oferecendo-lhe o minis-
tério da Justiça e um lugar no Conselho de Estado!; e quanto
ao «partido», apenas se conservou publicamente unido porque
a desunião daria lugar, segundo ameaçavam os seus chefes, ao
triunfo dos revolucionários?. Ainda assim, nas eleições de 1845
não foi possível evitar a substituição de cerca de dois terços dos
deputados que compunham a anterior maioria do ministério?.
Mas em Janeiro de 46, a recusa formal da Companhia Con-
fiança em emprestar mais dinheiro ao governo tornou claro que

1 Carta-circular de Moura Coutinho aos seus amigos políticos, datada de


7.7.47, ANTT. Arquivo da família Costa Cabral, Parte B- II, n.º 29. (Arquivo
referido, daqui em diante, por ACC).
2 Idem, ibidem.
O partido cartista acabou por se confundir com o «partido» cabralista. Daí
as aspas quando me refiro especificamente ao último.
3 Nas eleições de 45, relativamente às de 42, 57 deputados não foram reeleitos,
e surgiram 67 deputados novos. Verificou-se, pois, uma renovação da Câmara de
c. 60%. Cf. «A Restauração», n.º 24 e 25 de Junho de 42, e n.º 867 de Agosto
de 45. Agradeço ao Dr. José Miguel Sardica a indicação exacta desta fonte.
4 Segundo se afirma no relatório da Direcção de 3.6.46, a Companhia não
adiantou mais dinheiro ao governo a partir de 28.1.46. Banco de Portugal, Arquivo
da Cia. Confiança Nacional, n.º 18.

2d
Apologia da História Política

a falência financeira do Estado estava iminenteé. Ao cabo de


51 meses, a administração de Costa Cabral defrontava-se com
uma dívida fundada no valor de perto de 11 000 contos, e com
uma dívida flutuante que aumentara mais de 12 500 contos,
tendo-se assumido compromissos que equivaliam a «verdadeiras
antecipações dos rendimentos públicos» até ao final de 47. Para
agravar o quadro, o orçamento do Estado acusava um «défice
permanente» de 1400 contos”. Privado o governo dos meios
financeiros para «conjurar a tormenta que [se] pressentia», a re-
volução começaria, afinal, «pelos apuros da fazenda»º.
Depois, a Maria da Fonte precipitou a falência política do
cabralismo: o exército não se prestou a sufocar o levantamen-
to camponês, e o duque da Terceira, presidente do governo,
ministro da guerra e comandante da 1.º Divisão Militar, desam-
parou Costa Cabral, precipitando a sua queda”. Nessa altura
— 19/20 de Maio de 46 — «alguns deputados quiseram ainda
dar um sinal de vida», oferecendo-se à rainha para apoiar «qual-
quer governo cartista» que a soberana entendesse escolher.
Alegadamente, «os Cabrais» manobraram para inutilizar este
esforço”, significando com isso que, «desaparecendo [eles] da
cena política», em ninguém reconheciam legitimidade para her-
dar a «situação» de que haviam sido donos e senhores durante
quatro anos!º. Nestas circunstâncias, «nada restava, senão mor-
rer politicamente por algum tempo»!1.

5 J. G. Silva Sanches, O verdadeiro estado da dívida pública em Maio de


1846, Lisboa, 1848.
6 Jornal A União, 2.3.48.
7 CE A Restauração, 18.7.46, e confirmado pela correspondência particular
de Costa Cabral (daqui em diante referido por C. C.) — ver carta do Pº Marcos
para C. €. de 1.11.46, ANTT, ACC, Parte A — I, n.º 73. Luz Soriano diz que
Terceira opinou em Conselho de Estado pela demissão do ministério. Vida do
Marquês de Sá da Bandeira, 2 vols., Lisboa, 1888, p. 333, II.
8 Carta de Bartolomeu dos Mártires Dias e Sousa para €. C. de 25.7.46,
ANTI ACC) Parte A Tn
2 Carta-circular de Moura Coutinho de 7.7.47, ci.
10 Cf A Restauração, 20.7.46.
1H Carta de B. M. Dias e Sousa de 25.7.46, cit.

2,
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

Como não custa a imaginar, foram muitos os que não acei-


taram de bom grado essa morte política sem termo à vista, que
a seus olhos não passava de um sacrifício gratuito e inglório
por dois chefes que tratavam o partido como uma facção — como
coisa sua. Recusaram, por conseguinte, unir-lhes o seu desti-
no. «Seremos nós tão loucos que queiramos personalizar outra
vez o partido cartista nas pessoas deles, para outra vez, e para
sempre, nos perdermos com Cabrais?»!2 Não seriam, e por isso,
verdadeiramente, data daqui, de 20 de Maio de 46, a morte
definitiva do «cabralismo» arregimentado e dirigido por Costa
Cabral e pelo irmão desde 1842. Em seguida, a fuga e o exílio
dos «Cabrais» despedaçaram o «partido», que na ausência dos
chefes mergulhou em guerrilhas pessoais de invulgar truculên-
cia, ateadas pelas infindáveis intrigas que medravam num mar
de universal suspeição. Cabral de todos recebia cartas apontan-
do os nomes dos que acreditavam na «possibilidade de salvar
o país sem Cabrais»!2, e acrescentava-os à longa lista dos seus
inimigos, juntamente com os daqueles que permaneciam sob
Palmela nos seus «altos empregos»!4. Depois do 5-6 de Ou-
tubro escreveram-lhe que não viesse, «para o movimento não
aparecer como obra cabralista»!. E no Paço, onde tão depres-
sa foram esquecidos os «serviços» que prestara, também não
o queriam de voltaló.

12 Carta-circular de Moura Coutinho de 7.7.47, cit.


13 Idem, ibidem.
14 Carta de C. C. para o marquês de Fronteira, datada de Cádis de 5.9.46,
ANTT, Arquivo da Casa Fronteira, maço n.º 290.
Sobre os critérios pelos quais C. C. distinguia amigos de inimigos: «Vejam
se eles são demitidos dos seus empregos. Eu nesta parte estou pelo que dizia Na-
poleão, quando se lhe apresentava algum pretendente: = qu'avez-vous fait contre
les Bourbons pour être pendu s'ils reviennent en France? Rien, disait-il. Eh bien
(disait Napoléon), vous ne me convenez pas — Assim digo eu.»
15 Carta de João Rebelo da Costa Cabral para C. C. de 24.10.46, ANTT,
ACC; Parte:A= [nº 28:
16 Carta de João Rebelo para €. C. de 18.10.46, ANTT, ACC, Parte À — I,
5428]
Sobre a amargura de C. C., ver carta deste para Fronteira datada de Cádis
em 5.9.46, cit.

213
Apologia da História Política

Sobre tudo isto, as relações entre os dois irmãos, já ensom-


bradas desde 4517, pioraram no exílio!8. Em parte, tal era o reflexo
inevitável das intrigas que fervilhavam em Lisboa. Naturalmente,
a desavença dos irmãos fornecia às facções dois pólos de fideli-
dade concorrentes entre si, o que desde logo tornava virtualmente
impossível a reconciliação do «partido» no futuro, e, no imedia-
to, o precipitou na desastrosa «restauração» do 5-6 de Outubro
de 46, em que, na linguagem franca de Bartolomeu dos Márti-
res, «os nossos amigos [...] foram comidos»!?. Com efeito, longe
e ao contrário de ter restaurado o «cabralismo», o 5-6 de Outu-
bro entregou o poder ao duque de Saldanha, que até 1851 perma-
neceria imutavelmente fiel ao único objectivo de remover o conde
de Tomar da cena política portuguesa?0. Depois, durante a guer-
ra civil, quase todos se foram rendendo à necessidade, e muitos
até mesmo à bondade, da intervenção estrangeira, que se sabia
dirigida contra um regresso dos «Cabrais» ao poder?!.
De volta à pátria, depois da guerra, a reorganização do parti-
do requeria que os dois irmãos cooperassem publicamente a fim
de isolar e derrotar Saldanha no próximo combate eleitoral. Era
ainda cedo para Silva Cabral sair a campo sozinho. Subsistiam
as antigas «antipatias» e muitos continuavam a não lhe reconhe-
cer autoridade e envergadura para chefe do partido?22. Por seu

17 ver tb. carta de Dias e Sousa para C. C. de 25.7.46, ANTT, ACC, Parte
Au inn ZTE
18 José Bernardo regressou a Lisboa em 17 de Abril de 47, e os dois irmãos
deixaram de se corresponder a partir de 21 de Junho seguinte. Cf. carta de João
Rebelo para €. C. de 12.7.47, ANTT, ACC, Parte A — 1, n.º 28.
19 Carta de B.M. Dias e Sousa para C. C. de 2.6.47, ANTT, ACC, Parte
al o o
20 Sobre a estratégia de Saldanha antes e depois do 5-6 de Outubro, ver
M. Fátima Bonifácio, História da Guerra Civil da Patuleia, Lisboa, 1993.
Mais tarde (14.2.48), Saldanha reiterou publicamente na Câmara dos Pares
que em 1846 tentara conservar Bonfim e Antas no comando das Divisões Mili-
tares, respectivamente, de Lisboa e do Porto. Cf. Carnota, Memoirs of Field-Mar-
shal The Duke of Saldanha, 2 vols., Londres, 1880, p. 217, II.
21 «Muita gente, mesmo cartista, está satisfeita com a intervenção», escreveu
João Rebelo a C. C. em 13.4.47. ANTT, ACC, Parte A — T, n.º 28.
22 Carta de António de Lacerda para C. C. de 1.6.47, ANTT, ACC, Parte
Ha Ea (O

214
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

turno o conde de Tomar, dada a desordem instalada durante a


sua longa ausência, necessitava da falange do jornal O Estan-
darte organizada pelo irmão. Juntos, ainda ganham as eleições
de Dezembro de 47, uma proeza cujos louros José Bernardo pu-
blicamente reivindicou?3. Mas a revolução de Fevereiro de 48
em Paris, bem como os subsequentes acontecimentos revolucio-
nários na Europa, precipitaram as cisões na farta maioria par-
lamentar que O Estandarte de José Bernardo se gabava de ter
fabricado. De um lado estavam aqueles, como Ávila, que de-
fendiam na Câmara de Deputados as concessões políticas como
meio de desarmar a revolução?4, advogando a necessidade de
rever a Carta Constitucional?>; do outro estavam os que, em
coro com O Estandarte, preconizavam dureza para perseguir e
aniquilar os revolucionários26, reclamando o reforço dos bata-
lhões nacionais em nome da «necessidade inadiável de armar
as autoridades de força pública»27. Saldanha toma partido pelos
primeiros, e Tomar pende para Saldanha?8. Em 14 de Abril de
48, a publicação do jornal O Popular, afecto ao conde, anun-
cia a ruptura entre os dois irmãos. Dali a pouco, a sua demis-
são da presidência do «Centro eleitoral cartista do reino e ilhas»

25 O Estandarte, 22.12.47.
«Pois bem: se a gente actual do Estandarte não é 4 que venceu as eleições de
1847, nem representa o partido cartista, nós emprazamos um ministério qualquer
para que empreenda umas eleições cartistas sem o nosso apoio.» O Estandarte,
2.8.49 (itálico no original).
24 0 Estandarte, 28.2.48.
25 No final de Março de 48 apareceu na Câmara de Deputados um pare-
cer da comissão eleitoral que questionava a constitucionalidade do art. 63.º da
Carta, o que era uma maneira indirecta de propor a revisão da mesma. Cf. O Es-
tandarte, 28.3.48. Dali a pouco, em princípios de Abril, Sá da Bandeira propu-
nha nos Pares que se formasse uma comissão encarregada de averiguar se «o País»
estava satisfeito com a execução da Carta no que tocava às suas disposições eleitorais.
Cf. O Estandarte, 3.4.48.
26 O Estandarte, de 6.3.48 e 9.3.48.
27 O Estandarte, de 15.2.48 e 17.2.48.
28 M. Pinheiro Chagas e J. Barbosa Colen, História de Portugal Popular e
Ilustrada, 14 vols., Lisboa, 1907, vol. XL, pp. 290-292. A rainha resolve a crise
ministerial (29.3.48) a favor de Saldanha e Tomar, aceitando a demissão do minis-
tro do Reino, Gorjão Henriques, que preconizava a dureza advogada pela facção
de Silva Cabral.

2
Apologia da História Política

consagra a ruptura e oficializa uma aliança táctica e informal


entre o duque de Saldanha e o conde de Tomar?”.
Não que este tivesse abandonado o cartismo puro e duro
e abraçado com sinceridade a «doutrina das concessões», mas
porque, na realidade, já não tinha escolha: José Bernardo, re-
gressado do exílio vários meses antes do irmão3º, acabara por
se tornar o verdadeiro chefe do ultraconservadorismo, e Costa
Cabral não se sentia inclinado a ajudá-lo a conquistar o poder.
Em tempos, ainda tinha podido contê-lo «cedendo» a algu-
mas das suas «exigências»?!. Agora, que o irmão contava com
uma facção própria e se gabava de ter sido ele quem produzira
a maioria parlamentar, a parceria de 1845 já não era susceptí-
vel de ser reeditada.
De parte a parte, a aliança entre Tomar e Saldanha era pura-
mente instrumental. Desde a defecção do marechal duque da
Terceira, em 1846, Costa Cabral apenas dispunha no exército
de um apoio incerto. Precisava, portanto, de outro marechal,
e Saldanha era o único que sobrava. Possuía prestígio militar,
era presidente do governo, e, pelo menos formalmente, estava
coberto com a autoridade da rainha. Por todas estas circunstân-
cias, era incontornável. Privado de influência militar sólida e
de um partido organizado e fiel, Cabral não dispunha de meios
para o combater de frente. Decidiu-se a cooperar com ele até
que chegasse a ocasião de lhe disputar frontalmente o lugar.
Entretanto foi resistindo como pôde. Os seus amigos mais fiéis,
em Lisboa e pela província, encarregavam-se de manter viva a
esperança no regresso do conde ao poder. Na Câmara dos Depu-
tados e na dos Pares dispunha de votos que Saldanha, por seu
lado, não se podia dar ao luxo de desprezar?2. E tanto a guarda
municipal como os batalhões nacionais de Lisboa, confiados

29 «O centro cartista não morrerá, querendo Deus, porque um dos seus


membros o abandona». O Estandarte, 13.5.48.
30 Regressou em 17 de Abril de 47, e Costa Cabral em 27 de Agosto de 47.
31 Carta de B. M. Dias e Sousa para C. C. de 25.7.46, cit.
32 Cabral, de resto, gabava-se disso, o que suscitou a ironia de Carlos Bento
no Parlamento: «S. Exa. tinha maioria para si, e maioria para emprestar.» DCD,
23.1.50.

216
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

ao zelo incansável dos dois irmãos Fronteira, continuavam a ser


um reduto do conde de Tomar.
Saldanha estava no poder, mas o País não se deixava governar.
À desorganização do Estado e a desobediência instalada na socie-
dade transformavam quaisquer reformas em «pretextos de que
os agitadores se hão-de servir para desviar os ânimos dos povos».
No Parlamento, na imprensa, no exército e na Câmara do Porto?4,
José Bernardo movia-lhe uma oposição tenaz, transformada em
guerra aberta a partir de Julho de 48%. Disfarçada de «Partido
Nacional», a esquerda, ainda enleada nos compromissos da Patu-
leia e reanimada pela «Primavera dos Povos», eximia-se a toda a
espécie de colaboração. Dispunha de quase nenhuns votos no
Parlamento, mas combatia ardorosamente nos jornais e corroía
a disciplina no exército. Os radicais, através de O Patriota e de
A Revolução de Setembro, por vezes faziam côro com O Estan-
darte, provando assim, para escândalo dos espíritos moderados,
que os extremos acabam afinal por se tocar. Ao centro, como
acontecia desde sempre e se tornara particularmente notório em
1846-47, não havia nada. Até Rodrigo, cansado de pregar conci-
liação no deserto, suspende a publicação de O Lusitano em Abril
de 48. Restava pois ao duque de Saldanha atrair o apoio do conde
de Tomar. Sob mais de um aspecto, apresentavam-se agora fla-
grantes semelhanças com a disposição das forças políticas no Ou-
tono de 1846, em essência deixada na mesma por uma guerra
civil que, tendo terminado sem vencedores nem vencidos nítidos,
nada de decisivo resolvera definitivamente.

33 0 Popular, 21.8.48.
34 A Câmara do Porto era há vários anos dominada pela facção de José
Bernardo, e exprimia-se em O Defensor. Cf. carta de Lopes de Vasconcelos (gov.
civil do Porto) para C. C. de 19.12.49, ANTT, ACC, Parte À — 1, n.º 70.
35 O Estandarte, 26.7.48.
36 Esta colaboração informal era registada pela polícia do marquês de Frontei-
ra: «eu julgo que aqueles indivíduos já não são cartistas, e que estão todos unidos
com os patuleias». Carta do marquês de Fronteira para C. C., sem data (presumi-
velmente em princípios de 48), ANTT, ACC, Parte A-J, n.º 55. A mesma perver-
sa convergência entre «despeitados» (grupo de O Estandarte) e «revolucionários»
não escapava ao P.º Marcos, cf. carta para C. C. de 18.11.48. ANTT, ACC, Parte
A-I n.º 73.

217
Apologia da História Política

De tão falsa, a situação era intrinsecamente volátil. Por força


das coisas, era impossível os dois homens não virem a entrar
em rota de colisão. Prevendo o facto como infalível, em meados
de 49 O Estandarte de José Bernardo dá a mão a O Popular de
Costa Cabral. O Patriota logo comentou a sensacional recon-
ciliação «entre os dois chefes da cabralice», correctamente in-
terpretada como o prenúncio das hostilidades que levariam à
demissão de Saldanha: «Os irmãos estão unidos; trabalham jun-
tos; têm grandes meios. Não se lhes evita o triunfo.»37 O afron-
tamento não se deu de forma directa. Em lugar disso, Saldanha
e Tomar digladiaram-se através, respectivamente, do barão de
Ourém e do marquês de Fronteira. Ourém, que era o minis-
tro da Guerra, pretendia reduzir os batalhões nacionais, que
escapavam à sua autoridade; Fronteira, que os comandava, pre-
tendia aumentar o número dos seus efectivos. Através de
ambos, Saldanha e Tomar mediam forças?8. A rainha, em mais
uma clara indicação das suas preferências, deixou que Ourém
se demitisse??. Saldanha ainda esperou que uma manifestação
militar decidisse o braço de ferro a seu favor. Mas o exército não
se mexeu, e Saldanha teve de ceder“. «O colosso veio ao chão»,
exultou O Estandarte. A 19 de Junho de 1849, D. Maria teve
enfim o prazer de reempossar Costa Cabral na presidência de
um novo governo. Era ela, agora como dantes, a sua principal
fonte de poder. Naturalmente, o caso serviu para aumentar o
rancor que o radicalismo nutria pela monarquia.
Imediatamente se reabriu diante de Tomar o dilema com
que já deparara em finais de 47, princípios de 48. O apoio da

370 Patriota, de 22 e 12 de Junho de 49.


38 O Estandarte, 19.6.49; e tb. A União, de 16.6.49, que cita a interpretação
que O Estandarte dá do caso: os batalhões ... «essa milícia cívica, impossível de
aliciar» ... «obnóxia aos déspotas e revolucionários — foi decidido no comité de Cin-
tra [Saldanha] que deve ser esmagada com mão de ferro» ... «se vencer esta pri-
meira batalha, o barão laureato [Ourém] não duvida de venir à bout com o exército».
39 Saldanha escrevera-lhe a avisar que a demissão de Ourém implicava a
sua. Carta de Saldanha para D. Maria, 16.6.49, ANTT, Cartório da Casa Real,
cxa. 7323, m.10, cap. 162.
40 O Estandarte, 17.7.49.
41 20.6.49.

218
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

facção de O Estandarte, conforme o jornal deixou bem vinca-


do, era inteiramente condicional, e logo avisou que só aprovaria
«um governo cartista de 1845»42, o mesmo do qual José Ber-
nardo fizera parte. Tal como em 45, o «mano» manifestava
agora abertamente «querer parecer por força e em tudo equipa-
rar-se, senão exceder» ao conde), Com aquela declaração, José
Bernardo da Silva Cabral chamava a si a representação simbó-
lica do cabralismo, erigindo a administração a que pertencera
na referência paradigmática do cartismo conservador. Depres-
sa se começaram a notar os efeitos palpáveis do seu apoio ao
governo de 19 de Junho: «Muitos empregados, que tinham
recebido as suas nomeações do ministério de Saldanha, foram
imediatamente demitidos.» Mas se o conde se resignasse a
executar o Diktaí do irmão, com que argumento lhe recusaria
uma «cadeira ministerial»? Tomar repeliu o papel de refém e
enfrentou a chantagem. Esta liberdade custou-lhe a renúncia
ao antigo «exclusivismo». O «exclusivismo» pertencia agora ao
irmão, e era contra ele que tinha de governar. Não mudara de
temperamento nem muito provavelmente mudara de con-
vicções. Mas a força das circunstâncias obrigava-o a uma bran-
dura que no passado se lhe desconhecia. Logo na sua primeira
reunião, o conselho de ministros lavrou em acta que o novo
governo «estava possuído dos melhores sentimentos a favor da
conciliação de toda a família portuguesa». Com efeito, uma
das suas primeiras medidas consistiu em anunciar uma amnistia
para todas as ofensas políticas. Por uma ironia do destino, era
agora Costa Cabral quem sobre as coisas passadas deitava um
«véu de esquecimento», esse «bálsarno» cujas virtudes curativas
Rodrigo levara anos a apregoar.
O Estandarte reagiu como era de esperar. Logo em 27 de
Agosto, dois meses após o começo da segunda administração

42 O Estandarte, 12.7.49.
43 Carta de B. M. Dias e Sousa paraiC; GC de 257.46 nois
44 Carnota, Memoirs ofField-Marshal The Duke of Saldanha, op. cit., vol. 1,
p. 250.
45 Acta do conselho de ministros de 18.6.49, ANTT, ACC, Parte B-— II,
n.º 29

Quo
Apologia da História Política

de Costa Cabral, declarou-se formalmente na oposição. Esta-


va cansado de «incúria», farto de «minúcias enredadoras» e en-
joado do «elixir das portarias» com que o governo supria a
audácia que lhe faltava para as drásticas reformas que o país recla-
mava“º. Alcunhou o ministério de «os seis dormentes»4” e vati-
cinou que seria despedido tão ominosamente como em França
acontecera ao Directório. José Bernardo, presumivelmente,
seria o nosso Napoleão. Descontada a enorme dose de basófia
que inchava a prosa de O Estandarte, o certo é que as críticas
e denúncias que diariamente enchiam as suas páginas foram
produzindo um efeito de desgaste que deixou o governo, e prin-
cipalmente Costa Cabral, demasiado vulnerável para enfrentar
a campanha de acusações, de uma violência sem precedentes,
com que no final de 49 toda a oposição fustigou o presidente
do governo. Todos os dias a imprensa revelava escândalos e
publicava alegadas provas de que o ministro era «concussio-
nário» ou, ainda mais cruamente, «ladrão»4?. Na Câmara Alta,
com as galerias apinhadas de populares ávidos de gozar a humi-
lhação do «tirano», Cabral era interpelado pelos seus pares, e via-
-se obrigado a repelir «injúrias», «calúnias» e «ultrajes» dirigidos
a aniquilar a sua pessoa, não a questionar a política do seu go-
verno>, Lavradio, com o seu modo sibilino de acusar, estava
sempre na primeira linha do ataque. Depois dele Rodrigo, com
a sua infinita compreensão pela fraqueza dos homens, disparava
setas venenosas embrulhadas em falas mansas. Saldanha, é claro,
dizia que pessoalmente não dava crédito ao que em toda a

46 O Estandarte, 27.8.49.
47 Ibidem, 5.11.49.
48 Ibidem, 14.9.49.
49 Para um resumo da campanha de acusações movida na imprensa, e dos
debates havidos na Câmaras em Janeiro-Fevereiro de 1850, ver M. Pinheiro Cha-
gas e Barbosa Colen, op. cit., vol. XI, caps. XXVI e XXVII.
50 A interpelação pessoal do presidente do conselho iniciou-se na Câmara
dos Pares a 12.1.50, a pretexto da resposta ao discurso da Coroa. Ver excertos das
sessões de 12-18 de Janeiro de 1850 no Diário do Governo de 15.1.50 a 21.1.50.
Depois, a 1.2.50, Lavradio levanta nos Pares a questão do Affidavit, cf.
Diário do Governo de 5.2.50, tendo proposto a interpelação formal do presidente
do conselho, que foi agendada para 5.2.50 (Diário do Governo de 8.2.50).

220
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

Lisboa se dizia e escrevia. Mas logo lembrava a necessidade de


o homem de Estado provar a sua inocência, sabendo que exi-
gia o impossível>!. Tomar respondia atacando, como era seu
estilo. Erguia o dedo e lembrava os podres dos próprios que
o acusavam, prometendo que havia de «entregá-los à irrisão
pública». Os mesmos jornais que agora o enxovalhavam tinham
outrora caluniado alguns dos pares ali presentes, que no entanto
se limitaram a responder-lhes com o desprezo. Mas ao conde de
Tomar, «aristocrata novo e descendente de um plebeu», a esse
exigia-se que provasse a sua inocência perante o júri>2. Em volta
dele, na rua, nos jornais e nas Câmaras erguera-se uma muralha
de ódio composta de antigos inimigos agora irmanados na deter-
minação de o abater. «Poucos exemplos há na história — escre-
veu-lhe o Pº Marcos — de uma aversão tão forte, tão cega e tão
arreigada»3,
O conde de Tomar representava ainda a luta contra a revo-
lução quando na Europa ela já fora derrotada. Em Portugal, de
resto, a «Primavera dos Povos» não dera mais do que a caricata
«revolta das hidras», que o governo em pouco tempo neutra-
lizou com meia-dúzia de prisões cumpridas em regime hote-
leiro54. Passara o medo da anarquia revolucionária, o pavor da
subversão social, e passara também, por conseguinte, a hora
de Cabral. O homem tornou-se dispensável e, com a excepção
decisiva da rainha, passou a ser visto por toda a gente como
um estorvo à pacificação da política portuguesa: Costa Cabral
converteu-se, ele próprio, no pomo da discórdia. De «indispen-
sável», a sua presença tornou-se «uma verdadeira calamidade»
para o País. Foi isto mesmo que exprimiu Carlos Bento em

51 Saldanha contou-se entre os que votaram a favor da interpelação do presi-


dente do conselho (sessão de 5.2.50).
52 Câmara dos Pares, sessão de 15.1.50, in Diário do Governo, 17.1.50.
53 Carta do Pº Marcos para C. C. de 1.11.46, ANTT, ACC, Parte A — 1,
n.º 73. (Esta carta encontra-se por engano arrumada no maço n.º 62).
54 «Na clausura fazia-se uma festa todos os dias, porque as famílias dos presos
e as pessoas amigas mandavam tudo o que havia de primoroso na sua cozinha e,
juntamente, a filigrana da copa.» Bulhão Pato, Memórias, Lisboa, 1986, vol. II,
p. 104.
25 DCD, 24.1.50.

eo
Apologia da História Política

pleno Parlamento: «tenho visto homens tornarem-se impos-


síveis à força de serem indispensáveis»; o conde de Tomar, acres-
centou, «não pode estar um instante nas cadeiras do governo
sem comprometer todos os interesses desta nação».
Aparentemente, o País tinha mergulhado numa apatia gene-
ralizada. Como se entre a quietude da província e o frenezim
de um punhado de conspiradores urbanos se tivesse cavado
um fosso intransponível. O marquês de Fronteira, que a partir
do governo civil de Lisboa dirigia uma polícia secreta que recolhia
informações de todos os cantos do País, seguia os «manejos» dos
revolucionários e verificava, com satisfação, a indiferença das
populações. As comunicações recebidas directa e oficialmente
dos governadores civis do reino confirmavam esta impressão.
Na sua maior parte, asseveravam que as «ideias de movimen-
to revolucionário» não passavam de «embustes» propalados
pelos «inimigos» do governo com o manhoso fim de «observar
as medidas que se tomam». Por mais de uma vez se aprazaram
«movimentos», mas chegada a hora ninguém aparecia. As an-
danças dos emissários dos «clubes» e as reuniões de «comités»
entraram numa espécie de rotina com que umas dúzias de es-
piões justificavam os seus salários, mas nunca ameaçaram seria-
mente a ordem estabelecidas”. Aparentemente, o frenezim
conspirativo destinava-se a reorganizar as «comissões filiais»
e a relançar a influência do «partido setembrista» que, à excep-
ção dos seus (poucos) núcleos urbanos mais militantes, «real-
mente há meses tem estado adormecido».

56 Pereira de Melo, DCD, 21.1.50.


57 O estado da ordem pública em geral, e as andanças e «manejos» dos
revolucionários e seus agentes, em particular, são o objecto quotidiano da corres-
pondência dos governadores civis para o ministro do Reino, perfazendo milhares
de documentos que não faria sentido individualizar no âmbito deste artigo, a não
ser excepcionalmente. Toda esta documentação se encontra no ANTT, sob a cota
«Arquivo Central das Secretarias de Estado do Ministério do Reino», agrupada
por «Processos» numerados, referenciados nos «Livros de Entradas» LV 908-A
(1848-49), LV 909-A (1849-50) e LV 910-A (1951-52).
58 Ofício do marquês de Fronteira para o ministro do Reino (Tomar), de
7.11.49, ANTT, Arquivo das Secretarias de Estado do Ministério do Reino (daqui
em diante: AMR), LV909-A, proc.º n.º 127.

22»,
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

No entanto, a paz era enganadora. Depois da Patuleia,


a confiança pública nunca voltou a ser restabelecida. Uma frac-
tura insanável separava os que tinham aderido à junta do Porto
dos que haviam servido o governo de Lisboa, e em cada conce-
lho os dois grupos continuavam a guerrear-se. As autoridades
que afiançavam existir «sossego político» no distrito respectivo
eram as mesmas que proibiam as «tabernas abertas depois das
oito horas da noite» para evitar desordens, e que mandavam
formar «colunas volantes» e «destacamentos» para prevenir pos-
síveis revoltas. O País, por seu turno, surdo à propaganda revo-
lucionária e aparentemente adormecido, na realidade resistia
tenazmente ao governo do conde de Tomar. Era uma resistência
passiva impossível de vencer. Generalizou-se a obstrução à
cobrança dos impostos. Os «povos» descobriam ou fingiam des-
cobrir «inovações» que interpretavam como manhas para mais
os explorarem, e protelavam o pagamento ou recusavam-se a
pagar. As próprias autoridades, desmoralizadas e conscientes
da sua fraqueza, eram as primeiras a implorar «prudência» ao
governo de Lisboa. Os governadores civis recomendavam aos
administradores de concelho que não se limitassem a fazer exe-
cutar as leis, mas que pelo contrário sobre elas «meditassem»,
propondo as alterações «que convém fazer» a fim de evitar «as
más consequências que se podem seguir da sua observância».
A mais inócua medida que sugerisse reforma ou novidade era
repelida com energia ou esbarrava numa barreira de inércia.
Como explicava um compreensivo governador civil, «o povo
português é muito aferrado aos seus antigos hábitos», o que de-
saconselhava toda e qualquer medida tendente a alterá-los.
E neste caso tanto estavam as leis de saúde como a actualização
da décima e a uniformização dos pesos e medidas, ou ainda a
transferência de tropas às quais os povos se houvessem entre-
tanto afeiçoado. Como que movido pela memória traumatizada
do primeiro governo dos «Cabrais», o interior do País, com sim-
ples passividade ou com a ameaça de «comoções», intimidava

59 Circular do governador civil de Braga a todos ós administradores de con-


celho do seu distrito, datada de 6.3.50, ANTT, AMR, LV 909-A, proc.º n.º 458.

223
Apologia da História Política

as autoridades locais e reduzia o governo à inoperância. É este


o retrato que se desprende da infindável correspondência rece-
bida de todos os lados no ministério do Reino: os «povos» tor-
naram-se, literalmente, ingovernáveis.
Ninguém se queria comprometer com uma administração
que todos pressentiam condenada. Na província, antigos adep-
tos de Costa Cabral passaram-se para as fileiras do irmãos.
Aos que permaneceram fiéis falecia o ânimo. Tinham, também
eles, perdido a fé. No fundo, julgavam o conde liquidado,
e temiam ser arrastados na queda. Poucos havia que ainda
gostassem de passar por «cabralistas»ó!. De toda a parte lhe
escreviam queixando-se do «desgosto» e «desanimação» que «la-
vrava» no «partido», lamentando o abandono a que os correli-
gionários tinham votado a «causa» da Carta%2. Sobre todas as
coisas, a «zanga» dos «manos» espalhara mais que tudo perplexi-
dade e confusão. O partido, «dividido por essa tão prejudicial
cisão entre V. Exa. e seu mano, parece atacado de estupor, está
em completo indiferentismo político». Muitos, não sabendo
qual dos chefes escolher, tinham optado por se afastar da polí-
tica. Outros, lamentando a destruição do «partido cartista»,
viviam «atormentados» com as vantagens que Saldanha e a Pa-
tuleia dela tiravam. Finalmente, outros ainda cobravam caro
o seu apoio. Exigiam «graças» e «mercês», avisando que sem elas
aparecerem não dariam nem «mais um passo».

60 Carta de Albano Caldeira, datada de Castelo Branco em 30.7.49. ANTT,


ACC, Parte A — I, n.º 39.
61 Carta de Albano Caldeira para C. €., datada de Viseu em 13.7.50,
ANTT, ACC, Parte A— I, n.º 39.
62 Carta do «amigo» Olímpio para C. C., datada de Viseu em 13.8.50,
ANTT, ACC, Parte A — I, n.º 51.
63 Carta de Albano Caldeira para C. C., datada de Castelo Branco em
6.10.49, ANTT, ACC, Parte A-I, n.º 39.
64 Carta de Ferrugento para C. C., s/d (Agosto de 1850), ANTT, ACC,
Parte A — 1, n.º 51. (Ferrugento era «um antigo empregado da polícia que priva-
va muito com o conde de Tomar», cf. Marquês de Fronteira, Memórias do Marquês
de Fronteira e Alorna, Lisboa, 1986, vol. Iv, p. 353.)
65 Carta do visconde de Ferreira para C. C. de 13.7.49, ANTT, ACC, Parte
A-J n.º 50.

224
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

No Verão de 1850, alegando a necessidade de tratar o reuma-


tismo, Costa Cabral desloca-se às Caldas da Rainha e dali retira-
-se para Tomar, e por lá se vai demorando, alheio aos apelos dos
amigos para que viesse pôr cobro à «intriga, sedução e até relaxa-
ção dos vínculos de obediência e da disciplina» que progrediam
a olhos vistos na administração e no exércitoS. Entregue a si
mesmo, o governo mergulhou numa profunda letargia. No paço
apenas se tinha notícia dele por algumas cartas que muito espa-
çadamente chegavam pelo correio. Os ministros, aterrados pelos
boatos de um «movimento militar», fechavam-se nas secretarias,
«com medo de serem assassinados»$”, enquanto várias autoridades
da província, por temor de um «movimento popular», se vinham
refugiar em Lisboa. Mais grave do que a paralisia do ministério,
a deserção dos amigos e o destroço do partido era o estado do
exército, onde Saldanha ganhava adeptos na exacta medida em
que aumentava o atraso no pagamento dos soldos. Do Minho
ao Algarve, são constantes as queixas de que a «força pública»
está a chegar «aos extremos da desesperação»º?, predispondo natu-
ralmente a tropa para «apoiar qualquer revolta que se manifeste
no país»/0. O problema, cuja solução era sem dúvida vital, apre-
sentava-se tão mais difícil de atalhar quanto também o Banco
de Portugal, em cuja assembleia-geral pontificava José Bernardo,
se passara no Verão de 1850 para a oposição?!. Ávila, o ministro
66 Carta de E. Pereira de Magalhães para C. C., 19.8.50, ANTT, ACC,
Parte À — 1, n.º 83.
67 Cartas do Pe. Marcos para C. C., de 7.9.50 e 9.9.50, ANTT, ACC, Parte
A-I n.º 73.
68 Carta de Saldanha para Ourém, 21.8.50, in Carnota, Memories..., op.
cit., p. 260, II.
69 Carta de Lopes de Vasconcelos para C. C. de 3.2.50, ANTT, ACC, Parte
A-T, n.º 70.
70 Ofício do governador civil de Leiria para o ministerio do Reino de
10.8.50, ANTT, AMR, LV 909-A, proc.º n.º 693.
71 Depois de uma fase de boas relações, coroada pela aprovação do diplo-
ma de 20 de Abril de 1850 que legalizava definitivamente o Banco de Portugal
(criado por dec.º de 19.11.46), as relações entre o Banco e o governo entraram
numa fase de deterioração que degenerou em guerra aberta. Sobre a evolução
das relações entre o governo e o Banco, ver Jaime Reis, O Banco de Portugal. Das
Origens a1914, Lisboa, 1996, vol. 1, pp. 341-371. Sobre o papel de José Bernar-
do da Silva Cabral, ver especialmente pp. 365-66.

ópio
Apologia da História Política

da Fazenda, obtivera até esta altura empréstimos bancários que


foram ministrando algum alívio e permitindo tapar alguns
buracos. Mas em Agosto de 50, as negociações para um novo
empréstimo de 400 contos goraram-se porque o ministro,
segundo alegou, não se dispôs a ceder às exigências «agióti-
cas» apresentadas pelo Banco?2. E o dinheiro que este agora
não emprestou, mais tarde tê-lo-á oferecido para financiar o
pronunciamento da Regeneração??.
Ora foi quando já estava literalmente cercado — pela re-
sistência passiva do País, pela desmoralização das autoridades,
pelo abandono dos antigos partidários, pelo desânimo dos ami-
gos, pela guerra de O Estandarte, pelo fogo cruzado das facções,
pela sedição no exército, pela oposição do Banco de Portugal,
pela ronda dos escândalos difamantes — que o conde de Tomar
escolheu o momento para afrontar o duque de Saldanha pública
e directamente.
Depois de 1849, que ficou conhecido como o «ano do
caleche», rebentou em 1850 o escândalo do affidavit. Desta vez,
era a própria honra da rainha, como «mulher», «esposa» e «mãe»,
que resultava salpicada pela contenda jurídica em que Costa
Cabral se envolvera com o jornal inglês Morning Post. Lavra-
dio, nos Pares, levantou a questão, e Saldanha, conforme já dito,
exprimiu o parecer de que ela devia ser discutida. D. Maria
ripostou despedindo-o de mordomo-mor, primeiro criado do
paço, e com isso deu uma vez mais a vitória a Costa Cabral,
que propôs e referendou o decreto da demissão. Saldanha reagiu
e foi sucessivamente demitido de conselheiro de Estado, de vogal
do Supremo Tribunal de Justiça Militar e de ajudante-de-campo
d'el-rei D. Fernando. A partir daqui — Março de 1850 — a segunda

72 Carta do Pe. Marcos para C. C. de 6.9.50, ANTT, ACC, Parte A — 1,


ns;
73 Assim o sustentam Barbosa Colen (p. Chagas e B. Colen, História de
Portugal, op. cit., pp. 580-1) e o marquês de Fronteira (Memórias, cit., vol. Iv,
p: 358). No entanto, Jaime Reis (op. cit.) conclui apenas ser certo que, indivi-
dualmente, «algumas das suas [do Banco] figuras gradas tiveram um lugar desta-
cado na preparação da Regeneração, eventualmente contribuindo com dinheiro
do próprio bolso para as respectivas despesas» (p. 373).

226
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

administração de Costa Cabral entrou em contagem decrescen-


te. José Bernardo, numa última manifestação de solidariedade
fraternal, ainda tomara a defesa do irmão no Parlamento, quan-
do a campanha do affdavit atingiu o rubro. Mas em breve O Es-
tandarte recomeçou a crivá-lo de censuras e acusações, e em
Outubro declarou brutalmente que «Um muro de bronze» se-
parara «para sempre» os dois campos?4. Todos os olhos se vol-
tavam para Saldanha, por isso que se sabia que apenas o exército
podia derrubar o ministro coberto com o apoio resoluto da
rainha. No país vizinho, Narváez ainda lhe prometeu protecção
num discurso pronunciado nas Cortes?. Mas em Janeiro de
51, terminada a revolução na Europa, também o general «mo-
derado» deixava o poder em Espanha. Com isso, dissipou-se
a ameaça de uma intervenção espanhola no caso em que por
cá se empreendesse a remoção de Costa Cabral pela força. Ape-
nas a rainha se atravessava agora no caminho de Saldanha.
Já em Dezembro de 49 o duque lhe tinha escrito uma ex-
tensa carta em que, com grande respeito mas com não menor
franqueza, procurava convencer D. Maria de que era imprete-
rível afastar um ministro que acabava por expô-la a ela ao «ódio
geral». E avisava sem rodeios: «Se Vossa Majestade quer con-
tinuar a reinar em Portugal; se Vossa Majestade deseja que a
sua Dinastia continue o seu reinado; não espere, para demitir
o conde de Tomar, que em qualquer parte do reino se levante
um grito armado contra ele.»/ó Por motivos que a pura razão
tem dificuldade em penetrar, Saldanha sempre se achara investi-
do de uma autoridade paternal junto da filha de D. Pedro IV.
Ao despedi-lo de mordomo-mor, esta revelou secamente que
recusava a tutela do súbdito. Saldanha preparou-se para soltar
o «grito armado» contra o conde de Tomar. No dia 7 de Abril
de 1851 saiu de Lisboa acompanhado do filho e dos ajudantes-
-de-ordens, e dirigiu-se para Sintra e Mafra, por onde decidira
iniciar o pronunciamento.

7423.10.50.
75 Pinheiro Chagas e Barbosa Colen, op. cit., vol. x1, p. 531.
76 Carta de Saldanha para D. Maria, 16.12.49, ANTT, Cartório da Casa
Real, cx. 7323, m.10, cap. 162.

227
Apologia da História Política

Não foi um pronunciamento igual aos outros a que já se


assistira em Portugal. Desta vez, e pela primeira vez, os civis
não seriam autorizados a participar. O conde das Antas ofere-
ceu-se a Saldanha com todo o Partido Progressista, prome-
tendo-lhe incondicional submissão. Instruído pelo passado,
o duque recusou: «não consentirei que a vossa revolução tenha
lugar; dado que eu próprio tenciono fazer uma. No estado de
irritação em que o país agora se encontra, um movimento
democrático poderia levar não apenas à expulsão da rainha,
mas, provavelmente, ao derrube da dinastia»?”. À estas razões
políticas acresciam razões corporativas: «se recorresse à revo-
lução popular estava perdido. Há desde 1846 uma tal antipa-
tia dos soldados para com os populares, que se me quisesse
valer destes seria abandonado por aqueles e fugir-me-iam os
próprios que já me seguem. Ou a revolução há-de fazer-se com
o exército somente, ou não se fará»?8. A experiência mostrara
que a intrusão de civis contribuía para reforçar as divisões polí-
ticas dentro do exército, minando a disciplina militar e impe-
dindo o estabelecimento de uma cadeia de comando unificada.
A obediência no interior do exército não podia continuar divi-
dida entre duas lealdades contraditórias, a hierarquia interna
por um lado, e as facções políticas externas pelo outro. Dito
por outras palavras: impunha-se acabar com a existência de
dois exércitos, um cartista e outro setembrista-zadical. A Esquer-
da, arregimentada no agora denominado «Partido Nacional»,
mas que em essência não passava do partido da Patuleia de ou-
tros tempos, foi conservada de fora. Manteve-se numa atitude
expectante, «observando perfeita neutralidade» e afectando
desinteresse por uma contenda em que não fora chamada a
entrar??. José Bernardo e o seu O Estandarte vinham fazendo

77 Carnota, Memories..., op. cit. p. 267, II.


78 Palavras de Saldanha em Coimbra, em Abril de 51, reproduzidas por
Henriques Sêcco, Memórias do tempo passado e presente para lição dos vindouros,
2 vols., Coimbra, 1880-89, p. 319, II. Ver também p. 295, Il e nota a) pp. 319-
-20, II.
79 Ofício confidencial do governador civil de Bragança para o ministro do
Reino, 18.4.51, ANTT, AMR, LV 910 A (1851-52), proc.º n.º 215.

226
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

o que podiam para serem prestáveis ao marechal. «Aliciavam»


militares e magistrados colocados na província e escreviam car-
tas aos amigos «anunciando que era inevitável uma revolução»80.
Mas Saldanha queria ouvir do exército, e só do exército, um grito
uníssono em seu favor. Apoiado num exército unificado e nada
devendo aos políticos, estaria em condições de ditar o destino
do País. O alto pedestal da independência suprapartidária com
que sonhara desde o Verão de 46 parecia estar aí. Mas não esta-
va ainda, ou pelo menos não estava ainda inteiramente.
Falharam as primeiras adesões com que Saldanha contava,
e a adesão de Caçadores 5 de Leiria, no dia 9, verificou-se tarde
de mais para que se pudesse realizar o plano de junção dos
rebeldes em Santarém, uma vez que D. Fernando chegou nesse
dia ao Cartaxo com as tropas da rainha. Ao assumir o comando-
-em-chefe do exército (9 de Abril), D. Fernando espalhou he-
sitação nas fileiras dos que antes se tinham inclinado a seguir
Saldanha. Com o rei em campo, acompanhado pelo duque da
Terceira, as coisas mudavam de figura$!. Saldanha percorreu o
Centro e o Norte do País, estacionou brevemente em Coimbra,
e acabou a refugiar-se na Galiza. Mas quem não tardou a dar-
-se por derrotado, e desta forma contribuiu para o salvar, foi
o próprio D. Fernando, que depressa reconheceu que a vitória
de Saldanha era inelutável. Durante a sua digressão forçada
pela província, o rei registou a frieza da população, observou
o descontentamento de funcionários e notáveis, e verificou a
indisciplina da tropa que ele próprio comandava*?. Convenceu-
-se de que o conde de Tomar era insustentável e escreveu a
D. Maria que toda a «nefasta família» dos «Cabrais» devia ser
«banida do país»83. A 26 de Abril recomendou-lhe que proce-
desse «imediatamente» à organização de um novo ministérios4.

80 Ofício do governador civil de Lisboa para o ministro do Reino, 10.3.51,


ANTT, ACC, LV 910 A (1851-52), proc.º n.º 22.
81 Marquês de Fronteira, Memórias..., cit., vol. IV, p. 375.
82 Carta de D. Fernando para D. Maria, datada de Coimbra em 26.4.51,
ANTT, Cartório da Casa Real, cx. 7321, m.9, cap. 128.
83 Carta de D. Fernando para D. Maria, datada de Coimbra em 29.4.51,
ANTT, Cartório da Casa Real, cx. 7321, m.9, cap. 128.
84 Carta de D. Fernando para D. Maria, 26.4.51, cit.

229
Apologia da História Política

Saldanha não vencera inteiramente só. Os cinco sargentos


de Caçadores 9 que
no Porto, na noite de 24 para 25 de Abril,
desencadearam o pronunciamento, por certo que não tomaram
isoladamente a tremenda responsabilidade de um tal acto. A luz
verde para a sublevação do Porto foi dada pelo chefe do Par-
tido Nacional e ex-presidente da junta do Porto, José Passos,
e, provavelmente, pelo chefe do partido de O Estandarte8e. José
Bernardo não retiraria daí qualquer benefício: tornara-se
demasiado obnóxio ao País para que Saldanha o pudesse con-
templar com qualquer mercê ou lugar. Mas a dívida aos primei-
ros teria a seu tempo de ser paga. O Partido Nacional aparece
em força no ministério de 22 de Maio: Jervis de Athouguia,
Luís Filipe de Soure, Marino Miguel Franzini e Loulé, que na
altura já era uma figura emblemática do setembrismo. Estaria
então Saldanha de novo refém da velha esquerda de sempre?
O certo é que não tardou a desembaraçar-se dela. Para
começar, o pronunciamento surgira a público, para todos os efei-
tos, como o resultado de uma iniciativa puramente militar. E na
verdade assim fora. Há meses que se sabia e dizia que o mare-
chal Saldanha preparava o terreno para um golpe. Simultanea-
mente, mas paralelamente, os civis continuavam a conspirar,
nunca deixando o marquês de Fronteira sem assunto para os
minuciosos relatórios que regularmente enviava ao ministro
do Reino. Fiéis ao velho modelo revolucionário no qual estavam
treinados, os «partidos» nunca desistiram de influenciar o exér-
cito para promover uma insurreição armada da qual seriam os
mentores para serem, depois, os chefes da nova situação. Mas
o ponto decisivo esteve em que, neste caso, Saldanha agiu por

85 Marquês de Fronteira, Memórias..., op. cit., vol. IV, pp. 378-9.


«O movimento de 1851 foi um movimento militar, mas os homens influen-
tes do partido popular ajudaram-no eficazmente, porque ele era a justificação
plena e evidente da revolução de 1846 a 1847.» António Maria Baptista, Uma
década de história contemporânea (1838-1848), Lisboa, 1889, p. 120 (itálico meu).
86 Segundo Luz Soriano, Vida do Marquês de Sá da Bandeira, op. cit. p. 338,
IH. Devo notar que não obtive confirmação por outra fonte de que a facção por-
tuense de O Estandarte tivesse tido parte activa e directa nos acontecimentos da
noite de 24 para 25 de Abril.

230
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

iniciativa própria e à margem deles$”. Dos relatórios do mar-


quês de Fronteira não constam referências ao aliciamento de
civis. O marechal recusou-se a dirigir o «movimento popular»
que estava «combinado», e decidiu-se pelo contrário a «preveni-
-Jo»88. Contava sem dúvida com o aplauso do País, mas rejeitou
o envolvimento directo dos partidos. Com a rápida e inespera-
da entrada em cena do rei, os cálculos falharam e a cooperação
dos sargentos do Porto, à última hora, foi necessária e decisiva.
Mas não só em momento algum do pronunciamento se verifi-
cou a mistura de paisanos armados com tropas regulares, como
a onda de adesões de oficiais superiores, embora retardada, foi
inequivocamente um movimento de resposta ao apelo do chefe
militar, e não um gesto de obediência ao líder partidário. Quan-
do o pronunciamento vingou, por conseguinte, Saldanha, re-
presentando o exército, achou-se dono e senhor da situação,
«livre do domínio da Patuleia»*?.
Ninguém duvidou por um só momento que assim era. De
todo o país choveram os cumprimentos e adulações. Muitos
dirigiram-se pessoalmente para o Porto, «oferecendo-se como
genuflexores ao chefe da revolta»?º. Todas as parcialidades sauda-
ram o triunfo de Saldanha. Até mesmo os últimos fiéis do conde
de Tomar prometeram lealdade e resignação nas páginas do
jornal 4 Lei?! O Estandarte de José Bernardo exibiu uma cor-
dura nunca vista?2. A Revolução de Setembro reconheceu expres-
samente a falência da democracia na Europa e ofereceu-se para
servir a monarquia constitucional??. Até mesmo o radicalismo
mais lunático desarmou, admitindo que «a opinião de todos

87 Cf notas 76, 77 e 84 supra.


88 Carta de Saldanha para Lavradio, 28.12.51, ANTT, ACC, Parte € —
Miscelânea, n.º 84.
89 Conde do Lavradio, Memórias do Conde do Lavradio, D. Francisco de
Almeida Portugal, comentadas pelo marquês do Lavradio, 4 vols., Coimbra, 1932-
-37, p. 314, III.
90 Luz Soriano, Vida do Marquês de Sá da Bandeira, op. cit., p. 345, II;
Carnota, Memories..., op. cit., p. 274, II.
21 ds Sh
92 Ver números de Abril de 51.
23 29.4.51.

23]
Apologia da História Política

os matizes políticos era a favor do Marechal»?4. Todos os parti-


dos lhe ofereceram os seus serviços e lhe disputaram o favor.
E a7 própria rainha, vergada finalmente à evidência dos fac-
tos, dispôs-se a entregar-lhe o poder inteiro, esperando que o
duque lhe salvasse o trono. À volta dela segredava-se a possi-
bilidade de Saldanha ser tentado a assumir a regência em nome
de D. Pedro V?.
A 26 de Abril, a rainha nomeou o duque da Terceira presi-
dente de um novo ministério cujo programa era «reservar tudo
para os ministros» que Saldanha designasse no regresso a Lis-
boa?6. A 1 de Maio, capitulou em toda a linha e entregou a
rendição por escrito: «confio plenamente ao general e amigo do
meu pai o futuro deste País e da coroa»?7. A 7 confirmou todas
as «ordens», «nomeações» e «promoções» expedidas pelo duque
no Porto, e no mesmo dia restituiu-o ao cargo de mordomo-
-mor do qual fora privado «por considerações que não seria
conveniente recordar»?8. Vendo nele o único garante da ordem,
a 8 instou-o a que regressasse com urgência a Lisboa para com
a sua presença pôr termo ao «estado violento» em que se en-
contrava a capital??. Os conservadores pediam-lhe que viesse
rápido de vapor, e aconselhavam-no a que desembarcasse mo-
destamente na Pampulha, a fim de evitar que o «vivório» do
povo e da tropa degenerasse na aclamação de uma regência100,

94 (O Patriota, 12.4.51. Devo as citações referidas nas notas 91 a 94 ao


Dr. José Miguel Sardica, a quem agradeço.
95 A 6 de Maio, em carta para Saldanha, o barão da Luz «refere a informa-
ção de haver intenções de dar Vivas ao «Regente» por ocasião do desembarque
do marechal». Carnota. Memories..., op. cit., p. 288, II.
96 Carta do barão da Luz para Saldanha, 6.5.51, 7n Pinheiro Chagas e Bar-
bosa Colen, História de Portugal, op. cit., vol. XI, p. 577.
97 Carta de D. Maria para Saldanha, 1.5.51, in Carnota, Memories..., Op. Cit.,
pp. 278, II.
98 Carta de D. Maria para Saldanha (também assinada pelo ministro da Guerra,
barão de Francos), 7.5.51, in Carnota, Memories..., op. cit., pp. 280-1, IL
29 Carta de D. Maria para Saldanha, 8.5.51, in Pinheiro Chagas e Barbosa
Colen, História de Portugal, cit., vol. XI, p. 577.
100 Carta de Reis de Vasconcelos para Saldanha, 5.5.51, in Carnota, Memo-
ries..., Op. Cit., pp. 285-6, IL. E carta de Tomás Maria Bessone para o PB Marcos
de 3.5.51, in P. Chagas e B. Colen, História de Portugal, op. cit., vol. XI, p. 576.

Ena
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

A Patuleia, pelo contrário, recomendava-lhe que marchasse com


majestade sobre Lisboa, à frente de um grande exército unido
aos patrióticos batalhões de paisanos que ela prometia forne-
cert01!, Os seus chefes muito provavelmente não planeavam, nem
desejavam, uma regência de Saldanha em nome de D. Pedro V.
Mas desejavam que o duque se declarasse «ditador no meio das
baionetas», esperando sem dúvida colher os frutos da «revo-
lução»102,
Saldanha tinha outras prioridades. A primeiríssima con-
sistia em libertar-se dos «partidos». Para isso precisava de firmar
o seu poder autónomo, e o exército era a única base sólida para
o efeito. Escreveu a D. Maria que ardia de desejo de ajoelhar
aos pés do trono, mas que precisamente o interesse da coroa
e do País requeriam que ele não aparecesse na capital «a não
ser acompanhado por uma força militar suficiente para o dis-
pensar de negociar condições com qualquer partido político que
porventura procurasse ditá-las»!03, O triunfo do pronuncia-
mento, por si só, não bastaria para unificar o exército. Recom-
pensar apenas os mais leais produziria até o efeito contrário.
Ora os brandos costumes domésticos não autorizavam «seguir
o exemplo de Narváez», que fuzilava expeditamente os seus
inimigos. Restava, pois, «adoçar a situação por meio de pro-
moções». Saldanha permaneceu no Porto e decretou a «pro-
moção-monstro». Contemplou os «oficiais de merecimento»
e graduou os da terceira secção, onde em virtude das «nossas
dissenções políticas» se acumulavam há muitos anos «oficiais
privados de acesso» e com «os seus soldos consideravelmente
diminuídos». Finalmente, reformou a pedido dos próprios os
«oficiais velhos, cansados, e até alguns decrépitos»!04, Com isto,

I0LP S.— Os patriotas arregimentaram povo para esperar por si em Sacavém


(caso venha por terra) e para se juntar a si aos gritos de “Viva D. Pedro V?». Carta
de Reis de Vasconcelos para Saldanha, 8.5.51, 7n Carnota, Memories..., op. cit.,
pao
102 Carta do conde das Antas para Saldanha, 5.5.51, in Carnota, Memo-
ries..., Op. cit. p. 284, II.
103 Carta de 4.5.51, in Carnota, Memories..., op. cit., p. 279, II.
104 Carta de Saldanha para Lavradio, 28.12.51, cit.

233
Apologia da História Política

escreveu a Lavradio, se «antes tínhamos três exércitos, cartista,


miguelista e setembrista», podia agora proclamar «que hoje temos
um único»105,
A 15 de Maio de 1851, Lisboa recebeu o marechal duque
de Saldanha com manifestações de júbilo retumbante. Bulhão
Pato assistiu ao espectáculo do segundo andar de uma casa que
o marquês de Nisa alugara por seis meses expressamente para
quando chegasse a ocasião. O marechal, montado com porte
de «triunfador romano» num «soberbo cavalo inglês», seguia
com o seu estado-maior atrás de uma coluna humana forma-
da por milhares de pessoas!9. Ao seu lado, um general abria
caminho «com um ramo de acácia florida»197, significando ao
povo que já não tinha a temer as «cutiladas» com que era mal-
tratado pelo governo dos «Cabrais». Mas os «Cabrais», que no
tempo da Maria da Fonte eram só um, já não existiam. O conde
de Tomar achava-se refugiado em Vigo, entregue à contempla-
ção do triste final da sua carreira política, apenas motivado,
segundo alegou, pela indecorosa traição do duque de Salda-
nha!08 — não porque ele se tivesse tornado «um homem impos-
sível». O outro Cabral não parecia ter compreendido melhor
o seu destino. Entre as girândolas que naquele dia estalavam
no «céu rútilo»!0? de Lisboa, algumas eram lançadas da casa
de José Bernardo!10, que publicamente festejava a derrota do
irmão, sem perceber que ele próprio seria arrastado na queda
de quem o tinha «elevado».
De posse de «um único exército», uma posição inédita nos
anais da monarquia constitucional portuguesa, Saldanha pôde
então negociar livremente a formação do seu governo, tarefa
em que esteve ocupado entre os dias 16 e 21 de Maio. Apesar

105 Carta de Saldanha para Lavradio, 28.12.51, cit.


106 Bulhão Pato, op. cit., p. 144, 1.
107 Idem, ibidem.
108 Carta do conde de Tomar para o duque de Saldanha, datada de Vigo
em 1.5.51, in Luz Soriano, Vida do Marquês de Sá da Bandeira, op. cit., pp. 559-
-567, II.
109 Idem, ibidem.
o Marquês de Fronteira, Memórias, op. cit., vol. Iv, p. 386.

234
Segunda ascensão e queda de Costa Cabral

da supremacia que já ninguém lhe disputava, nem por isso era


fácil contornar o Partido Nacional. Não porque este estivesse
em posição de propriamente «ditar condições», mas porque até
esta altura a sua parte «razoável» — a parte moderada da «Coali-
são» — ainda se não desligara do pólo radical que a atraía para
a Esquerda. Por outras palavras, os campos políticos permane-
ciam extremados, e o Centro, por conseguinte, rarefeito. Salda-
nha instava com o conde do Lavradio para que este aceitasse
«entrar» com o marquês de Loulé, alegando que o primeiro «era
uma garantia para todos os partidos, porque de todos era res-
peitado»; e que o segundo «era também uma garantia para um
grande partido»!!!. Lavradio, compreendendo que na sua «mo-
deração» e independência partidária residia a precisa origem
da sua impotência política, recusou sensatamente imolar-se ao
progressismo. Pelos vistos, como lamentava Reis de Vasconcelos,
o País ainda nesta altura «não podia ser senão dos Cabrais, ou
dos demagogos»!!2. Renascia portanto o dilema da política por-
tuguesa desde 42. O próprio Loulé hesitava em «entrar» para
o governo sem aliados à sua direita, temendo vir a ser vítima da
chantagem a que os «demagogos» habitualmente submetiam
a Esquerda quando esta chegava ao poder. Tornou-se então evi-
dente que era necessário meter a Patuleia na ordem. No dia 20
de Maio, rumores ou ameaças da tropa produziram o efeito de
a domesticar! 13. Saldanha meteu-a então no governo formado
a 22. Alguém logo disse que «O ministério é óptimo, porque
é impossível»!4. Sendo impossível não podia durar, e por isso
era óptimo.

111 Memórias do Conde de Lavradio, cit., p. 332, II.


112 Carta de Reis de Vasconcelos para Lavradio, 19.5.51, idem, p. 327,
HI, nota 1.
113 Carta de Reis de Vasconcelos para Lavradio, 21.5.51, idem, p. 331,
HI, nota 1: «Eu creio que os progressistas, de ontem para cá, estão com algum
medo, ou seja pela atitude da tropa, ou por eo outra razão. Pode ser, por-
tanto, que o Loulé aceite» (itálico meu).
114 Memórias do Conde de Lavradio, op. cit., p. 344, IL.

158)
Apologia da História Política

Nas semanas seguintes, à medida que se tornava patente


a hegemonia que a Patuleia alcançara na nova situação! !5, in-
tensificou-se a agitação militar, ao mesmo tempo que se pro-
movia a formação de uma «associação eleitoral» cujo «fim
verdadeiro» era «minar a administração» de 22 de Maio!!6, Nes-
tas movimentações avultavam indivíduos da confiança pessoal
do duque de Saldanha!!7. No fim de Junho, a notícia de uma
próxima «bernarda» era dada como certa!l8, Saldanha pôde
então explicar aos ministros que o exército estava descontente
com o excesso de influência de que gozava o Partido Nacional,
e despediu-os!!?. A 7 de Julho de 51, Rodrigo e Fontes entram
para um novo ministério. Estava concluído o golpe e podia come-
çar a Regeneração.

115 Esta hegemonia tornou-se particularmente notória com a publicação


do decreto eleitoral de 20.6.51, que se dizia talhado para produzir uma vitória
patuleia nas eleições marcadas para Novembro de 51.
116 Memórias do Conde de Lavradio, cit., p- 353, III. Sobre a conspiração
militar, ver pp. 350-353 e pp. 366-368.
17 Nomeadamente os brigadeiros Moniz, Cabreira, barão de Francos, barão
da Luz, Joaquim Bento, Ximenes. Entre os civis sobressafam três homens do Banco
de Portugal: Tomás Bessone, J. Lourenço da Luz e o próprio José Bernardo da
Silva Cabral. CF. Memórias do Conde de Lavradio, op. cit., pp. 350-3, III.
118 Memórias do Conde de Lavradio, op. cit., p. 367, III.
119 Ibidem, pp. 1-2, IV.

236
Fontes:

a) MANUSCRITAS
Arquivo da família Costa Cabral (ANTT).
Arquivo da Casa Fronteira (ANTT).
Cartório da Casa Real (ANTT).
Arquivo Central das Secretarias de Estado do Ministério do Reino (ANTT).
Arquivo da Companhia Confiança (Banco de Portugal).
Colecção Carnotense (Reservados da BNL).
Correspondência Diplomática Luso-Britânica (PRO/Londres).

b) IMPRESSAS
Diário da Câmara dos Deputados.
Diário da Câmara dos Pares.
Diário do Governo.
Imprensa periódica.
Memórias, opúsculos e outras publicações da época.

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2 JR
A REPUBLICANIZAÇÃO DA MONARQUIA
(1858-62)* *
“As principais ideias desenvolvidas neste estudo resultam de uma
investigação realizada em 1996 e circularam como working paper apresen-
tado num seminário de História de Portugal realizado no Instituto de
Ciências Sociais em Fevereiro de 1997.

“ Este título foi-me sugerido pela seguinte afirmação de Fernando


Catroga: «O programa do republicanismo durante a monarquia consis-
tia na republicanização do País» [O republicanismo em Portugal. Da forma-
ção ao 5 de Outubro de 1910 (2 vols.), Coimbra, 1991, p. 170, II]. Por
razões que espero se tornarão claras ao longo do presente artigo, tratava-
-se também, antes disso e para além disso, de republicanizar as instituições
monárquicas, até ao ponto em que o próprio rei, salva a hereditariedade,
se transformasse também ele no chefe de uma república. (Sobre o concei-
to de república do «republicanismo clássico», como regime ao serviço
do Bem Público e, portanto, realizável num quadro formalmente monár-
quico, ver o recente artigo de Rui Ramos, «As origens ideológicas da
condenação das descobertas e conquistas em Herculano e Oliveira Mar-
tins», Análise Social, n.º 140, 1997.) Para compreender a chamada ques-
tão das irmãs de caridade como uma proto-história do republicanismo,
tive de me situar numa perspectiva de história política (e não de história
das ideias) e surpreender a inspiração republicana nas lutas partidárias
de finais da década de 1850. É já a partir desta altura (1858), e não apenas
a partir de 1865-70, que o «programa do republicanismo» começa a ser
executado, nomeadamente no que respeita ao cerne desse programa —
a afirmação e difusão de um anticlericalismo laicista de pendor ateu,
diferenciado, portanto, do anticlericalismo liberal e incompatível com a con-
fessionalidade do Estado monárquico, através do qual se visava preparar
as consciências para a adesão natural e espontânea à República, que entre-
tanto se iria infiltrando na ordem jurídico-constitucional vigente. Ou
seja, data de 1858 a utilização do anticlericalismo radical como motor
da republicanização da monarquia.
O País dividido pela «roupeta
de umas pobres mulheres»

Em 1861, um tal José Maria de Andrade Ferreira publicava


a tradução «em vulgar» de uma obra de Jules Micheler, O padre,
a mulher e a família, apresentando o seu trabalho como «um
serviço útil à causa da moralidade e da religião» e admirando-
-se que um tal serviço não tivesse sido prestado há mais tempo.
O que o tornáva tão oportuno era a celeuma, de há muito esta-
belecida, em torno «das influências do beatério na educação».
Lida a obra, nenhumas dúvidas restariam de que era por aqui,
pelo afeiçoamento dos espíritos em tenra idade, que se abria
o «caminho para a reacção religiosa», cujas relações com a reac-
ção política não careciam de ser demonstradas. A obra do arguto
«escritor francês» penetrava bem no âmago da questão, demons-
trando como o jesuitismo introduzia a sua semente venenosa
no seio da intimidade familiar, enclausurando as mulheres —
mãe, esposa e filhas — num mundo espiritual à parte, e fazendo
do homem — marido ou pai — um intruso na sua própria casa.
«Elas estão de um lado da mesa, e vós do outro, e só. Dir-se-á
que no meio delas, e defronte de vós, se assenta um homem
invisível para vos contradizer.» Eis o retrato de uma família
roubada pelo «jesuitismo» ao amor, e ao governo, do seu chefe
natural.
Em 1861, a celeuma sobre as «influências do beatério na
educação», aberta com a chegada, em 1858, de cinco irmãs de
caridade francesas, já se tinha transformado na mais escaldan-
te das questões políticas levantadas desde o início da Regenera-
ção. Primeiro, fora a honra nacional ofendida, uma vez que se
interpretara o recurso à caridade estrangeira como uma censu-
ra às mulheres portuguesas. Depois, perguntou-se se a presença

241
Apologia da História Política

da congregação, enquanto «guarda-avançada» de Roma, era


compatível com a independência do Estado e se, enquanto
ponta de lança do «jesuitismo», as irmãs não constituíam um
atentado contra a Liberdade. Finalmente, discutiu-se se as insti-
tuições constitucionais estavam ameaçadas e, sobre todas as coi-
sas, se o Futuro da Pátria não ficaria comprometido.
Desde 1858 tudo isto vinha sendo debatido na Câmara
dos Pares, no Parlamento, nos jornais, em comícios e em ajun-
tamentos na praça pública. A questão das irmãs de caridade
provocara o «remeximento dos partidos»!, dividira governos,
destruíra maiorias e, mais dramaticamente, apartara muitas fa-
mílias. Em 1861, na Câmara dos Deputados, José Estêvão dizia
os pais privados do seu «futuro», do seu «alívio», da sua «espe-
rança», porque o «fanatismo religioso» lhes desviara os filhos,
e «filhas principalmente», apoderando-se dos «corações dessas
inocentes virgens» que placidamente confessavam ter entregue
«o espírito e a vontade» a Deus2. E Latino Coelho, logo em
1858, já tinha detectado que um fosso tenebroso, inédito nos
anais da história pátria, se cavara na sociedade portuguesa. Nem
mesmo entre «absolutistas» e «liberais» se presenciara semelhan-
te divisão: nessa época, sublinhou, «éramos todos católicos, e no
meio das nossas mais cruas intolerâncias, nunca déramos à Euro-
pa o espectáculo de ir invocar a religião como grito de guerra
das nossas contestações e das nossas lutas intestinas»?. E era
agora, que a Regeneração tinha finalmente plantado a árvore
da paz, que alguém explorava a presença de meia-dúzia de
«mulheres inofensivas» para atear a guerra religiosa entre os por-
tugueses.
Autorizadas por alvará de 9 de Janeiro de 1857, estando
o duque de Loulé, chefe dos históricos, na presidência do gover-
no, entraram em Portugal, em 23 de Outubro desse ano, as
primeiras cinco irmãs de caridade francesas, acompanhadas de
dois padres lazaristas, vindos como seus confessores. Mais tarde,

| José Estêvão, DCD, 16.8.58.


2 Discurso de 9.7.61, in 4 Liberdade, 14.7.61.
3A Revolução de Setembro, 5.8.58.

242,
A republicanização da monarquia (1858-62)

não faltou quem apontasse a imprudência da autorização, sen-


satamente recusada por Rodrigo enquanto esteve no governo.
Em Maio do mesmo ano, a difícil negociação da concordata
conduzira à demissão de Vicente Ferrer, ministro dos Negó-
cios Eclesiásticos e da Justiça e futuro ideólogo republicano.
Por causa da concordata, a ala esquerda do governo sofrera pois
uma baixa irreparável, tanto mais quanto a remodelação
verificada em Março tinha selado uma aliança parlamentar com
a facção do ex-cartista António José d' Ávila, então entrado para
a pasta da Fazenda, e que agora, com a saída de Ferrer, acumulava
com a da Justiça. Deste modo, Loulé reiterava a sua pouca incli-
nação para cooperar com o «partido popular» que o tinha adop-
tado como chefe. De resto, desde que assumira a presidência
do governo, em Junho de 56, o marquês abraçara em todas as
questões importantes a política da anterior administração
regeneradora, com particular destaque para as medidas finan-
ceiras de Fontes, contra as quais a oposição histórica promovera
uma «representação monstro» que atingira as 50 000 assinatu-
ras. «Nunca houve abdicação mais formal», comentou 4 Revolu-
ção de Setembro. Em resultado dela nascera o «aborto actual»,
em que «os que se pronunciaram contra o acordo de Londres
o vieram votar, os que representaram contra os impostos os vie-
ram propor, os que fizeram relatórios para a régie do tabaco o
vieram arrematar»*. Mau grado a contestação pública, que ao
longo do ano foi alimentando um clima de crescente naciona-
lismo anti-romano, a concordata acabou por ser (condicional-
mente) aprovada em Julho de 57, ao cabo de várias sessões
secretas e com um considerável número de votos contra (34/55),
entre os quais se contavam vários nomes de chefes «populares».
No princípio de 58, os regeneradores votaram favoravelmente
a resposta ao discurso da coroa, acentuando a prática indistinção

44 Revolução de Setembro, 23.2.58. O redactor referia-se ao acordo com


o Stock Exchange, negociado por Fontes, para a cotação dos fundos portugueses
em Londres; às reformas fiscais de Fontes; e à anterior posição dos históricos a
favor da nacionalização dos tabacos.
5 Marques Gomes, História dePortugal PopulareIlustrada de Pinheiro Chagas,
vol. xIL, p. 130 (obra daqui em diante referida simplesmente por História de P. Chagas).

243
Apologia da História Política

partidária do governo histórico que, deste modo, se mantinha


docilmente colado ao progressismo regenerador. Uma moção
de censura apresentada por um deputado ministerial, que ape-
nas por seis votos não passou, obrigou Loulé a arrepiar cami-
nho. A câmara foi dissolvida em Março, e nas subsequentes
eleições (2.5.58) os históricos alcançaram uma vitória expres-
siva — reconquistaram os círculos de Lisboa — presenteando o
ministério com uma maioria parlamentar mais agressivamente
diferenciada da oposição regeneradora.
Rodrigues Sampaio, ex-radical convertido ao liberalismo,
não se cansou de repetir que a tolerância fora a marca distinti-
va da Regeneração. Ela congregara as facções para o superior
esforço de recarrilar o País nos trilhos do Progresso e, aliando
a firmeza de princípios a uma sábia política de concessões, dera
«cargos de confiança» e «comissões lucrativas» aos próceres da
oposição. Deste modo, como constatava o marquês de Sá da Ban-
deira, «acabara com os partidos». Depois das eleições de Maio
de 58, a política de «amalgamação» partidária inaugurada pela
Regeneração chegou ao fim. Mas, para que a Esquerda se des-
prendesse e resistisse a ser atraída para o Centro, era necessário
polarizar o campo político, o que implicava que o radicalismo
encontrasse um programa que o fizesse renascer.
A 16 de Junho de 58, O Português publicava o primeiro
de uma longa série de editoriais sobre as irmãs de caridade, dedi-
cados a denunciar o carácter vicioso do instituto e os incon-
fessáveis motivos que se albergavam por trás da sua piedosa
missão. Dado que O Português passava por ser o órgão do «par-
tido da situação», a Câmara dos Pares pediu explicações ao mar-
quês de Loulé sobre o escabroso artigo, querendo saber se o
governo o aprovava. «O primeiro e o mais inconveniente dos
oradores»? foi o conde da Taipa. Embora declaradamente situa-
cionista, não hesitou em «desembainhar a sua espada» e clas-
sificar de «obscenos» os artigos aparecidos em alguma imprensa

6 4 Revolução de Setembro, 26.1.58.


70 Português, 24.6.58.
8 O conde de Tomar referindo-se ao conde da Taipa, sessão de 22.6.58,
DG 29.6.58.

244
A republicanização da monarquia (1858-62)

de Lisboa, tecendo rasgados elogios ao «instituto que estes jor-


nais querem desacreditar». O marquês de Ficalho logo concor-
dou que as irmázinhas eram «o alívio da humanidade e a glória
da religião»?. O conde do Sobral, governador civil de Lisboa
nomeado pelo governo histórico, desfez-se em elogios às irmãs
de caridade e confessou-se envergonhado com a prosa de O Por-
tuguês, que até «fechara na gaveta com medo que o vissem as
senhoras de sua casa»!º. Loulé não teve outro remédio senão
declarar que lera «com horror» o artigo tão justamente deplora-
do pelos seus Pares, mas recusou-se a esclarecer se o jornal «era
ou não órgão do ministério»l1.
Esta ambiguidade era o tributo pago pelos históricos aos
radicais que, depois de terem mobilizado os votos dos lisboetas
nas eleições de Maio de 58, apoiavam o governo no Parlamento
e na imprensa. O Português logo retribuiu elegendo o marquês
de Loulé como o orador que na Câmara dos Pares ostentara mais
«dignidade, nobreza e decência», e advertiu o conde do Sobral
de que no seu discurso «agredira» nada menos do que os «inde-
centes patuleias» com quem Sua Exa., todavia, não desdenhara
combinar a lista histórica vitoriosa em 2 de Maio!2. O Portu-
guês aceitava a «luva» lançada pelos «próceres da Câmara dos
Pares» e declarava-lhes a guerra que pediam: a imprensa «há-
-de conseguir a saída do reino das irmãs de caridade francesas
e tem poder e há-de tê-lo para lançar por terra essa instituição
anómala e absurda do pariato, constante obstáculo ao progres-
so e civilização desta terra»!2. Anómala e absurda porque, como
saltava à vista, o pariato era um elemento «introduzido à força
no sistema representativo por algum jesuíta, para servir de em-
pecilho ao mesmo sistema, contra todas as suas tendências li-
berais». Por conseguinte, desejando libertar estas tendências
a bem do pleno desenvolvimeno do sistema, a «opinião pública

9 Sessão de 22.6.58, ibidem. Taipa aludia a O Português e ao Asmoden.


10 Conde do Sobral, idem, ibidem.
11 Marquês de Loulé, idem, ibidem.
20 Português, 24.6.58 (itálico no original).
13 Idem, ibidem.

245
Apologia da História Política

da capital» manifestava-se, através de O Português, terminante-


mente contrária à «importação das irmãs francesas»14.
Na ideia dos radicais, as duas questões estavam indissocia-
velmente ligadas. Segundo eles o pariato era o último reduto
do absolutismo, e as ordens religiosas, em todos os tempos,
ao que se dedicavam era a «plantar a árvore do absolutismo»!5.
Muito logicamente, as duas instituições amparavam-se uma
à outra, unidas no mesmo combate «contra certa parte do pro-
grama do Partido Progressista» que pretendia plantar a Liberda-
de. Abraçando esta parte do programa, O Português «levou o
terror às fileiras aristocráticas»16,
É verdade que causou susto. Mal começou a campanha
contra as irmãs de caridade, os pares do reino perceberam ins-
tintivamente que o verdadeiro alvo que se visava era o funda-
mento mesmo da ordem social e política que os justificava e
sustentava. O conde da Taipa não hesitou em indicar que era
a religião esse fundamento que se queria abater. «A revolução
francesa», explicou à Câmara, «foi feita pelo espírito irreligio-
so». Do «palácio de Versailles» até às «classes mais humildes»,
todos em França se tinham deixado seduzir pelo «espírito de
Voltaire». Tornara-se moda «escarnecer» da fé, substituída pela
«Deusa da Razão». Em resultado de uma tal leviandade, a Liber-
dade fora obrigada a abdicar na «espada» do imperador, agrade-
cendo-lhe o ter vencido o «despotismo da guilhotina»!7. O terror
começava onde acabava a religião.
Depois que, na Câmara dos Pares, a aristocracia tivera o
atrevimento de ofender os «escritores do povo», O Português
declarou que «o statu quo ante bellum» era «impossível» de man-
ter!8, No dia 1 de Agosto, o «povo» apedrejou as irmãs à saida
de uma igreja, suscitando indignação e horror em todas as pes-
soas de bem. Mas O Português não se comoveu com os maus
tratos infligidos a umas pobres «mulheres indefesas», preferindo

l4 0 Português, 24.6.58.
59 Português, 17.7.58.
16 0 Português, 26.6.58.
17 Sessão de 22.6.58, DG 29.6.58.
I80 Português, 30.7.58.

246
A republicanização da monarquia (1858-62)

atribuir o incidente a uma provocação montada pelos mesmos


que as defendiam!?. De uma questão que, nos seus inícios,
alguns haviam tomado por «insignificante», começavam a desen-
tranhar-se «lutas e sucessos gigantescos»20, Enquanto O Portu-
guês mostrava por trás das irmãs de caridade os «festins canibais
do santo ofício», A Revolução de Setembro tomava a defesa des-
ses «entes virtuosos e angélicos», dessas «mensageiras do Senhor»
que em toda a parte, das «areias ardentes de África» até aos
«sertões da América», se podiam encontrar «curvadas sobre o
leito dos enfermos», «curando os feridos, levando socorros aos
aflitos»21.
Depois dos «próceres» da Câmara dos Pares, eram também
escritores públicos de insuspeitas convicções liberais que vi-
nham agora, nas páginas de A Revolução de Setembro, tomar
a defesa das irmãs vilipendiadas pelos «escritores populares».
E faziam-no, não porque achassem falta de caridade em Por-
tugal ou porque julgassem que esta devesse ser confiada ao zelo
especializado de uma congregação, mas porque tinham da liber-
dade um conceito que não admitia restrições aos direitos indi-
viduais legalmente protegidos: «a liberdade deve ser livre»22.
A caridade praticada pelas filhas de S. Vicente de Paulo estava
neste caso. Se se verificasse que abusavam daquela protecção
e que propalavam ensinamentos contrários aos princípios cons-
titucionais, existiam leis e tribunais para as julgar e condenar.
Como dizia 4 Revolução, «não era preciso sair do estado nor-
mal para dar remédio a tudo isto»?3. O próprio rei se tinha
empenhado na vinda delas para Portugal a fim de ajudarem a
combater as epidemias de cólera e febre-amarela que invadiram
o país em 1856-57, e cá se tinham instalado com a devida au-
torização do governo?4. Mas O Português tinha da liberdade um
entendimento bem diverso: achava que ela se protegia através

Do Português, 4.8.58.
20 Thidem, 4.8.58.
21 4 Revolução de Setembro, 22.8.58.
22 A Revolução de Setembro, 8.8.58.
23 À Revolução de Setembro, 1.9.58.
24 Alvarás de 9 de Fevereiro e 11 de Abril de 1857.

247
Apologia da História Política

de restrições. A liberdade era para o «povo» e não para os inimi-


gos dele. Ora as irmãs, que cá se tinham introduzido «com a
protecção dos grandes da terra»25, esquivavam-se a ir a casa dos
pobres e guardavam a caridade para os nobres e os ricos. Através
da questão das irmãs de caridade, renascia a funesta luta de clas-
ses que a Regeneração pacificara. O Asmodeu contava nas suas
páginas que tivera um sonho em que «Satanaz» lhe comunicara
que estava a assistir, lá dos confins do inferno, a uma guerra «em
que de um lado peleja o povo e a classe média, e do outro a no-
breza de Portugal»26. Rodrigues Sampaio, redactor de 4 Revolu-
ção de Setembro, acordado, via a mesma coisa: «Antes desta triste
e fatal controvérsia éramos uma sociedade que havia esquecido
as suas gradações» para se unir na ideia do progresso. Presen-
temente, «anulou-se este benefício». Em lugar da concórdia, re-
nascem os «ódios» e as «aversões». «A rivalidade social, tropeço
histórico de todos os governos, inferno da vida em comum, a ri-
validade social que tínhamos narcotizado com a nossa bonomia
nacional, dá sinais de despertar»27. Mas o mais grave era que
essa rivalidade tinha sido atiçada pela «questão religiosa», a qual
«o povo», na eloquente expressão de Latino Coelho, tinha «con-
substanciado» com «a questão envenenada e odiosa das raças e
das primazias de nascimento»28. E era esta «consubstanciação»
que, tornando a religião solidária com o privilégio, produzia a
carga explosiva da questão das irmãs de caridade.
Em Lisboa corriam entretanto abaixo-assinados a favor e
contra as irmãs francesas. Salomonicamente, 4 Revolução fa-
zia-se eco de ambos e afectava neutralidade. «Não somos — pro-
testava o seu redactor — nem devotos das irmãs de caridade,
nem seus adversários»??. Mas numa altura em que os campos
já se encontravam irremediavelmente extremados, não tomar
posição contra as irmãs significava estar do lado delas. No abai-
xo-assinado aberto por 4 Nação, um órgão do legitimismo, os

25 Vicente Ferrer, DCD, 5.3.59.


26 Asmodeu, 15.8.58.
27 A Revolução de Setembro, 31.8.58.
28 4 Revolução de Setembro, 5.9.58.
29 A Revolução de Setembro, 5.8.58.

248
A republicanização da monarquia (1858-62)

signatários protestavam unir as suas «súplicas em favor do insti-


tuto de S. Vicente de Paulo às de Sua Majestade a imperatriz
do Brasil, de S. A. real a sereníssima senhora infanta D. Isa-
bel Maria, e das beneméritas direcções da Sociedade Protec-
tora dos Órfãos e da Associação de Nossa Senhora Consoladora
dos Aflitos»30. Os nomes do duque da Terceira, do conde de
Lavradio, do marquês de Fronteira, do marquês de Ficalho, do
conde das Alcáçovas, dos condes da Torre e do conde de Pom-
beiro encabeçavam a lista dos assinantes, dando razão àqueles
que viam por trás das irmãs de caridade o partido da «nobreza
de Portugal» que, na imprensa radical, estava já por esta altura
solidamente identificado com o partido da reacção ultramontana.
Na «manifestação contra a invasão de irmãs e frades france-
ses» promovida por O Português pedia-se às autoridades que
livrassem «a nação de tão funesto influxo», uma vez que «o esta-
belecimento em Portugal desta instituição só tem por fim a
vitória do ultramontanismo, que aspira a dominar o mundo
com a mais terrível de todas as formas de governo — a theocra-
ciar3t, Rezava assim o texto da petição:

«Os abaixo assinados, reconhecendo que o modo por que


se tem feito a introdução das irmãs de caridade francesas
e dos padres lazaristas é inteiramente semelhante ao que
em tempos de D. João III se fez dos padres da companhia
de Jesus; reconhecendo que a propaganda que se pretende
organizar é tanto mais digna de atenção e vigilância dos
governos livres quanto trabalha não em público mas a ocul-
tas lenta e sistematicamente; reconhecendo que a perma-
nência em Portugal destes padres e destas religiosas, contra
as leis do reino e contra a disciplina da igreja lusitana, pode
perturbar o sossego público, manifestam por este modo o
seu voto contra a introdução dos padres lazaristas e das
irmãs de caridade francesas; e pedem às autoridades, a quem
compete prover sobre este assunto, que livrem a nação de
tão funesto influxo.»

30 4 Revolução de Setembro, 31.8.58.


310 Português, 3.8.58. O abaixo-assinado traza data de 20.7.58.

249
Apologia da História Política

No núcleo de assinantes que promoveram a iniciativa apa-


recem, à cabeça, os nomes do barão de Vila Nova de Foz Côa,
figura grada do setembrismo de 1836; Manuel de Jesus Coelho,
proprietário de O Português e de longa data um dirigente de
bases setembrista; Vicente Ferrer Neto de Paiva, lente de Coim-
bra, ex-ministro, deputado e futuro ideólogo republicano;
e João Félix Rodrigues e João d'Aboim, redactores de O Portu-
guês. A esmagadora maioria dos que nas semanas seguintes subs-
crevem a petição é gente anónima com profissões modestas,
de serviçais a lojistas e artesãos, ou seja, a típica plebe urbana
em que se recrutavam os radicais.
O «país» dividira-se em «dois campos» separados pela «rou-
peta» de seis irmãs francesas e pelo escapulário de dois lazaris-
tas que lhes serviam de confessores?2. Toda a gente em toda
a parte discutia a escaldante questão que elas tinham vindo
agitar. Devia a sua «introdução» ser suspensa, como aconselha-
va 4 Revolução?3? Deviam ser expulsas as que já cá estavam,
como exigia O Português? Ou seria para desejar que o Insti-
tuto de S. Vicente de Paulo aqui florescesse livre e legalmente,
como defendia A Nação? A este respeito, apenas o Parlamen-
to e o governo mantinham um silêncio absoluto. O Parlamento
porque, tendo as facções entrado em «guerra aberta», não se
atrevia a interpelar o governo. E o governo porque, cindido
entre «patrícios e plebeus»?4, não podia tomar posição. O cisma
que lavrava na sociedade propagara-se às regiões mais altas do
poder. Havia «50 dias» que na imprensa se discutia o assunto
das irmãs de caridade, e da parte dos ministros não se verificara
«nem uma palavra, nem um movimento, nem um sinal no
rosto» que permitisse adivinhar «a opinião governamental sobre
a questão sujeita»?>. Pela voz de O Português, a «nação liberal»
exigia que o governo falasse e ameaçava desampará-lo se persis-
tisse em se manter mudo. O silêncio do sr. marquês de Loulé
colocava-o do lado de 4 Nação reaccionária, e a nação liberal

32 4 Revolução de Setembro, 31.8.58.


33 À Revolução de Setembro, 5.8.58.
34 4 Revolução de Setembro, 8.9.58.
35 0 Português, 7.8.58.

250
A republicanização da monarquia (1858-62)

não podia consentir nesta «marcha antiliberal» do presidente


do governo e ministro do Reino?. Se não tinha força ou não
queria usá-la, que entregasse o poder aos «amigos» do ministé-
rio?7, Mas se era uma traição; se o marquês, fiado na importân-
cia do seu nome, não se dispunha a atender «ao brado de justa
indignação» da nação liberal, esta lhe mostraria que «o mundo
não pára pelo acabamento de um homem»38.
A 16 de Agosto, Sant'Ana de Vasconcelos, Mendes Leal
e Sousa Pinto Basto, deputados pela ala «plebeia» dos histó-
ricos, propuseram na Câmara de Deputados a formação de uma
comissão de inquérito «encarregada de examinar a questão da
admissão das irmãs de caridade neste país, e as reformas de
que a mesma instituição possa carecer entre nós»3?. José Estê-
vão logo denunciou a proposta como «um acto de diversão para
o espírito público» visando permitir ao governo «esquivar-se
ao assunto» em vésperas de o Parlamento fechar, e mostrou
que a comissão era desprovida de objecto: «não há que inquirir,
há que resolver». Mas Mendes Leal retorquiu-lhe que pelo con-
trário havia muitíssimo que inquirir, muitíssimo que meditar,
uma vez que se tratava da «questão do ensino da infância que
em breve será mocidade» e que, portanto, estava em causa nada
menos do que «a questão de todo o futuro». Nem havia em
Portugal questão mais grave a tratar. Extinta a epidemia de cóle-
ra e febre-amarela que tinha servido de motivo para as chamar,
as irmãs francesas tinham passado, com alegado abuso, a encar-
regar-se da educação das crianças nos asilos onde se ocupavam.
O Português não tinha dúvidas do «seu funesto influxo na edu-
cação e na mocidade»4!, endoutrinando e conquistando os
homens e as mulheres de amanhã para as fileiras do exército
ultramontano onde a «nobreza de Lisboa» se tinha alistado.
A essência do espírito congreganista residia na obediência cega,

36 0 Português, 14.8.58.
37 0 Português, 17.8.58.
38 O Português, 18.8.58.
39 DCD, 16.8.58.
40 Ibidem.
41 O Português, 19.8.58.

251
Apologia da História Política

absoluta, ao geral do instituto. De pessoas imbuídas deste espí-


rito não era de esperar que inculcassem na infância o gosto
pela crítica, a independência de espírito, o amor da liberdade.
Onde poderia a mocidade ir buscar a «nobre coragem para resis-
tir ao absolutismo e tirania, quando aparecerem»?42

42 Vicente Ferrer, DCD, 5.3.59.

Sm
H

«A pedra saiu das mãos. Ninguém sabe


onde ela irá bater»:

A batalha que se travava, então, era uma batalha entre o


Passado e o Futuro, entre as Trevas e as Luzes, entre a Reacção
e o Progresso, entre a velha «nobreza de Lisboa», «balofa de
pergaminhos e títulos», e a verdadeira nobreza do simples e vir-
tuoso «povo de Lisboa». Quem «mais ilustre» do que ele?44
À partir do Verão de 58, a «consubstanciação» da questão reli-
giosa com a questão social constitui um dado adquirido na
imprensa radical. A luta contra as irmãs de caridade, vivida
como um braço de ferro com a aristocracia, é interpretada como
um episódio decisivo da longa guerra movida pelo povo contra
uma classe privilegiada, mantida e protegida pela religião oficial
do Estado monárquico. A monarquia e a igreja são encaradas
como um produto histórico geminado, o verso e o reverso de
uma ordem social e política genética e essencialmente antide-
mocrática. À experiência histórica recente, mostrando que essa
ordem não se deixava expeditamente abater por meio de uma
revolução, ensinara o gradualismo. Havia pois que combatê-
-la por dentro e atacá-la em duas frentes: minando a Câmara
dos Pares enquanto baluarte da aristocracia — esta era «aquela
parte do programa do Partido Progréssista» que pedia a abolição
dos vínculos e a reforma do pariato; e destruindo pela raiz a
influência da Igreja na sociedade — esta era outra parte do
mesmo programa que pedia ao governo a proibição do ensino
religioso e exigia ao Estado que formasse Cidadãos.
Demasiado exíguo para se constituir em partido autónomo,
o radicalismo precisava de obrigar o partido histórico a cumprir
43 4 Revolução de Setembro, 31.8.58.
44 0 Português, de 23.8.58 e 3.9.58.

253
Apologia da História Política

estas «partes» do programa progressista. O chefe do Partido


Histórico era o marquês de Loulé, um dos mais titulados fidal-
gos portugueses, tio e genro de reis, e grão-mestre da maço-
naria. O Português fingia confiar no patriotismo do marquês
e lembrava-lhe as dívidas que tinha para com o «partido» ou
ameaçava-o com revoltas quando o improvável chefe «popu-
lar» abrandava de diligência. A pressão foi aumentando à medi-
da que os dias passavam sem que o ministério se inclinasse para
nenhum dos lados. «O estado de indecisão não pode nem deve
durar mais», escrevia O Português a 29 de Agosto, ao mesmo
tempo que pela segunda vez convidava Loulé a entregar o gover-
no a outro «homem do partido» que tivesse a energia que lhe
faltava a ele.
Entre as exortações da imprensa e as presumíveis pressões
da maçonaria, a 3 de Setembro de 58 apareceu finalmente um
decreto destinado a acalmar as exigências dos radicais e que estes
saudaram como «uma demonstração de que o governo represen-
tativo se encontra solidamente estabelecido no nosso país»%,
um facto que pelos vistos até aí estivera em dúvida. Mas o de-
creto ficava muito aquém daquelas exigências e, visto mais de
perto, não justificava afinal mais do que um «armistício» para
durar até ver se apareciam «resultados práticos»4º. Na realidade,
o decreto não podia produzi-los, pois limitava-se a homologar
o statu quo e a prometer medidas para quando uma comissão
parlamentar tivesse esquadrinhado o problema. O decreto de
3 de Setembro de 58 dava como preenchido o número das irmãs
autorizadas a vir para Portugal pelos alvarás de 1857 (art. 1.º),
mas permitia às que já cá estavam que continuassem a dedicar-
-se a «todos os trabalhos e exercícios de piedade próprios do seu
instituto» (art. 2.º). Ou seja, nem sombras da «expulsão» que
O Português prometera à «aristocracia desvairada» da capital.
É certo que no art. 3.º se condicionava o ensino «literário e
religioso», ministrado nos estabelecimentos de assistência,
à prova das habilitações exigidas por lei4”, mas em si mesmo
Er Português, 5.9.58.
46 0 Português, 7.9.58.
47 Lei de 20.9.1844.

254
A republicanização da monarquia (1858-62)

o ensino religioso não era objecto de nenhuma condenação ou


proibição geral. A ulterior regulação deste assunto era remeti-
da para uma comissão no mesmo artigo (4.º) em que igualmente
se decretava a «restauração e conservação» da Congregação das
Servas dos Pobres fundada por alvará de D. João VI com data
de 14 de Abril de 1819. Era uma espécie de troca: suspendia-
-se a «importação» de mais irmãs francesas mas, em contrapar-
tida, determinava-se a revitalização da irmandade portuguesa.
A 7 de Setembro, O Português reconsiderava a receptividade
inicialmente manifestada e declarava guerra a toda a espécie
de irmãs, «francesas ou portuguesas», e a 9 reconhecia publica-
mente que o decreto não produzira efeitos, deste modo se pro-
vando que continuava a prevalecer no ministério a influência
de «jesuítas protegidos pela fidalguia ignorante e absoluta da
capital.
Fechado o Parlamento em 16 de Agosto, o governo reme-
teu-se ao mesmo silêncio por trás do qual procurara até ali fur-
tar-se às críticas e ataques dos que, à Esquerda e à Direita, lhe
exigiam uma posição clara sobre o rol das questões que divi-
diam a opinião pública e partidária. À Direita dizia-se a Reli-
gião ameaçada, e acusava-se o governo de conivente com a
campanha de suversão política e moral diariamente levada
a cabo na imprensa. Na Câmara dos Pares, o marquês de Valla-
da pedia a acusação do autor de um livro escandaloso em que
a Igreja era vilipendiada e a mensagem de Jesus Cristo ominosa-
mente deturpada. O governo intentara a querela mas infeliz-
mente, desculpou-se Ávila, o juiz não a aceitaraé8. E a mesma
impotência ministerial se revelava perante a pecaminosa pro-
paganda de um cristianismo interpretado em sentido contrário
da doutrina canónica, em que a Igreja Católica aparecia dis-
sociada dos ensinamentos de Cristo e era apresentada como uma
excrescência cancerosa implantada no seio da Cristandade com
o sinistro objectivo de converter a religião num instrumento
de sujeição dos povos, cuja miséria Roma afrontava com o luxo
da sua corte e a depravação dos seus costumes. O Asmodeu

48 Trata-se do livro de J. D. Sines, Jesus Cristo e a Igreja. Sessão de 25.2.59.

255
Apologia da História Política

descrevia o Vaticano como uma «cúria de echacorvos efemina-


dos», «uma ninhada de aves de rapina»; dizia que o Santo Padre
se sentava «num trono onde só reina a soberba, a avareza, a lu-
xúria, todos os pecados mortais, enfim, todas as paixões huma-
nas, todos os vícios mais torpes que existem na terra»; e acusava
o poder temporal do Papa de estar «manchado de crimes, coberto
de maldições»t?. «O papa não é a Igreja», advertia O Portu-
guês para tranquilizar os «verdadeiros crentes» que, segundo o
jornal, não estavam evidentemente com Roma, mas sim com
a congregação informal de todos os sinceros liberais, ou seja,
a família do «cristianismo liberal, amigo dos homens e de Deus,
e progressista».
Com Roma e sua corte estava a «nobreza de Lisboa», com
ela aparentada pela sintomática comunidade dos vícios que a
corroíam: «o luxo, a moleza, a gula, a lascívia e a intemperan-
ça»>1, Um mesmo monstro intemporal e com várias cabeças,
nas quais se premeditara o mais horrendo dos crimes: «Quem
se atreveu a conduzir à morte um Deus, senão essas classes ele-
vadas, que o Redentor acabou de destruir?»2 Cristo estava do
lado dos «povos», contra os «grandes». E os povos, instruídos
pelos ensinamentos de Cristo, tinham deixado de acreditar «nos
reis de direito divino e nos nobres por nascimento», tendo
finalmente percebido que «o cristianismo não é senão a revolu-
ção política junto ao dogma»4. Desde que a «escola filosófica»
popularizara esta revelação, a aristocracia estava condenada e
já nada valia5. O nobre presidente do governo e os titulares
que apoiavam o ministério histórico na Câmara dos Pares liam
nos jornais da «situação» que «era tempo que os fidalgos reconhe-
cessem que a sua importância acabou» e que só o mérito cívico
era fonte de verdadeira nobreza, que agora corria no sangue de

49 Asmodeu, 26.2.59.
500 Português, 9.9.58.
51 O Português, 15.10.58.
52 0 Português, 9.9.58.
530 Português, 26.9.58.
54 0 Português, 9.9.58.
550 Português, 26.9.58.

256
A republicanização da monarquia (1858-62)

quem a ganhasse, não de quem a herdasse. Ora que sentido


podia ainda fazer, num século em que «já se mofa» da nobreza
hereditária, conservar uma Câmara de Pares baseada no princí-
pio anacrónico da hereditariedade? Nenhum, é claro. Não era
a Câmara Alta «uma instituição hoje condenada pela opinião
quase unânime do país»?56 O Português garantia que era, como
de resto não custava a compreender. Ali estava um corpo de
homens «já facciosos, já nimiamente ignorantes», firmemente
apostados em «combater toda a ideia de reforma, de progres-
so, de civilização»>”, sempre prontos a defender as irmãs de cari-
dade e, como tal, a «matar a imprensa e o parlamento»58. «O país
descrê da instituição do pariato como actualmente existe», decre-
tou O Português logo em Novembro de 1858, reabrindo desde
então um diferendo que vinha quebrar a paz constitucional se-
lada pela Regeneração havia apenas sete anos. E como não seria
de esperar que os pares colaborassem na sua própria extinção,
O Português recomendava como «justa e santa» uma «ditadura»
destinada a reformar a Câmara dos Pares e a tomar a medida,
natural e logicamente conexa, de abolir os morgados>º.
À primeira etapa do programa antiaristocrático e, em últi-
ma análise, antimonárquico, do radicalismo ficava assim desde
logo indicada e entrelaçada com a questão religiosa pela forma
que se viu. O pariato simbolizava o privilégio encravado no siste-
ma representativo; era um enxerto dogmático implantado num
edifício racional; um sofisma da igualdade legal; era a negação
da democracia. O pariato tinha um fundamento «teocrático»;
o sistema representativo, um fundamento «filosófico». Por isso
aquele abrigava-se no seio da Igreja, enquanto este medrava da
árvore da Ciência e da Razão. Não que o radicalismo se decla-
rasse ateu. Mas aos olhos dos católicos assustados com a mensa-
gem de Pio IX, que em 1848 proclamara a fé católica ameaçada
pelo livre-pensamento liberal, a forma herética das suas crenças
religiosas mal disfarçava o ateísmo em que banhava a ideologia

56 0 Português, 21.11.58.
57 0 Português, 21.11.58.
58 0 Português, 14.10.58.
59 0 Português, 21.11.58.

267
Apologia da História Política

radical. José Estêvão afirmava-se o homem mais religioso do


mundo. Mas não porque a religião católica fosse superior e a
única verdadeira, ou porque a graça de Deus o tivesse tocado.
Antes pelo singelo e mundano motivo de que tinha sido essa
a religião de seus pais. Não escolhera nem fora escolhido:
aceitara a «tradição da família», vergara-se ao «dogma de nos-
sos pais». «Respondo assim a todos os teólogos», dizia em tom
de desafio. E de imediato passou a explicar que era «inimigo
das irmãs de caridade» porque as considerava «um ataque ao
princípio de família»Sº.
O deputado Pinto Coelho, católico e legitimista, ouvia estas
coisas e não podia acreditar que José Estêvão fosse verdadei-
ramente católico. Nem o conde de Lavradio, nem o marquês
de Ficalho ou de Fronteira, nem outros com um passado impe-
cavelmente liberal mas que, pelo que liam e ouviam à sua volta,
temiam pela religião da Igreja e pela ordem social que ela san-
cionava. O redactor de O Português dizia-se católico, mas na
condição de isso não estorvar a sua fé liberal. Porque, «Se não
pudéssemos ser católicos sendo liberais, confessamos que deixa-
ríamos de ser católicos para ser liberais»e!. Tamanha franqueza
escandalizava e assustava. Por trás dela, os católicos discerniam
os sinais de uma irrelegiosidade crescente. Falava-se, com efeito,
uma linguagem nova. Questionava-se o que sempre se dera por
adquirido, sugeriam-se incompatibilidades onde antes se tinha
visto a necessidade harmoniosa das coisas, o acordo razoável
dos interesses, a prudente salvaguarda da ordem que não se ima-
ginava pudesse existir sem hierarquia. De não ver nem «moral»
nem «religião» no «sacerdócio», no «magistério», na «magistra-
tura», na «nobreza», o Asmodeu concluía afoitamente que de
nada valia «Invocar o nome de Deus nos actos públicos»2. Fa-
zê-lo, «Para quê?», interrogava retoricamente. Era uma maneira
de dizer que a existência de uma religião oficial do Estado não
assegurava a moralidade nem das instituições nem da socieda-
de. Esta verificação, como logo se percebeu, trazia implícita a
60 Sessão de 19.7.61, in 4 Liberdade, 14.7.61.
610 Português, 7.11.58.
62 11.12.58.

258
A republicanização da monarquia (1858-62)

condenação do art. 6.º da Carta Constitucional, onde se esti-


pulava que o catolicismo era a religião oficial do Estado por-
tuguês, uma providência que a ortodoxia liberal sempre tinha
considerado sensata e benéfica. Por um lado ela apresentava-
-se como o corolário natural do facto de a prática totalidade da
população portuguesa ser católica; por outro, o liberalismo não
comportava a hipótese de uma sociedade assente em funda-
mentos puramente laicos, nos quais via barreiras demasiado
fáceis de transpor para que a liberdade não degenerasse em li-
cença. Os homens não seguiam o Bem por mera indicação ra-
cional nem obedeciam às leis por sujeição voluntária ao dever.
Como não se podia colocar polícias atrás de todos os cidadãos,
era precisa uma «prisão moral» que reforçasse o «código penal».
A educação religiosa era um auxiliar do Estado com que este
haveria de «lucrar sempre»*3. A coesão e a boa ordem da socie-
dade requeriam, segundo o liberalismo, um esteio moral dog-
maticamente fundado. Liberdade de consciência dava-a à larga.
Mas outros cultos religiosos apenas eram tolerados desde que
os seus templos e rituais não melindrassem a sensibilidade dos
católicos. O radicalismo descobriu no desigual tratamento das
crenças e na proibição de todas elas se manifestarem com igual
exuberância um grave atentado à liberdade de consciência e
um intolerável privilégio concedido à Igreja Católica. Para com-
pensar esta iníquia desigualdade, passou a exigir que lhe fosse
vedado o ensino. Na Câmara dos Deputados José Estêvão afir-
mava, taxativo: «Eu não admito a liberdade de ensino com culto
dominante.»eé Não menos taxativo, O Português escrevia: «Não
admitimos a liberdade de ensino enquanto não houver liberdade
de cultos. [...] Venha a liberdade de cultos, venha a discussão,
e votaremos logo pela liberdade de ensino.» A troca proposta
supunha que se via na Igreja uma simples agência mundana
de propaganda. Já tinha o púlpito e o confessionário: que ao
menos se não lhe entregasse a educação da infância, hipotecando

63 4 Revolução de Setembro, 15.9.58.


ÉÉ DED2359.
65 17.10.58.

259
Apologia da História Política

o Futuro. A moral não carecia da religião. Ela derramava-se pela


«instrução, pela liberdade, pelas instituições, pelas leis»ºº. Ela
brotava, em suma, da civilização. A liberdade de ensino, que
o clero explorava para propagar doutrinas reaccionárias, devia
ser limitada. A liberdade tinha destes paradoxos: era preciso
restringi-la para depois se desenvolver. Debalde clamava 4 Re-
volução de Setembro que a liberdade de ensino era tão sagrada
como o «direito de propriedade» ou a «liberdade de pensa-
mento»; que a «concorrência» era benéfica em todos os ramos
da actividade humana; que a imprensa e a opinião pública basta-
vam para penalizar e impedir os abusos. Nenhuns argumentos
convenciam os radicais de que o governo «não é o supremo regu-
lador, como querem os socialistas, que por este modo absorvem
toda a individualidade no Estado»º7. A pretexto da questão das
irmãs de caridade, voltava ao de cima a velha e insolúvel oposi-
ção entre radicalismo e liberalismo, separados por visões antagó-
nicas do indivíduo, da sociedade e do Estado.
A Revolução de Setembro procurava penosamente firmar-
-se num meio termo entre os dois campos adversos. À 9 de Se-
tembro sumariou a sua posição: reprovava a «introdução das
irmãs de caridade», por inconveniente, mas lembrava que tinha
sido autorizada pelo governo, e qualificava a sua expulsão de
«miserável e indecorosa». Contrariamente aos católicos, julgava
«desnecessário» o instituto de S. Vicente de Paulo, mas, contra-
riamente aos radicais, não via «nenhum perigo para a liberda-
de por aí se acharem umas poucas de irmãs de caridade e dois
padres lazaristas». A posição liberal expressa por 4 Revolução
era das mais delicadas. Por um lado não podia senão condenar a
estridência sectária do radicalismo, que pretendia combater uma
alegada reacção religiosa incitando a «ira popular» com «injúrias
e calúnias» contra as irmãs de caridade e os seus defensores. O li-
beralismo tirara da Revolução Francesa a lição definitiva de que
a liberdade se não protegia com restrições e perseguições e pedia,
coerentemente, «liberdade e paz» para o «judeu», o «gentio»,

66 Asmodeu, 11.12.58.
67 À Revolução de Setembro, 30.9.58.

260
A republicanização da monarquia (1858-62)

o «grego», o «romano», o «ultramontano», o «cismontano», o «ca-


tólico», o «hereje», o «calvinista» e o «luterano»88. Por outro lado,
A Revolução não queria aparecer confundida com o campo «reac-
cionário», e reconhecia haver «uma opinião contra as irmãs de
caridade» que era «conscienciosa» e merecia ser respeitada. Entre-
tanto, pela «inépcia do governo», a questão avolumara-se, tendo-
-se tornado uma questão «de ordem pública e de ódios e paixões
políticas». «A pedra saiu das mãos. Ninguém sabe onde ela irá
bater.»/0 De um lado e de outro as hostes estavam encarniçadas,
obstinadas numa liça em que se perdera todo o sentido da mo-
deração e do bom senso. A Revolução acusava o governo de a
tudo assistir inerme e não acudir com remédio pronto ao ódio
«fratricida» que lavrava na sociedade. Mas a pedrada saída das
mãos fora atingir em cheio o próprio governo, provocando a
«cisão» nas suas «fileiras»?!. Sob o efeito do choque, «o fermento
dos velhos partidos desenhou de novo na aparente unidade do
exército ministerial as feições de uma pronunciada dissidência»??.
Rompeu-se a aliança de Loulé com os avilistas, e dos radicais com
os históricos. Apertado pela proximidade das eleições suplementa-
res, o ministério dera penosamente à luz o decreto de 3 de Setem-
bro, destinado a captar a simpatia de «Muitos caudilhos eleitorais»
que se tinham declarado «em cisma com o governo na questão
das irmãs de caridade»?2. Mas o «Partido Popular» depressa viu
o «escárnio» que se lhe lançara «envolto na anfibiologia» daquele
decreto e acabou por o repelir abertamente como obra do «mais
requintado jesuíta»/4. «Quem apoia o governo?», interrogava Ro-
drigues Sampaio em 4 Revolução de Setembro. Os que assinavam
a favor das irmãs de caridade? Os que assinavam contra? Nem
uns nem outros, respondia Sampaio, pois todos eles «convergem
para hostilizar»o gabinete”.

68 4 Revolução de Setembro, 8.8.58.


69 Ibidem, 5.8.58.
70 Ibidem, 31.8.58.
71 Ibidem, 5.9.58.
72 Ibidem, 8.9.58.
73 Ibidem, 5.9.58.
74 O Português, 14.9.58.
75 A Revolução de Setembro, 10.9.58.

261
Apologia da História Política

Segundo os cálculos de O Português, para algum dos lados


este teria de cair. O aparecimento em campo dos «jesuítas»,
já comprovado por mil e um factos, operara uma milagrosa «re-
volução nas ideias e nas tendências»: «génios transcendentes»
e «espíritos cultivados» que até ali andavam dispersos por «di-
versas parcialidades» tinham assentado «arraiais» debaixo do
«pendão» de O Português, que agora podia triunfalmente pro-
clamar: «Hoje já não há senão dois partidos, senão dois cam-
pos: o jesuíta, hipócrita, inimigo da ilustração e civilização dos
povos, absolutista e reaccionário. O do cristianismo, liberal,
amigo dos homens e de Deus, e progressista.Ȏ Por outras pala-
vras: «A nação está extremada em dois campos, o campo da
liberdade, e o campo do miguelismo.»?7 O próprio Rodrigues
Sampaio, lamentando que tivessem acabado os «belos tempos»
em que «as paixões partidárias estavam adormecidas», constata-
va que os velhos «rancores» políticos tinham renascido, que entre
«parentes e amigos» reinava a «sizania»?8, e que na sociedade se
abrira uma fractura entre o «nobre» e o «plebeu».
Chegadas as coisas a este pé, o governo não tinha via fácil
por onde se escapulir e O Português tencionava sem dúvida di-
ficultar-lha o mais possível. O Português, quer dizer, a facção
radical que ali dominava e se tinha por uma espécie de vanguar-
da do Partido Histórico. Queria uma política «progressista» e
queria ver homens progressistas no governo. Naturalmente,
propunha-se zadicalizá-lo. Já se disse que isso implicava polari-
zar o campo político, um objectivo que no Outono de 58 estava
alcançado. Mas Loulé e a parte moderada do partido resistiam.
Tinha-se pedido a expulsão das irmãs, e respondera-se com o
decreto de 3 de Setembro, pitorescamente apodado de «anfibio-
lógico». À resistência dos moderados os radicais reagiam com
ameaças. Nas colunas de O Português mandavam recados, ofe-
reciam conselhos, faziam admoestações e, quando nada disto
surtia efeito, tentavam a chantagem: que «por horas, minutos

76 0 Português, 9.9.58.
77 Ibidem, 12.9.58.
78 A Revolução de Setembro, 10.9.58.

262
A republicanização da monarquia (1858-62)

e segundos» ainda acreditavam no governo e por isso não lhe


declaravam «guerra»??; mas que era urgente o ministério «re-
constituir-se, entrando para ele dois homens que ajudem os
srs. ministros que trabalham»8º. Os que não trabalhavam de-
viam sair, e O Português disponibilizaria de entre a sua falange
dois elementos com a energia requerida pelas circunstâncias.
Em vésperas das eleições suplementares, marcadas para 17 de
Outubro, aparecem cartas de cidadãos dizendo que era bem
feito os «correlegionários» não se empenharem nas eleições, a
fim de mostrarem ao governo que «nada vale sem o auxílio do
partido que lhe confiou os seus destinos»8!. Entretanto, e como
acontecia diariamente desde 28 de Julho, a primeira página
de O Português saia sempre com a continuação da lista dos assi-
nantes contra as irmãs de caridade. Já ia nuns poucos de milha-
res, mas a lista rival, promovida por 4 Nação, era assinada por
muito maior número de pessoas. Os dois jornais arrebanharam,
respectivamente, «sete mil e duzentas» e «trinta e seis mil» as-
sinaturas82, Na sociedade, sabia-se para que lado pendia a ba-
lança. O povo português era arreigadamente católico, por
convicção ou superstição, e era precisamente este fervor religio-
so que provocava a virulência do anticlericalismo doméstico,
socialmente marginal. Esta marginalidade não escapava ao go-
verno e a Loulé, a quem além disso, segundo se dizia na im-
prensa, os amigos e familiares suplicavam que protegesse as
irmãs de caridade. Mas a política tinha as suas razões e o chefe
do governo, «com o seu génio principesco e mole», esqui-
vava-se a uns e a outros, esperando satisfazer a todos. Em resul-
tado desta «anfibiologia», O Português acusava o governo de
«ingrato» para com os seus «verdadeiros amigos», repetia que
«os srs. ministros não são nada, não valem nada sem o auxílio

2.0 Português, 12.9.58.


80 Ibidem, 16.9.58.
81 Ibidem, 12.10.58.
82 Números indicados pelo deputado D. Rodrigo na sessão de 9.3.61,
Diário de Lisboa, 12.3.61.
83 Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo.

263
Apologia da História Política

e o apoio do partido progressista» e insistia em que o ministério


se «reconstruísse». Caso contrário, «os seus amigos não estão
resolvidos a apoiá-lo, se não se quiser guiar pelos seus con-
selhos»84.

84 0 Português, 4.12.58.

264
HI

«Há reacção religiosa de braços dados


com a reacção política»8s

Entretanto, procurou-se orquestrar um movimento de


opinião em favor do ensino público, cuja promoção requeria
que se abrissem os cordões das bolsas particulares. Apregoa-
va-se que a caridade católica financiava os asilos para os pobres:
havia que mostrar que a caridade ilustrada chegava para finan-
ciar escolas para o povo. No último dia de Outubro realizou-
-se uma «grande reunião» no Teatro D. Maria II, destinada a
«acudir à instrução do sexo feminino»86, que era a mais urgente
das prioridades com vista à preparação do Futuro, dada a in-
fluência determinante que se julgava que as mães possuíam
sobre a formação dos filhos e, portanto, sobre a têmpera moral
da Pátria de amanhã. Estiveram presentes progressismos de
vários matizes congregados sob a presidência de Alves Mar-
tins, bispo de Viseu, o chefe do partido reformista que havia
de surgir dali a dez anos8?. Herculano foi a estrela do acon-
tecimento. O velho liberal, e velho católico, desavindo com a
Regeneração logo desde 1851, estava já por esta altura conven-
cido de que Pio IX se rendera ao «jesuitismo» e comandava a
partir de Roma a reacção ultramontana contra a liberdade das
igrejas nacionais e as instituições constitucionais na Europa.
Não se convertera ao radicalismo nem passara a acreditar na
bondade da democracia. Mas, fiel à tradição regalista e secula-
rizadora simbolizada pelas leis de D. Pedro IV, via nas irmãs

85 Vicente Ferrer, DCD, 2.3.59.


86 0 Português, 30.10.58.
87 De entre os nomes ligados à iniciativa destacam-se: Passos Manuel, Ale-
xandre Herculano, António de Serpa Pimentel, Thomas Maria Bessone, António
Cabral de Sá Nogueira, Manuel de Jesus Coelho, conde de Peniche, José Estêvão,
Mendes Leal, Joaquim Filipe de Soure, Sousa Brandão.

265
Apologia da História Política

de caridade as prosélitas de um novo catolicismo, aliado da reac-


ção política, e interpretava a tibieza do governo como um sinal
do ascendente que esta já tinha conquistado nos meios influen-
tes da sociedade portuguesa. «Considero, dora avante, o parti-
do liberal em perigo», declarou Herculano com o peso inteiro
da sua autoridade, perante uma assembleia que o escutou do
princípio ao fim com a «gravidade e seriedade do antigo senado
romano». De seguida confirmou o que O Português não se can-
sara de afirmar: «Vemos ameaçado o futuro do país na educa-
ção popular.»88
Na sessão de 23 de Dezembro os deputados Vicente Ferrer
e Oliveira Marreca requereram à Câmara que tomasse posição
perante a existência em Portugal do instituto francês de carida-
de. A 29, O Português, considerando que o assunto estava final-
mente entregue à instância competente, suspende a publicação
da lista dos assinantes contrários à presença das irmãs no país.
Mas continuaram a passar os dias, as semanas e até os meses,
sem que o Parlamento agendasse a disucussão nem que o gover-
no se «demitisse» ou «reconstruísse», como lhe era pedido «em
nome do país e do partido popular» desde que as câmaras tinham
reaberto em 4 de Novembro??. Enquanto isto, as provocações
da reacção continuavam. Com o patrocínio do patriarca de Lis-
boa tinha sido criada a «Associação dos observantes do 3.º Man-
damento da Lei de Deus», que manda guardar os domingos e
dias santos, a cujos membros a Igreja atribuía o prémio de qua-
trocentos dias de indulgência. Era mais um sinal indesmentível
de que «a reacção marcha[va] altiva em Portugal». Estava-se, por-
tanto, «em tempo de guerra», anunciava O Português?0.
Gradualmente, a celeuma tinha-se vindo a deslocar do
tema das irmãs de caridade para o tema mais geral da «reacção»,
de que aquelas eram apenas o sintoma mais visível. A reacção,
alegadamente, queria «forcas» e a «inquisição» para os «liberais»,
que O Português definia como «todos os que não acreditam

880 Português, 4.11.58.


89 0 Português, 25.2.59.
90 0 Português, 2.3.59.

266
A republicanização da monarquia (1858-62)

na infalibilidade papal», mais «os que não têm em considera-


ção alguma as indulgências», e ainda «os que abominam a in-
fame sociedade de St.º Inácio de Loyola»?!. Poderia supor-se
que a apregoada cruzada reaccionária fosse um puro produto
da imaginação paranóide dos radicais. Mas havia um fundo
de verdade no que diziam. No princípio de Março de 59, Lati-
no Coelho, nas páginas de 4 Revolução de Setembro, afirma que
«Há, ninguém o pode negar, desde algum tempo, uma insistên-
cia calculada, uma propaganda metódica e calculada para
restaurar o que existiu, o que morreu»?2. Era visível que havia
«saudades da religião que se perdeu»:

«Os conventos ermos, a patriarcal despojada das suas opu-


lentas hierarquias, as fundações régias acabadas, as prela-
turas e as prebendas pingues suprimidas no orçamento das
famílias patrícias, as portas das igrejas e as suas dignidades
abertas e concedidas aos cidadãos da última plebe, as tem-.
poralidades eclesiásticas diminuídas, abolidos os dízimos,
com que se alimentavam as raças privilegiadas, que faziam
da igreja o celeiro das suas avarezas, e acima de tudo isto a
instrução represada nas mãos do clero, para que nunca che-
gasse a iluminação às turbas; um povo para trabalhar, sofrer
e ignorar; algumas classes felizes para fruir, saber e imperar;
tudo isto aviva as saudades da religião que se perdeu, da
ortodoxia que se acabou com a vinda destes grandes heresiar-
cas a quem se dá por irrisão o nome de liberais.»

Latino reconhecia: «A reacção trabalha. [...] Da liberdade


se socorrem os que a pretendem assassinar.» Mas nem por isso
dava razão a O Português:

«A reacção trabalha. Mas a liberdade tem em si elementos


com que resistir-lhe [...] sem diminuir num ápice os di-
reitos de nenhum cidadão, de nenhum corrilho, de nenhum

910 Português, 3.3.59.


92 À Revolução de Setembro, 4.3.59.

267
Apologia da História Política

partido. [...] Contra a reacção basta como defesa a lei. Nas


leis actuais há arsenal com que armar os exércitos da civi-
lização contra as ciladas reaccionárias.»?3

Rodrigues Sampaio, reconhecendo embora que «a reacção


é uma ideia que procura sem dúvida triunfar», repisava o mesmo
refrão liberal: «A liberdade não é liberdade quando não é para
todos.» E como se defende a liberdade quando é atacada?
Defende-se «actuando pela opinião sobre o espírito público»,
«opondo doutrina a doutrina, opinião a opinião»?4. Iria a demo-
cracia matar a liberdade com a mesma mão com que pretendia
defendê-la?
O artigo de Latino Coelho não caíra do céu. No Parlamen-
to corria com grande alarido a discussão do projecto de desamor-
tização dos bens dos conventos de freiras que ainda subsistiam
e onde, alegadamente, continuavam a fazer-se «profissões». De
todo o país choviam abaixo-assinados das freiras contra o plano
do ministro da Fazenda, que o católico Pinto Coelho apodou
de «espoliador». Ora também o duque d' Ávila, cuja engenharia
financeira dependia da aprovação do projecto, tinha descober-
to que a «reacção» existia e trabalhava. No meio de «muitos e
repetidos apoiados» jurou à Câmara que havia de «combater a
reacção por todos os meios legais» ao seu dispor. «A reacção
vem com pés de lã (apoiados); mas eu hei-de empregar todos
os esforços para a não deixar dar um passo.» A surpreendente
tirada patriótica do ministro suscitou «aplausos gerais». Não o
impressionariam nem «cem mil assinaturas contra o projecto
dos conventos» porque, conforme explicou, não via nelas «senão
a influência de meia-dúzia de pessoas». Talvez a reacção fosse
apenas orquestrada por meia-dúzia de pessoas, mas possuía vastas
e perigosas ramificações. «Há reacção», atalhou Ferrer, há «reac-
ção religiosa [...] de braços dados com a reacção política». Era
preciso que a liberdade «reagisse» e não se deixasse «embalar»

93 À Revolução de Setembro, 4.3.59.


9á Ibidem, 13.3.59.
95 DCD, 2.3.59.

268
A republicanização da monarquia (1858-62)

pelos «ditos daqueles que dizem — “Porque há-de a liberdade


ter medo de seis freiras e de dois padres?» Ferrer tinha medo,
«medo do poder de que são guarda avançada as seis freiras e
os dois padres». E havia então de se «negar direito aos liberais
de reagir contra a reacção»?96
Mendes Leal estava com Ferrer. Todas as coisas se ligavam
e explicavam umas às outras. As asinaturas contra os «bens das
freiras» — como o projecto era conhecido — eram promovidas
pelas mesmas influências que «se declaram em hostilidade aber-
ta e permamente contra todo o regime liberal»?7. Mendes Leal
expôs o «perigo»: À resistência contra a venda dos bens das
freiras, explicou,

«É principalmente uma conjuração clerical que dispõe dos


ânimos, que subleva a superstição e a credulidade pela
jurisdição do sacerdócio, pela'duplicada e imperiosa potes-
tade do púlpito e do confessionário. [...] este exercício do
direito de petição não está longe do constante pensamento
da reacção [...]. Aparece nesta manifestação, como tem
aparecido nas missões que sucessivamente percorrem o
Norte do reino, insinuando o restabelecimento das ordens
regulares, fundamento indispensável do regime absoluto,
preparativo eficaz para um retrocesso premeditado. Aqui
aparece como na grande questão do ensino [...). A liberda-
de não se salva dizendo que ela é inabalável.»

A liberdade estava ameaçada, e não seria salva pela moleza


dos que a diziam «inabalável». «Sr. presidente», prosseguiu Men-
des Leal, «os jornais da capital falam de uma nova associação
denominada dos Observantes [dos domingos e dias santos] orga-
nizada em decúrias e centúrias», que denota inconfundível «es-
pírito de seita». E o que se podia concluir? Que

«Revive aquela fraternidade exclusiva e sediciosa, que tende


a estabelecer um estado no estado...

96 DCD, 2.3.59.
97 Ibidem.

269
Apologia da História Política

O sr. Ferrer: Contra a caridade no Evangelho.


O orador: ... esta fraternidade que parcializa os interesses,
opõe-se à fraternidade humana, que não admite exclusões.
Não é esta a religião do Crucificado, que não remiu o mun-
do por parcelas. Estas são as seitas que dividem a humani-
dade, e muitas vezes a ensanguentam!»

Havia reacção. Finalmente, a 2 de Março de 59, isto era


dado oficialmente como ponto assente. Mas era o governo o
verdadeiro visado na controvérsia que se seguiu à apresentação
da «moção anticlerical» de José Estêvão, destinada, como o
próprio explicou, a demonstrar «um acordo das fracções libe-
rais desta câmara»?8. Ora o debate e as votações tumultuárias
que se seguiram provaram precisamente que não havia acordo
a não ser sobre o desejo de censurar o governo. Tudo o mais
era incerto. Havia reacção: mas só uma reacção? só a reacção
«religiosa»? Não a haveria também «anti-religiosa»? E «políti-
ca»? E o que pretenderia ela exactamente? Segundo Vicente
Ferrer, o discurso do deputado católico e legitimista Pinto Coe-
lho deixou totalmente esclarecida a questão de saber «o que
pretende a reacção ultramontana e política»:

«Por exemplo, o nobre deputado quer a continuação de


freiras, reacção. O nobre deputado quer que ressuscitem
as ordens religiosas do sexo masculino, reacção. [...] enten-
de que as corporações religiosas, chamadas de mão morta,
têm propriedade com todos os efeitos da propriedade parti-
cular, reacção. [...] quer que a cúria romana possa dispor
dos bens da igreja, porque à cúria romana pertence o domí-
nio de todos os bens eclesiásticos, espalhados por toda a
terra, reacção. [...] quer irmãs da caridade francesas, essa
guarda avancada do ultramontanismo, reacção. [...] quer
servir-se das garantias da Carta Constitucional, para derri-
bar a mesma Carta e restabelecer o governo absoluto e suas
delícias, reacção.»

38 DCD, 2.3.59.
99 DCD, 5.3.59.

270
A republicanização da monarquia (1858-62)

No dia 4 de Março apareceu a versão definitiva da moção


de José Estêvão, assinada pelo próprio e por uma maioria de
radicais 100, Não era uma proposta «de oposição nem de gover-
no». Era «a proposta do partido liberal», rezando simplesmente:

«A câmara, reconhecendo que o exercício do direito de peti-


ção é livre para todos os partidos e opiniões, convida o go-
verno a atender aos princípios liberais inaugurados pela
restauração, mantendo a execução das leis que os consignam,
e opondo-se com firmeza às demasias e abusos de influên-
cia de qualquer espécie de influência religiosa.»

Mas a existência da reacção, em lugar de unir o «partido


liberal», pelo contrário dividia-o. Desde logo a referência ao
direito de petição significava uma cedência à Direita católica,
que exigia ver reafirmada a liberdade de as freiras protestarem
contra a supressão e reunião dos seus conventos e a venda dos
seus bens. Depois, a moção deixava por esclarecer concreta e
especificamente de que reacção ou reacções se tratava. Már-
tens Ferrão declarou não saber «oficialmente se há ou não reac-
ção», uma vez que «nem o governo se lhe opõe, nem vem pedir
meios contra ela». Entendia, por conseguinte, que a proposta
traduzia uma «aspiração abstracta, para fortificar o governo
contra o princípio reaccionário», e então queria que ficassem
«compreendidas todas as espécies de reacção: a religiosa, a anti-
-religiosa e a política»l01.
É verdade que por esta altura já despontara em Portugal
um neocatolicismo, beato e ultramontano, dirigido contra as ins-
tituições liberais. Mas o que se lhe opunha era também um novo
cristianismo, diferente da fé religiosa dos liberais de 34, que nega-
va a Igreja Católica como depositária da mensagem de Cristo
e guardiã da unidade da fé, via no catolicismo uma seita como
outra qualquer e no papado uma usurpação, e reduzia a religião

100 7. Estêvão, João de Mello Soares e Vasconcellos, Luis Augusto Rebello


da Silva, Vicente Ferrer Neto Paiva, José da Silva Mendes Leal Jr., A. Oliveira Mar-
reca, Thomás de Carvalho, Sousa Pinto Basto, José de Morais Pinto de Almeida.
PL 93,59.

Puga
Apologia da História Política

a uma vivência interior que dispensava o culto e os seus minis-


tros. Não se negavam os «dogmas», segundo afirmava Vicente
Ferrer, mas erigia-se a consciência racional do indivíduo no juiz
supremo em matéria de fé. O cristianismo era um humanis-
mo; uma revelação de Deus actualizada pela inteligência do
homem. Deus era o «Autor» de toda a «Verdade» e a fonte dos
«princípios do direito e da moral»; mas «à razão toca descobri-
-Jos»102, Deste modo, a inclinação do homem perante os Manda-
mentos de Deus não resultava de um imperativo da fé, mas sim
de um veredicto intelectual. A própria fé não era afinal uma graça
divina, antes um produto do discernimento crítico da razão hu-
mana. À ressonância materialista desta «filosofia» não escapava
a um liberal como Mártens Ferrão que, instruído pela Revolu-
ção Francesa, lhe contrapunha as lições de prudência e sabedo-
ria colhidas em Guizot. O homem precisa da fé; tem sede de
transcendência que nenhuma ordem terrena pode satisfazer:

«A religião não é política [...] a política é que não pode


passar sem a religião. [...] há sempre no homem mais aspi-
rações, do que a sciência social pode satisfazer ou regular.
[...] Nenhuma instituição civil transporta até ao infinito,
e entretanto as aspirações do homem lá chegam, e neste
ponto só a religião o completa.»

E citava o doutrinário francês: «É necessário um poder


mais alto do que os poderes da terra, perspectivas mais longas
que as desta vida. É necessário Deus e a eternidade.”»103 O ra-
dicalismo ouvia e calava, mas não acreditava e pelo contrário
discordava.
Nas três sessões que a moção levou a ser votada deram-se
desordens indecorosas que tanto revelavam o fraccionamento
do «partido liberal» como a desorientação do governo, que pre-
ventivamente declarou pela boca de Ávila que não tomava o
caso como «um voto de censura». Uma primeira proposta de
Rebelo Cabral para adiar a discussão foi rejeitada por 69 votos

102 vicente Ferrer, DCD, 5.3.59.


103 DCD, 9.3.59.

27da
A republicanização da monarquia (1858-62)

contra 47104, No último dia, Rebelo Cabral voltou à carga com


nova proposta de adiamento da moção, mas que desta vez foi
rejeitada por 65 votos contra 32. Eram portanto apenas 32 os
fiéis ministeriais que, apoiando o adiamento, queriam poupar
o governo a uma censura indirecta do Parlamento. Do outro
lado estavam os católicos, os radicais e outros, como Rodrigues
Sampaio e António Serpa, que, por motivos diferentes, estavam
interessados em confrontar o ministério com uma votação que
o forçasse a tomar partido e que, do mesmo passo, obrigasse a
maioria a definir-se. Se esta votasse contra, daria, como escreveu
Latino Coelho, o «último remate para a [sua] impopularidade»,
declarando-se «pública e solenemente fautora e cúmplice nas
tramas reaccionárias»105, Se votasse a favor, censurava o minis-
tério, provando que este não tinha apoio no Parlamento para
continuara governar. Neste caso, segundo o cálculo dos radi-
cais, o governo seria forçado a «reconstruir-se» com elementos
da confiança do «partido popular», como O Português instan-
temente aconselhara. Segundo o cálculo dos regeneradores, seria
compelido a demitir-se.
Quando a votação teve lugar, a Câmara manifestou-se,
como não podia deixar de ser, rasgadamente liberal, aprovando
a moção de José Estêvão por 88 votos contra 7. Concluía-se que,
para além de sete legitimistas e católicos, apenas o governo não
vira «as tramas reaccionárias [...] sistematicamente combinadas
e dirigidas contra as liberdades do país»106. «Para quem não está
cego», escrevia Rodrigues Sampaio em 4 Revolução, «a câmara
resolveu a questão das irmãs de caridade contra o governo»!9”.
Poucos dias depois, não se tendo «reconstruído», este caía no
Parlamento em torno da chamada «questão Petto», uma propos-
ta para a adjudicação de um caminho de ferro que violava o
«princípio do concurso» que O Português sempre defendera!08.
Sousa Brandão e outros «progressistas» votaram contra. Caído

104 DCD, 4.3.59.


105 4 Revolução de Setembro, 4.3.59.
106 Ibidem.
17 13,800:
108 15,3,59:

273
Apologia da História Política

o ministério, O Português explica o que se passara. Havia, den-


tro da própria maioria do governo, uma «maioria» e uma «mino-
ria». Aquela era formada por progressistas que «ainda se lhe
conservavam fiéis» mas já não eram incondicionais. À minoria
compunha-se dos avilistas do governo, o próprio Ávila e Car-
los Bento, e dos deputados seus amigos. Esta «porção de ho-
mens» não tolerava «que fossem chamados ao ministério homens
de outra política», homens de uma política popular, não con-
sentindo que o governo se definisse como francamente progres-
sista. Assim se explicava que o ministério se não houvesse até
ali «reconstruído», uma falta que, custando-lhe a deserção de al-
guns amigos na «questão Petto», precipitou a sua queda. À pedra
que saiu das mãos tinha atingido o governo mortalmente, indo
bater, por ricochete, nos mesmos que a tinham lançado. A 16
de Março, o duque da Terceira assumia a presidência de um
novo ministério. Com ele, o radicalismo era varrido para fora
do poder.

274
IV

«Senão, não»109

Terceira, o chefe do novo governo, era também o «chefe


dos lazaristas». Debaixo da sua protecção, a «reacção religiosa»,
nas suas diversas expressões — «fradesca», «jesuítica», «ultramon-
tana», «lazarista» — entrou a manifestar-se com desaforo nunca
visto! 10, Nos asilos entregues aos cuidados da falsa caridade fran-
cesa, as crianças passavam privações cruéis e viviam num abando-
no apenas interrompido pelas sádicas punições que as irmãs lhes
infligiam. No asilo da Ajuda, paredes meias com os infelizes
órfãos maltratados, o lazarista Sipolis presidia regularmente a
«banquetes» e deleitava-se com a «grande folia» que os anjos
da caridade lhe proporcionavam. Durante a noite, era visto a
passear «em sege fechada com menina órfã e donzela» que as
francesas, «por caridade», lhe entregavam!!1, As do asilo dos Car-
dais faziam idênticos favores ao seu confessor, que costumava
correr a cidade «na direcção de Oeiras» com «uma donzela de
17 anos» dentro da carruagem «de cortinas fechadas»!12. Era
interminável o rol das «imoralidades», dos «escândalos», das «in-
fâmias» e dos «crimes até» de que Portugal estava a ser «vítima»
desde que tinham entrado no país «as irmãs de caridade france-
sas acompanhadas dos seus padres lazaristas»!!3. Mas o gover-
no não queria saber. O lazarismo dos ministros e dos fidalgos,
de resto, ficara bem evidenciado por ocasião do funeral da rai-
nha D. Estefânia, em 20 de Julho de 59. O povo tinha queri-
do ir «a pé» das Necessidades para S. Vicente, num derradeiro

109 ver nota 146 infra.


Ho q Português, 6.4.59 e 19.4.59.
MI Thidem, 3.5.59 (itálico no original).
112 Ibidem, 7.12.58.
113 Jhidem, Junho de 59.

275
Apologia da História Política

gesto de devoção e respeito pela augusta defunta. Logo «os fidal-


gos e os ministros», não querendo «molestar os seus finos pés»,
arrancaram nas suas carruagens, atirando com a «poeira das
rodas» para cima do povo «que marchava solenemente». Que
admirava? «Os grandes só sabem ser palacianos com todas as
comodidades», convencidos que estão de serem «de outra carne,
que não a dos populares»!
14. :
No mês seguinte, em Agosto, desembarcaram, vindas de
Nantes, mais quatro irmãs de caridade acompanhadas de «um
formidável padre lazarista»!!5, Era rasgar nas barbas do povo
o decreto de 3 de Setembro de 58, que proibira mais «importa-
ção». A imoralidade da «fidalguia lazarista» comprovava-se
diariamente pelas notícias que iam chegando da devassidão que
reinava em toda a parte onde chegavam as irmãs com os seus
confessores. Em Lisboa tinham vindo «roubar as filhas a seus
pais» para as entregarem à concupiscência do padre Sipolis!
6.
Na Covilhã, um tal padre Grainhas desencaminhava mulheres
casadas e solteiras!1!7, fechando-se num «confessionário mons-
tro» a ouvir as suas «ternas confidências»!!8, A presença do laza-
rismo soltara a natural licenciosidade dos padres e desenvolvera
um clima propenso ao despotismo clerical. No Algarve tinha
sido recusado enterro católico a um pobre homem porque há
três anos não se confessava e devia «um pataco de uma bula»!19.
O quadro que o clero oferecia ao país depois de seis meses de
governo lazarista era escandaloso:

«Por toda a parte a reacção campeia, o lazarismo recrudes-


ce, e o clérigo estúpido, avaro, irreligioso e hipócrita, exem-
plifica a obra imoral da sua prostituição, perversidade e
despotismo fradesco. [...] Comilões desaforados, que à som-
bra de simulada religião, e cuspindo no dogma do evangelho

114 O Português, 22.7.59.


115 Thidem, 19.8.59.
16 Ibidem, 14.8.59.
N7 Ibidem, 21.8.58.
118 Thidem, 10.9.59.
19 Thidem, 11.9.59.

276
A republicanização da monarquia (1858-62)

do verdadeiro cristianismo, prosseguem irreverentes e bár-


baros na senda selvática de traficantes de bulas.»1!20

Ao longo do ano de 1860 O Português abrandou, mas não


abandonou, os ataques contra as irmãs de caridade — e con-
tra O jesuitismo, a Igreja, a primazia pontifical e o poder tempo-
ral do Papa. Foi preciso o regresso dos históricos ao poder, em
4 de Julho de 1860, para a cruzada anticlerical ganhar novo
fôlego, tanto mais que o novo ministro dos Negócios Eclesiás-
ticos e da Justiça, Moraes Carvalho, colaborara na redacção,
em Dezembro de 59, do «manifesto» dirigido pela Associação
Promotora da Educação do Sexo Feminino ao Partido Libe-
ral Português, em que entre outras coisas se lhe pedia que não
deixasse «transviar» a educação da infância. «É escusado recor-
dar aos novos ministros», escrevia O Português com a maior
naturalidade, que «sem o partido popular não se sentariam nas
cadeiras ministeriais»!2!, Depois de uma cura de oposição de
quase ano e meio, a coligação histórico-avilista renascera no
Parlamento para empecer as medidas financeiras de Fontes, ao
mesmo tempo que um considerável número de pares se prepa-
rava para fazer obstrução à reforma vincular. Nestas circunstân-
cias, Fontes persuadiu o gabinete a demitir-se a pretexto da
votação sobre um artigo do código do crédito predial!22. Loulé
e Ávila reapareciam no novo governo de 4.7.60, mas este cedia
agora a pasta da Justiça, que dantes acumulara com a da Fazen-
da, a Moraes Carvalho que, como se viu, deveria em princípio
revelar-se mais enérgico.
Mas não revelou. O padre jesuíta Rademaker tinha estabe-
lecido um seminário em Torres Vedras e ali se lhe permitia que
permanecesse calmamente quando fazia precisamente «228 anos»
que tinham sido «assassinados 10 000 calvinistas» em Paris!23.

120 Thidem.
121 Ibidem, 22.7.60.
122 Sobre os «mistérios» que rodearam a queda do gabinete Aguiar-Fontes
(Terceira morrera em Abril), ver as sessões da Câmara dos Pares de 2.7.60 e 5.7.60,
in Diário de Lisboa, 6.7.60 e 11.7.60.
123 O Português, 25.8.60.

27%
Apologia da História Política

E logo a 29 de Agosto desembarcaram nada menos do que dezas-


seis irmãs de caridade e três padres lazaristas, uma «importação»
de volume sem precedentes. A predisposição piedosa de que
vinham animadas deixava-se facilmente adivinhar à vista das «lu-
xuosas carruagens» em que foram transportadas para casa da
«aristocracia lisbonense»!24. Por um paradoxo desconcertante,
era preciso o marquês de Loulé estar no governo para o «ultra-
montanismo» erguer a sua «cerviz ignóbil»!25. «Comam e ca-
lem-se», desforrava-se 4 Revolução, gabando-se de que durante
o anterior governo regenerador nunca tinham «entrado» irmãs
em número superior ao das que «saiam». O Português exami-
nou os «registos de polícia» e verificou que não era exacto: a «re-
exportação» fora «apenas de meia dúzia de irmãs», ao passo
que «só pelos portos marítimos», sem contar com a «raia de
Espanha», tinham entrado «meio cento de tais fardos com dois
frades»126, Fosse como fosse, os «patriotas» não estavam dispos-
tos a engolir a afronta. «Se o nosso partido», escrevia O Portu-
guês, «não pode governar sem auxiliar a propaganda lazarista,
caia embora do poder», mas não se faça cúmplice da reacção
em Portugal!27,
Arranjou-se então um meeting convocado para a manhã
do dia 3 de Setembro no Passeio Público. Era uma forma de
protesto já ensaiada em Inglaterra com muito bons resultados,
mas «até 1860» ninguém quisera experimentá-la em Portugal,
com medo de «desordens». E o próprio «povo, que tem um ins-
tinto pasmoso para conhecer a tolerância dos governos», sem-
pre optara pelo expediente menos civilizado da «revolta» quando
pretendia «a resolução de qualquer questão»!28. Fez-se o mee-
ting, organizado pela recém-criada Associação Patriótica, ao qual
concorreram umas quinhentas pessoas. Pela «ordem» e «decên-
cia» com que decorreu podia servir de exemplo às «duas casas
do parlamento». Foi a primeia «assembleia popular» realizada

124 0 Amigo do Povo, 3.9.60, cit. por 4 Revolução de Setembro, 7.9.60.


125 Idem, ibidem.
126 0 Português, 1.9.60.
127 Ibidem, 30.8.60.
128 Thidem, 4.9.40.

278
A republicanização da monarquia (1858-62)

«ao ar livre»; foi «um grande progresso»; foi uma reunião «bela
e sublime»!29. O orador do dia foi «um ex-livreiro do Rossio»,
o sr. José Marques dos Santos. Elogiou as «virtudes cívicas e
liberais» do sr. marquês de Loulé e declarou o povo em indes-
trutível harmonia com um governo presidido por tão «ilustre
caudilho» ao qual disse, em essência, o seguinte:

«O povo de Lisboa, que ainda há pouco tempo combateu


na urna ao lado de V. Exa. [...] confia que o governo dese-
ja tomar medidas sérias a respeito do lazarismo. [...] Não
tema V. Exa., nem os seus colegas, a oposição de aristocra-
tas e teocratas [...] não adie por mais tempo a resolução de
um negócio tão sério.»!30

Loulé, enredado nos mesmos apertos que tinham estran-


gulado a sua anterior administração, fez orelhas moucas. Con-
forme 4 Revolução «sempre» dissera, «o sr. Ávila tinha nos
bolsos os seus humilíssimos servos»!31. Nos círculos históricos
afectos ao governo dizia-se que o meeting fora uma «borra-
cheira»1!32, mas sabia-se que era preciso fazer alguma coisa que
desse a impressão de «energia». Não era fácil. As irmãs de cari-
dade pareciam sustentadas por uma força invencível. Apesar
das ordens do ministério, recusavam-se a prestar obediência
ao patriarca de Lisboa e a reconhecê-lo como «único superior
legítimo em sua diocese.»!23 O Português dispôs-se a esperar
«um tempo razoável» para ver se «o prelado» se decidia a acatar
«as leis do reino»!34. Enquanto esperava, mantinha a vigilân-
cia sobre os desaforos da reacção religiosa, recenseando-os numa
série de artigos intitulada «Escândalo e barbaridade sob a capa
da religião e da caridade».

129 0 Português, 1.9.60.


130 Ibidem.
131 4 Revolução de Setembro, 6.9.60.
132 Thidem, 5.9.60.
133 Portaria do ministro da Justiça dirigida ao patriarca, in Diário de Lis-
boa, 5.10.60, cit. por O Português, 6.10.60. Note-se que Morais Carvalho se limi-
tava a repetir a intimação já dirigida ao patriarca em Agosto de 58 (DG, 12.8.58).
134 0 Português, 11.11.60.

279
Apologia da História Política

O mais recente desses escândalos mostrara o «jesuitismo»


infiltrado onde nunca se esperara que pudesse entrar: no san-
tuário da «ciência»!35. O que dera motivo a esta descoberta
fora a morte de uma «coitadinha» espancada pelas irmãs do asilo
dos Cardais por «não saber a lição sobre um ponto do evan-
gelho»!36. O lazarismo, é claro, negou logo que tivesse sido esse
o motivo de a «menina» ter morrido. Querendo-se tirar o assun-
to a limpo, chamaram-se «três facultativos» a «depor». E o que
aconteceu? «Dois nega[ra)m que os açoutes ou flagelação por
disciplinas, aplicados sobre a região lombar, possam dar causa
a uma doença grave dos rins»!37. Eis como o lazarismo sabota-
va o esclarecimento de uma questão que a Ciência deveria lim-
pidamente resolver.
Entretanto, desde meados de 1859 que surgiam na im-
prensa radical, de envolta com a questão das irmãs de caridade,
insinuações com um significado de maior alcance do que se
poderia extrair das denúncias correntes das torpezas do lazaris-
mo. Já se aludiu a uma reinterpretação do cristianismo que se
ia exprimindo sob a alegação de que não era «puro» o que a
Igreja Católica propalava. A nova espécie de cristianismo de-
duzia dos mandamentos de Deus que a «absoluta» liberdade
«de consciência, de exame e de crença» era «o fim de todo o
progresso religioso e moral», e anunciava o «triunfo» próximo,
não de Deus, mas «da humanidade»!38. A subida de tom das
críticas contra a religião da igreja!3? intermeava-se com a cres-
cente contundência dos ataques contra a Câmara dos Pares, cul-
minados com o pedido de convocação de uma «Constituinte»
que metesse a foice no que a «falta de audácia e energia» dos
actuais ministros não era capaz de reformar!40, Estava mais do

135 0 Português, 17.10.60.


136 Thidem, 27.9.60.
137 Ibidem, 17.10.60.
138 Ibidem, 21.1.61 (itálico meu).
139 ver, por exemplo, série de artigos publicados por O Português em Ja-
neiro de 61 sob o título «O ultramontanismo julgado no tribunal de Deus e da
Humanidade».
140 0 Português, 19.2.61.

280
A republicanização da monarquia (1858-62)

que provado que a «ignorância supina» era «o mais assinalado


característico da aristocracia pur sang»; que na «câmara aristo-
crática» não se perdia uma ocasião de destilar «uma verrina vio-
lenta contra um homem do povo»!4!; que o pariato era «um
escolho de pedras musgosas onde naufragavam todos os governos
que tentassem abolir para sempre os privilégios» do passado!42.
Mas, sobretudo, o princípio mesmo em que a sua existência se
estribava tinha irremediavelmente caducado: «O direito here-
ditário é tão absurdo como o direito divino.»!$3 Do rei, que
o era por direito não menos hereditário, ainda não se falava.
Mas já em 59 o redactor de O Português declarara com fran-
queza: «Não somos monarquistas»; todavia, enquanto «Adver-
sários sinceros e leais de tal sistema de governação, acatamos
a lei como o primeiro elemento de ordem e de progresso»!44.
Os «liberais», que O Português expressamente definia como «re-
publicanos» e «democratas», estavam dispostos a fazer, «no altar
da humanidade», o sacrifício das suas «aspirações particulares
em favor da ordem»14. Naturalmente, tanta abnegação tinha
uma contrapartida:

«A questão de fórmulas constitucionais é hoje uma ques-


tão secundária e, em maioria, abandonada ao futuro, se
as dinastias tiverem juízo. Os liberais formularam o pacto
do seguinte modo: se querem que haja um rei, que haja
um rei; acatá-lo-emos, como acataríamos o chefe supremo
da República. [...] Mas não queremos um rei pardo, nem
lazarista, nem jesuíta [...] não queremos um rei subordi-
nado ao czar de Roma [...]. Eis aqui o nosso pacto. Se o
adoptam, vamos a ele ... senão? — não.» 4º

Eram estes os termos do «pacto» entre os históricos e os ra-


dicais. Os últimos colaboravam com a monarquia na condição

Iá1 0 Português, 25.2.61.


142 Ibidem, 19.2.61.
143 Ibidem, 25.2.61.
144 Ibidem, 30.8.59.
145 Ibidem, 6.9.60. |
146 Ibidem. Carta de um frequente colaborador, J. D. Sines.

281
Apologia da História Política

de o rei e o governo monárquico combaterem o «lazarismo»,


o «jesuitismo» e O «papismo», ou seja, de suprimirem o que con-
sideravam serem os entraves à republicanização da monarquia.
Ao que pensavam, estes provinham básica e essencialmente do
fervor religioso do povo católico, que o radicalismo supunha que
não passava de uma inoculação ministrada pelos agentes da Igreja
e, por conseguinte, de um reflexo superficial condenado a de-
saparecer com a remoção da sua causa. Desde que estes agentes
fossem privados de fazer propaganda através do abuso do púl-
pito, do confessionário e da educação, uma outra religião, huma-
nista e por assim dizer laica, pregando «um Deus Óptimo e
Único independente de tudo», ganharia os espíritos para a «Ideia»
de uma sociedade onde «a excelência do homem» passaria a
medir-se, não pelo «sangue» ou pela «raça», mas pelo «grau de
utilidade que a República possa colher» de cada um!47. A Virtu-
de esmagaria o privilégio.
Mas o acatamento das leis não implicava reconhecê-las
como eternas, apenas que se queria reformá-las sem desordens.
É verdade que a maior parte do povo, «céptico» por falta de
luzes, não via nem compreendia a necessidade das reformas! $8.
Mas isso não as tornava menos prementes. Quem via mais longe
tinha obrigação de marchar adiante. Nos tempos presentes, já
não se faziam revoluções «com chuços, nem com pedras, nem
com barricadas». As revoluções faziam-se agora de cima para
baixo, e por isso «O governo, especialmente o governo actual,
é que pode, é que deve ser o revolucionário»!4. Demonstrada
esta elementar verdade tornava-se evidente que «a dissolução
desta câmara, e a convocação de uma constituinte», conforme
já antes se pedira, «era um passo altamente político»150.
E não estavam de volta a política e as grandes ideias políticas?
Estavam. Tinham regressado pela mão do Partido Progressista,
renascido das águas turvas em que a Regeneração o mantivera
por algum tempo submerso e indistinto, enquanto fizera vingar

147 0 Português, 6.9.60.


148 Ibidem, 242.61.
149 Ibidem.
150 Thidem.

282
A republicanização da monarquia (1858-62)

a falsa doutrina de que o progresso moral vinha logo atrás do


material. Durante alguns anos, a Regeneração corrompera o povo
e os cidadãos apregoando que eram caprichos as divisões dos
políticos, «estéril e miserável» a luta dos partidos. Já em 58 José
Estêvão denunciara o excesso de materialismo dos que, «Em troco
de uma ideia moral que abafassem», prometiam «alguns palmos
de estrada» com «melhor piso»!51. «Quebrados os instintos nobres
e guerreiros»; «enrolados os antigos estandartes»; «entrados os
partidos num campo que era mais de interesses do que de doutri-
nas», o que se vira? «A morte de todos eles» e, em resultado dela,
a «anarquia política» e «moral». E o que já dizia José Estêvão
em 58? Que era «indispensável assentar um certo grupo de ideias
políticas [e] levantá-las como bandeiras de reformas» porque,
sem estas, nenhum «melhoramento» frutificava!52. Os benefícios
materiais não traziam progressos morais; os comboios não ti-
nham o condão de despertar no povo o amor da liberdade. À par-
tir de 58, o «Partido Popular» fora o motor do renascimento da
política e da moral, pondo cobro ao nefasto «indiferentismo po-
lítico» que a Regeneração fizera passar por tolerância. O século
XIX estava irremediavelmente dividido em «dois campos», o da
conservação e o do progresso, e o que era preciso era extremá-
“los, não confundi-los!53.

151 Futuro, 4.9.58.


152 Ibidem.
1550 Português, 6.9.60.

283
A ditadura do Borratém

Para os manter extremados, a Associação Patriótica come-


çou a pensar num novo meeting «contra a reacção político-reli-
giosa»154, Caminhava-se para o final de Fevereiro de 61 e já
lá iam quase cinco meses desde que o ministro da Justiça inti-
mara o patriarca de Lisboa para que convencesse as irmãs de
caridade a aceitarem a sua autoridade e a desligarem-se da obe-
diência ao geral de Paris. Até à data, nada feito. O que impedia
o ministério «liberal» de ser enérgico? Seria por «receio de per-
der meia dúzia de votos na câmara dos pares»? Mas se a Câmara
dos Pares «não mete medo ao povo», porque há-de meter ao
ministério!55? Os «liberais» não queriam de maneira nenhuma
colocar-lhe «embaraços», mas ainda menos podiam transigir
com «os princípios fundamentais» do seu «credo»156. Aparente-
mente, verificava-se a mesma situação que já se notara em 58-
-59: os «amigos políticos» que estavam no governo parecia que
não tinham «força» para fazer cumprir as leis e, se assim era,
impunha-se que passassem o poder a outros homens «do seu
partido» capazes de as executar!57 e possuídos de «ideias mais
rasgadas sobre organização constitucional»1!58. Pela parte de
O Português, prometia-se, «não largamos a questão».
A Associação Patriótica, uma réplica local dos clubes ja-
cobinos celebrizados pela Revolução Francesa, surgira ainda
durante o ministério Terceira-Aguiar (16.3.59-4.7.60) e tinha
formalizado a sua existência por ocasião das eleições de Janeiro
154 Cf anúncio citado por 4 Revolução de Setembro, 7.3.61.
155 Ibidem, 26.2.61.
156 Thidem, 27.2.61.
157 Ibidem, 28.2.61.
158 Thidem, 1.3.61.

284
A republicanização da monarquia (1858-62)

de G0, sendo presidida pelo deputado José Maria Frazão e pelo


«honrado progressista» José Maria Sousa Brandão!59, um nome
que lhe conferia tonalidades socializantes. Também se lhe cha-
mava, pejorativamente, o Poço do Borratém, pela localização
que de imediato denunciava o seu carácter plebeu. 4 Revolu-
ção alcunhou O Português de «jornal oficial do Borratém»160,
mas não era exacto que o clube fosse uma mera extensão do
órgão dos históricos radicais, como se prova pelas relações tensas
e por vezes conflituosas que havia entre os dois grupos. Como
já se pudera adivinhar aquando do primeiro meeting, também
este que a Patriótica agora convocara para domingo, dia 10 de
Março de 61, na Praça de D. Pedro IV, não era do agrado de
O Português16!, A mobilização tinha sido decidida numa reunião
muito concorrida da Associação Patriótica em 27 de Fevereiro,
e O Português, não podendo como vanguarda do «Partido Po-
pular» ser ultrapassado pelas bases, acabara por não ter outro
remédio senão anuir à vontade das «mais de duzentas pessoas»162
que estavam presentes, sendo «pela maior parte operários»163.
Não sem que antes tivesse tentado demover a Associação
ou, pelo menos, dar ao projectado meetingo carácter de uma
manifestação de apoio ao governo. À frente deste, não era Loulé
a «maior das garantias» de uma política liberal?164. Era. Aconte-
cia apenas que o governo deparara com imprevisíveis «embara-
ços» no combate ao lazarismo e então do que necessitava era
de «força» para vencer esses embaraços, e não que lha tirassem
«por alguma imprudência»!6, Portugal não estava maduro para
meetings à inglesa ou «banquetes» à francesa. O «atraso do nosso
povo» tornava este tipo de «reuniões populares» muito arrisca-
do, expondo-as «a morrer da pior morte — o ridículo»196. Por cá

159 4 Revolução de Setembro, 3.3.61.


160 Thidem, 7.3.61.
1619 Português, 3.3.61.
162 Ibidem, 1.3.61.
163 Ibidem, 5.3.61.
164 Thidem, 3.3.61.
165 Ibidem, 5.3.61.
166 Ibidem.

285
Apologia da História Política

nem ainda se aprendera a distinguir correctamente entre «povo»


e «multidão». Esta era «a plebe ociosa e desmoralizada»; o povo,
um «poder tremendo». Aquela «grita, vozeia, delira e foge»;
este, «representa, combate e vence»!67. Entre O Português e o
Borratém despontava afinal a mesma «dialéctica» perversa que
actuava entre O Português e o governo. À fim de evitar que o
meeting se realizasse e a «multidão» rompesse em vozearias con-
tra o ministério, como pretendia o Borratém, O Português pres-
sionou Loulé para que publicasse alguma medida que permitisse
cancelá-lo, alegando que «se se derem certas circunstâncias, ces-
sou evidentemente a causa que se deu para a convocação da reu-
nião pública»168.
Sem dúvida por exigência de O Português, as «circunstân-
cias» apareceram. Na «folha oficial» de 6 de Marçol19 foi pu-
blicada uma portaria, com data de 5, destinada a acalmar o
Borratém. Nela se reconhecia que o patriarca fora «formalmente
desobedecido» pelas irmãs, tanto francesas como portuguesas,
que continuavam a viver em comunidade e permaneciam su-
jeitas a um superior estrangeiro. Por uma carta do cardeal-pa-
triarca de Lisboa para o presidente do governo, igualmente
publicada!70, podia fazer-se uma ideia do ponto a que chegara
a questão das irmãs de caridade. Em Lisboa, havia-as dezoito
francesas, repartidas pelos seguintes estabelecimentos: no «re-
colhimento» da Ajuda, nove; no «hospício» da Rua de Santa
Marta, quatro; no «colégio» dos Cardais de Jesus, duas; no «asilo»
dos Anjos, uma; no «colégio» de Oeiras, uma. Em conjunto,
estas irmãs exerciam a sua influência moral sobre algumas cen-
tenas de crianças de ambos os sexos. Só na Ajuda, onde se abri-
gavam os órfãos da cólera morbus, havia cento e seis raparigas
e oitenta e cinco rapazes a quem elas ensinavam «a ler, escrever,
contar» e a quem ministravam alguns rudimentos de «geografia
e história sagrada». Nos Cardais de Jesus, cinquenta e quatro ra-
pazes recebiam lições idênticas. Em Santa Marta funcionava

167 0 Português, 5.3.61.


168 0 Português, 5.3.61.
169 Na altura, o Diário de Lisboa.
170 0 Português, 10.3.61.

286
A republicanização da monarquia (1858-62)

uma «aula externa» frequentada por quarenta raparigas. Nos


Anjos, as crianças eram em número de oitenta. Em Oeiras, havia
dezoito alunas «internas» confiadas a uma irmã francesa que
era também a directora do estabelecimento, e uma «aula ex-
terna» frequentada por «trinta e cinco meninas pobres», a cargo
de uma irmã portuguesa. Havia ao todo em Lisboa treze irmãs
portuguesas, que o governo desde 58 pretendia, ou fingia que
pretendia, utilizar como núcleo de um novo instituto português
das irmãs de caridade!7!. A primeira e indispensável condição
para que o projecto se realizasse era que as irmãs portuguesas
se separassem das francesas, colocando-se sob a autoridade de
um superior nacional e voltando a envergar o antigo uniforme
das Servas dos Pobres instituídas por D. João VI172. Intimadas
pelo patriarca a fazerem isto mesmo, responderam com um
rotundo não: «Jamais», exclamara a irmã Joaquina, «ao mesmo
tempo que beijava o seu santo hábito». A irmã Joaquina, com
os seus 70 anos, bem sabia donde vinha a «guerra» que se movia
às irmãs: vinha «do inferno», o que era mais uma razão para
resistir aos seus «perseguidores». O patriarca observou-lhes que
estavam fora da lei: responderam que em Portugal havia muitas
coisas ilegais a que não se ligava nenhuma!??.
Perante esta indomável obstinação, a portaria de 5 de
Março de 61 dava-lhes agora «40 dias» para abandonarem o
edifício de Santa Marta, após o que a corporação seria dissol-
vida na conformidade do decreto de D. Pedro IV de 9 de Agosto
de 33 e os respectivos haveres incorporados nos bens nacio-
nais. Também se determinava que ficava «desde logo dissolvida»

171 O Português, 10.3.61.


172 As irmãs portuguesas tinham existido sob a autoridade do patriarca
de Lisboa até 1857. Neste ano, após a vinda das primeiras irmãs francesas, solici-
taram autorização para se desligarem do prelado diocesano e para entrarem na
obediência do geral de Paris, fundindo-se deste modo com o instituto francês.
Essa autorização foi concedida pelo despacho de 12.6.57 que o governo, pela
boca de Morais Carvalho, considerava agora ilegal. Toda a história contada na
Câmara dos Pares pelo ministro da Justiça (Morais Carvalho), sessão de 1.7.61,
Diário de Lisboa, 10.7.61.
173 La Question des soeurs de la charité en Portugal (1857-1862) d'aprês la
presse et les documents ofjiciels, Lisboa, 1863, pp. 189-195.

287
Apologia da História Política

toda e qualquer congregação que se achasse ilegalmente consti-


tuída ou que viesse a constituir-se «sem autorização legal».
Finalmente, e não menos importante, reiterava-se a proibição
«aos estabelecimentos particulares de educação geral ou espe-
cial de empregarem qualquer indivíduo nacional ou estrangeiro,
secular ou pertencente a uma comunidade, congregação ou
associação religiosa», a menos que fizesse prova de possuir as
habilitações para o ensino legalmente exigidas. Era o triunfo
do Borratém em toda a linha. Mas seria isto para cumprir?
Não era. Desde logo a portaria foi seguida, no dia 6, por
um projecto de lei para a «reorganização do instituto português
das irmãs de caridade»!74, numa reedição da já conhecida tác-
tica de trocar uma medida «liberal» por um favor à «reacção».
O «sr. marquês de Loulé», conforme escrevia divertida 4 Re-
volução, não tinha o mais leve intuito de se fazer obedecer!75.
E ainda que tivesse, não o deixariam os «lazaristas» que o asse-
diavam em casa, no governo e no Parlamento. Aqui, Mouzi-
nho de Albuquerque lançou o grito de guerra logo no dia 6:
a portaria, acusou, era «uma vergonha», um «documento de
opróbio» e, para mais, de «falsidade»!76. Era falso porque as
irmãs se encontravam sob a obediência do padre Étienne, cujos
poderes lhe eram delegados pelo Santo Papa, e não pelo arce-
bispo de Paris. Ora dar-se-ia o caso de o governo português
considerar o Santo Papa um «prelado estrangeiro em relação
às congregações religiosas de um país católico»? E com que di-
reito vinha o governo, «numa simples portaria», «pronunciar
a pena de confisco para os bens de uma sociedade»? Numa inter-
venção arrasadora, o católico Mouzinho denunciou a portaria
como «o produto monstro do medo e da doblez» de um gover-
no que se deixara cobardemente aprisionar pelo «Poço do Bor-
ratém» e que, fatalmente, mais tarde ou mais cedo acabaria
vitimado pela chantagem a que agora cedia.

174 Diário de Lisboa, 7.3.61. À reorganização, como já foi dito, partia da


recuperação da Congregação das Servas dos Pobres fundada por D. João VI.
175 À Revolução de Setembro, 7.3.61.
176 Sessão de 6.3.61, Diário de Lisboa, 8.3.61.

288
A republicanização da monarquia (1858-62)

«Vergonha! Foi quando se proclamou a proximidade de um


ajuntamento na praça pública [...] que o sr. ministro pu-
blicou a sua portaria de proscrição e espoliação! [...] Falou
o Beco do Rozendo, falou aquele senado [...] e o ministério
obedeceu. O ministério tremeu. [...] Fomentem, fomen-
tem, srs. ministros, os meetings dos becos, e verão o resul-
tado. [...] Hoje são as irmãs de caridade, amanhã é a
dissolução da câmara electiva, depois é a câmara dos pares,
depois a carta, depois que sei eu! [...] Não hão-de parar
[...] hão-de parar, mas é quando os fomentadores da de-
sordem forem eles mesmos devorados pelo monstro que
fomentaram.»!77

O governo tremera. Todo o governo? Não: apenas «uma


parte dos ministros», dissera Mouzinho. O deputado D. Rodri-
go confirmou que havia «desacordo entre os srs. ministros»,
como se provava pelo facto de apenas Loulé, sem o ministro
da Justiça, ter assinado a nefanda portaria!?8. Fora do Parla-
mento, O Português espelhava em perfeição as contradições em
que o governo se debatia. Escrevia agora, a 7 de Março, que em
face da portaria o meeting se tornara «desnecessário», e que os
seus promotores por certo não deixariam de ser os primeiros
a «desistirem dele». Como agora se devia ajudar o governo era
com «moderação» e com «prudência». Dentro do Parlamento,
a oposição católica mostrava-se menos fácil de contentar. Exigiu
que a câmara «avocasse» a si a questão das irmãs de caridade e
pretendeu agendar uma interpelação formal para o dia 13 de
Março!??. O governo, recorrendo ao expediente dilatório do
costume, propôs através de Mello Soares que fosse nomeada uma
«comissão especial» encarregada de estudar previamente o
dossier completo das irmãs de caridade que, por «resolução» da
Câmara, tinha sido publicado no Dzário do dia 9180, À ideia

177 Sessão de 6.3.61, Diário de Lisboa, 8.3.61.


178 Idem, ibidem.
179 Proposta de Pinto Coelho na sessão de 9.3.61, Diário de Lisboa, 12.3.61.
180 Diário de Lisboa, 9.3.61.

289
Apologia da História Política

era averiguar se tinha fundamento real e legal, e qual era, a por-


taria de 5 de Março. Graças aos votos de muitos regeneradores,
entre os quais o de Fontes, que não desejavam ver-se mistura-
dos com o partido católico, o governo viu a proposta de Mello
Soares aprovada por 72 votos contra 55 e, depois, rejeitada a
interpelação de Pinto Coelho!81!. Mas o alívio ministrado pelo
Parlamento durou pouco. Dali a dois dias, já sob o efeito dos
acontecimentos de 10 de Março, a Câmara deu-lhe uma rude
prova de desconfiança ao eleger para a comissão especial sobre
as irmãs de caridade uma maioria de regeneradores e avilistas:
Sá Vargas, Bartolomeu dos Mártires, Mártens Ferrão, Rodri-
gues Sampaio, Nogueira Soares. Do lado governamental ape-
nas foram eleitos Alves Martins e um ilustre desconhecido de
nome Pequito. Os avilistas, que integravam o ministério com
os históricos, apareciam no Parlamento aliados à oposição rege-
neradora. Não seria possível dar um testemunho mais eloquen-
te do isolamento de Loulé!82,
Mas era, como o meeting se encarregou de demonstrar.

181 Sessão de 9.3.61, Diário de Lisboa, 12.3.61.


182 Sessão de 11.3.61, Diário de Lisboa, 13.3.61.

290
VI

Entre o Pátio do Geraldes e o Pátio do Tourel

Uma nova reunião da Patriótica realizada nas vésperas do


meeting deixava prever que vinham aí grandes distúrbios. A fazer
fé no Braz Tizana, tinham-se apinhado no Borratém «próxi-
mo de trezentas pessoas»!83 cuja indignação fora excitada ao
rubro pela citada intervenção de Mouzinho de Albuquerque
na Câmara dos Deputados. Falaram «diferentes populares»,
todos concordes em que o deputado merecia ser punido com
um voto de censura popular e em que a «imprensa» lhe devia
dar uma resposta à altura da impertinência a que se atrevera.
À leitura do Diário de Lisboa em que se publicava'a portaria de
5 de Março não serenou os ânimos dos patriotas. O «povo» esta-
va «indignado contra a câmara dos deputados e dos pares» e
não se contentava com menos do que a «dissolução» da pri-
meira e a reforma da segunda o que exigiria, conforme se achava
«inevitável» e «provável», a «convocação de cortes constituin-
tes». Estas ideias estavam «no coração de todo o povo da capi-
tal» e era muito para crer que fossem ventiladas no meeting
que se ia realizar. De resto, «algumas lojas maçónicas» já esta-
vam a abrir o caminho à satisfação daquelas duas necesssidades,
de modo que, com tais empenhos; «as coisas» estavam-se a en-
caminhar «para grandes novidades»!84.
O «Directório do Borratém», como também era chamada
a Associação Patriótica, mantinha-se firme na decisão de realizar
o meeting, embora viesse a convocá-lo a pretexto de «agradecer
por meio de uma deputação ao governo a portaria de 5 do cor-
rente, que manda executar os decretos do sr. D. Pedro IV, com

183 Cir. por 4 Revolução de Setembro, 15.3.61.


184 Braz Tizana, cit. por 4 Revolução de Setembro, 15.3.61.

DA,
Apologia da História Política

relação às irmãs de caridade»185. Espalhou o «aviso ao povo»


pela cidade e também, especificamente, «por todos os operá-
rios das diferentes fábricas». O Partido Progressista, por inter-
médio de O Português, declarou-se prudentemente contra. Era
um «partido governamental de ordem» e não queria nem «anar-
quia» nem «desequilíbio na sociedade»!86. Prevendo o pior,
demarcou-se da «nação» que se viria a juntar no Rossio, sob o
«sol ardente» da manhã do domingo aprazado, em torno do
pedestal reservado para a estátua de D. Pedro IV e que, entre-
tanto, parecia um «galheteiro». Foi deste pódium que o orador
do dia, segundo 4 Revolução, declarou «Deus» como «presiden-
te do meeting»187. Inevitavelmente, o discurso foi resvalando
das invectivas contra o lazarismo para considerações de maior
latitude sobre a marcha do ministério, os males que afligiam a
Pátria e o remédio que estes pediam. Entre estes, avultava a ini-
quidade do sistema de impostos. Tudo somado, as «providên-
cias» dadas pelo governo para solucionar os problemas do País
eram escassas. O orador concluiu com toda a lógica que «era
necessário uma inteligência robusta que aconselhasse, uma voz
autorizada que clamasse, um braço enérgico que sustentasse, um
nome conhecido e um grande prestígio que vigiasse»!88. Nenhu-
ma destas qualidades ou requisitos se verificava no marquês de
Loulé, em quem a «nação» não reconhecia o «caudilho ilustre»
elogiado por O Português. Será que existia um tal homem? Ou-
viu-se então o nome que estava em todos os peitos, que andava
em todas as bocas: «É o marechal duque de Saldanha!»
À partir daí, a «nação» já não quis saber de ir ao Pátio do
Tourel, como estivera previsto, a fim de «dar força» ao governo,
na pessoa do marquês de Loulé, para combater a reacção. Aba-
lou para o lado do Passeio Público, tomando em seguida a di-
recção do Pátio do Geraldes, onde morava o «invicto» marechal.
Saldanha desde 56 que, oficialmente, vivia alheado das coisas

185 In À Revolução de Setembro, 12.3.61.


186 Ibidem, 13.3.61.
187 Ibidem, 12.3.61.
188 Ibidem.

298
A republicanização da monarquia (1858-62)

públicas. Mas seria preciso desconhecer quem ele era para acre-
ditar que tivesse decidido sair de cena para sempre. Por trás da
cortina, Saldanha velava a Pátria e estava pronto a ocupar o palco
em salvador. É certo que pairava ou dizia pairar acima das fac-
ções, cioso da sua independência e convencido, como estava
desde os finais dos anos 30, de que os partidos eram um mal
desnecessário, uma criação ou produto supérfluo das paixões hu-
manas. Saldanha não via neles os elementos indispensáveis do
maquinismo representativo, do qual tinha uma visão mais sim-
plificada expressa na célebre exortação que dirigiu a D. Pedro V:
«Vossa Majestade e eu, sem as Cortes, faríamos a felicidade do
País!» Esta frase, que a história registou como uma anedota re-
veladora da ambição e incurável vaidade do marechal, na ver-
dade ecoava uma concepção política que, se em Portugal ainda
só antecipava o cesarismo que havia de seduzir a elite intelec-
tual para finais do século, em França era já a que inspirava a
«democracia» imperial de Napoleão III. Uma democracia sem
parlamentarismo e, portanto, liberta das engrenagens partidárias
que desvirtuavam o voto popular e usavam este como mera cau-
ção para as infindáveis intrigas políticas que não tinham outro
objectivo senão o de satisfazer a cupidez de clientelas inteira-
mente divorciadas das verdadeiras aspirações e reais necessidades
do povo. À experiência demonstrara que a democracia parla-
mentar era uma usurpação da soberania nacional; os partidos,
agremiações facciosas votadas à satisfação dos seus interesses par-
ticulares; e a representação eleitoral, uma burla da vontade popu-
lar. Era preciso desembaraçar o espaço entre o rei e o povo,
abri-lo à comunicação directa entre ambos, de modo a devolver
a este a palavra de que aquele seria o fiel intérprete e executor.
Não era propriamente uma ditadura o que a atitude de Sal-
danha permite imaginar que ele já nesta altura tivesse em mente.
Seria talvez algo de parecido com o autoritarismo do Segundo
Império: uma «democracia» plebiscitária ou uma «realeza ple-
beia e democrática»!89 fundada sobre a autoridade pessoal do

189 Daniel Halévy, La fin des notables, II: La République des Ducs, Paris,
1995, p. 110.

295
Apologia da História Política

soberano de quem ele seria, desejavelmente, o lugar-tenente e


braço armado. Por cá faltava, é certo, a «massa camponesa» cons-
ciente da sua força pela memória revolucionária, ciosa dos seus
direitos económicos penosamente adquiridos, de cuja anuência
tácita ou expressa dependia largamente o poder de Napoleão III
em França!90, E faltava também uma numerosa massa urbana
de operários e artesãos paralisados pelo falhanço da revolução
de Fevereiro de 48 e permeáveis ao apelo populista de um poder
que se afirmava dependente da confiança directa do povo!?!. Mas
na capital, em Lisboa, fervilhava uma franja de população esqui-
va ao enquadramento partidário, pouco sensível à ortodoxia cons-
titucional, descrente da representação eleitoral, indiferente à
liberdade que o liberalismo tinha para lhe propor e ansiosa por
se rever num «braço enérgico» — num chefe — que, promovendo
e protegendo os seus interesses, transformasse a liberdade em
benefícios palpáveis e lhe desse, com isso, a ilusão de que estava
por ela no poder. O «fomento» segregara uma população urbana
nova, um esboço de proletariado moderno criado pela indús-
tria, pelos serviços e, muito principalmente, pela imigração!?2,
Entre 1853 e 1857, a população da cidade cresceu em 2500 habi-
tantes, ou seja, 620 por ano. Mas entre 1857 e 1864, passada a
alta mortalidade provocada pelos surtos epidémicos de 1856-
-57, os habitantes da cidade aumentaram em 21 000, ou seja,
uma média de 3000 ao ano!?3. De salientar que, sobretudo nos
bairros populares, que eram «zonas fisicamente saturadas», os
residentes aumentaram mais do que o número de fogos, «com
o consequente agravamento das condições de existência»!94,

190 p, Halévy, op. cit. pp. 28 e 110.


191 Tsaiah Berlin, Karl Marx, Londres, Fontana Press, 1995, pp. 161-2.
192 Teresa Rodrigues, Nascer e Morrer na Lisboa Oitocentista, Lisboa, 1995,
pp. 137-143 e pp. 155-161. Maria Eugénia Mata, As Actividades Manufactureiras
e Industriais de Lisboa de 1850 à Primeira Guerra Mundial, working paper apre-
sentado ao 17.º Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social
— Universidade dos Açores, Novembro de 1997.
193 Teresa Rodrigues, «Um espaço urbano em expansão. Da Lisboa de
Quinhentos à Lisboa do séc. xx», Penélope, n.º 13, 1994, pp. 95-117. (Em 1864
a população de Lisboa totalizava 190 000 habitantes.)
194 Idem, ibidem, p. 102.

294
A republicanização da monarquia (1858-62)

É plausível imaginar que este acréscimo populacional integrasse


um proletariado desigual da gente dos ofícios tradicionais que
fora predominante até à década de 50 e que, tendo constituído
a base típica e fiel do setembrismo, seguia sendo o meio em que
os históricos recrutavam apoio popular. Por limitada que fosse
e sem dúvida era, a renovação populacional perceptível na vi-
ragem dos anos 50 para 60 produziu, sem eliminar o velho, novos
radicalismos em cuja mescla ideológica é possível discernir inspi-
rações republicanas e socializantes combinadas com a influên-
cia do democratismo sans-culotte, com simpatias autoritárias e
até, como se veria depois com os «penicheiros», com resquícios
de um miguelismo actualizado em função da época e do meio
urbano. Era a esta nova realidade social que O Português se refe-
ria quando denunciava
«os elementos facciosos que germinam
no país»!?5, Saldanha não desdenhou o seu apelo. No exército,
conservava o seu prestígio intocado e continuava a ser visto como
uma reserva da nação. Na vida civil mantinha, apoiado na in-
fluência militar, a distância suprapartidária que faria dele um
árbitro quando as circunstâncias nacionais o exigissem. Quando
uma deputação do meetingo foi procurar em casa estava ausente
em Oeiras, onde fora festejar o aniversário da duquesa. Mas o
criado que atendeu os representantes do povo tinha ordens para
receber a «petição» que eles tinham vindo entregar ao marechal
com o pedido de que a fizesse chegar a lugar alto onde pudesse
ser escutada, e atendida. No dia seguinte, Saldanha, mostrando
que estava disponível para assumir o papel que o povo lhe come-
tera, escreveu a Loulé propondo que ambos fossem ao paço entre-
gar a petição ao rei!%,
O Português comentou os acontecimentos com um esto-
macado «Valha-nos Deus»!97! O outro povo pelo qual falava,
o verdadeiro «povo da capital» que não se confundia com as «tur-
bas» e a «plebe»198, esse repudiava com horror «os discursos sub-
versivos que se pronunciaram; a romaria que tumultuariamente

195 0 Português, 15.3.61.


196 4 Revolução de Setembro, 12.3.61.
197 Ibidem, 12.3.61.
198 O Português, 14.3.61.

295
Apologia da História Política

[se] destacou do Rocio para entre-muros; a comissão em que


ninguém votou; a escolha de um ilustre general para salvador
das liberdades públicas que ninguém reputa ameaçadas»!??.
O verdadeiro «povo da capital» via em tudo isto «anarquia»,
«demasias de licença», «desvarios» tanto mais injustificados
quanto o governo dava continuadas provas de querer, «com cir-
cunspecção mas com firmeza», seguir «o caminho das reformas».
A demonstrá-lo aí estavam «o golpe» desferido na «instituição
vincular» e o projecto de desamortização dos bens dos conven-
tos200, Mais uma vez, a pedra saíra das mãos e fora bater no
alvo errado. Em vez de se dirigir para o largo do Tourel, a «dar
força» ao marquês de Loulé, o meeting voltara as costas ao presi-
dente do conselho para se ir entregar nos braços do duque de
Saldanha. «O ministério queria ovações populares e foi vítima
delas», contentava-se 4 Revolução?01. Falhara assim o que esta
explicava ser o estratagema habitual do governo para iludir a
falta de apoio parlamentar em que vivia: fugira-lhe a «maioria»
«da praça que ele queria opor aos corpos do Estado»202. Mas
não o apoiaria ainda agora a oposição regeneradora por medo
da «ameaça» do Borratém?203 Não seria a primeira vez que tal
acontecia. Quando «aquela essência da nação se revoltava, o mi-
nistério recebia contra ela o apoio da oposição, e resplandecia
sempre com luz estranha»204. Precisamente para livrar o gover-
no desta prisão é que O Português já tinha recomendado que se
dissolvesse a câmara electiva205. Tudo aconselhava um tal passo.
À maioria que tinha inicialmente apoiado o ministério, num
curto período a seguir à queda do gabinete Terceira-Aguiar
(4.7.60), passara-se para a oposição. E desde que fazia oposição

199 0 Português, 12.3.61.


200 Ibidem, 13.3.61. O projecto foi votado pela CD na generalidade a 11
de Março.
201 12.3.61. Carnota confirma o que os jornais davam a entender: que o
meeting fora «promovido» pelas «lojas maçónicas». Memories of Field-Marshal the
Duke de Saldanha, Londres, 1880, vol. 11, p. 349.
202 4 Revolução de Setembro, 12.3.61.
205 Ibidem, 16.3.61.
204 Ibidem.
205 O Português, 9.3.61.

296
A republicanização da monarquia (1858-62)

«teima[va] em que o país é lazarista», impedindo, com esta apre-


ciação errónea do sentimento público, que o governo atacasse
o lazarismo com a requerida energia. Entre a egrégia volubili-
dade da câmara e a não menos notória incapacidade para tomar
o pulso ao País, O Português achava que o único remédio estava
em despedi-la206,
No Parlamento, a maioria ministerial tinha-se esfrangalha-
do. O governo já fora vergonhosamente derrotado na eleição
da comissão especial sobre as irmãs de caridade, e ultimamente
perdia votações das quais dizia depois que não tinham «carác-
ter político»207. Para se manter no poder, ouvia e engolia tudo:
«O governo», atirou-lhe o deputado Pinto Coelho, «curva a ca-
beça e sujeita-se a que os vencedores lhe ponham o pé no
pescoço»208. Era verdade. Capitaneado por Fontes, o grupo rege-
nerador, salvo quando isso implicasse confundir-se com o grupo
católico, fazia-lhe oposição. Os católicos, esses guerreavam o mi-
nistério sistematicamente. Os avilistas juntavam-se aos regene-
radores nas questões — como era o caso da questão religiosa —
em que era preciso impedir um triunfo da facção radical. E os
históricos estavam retalhados entre um grupo instável e mal
definido chamado a «unha branca», que seguia Loulé; a chama-
da «unha negra», mais à esquerda, reunida em torno de Lobo
d' Ávila e Mendes Leal; e grupúsculos transitórios, também de
tendência radical, que Loulé não dominava e que apenas lhe
emprestavam o seu voto a troco das medidas radicais de que o
marquês queria precisamente fugir. A situação há muito que
pedia uma limpeza. |
Com a entrada em acção de Saldanha, o cenário compli-
cou-se ainda mais. O marechal que, conforme denunciava
O Português, na sua longa carreira ostentara «um luxo de versa-
tilidade» sem paralelo, conspirava agora «para aproveitar os ele-
mentos facciosos que germinam no país»209. No Parlamento,

206 0 Português, 9.3.61.


207 Acontecera nomeadamente em torno do projecto de lei n.º 27 sobre
a carreira das magistraturas judiciais.
208 Pinto Coelho, sessão de 13.3.61, Diário de Lisboa, 15.3.61.
209 O Português, 15.3.61.

297%
Apologia da História Política

uma maioria de deputados mostrou-se uma vez mais sensível


à ameaça que o Borratém representava para a ordem pública
e ofereceu «tréguas» ao governo?10. Mas era impossível ignorar
os graves acontecimentos do dia 10 de Março na parte em que
envolviam o duque de Saldanha. O presidente do governo e
ministro do Reino explicou-se como pôde. Desencontrara-se
do marechal no paço, e este entregara ao rei a representação
do meeting em que se pedia nada menos do que «a demissão
do ministério» e a sua substituição por outro que se mostrasse
«forte» e «enérgico»21!. Parecia grave? Não era, afirmava o mar-
quês com a moleza do costume: os indivíduos que assinavam
a dita representação de modo algum podiam ser considerados
«verdadeiros mandatários do povo de Lisboa», e tratá-los ia
«com o desprezo» que mereciam. Quanto ao marechal, Loulé
tinha a declarar «muito francamente» que não podia «suspeitar
o nobre duque de Saldanha de ter acordo algum com os signa-
tários» do miserável documento?!2,
Na Câmara dos Pares, como seria de esperar, Loulé foi ainda
menos poupado. O marquês de Vallada viu no meeting amão
de Deus a escrever direito por linhas tortas. Ao dividi-lo «em
dois bandos», o meeting enfraquecera «esse partido revolucio-
nário de que o sr. ministro do reino [...] é o chefe»213, Loulé
acusou de «grande injustiça» o ser reputado de «revolucioná-
rio» e explicou que apenas tinha anuído à realização do meeting
«para evitar complicações»?!4. Tão cândida confissão de fraque-
za e impotência teve o natural efeito de encorajar a oposição.
O conde de Tomar quis saber se era o duque de Saldanha «esse
Catilina» que O Português denunciara como tendo vindo bater
«às portas de Roma»2!5. Mas Loulé nada tinha a ver com «esse
210 Sessão de 11.3.61, nesta parte não transcrita no Diário de Lisboa, e por
isso apenas indirectamente conhecida através das alusões feitas ao que então se
passou na sessão do dia 12. Cf. Diário de Lisboa, 14.3.61.
2H Toulé, sessão de 12.3.61, Diário de Lisboa, 14.3.61.
212 Idem, ibidem.
213 Sessão de 11.3.61, Diário de Lisboa, 16.3.61.
214 Idem, ibidem.
215 Alusão a O Português, de 15.3.61. Sessão de 15.3.61, Diário de Lisboa,
20.3.61.

298
A republicanização da monarquia (1858-62)

jornal», era alheio ao que lá se escrevia e à política que lá se


fazia. O marquês de Vallada estranhou a declaração, que des-
mentia factos públicos e notórios de toda a gente conhecidos:
«todos sabem que aí é que estão os homens que o governo tem
ultimamente despachado [para empregos], que são esses ho-
mens que os ministros ouvem mais prontamente, que a todas
as horas sobem às secretarias e entram em liberdade nos gabine-
tes dos ministros»216, Tal como a interpretava, a questão estava
«estabelecida entre dois pátios», «entre o pátio do Tourel e o
pátio do Geraldes»2!7. A qual deles obedecia o Borratém? Quem
era o «chefe popular», o marquês de Loulé ou o duque de Sal-
danha? Afinal quem mandava?
Marcada para o dia 18 de Março, a interpelação de Loulé
na Câmara dos Pares sobre a portaria de 5 de Março foi adia-
da, a pedido do mesmo, para o dia 20. Chegada a hora, o pre-
sidente do governo não apareceu, alegando uma necessidade
urgente de comparência no Parlamento em que ninguém acre-
ditou218. Com a fuga, Loulé provocou a amotinação da Câmara
Alta. O marquês de Ficalho jurou que não sairia dali «até que
apareça alguém» que lhe respondesse, e D. Carlos de Mascare-
nhas propôs formalmente que a Câmara se declarasse «em sessão
permanente» até o presidente do governo chegar. A proposta
foi aprovada por 23 votos contra 14212, Face a este expressivo
resultado, e pelo modo como as coisas estavam a correr na Câma-
ra dos Deputados, tornava-se cada vez mais evidente que Loulé
apenas se poderia salvar com uma dissolução e uma fornada.
Mas nem era certo que conseguisse ambas as coisas nem
era bem isto que O Português pretendia. Quanto à dissolução
estava de acordo e não pedia outra coisa. Mas uma fornada, que
resolveria? Mais não faria senão perpetuar «esse poder sem dig-
nidade e sem prestígio», fruto do «direito de herança», dos «pri-
vilégios absurdos», das «desigualdades repugnantes». Do que

216 Idem, ibidem.


217 Marquês de Vallada, idem, zbidem.
218 Sessão da Câmara dos Pares de 20.3.61, Diário de Lisboa, 1.4.61.
219 Idem, ibidem.

299
Apologia da História Política

o País carecia era de «um senado respeitável, escolhido pelo


rei e pelos representantes do povo eleitos pelo povo», que «torne
nada donde vieram os imbecis, os tartufos e os répteis nojentos»
de que se compunha a Câmara dos Pares220. Não é difícil imagi-
nar quanto não custaria a Loulé o ter de engolir uma prosa deste
teor. Mas, independentemente disso, a reforma da Câmara dos
Pares não estava por certo nos seus planos, que de imediato ape-
nas contemplavam a necessidade urgente de sobreviver. À car-
tada da dissolução era arriscada. Supunha a benevolência do
rei, que não era garantida. Ao ter recebido das mãos de Salda-
nha uma representação do «povo de Lisboa» que continha a
condenação formal do governo e sugeria a sua substituição por
outro, «popular e forte», de que o marechal fizesse parte?21,
D. Pedro V tinha significado publicamente que se dessolida-
rizara dos seus ministros. Não é possível saber se o gesto traduzia
um juízo político pessoal ou se visava aplacar algum desconten-
tamento no exército que a atitude de Saldanha presumivel-
mente exprimia. Fosse como fosse, a reserva do rei era um dado
certo. Era então inevitável enfrentar o Parlamento. À poucos
dias de terminar a sessão legislativa, o orçamento continuava
sepultado na comissão de fazenda222. Como explicava o minis-
tro Ávila, o governo estava «plantando um sistema tributário»
e queria ver se conseguia fazer aprovar «aquilo que fez cair a
administração passada»223. Era árduo, era moroso e era, sobre-
tudo, perigoso. Dentro da Câmara, uma vez abafado o fogo
ateado pelo meeting, a oposição tornara-se sistemática e, conti-
nuando ela «deste modo, não pode votar mais nenhuma medi-
da de interesse público»224. Fora da Câmara, o simples rumor
de novos tributos dava logo azo a que o povo se manifestasse
«tumultuariamente». Já num concelho se matara um escrivão
de fazenda e em outros se tinham queimado «os papéis dos

220 0 Português, 22.3.61 (itálico meu).


221 História de Portugal de P Chagas, vol. XII, p. 70-71.
222 Sessão de 18.3.61, Diário de Lisboa, 20.3.61.
223 Sessão de 22.3.61, Diário de Lisboa, 26.3.61.
224 Ávila, idem, ibidem.

300
A republicanização da monarquia (1858-62)

impostos»225. Prudentemente, o governo decidiu abster-se de


propor a discussão do orçamento e apresentar, em lugar disso,
um pedido de aprovação da lei de meios, que o habilitaria para
a partir de 1 de Julho cobrar os impostos relativos ao ano econó-
mico de 61-62226,
À apresentação da lei de meios foi de imediato interpreta-
da como «um desafio à oposição». Se esta a votasse, o ministério
mostrava que afinal tinha maioria e de seguida encerrava as
Cortes, apanhando-se de mãos livres e deixando o orçamento
a repousar. Se a recusasse, havia o risco de o rei conceder a dis-
solução. Fontes recusou a chantagem e propôs o adiamento da
proposta do governo, exigindo examinar primeiro o parecer
da comissão de fazenda sobre o orçamento que, segundo afir-
mou, estava pronto a ser distribuído?27. «Está medido o terreno»,
esbravejava O Português no dia seguinte, «estão estabelecidas as
balizas, arvorados os estandartes, em linha os exércitos, vai-
-se dar a batalha»228. E quem se defrontava? «De um lado,
o povo, o rei constitucional, o ministério e a imprensa liberal.»
E do outro? «alguns criados do paço, o beatério, os trânsfugas
de todos os partidos, as fezes de todas as parcialidades, os sectá-
rios de D. Miguel, o conde-ladrão [Tomar] e os três jornais reac-
cionários — a Revolução de Setembro, a Nação e o Parlamento».
Mais simplesmente: «Aqui, o progresso e a liberdade [...]; ali,
o ultramontanismo e a reacção política.»22?
O deputado Arrobas, um fiel ministerial, não compreendia
a relutância da oposição em salvar o governo. De facto, não
era a primeira vez que se usava do expediente da lei de meios
para evitar um chumbo do orçamento. Que se passaria? Arrobas
queria saber «Que monstro de horrenda catadura se ergue me-
donho com tanto assombro das consciências?»230. Latino Coelho

225 Lopes Branco, sessão de 26.3.61, Diário de Lisboa, 30.3.61.


226 Sessão de 18.3.61, Diário de Lisboa, 20.3.61.
227 Sessão de 22.3.61, Diário de Lisboa, 26.3.61.
228 0 Português, 23.3.61.
229 Idem, ibidem. Itálico no original. O Parlamento era um periódico afec-
to aos adeptos do conde de Tomar.
230 Sessão de 26.3.61, Diário de Lisboa, 30.3.61.

301
Apologia da História Política

explicou à Câmara, num vigoroso discurso que fez impressão,


que era inevitável o «rompimento desta paz octaviana» que se
vivera até ao meeting. O meeting, os episódios que se deram
durante e depois dele, tinham persuadido o ministério de «que
não podia por mais tempo governar». Por isso recorrera à lei
de meios como um ardil para entalar a oposição «entre uma
condescendência oprobiosa e a ameaça da dissolução»221. Rara-
mente o Parlamento estava tão concorrido. Efectuada a votação,
o adiamento de Fontes foi aprovado por 80 votos contra 76.
No dia seguinte, a 27 de Março, o rei assinava a dissolução, mar-
cava eleições para 28 de Abril e convocava Cortes para 20 de
Maio. A 28, O Português exortava os cidadãos a entrarem no
combate que se aproximava. Não era um combate como aque-
le a que estavam acostumados, em que «dois partidos, ambos
liberais, ambos progressistas», disputavam a urna. Esse tempo
acabara: «Agora é o combate da liberdade com o absolutismo
no campo eleitoral.»232

231 Sessão de 26.3.61, Diário de Lisboa, 30.3.61.


232 0 Português, 28.3.61.

302
VII

O neocatolicismo e o dilema liberal

No modo de ver de O Português, a portaria de 5 de Março


de 61 produzira o salutar efeito de «extremar os campos»233.
Tinha vindo «desmascarar os traidores ao partido liberal»,
demarcando uma fronteira bem clara entre, «De um lado, o
partido reaccionário», e, «do outro, o partido liberal». No par-
tido reaccionário estavam, para além de 4 Revolução de Setem-
bro, os «srs. Pinto Coelho, conde de Tomar e Fontes Pereira
de Melo»; no partido liberal estavam, para além de O Portu-
guês, o «povo» e os «vultos liberais» que se mantinham «fiéis
às tradições de D. Pedro IV». Não haveria, dali em diante,
«senão dois campos políticos bem divididos»234, extremados
pela questão religiosa.
A questão religiosa, que à época se agitava com mais ou
menos intensidade em toda a Europa Ocidental, nascera da poli-
tização da reacção católica contra a crescente secularização da
sociedade, impulsionada pelo liberalismo, e contra os derivati-
vos laicizantes, de tonalidade ateia, gerados pelo «radicalismo
humanitário»235, republicano ou socialista, que se desenvolveu
a partir de meados do século. As duas tendências — seculariza-
dora e laicista — embora de cariz diverso e com implicações
políticas distintas, engrossavam na prática e para todos os efei-
tos uma única corrente de anticlericalismo que já abatera muito

233 O Português, 8.3.61.


234 Ibidem.
235 Daniel Halévy, op. cit. vol. 1, La fin des notables. A expressão é introdu-
zida na p. 57. Mas todo o volume é essencial para se compreender como entre o
novo catolicismo ultramontano e a irreligião republicana restava pouco espaço para
o catolicismo liberal. Por outras palavras, como era precário o equilíbrio entre repu-
blicanismo e realismo.

303
Apologia da História Política

do antigo poderio da Igreja e ameaçava destruir o que dele resta-


va, deixando a religião desarmada perante a impiedade do sé-
culo e a sociedade impotente para conter as forças subversivas
que contra ela arremetiam. Em 1848, Pio IX compreendera
que a libertação da Itália do domínio austríaco e Bourbon teria
como remate certo a liquidação do poder temporal do Papa,
pela inevitável incorporação dos territórios sob o seu governo
num Estado secular. Deste modo se perderia um esteio insubsti-
tuível da supremacia pontifical e, por conseguinte, se privaria
a Igreja católica, e o catolicismo, da sua mais robusta fortaleza.
Em Abril de 1848, Pio IX reconheceu publicamente a incom-
patibilidade entre a unificação italiana e os imperativos da sua
missão ecuménica. Declarou-se fiel a esta e renegou aquela. Com
esta opção, que lhe alienou a simpatia de todos os liberais que
viam na Itália o palco onde se jogava a liberdade dos povos,
Pio IX dava início a um contra-ataque da Igreja destinado a re-
cuperar a influência e o esplendor que desde a Revolução Fran-
cesa não cessara de perder. O sucesso da empresa dependia do
reforço da sua própria autoridade sobre a hierarquia clerical e
as igrejas nacionais e, em simultâneo, de uma revitalização da
fé religiosa susceptível de fidelizar, ou mesmo «recatolicizar»236,
as sociedades do mundo católico. O primeiro deste duplo de-
sígnio implicava a oficialização do dogma da infalibilidade papal.
O segundo, a reactivação das ordens religiosas, combinada com
novas formas de devoção capazes de cativarem a sensibilidade
e imaginação populares. O relançamento do marianismo, ajuda-
do por várias aparições da Virgem e culminado na proclamação,
em 1854, do novo dogma da Imaculada Conceição, serviu,
como se verá, para concretizar ambos os desígnios. Em resulta-
do da transformação política dentro da própria Igreja, marca-
da pela ascensão do «imperialismo papal»237, e das inovações
teológicas introduzidas por Pio IX, foi tomando corpo um novo

236 Expressão usada por Raymond Carr para qualificar este movimento em
Espanha. Spain, 1907-1974, Oxford, 1982, (2.º ed.), pp. 463-472.
237 Garry Wills, «The Vatican Monarchy», The New York Review ofBooks,
19.2.1998, p. 25.

304
A republicanização da monarquia (1858-62)

catolicismo ou neocatolicismo em que os velhos católicos, e ve-


lhos liberais, se não reviam.
Herculano, que tomava a Igreja como um ponto de refe-
rência fixo num mundo em acelerada mutação, revoltava-se
contra os atropelos da tradição que tanto golpeavam a teologia
recebida como atingiam a organização conciliar que através
dos séculos tinha possibilitado a coexistência da unidade da
fé com variações rituais e litúrgicas nacionais e locais. Perdera-
-se, segundo Herculano, «o carácter fundamental do catolicis-
mo verdadeiro», que segundo ele residia na «imutabilidade, [n]a
perpetuidade e [n]a universalidade dos seus dogmas»228. A Carta
adoptara o catolicismo como religião do Estado. Mas desde
aí tinha-se «realizado gradualmente uma revolução na Igreja
Católica»23?.
Ora «As novidades religiosas», censurava Hercula-
no, vinham «perturbar as consciências», e «o marianismo e o
infalibilismo», duas criações do modernismo romano, «quase
leva[va]m o cristianismo de vencida»240. Situado no terreno es-
corregadio entre o «radicalismo humanitário» e o «catolicismo
moderno», que constituíam as duas fontes de inspiração das forças
políticas em conflito na segunda metade de Oitocentos?4!,
o velho católico e velho liberal acusava de heresias as novidades
impostas pela prepotência de Roma. Com esta refutação do «ca-
tolicismo moderno», Herculano levava água ao moinho do «ra-
dicalismo humanitário», ao qual, todavia, razões não menos
poderosas o impediam de aderir. Também Oliveira Martins assi-
nala que na segunda metade do século XIX surgiu por cá uma
«religião nova», diferente da «religião vencida em 1834»242, E era
contra ela, e contra a reacção política que atrás dela alegada e
realmente se escondia, que o radicalismo doméstico bradava.
O que era então mais exactamente este neocatolicismo, e o que

238 «A supressão das conferências do casino», p. 511, Opúsculos, Lisboa,


ed. Bertrand, 1983, tomo 1, pp. 509-530.
239 Idem, ibidem, po513:
240 Idem, ibidem, pp. 514-5.
241 Daniel Halévy, op. cit., vol. 1.
242 Portugal Contemporâneo, Lisboa, 1977, vol. 11, p. 279.

305
Apologia da História Política

havia nele de característico e diferente do antigo, que entre-


tanto seguia tendo os seus fiéis?
O que nele havia era, para começar, um assumido pendor
ultramontano que, indo contra a tradição de galicanismo enrai-
zada em vários países católicos, não era mais do que o reconhe-
cimento do absolutismo pontifical tal como Pio IX o veio a
estabelecer. O marianismo foi um precioso auxiliar usado para
este efeito. É verdade que o culto de Maria possuía uma tra-
dição de muitos séculos, mas foi no século xIx que a Virgem
adquiriu o protagonismo quase exclusivo do fenómeno das apa-
rições, de que as mais célebres foram a de La Salette em 1846
e Lurdes em 1857. Paralelamente, mudou também o tipo de
público perante o qual ocorriam estes fenómenos sobrenatu-
rais, que agora consistia em gente comum, geralmente pobre
e analfabeta, ou inocentes crianças?%. Enquanto criatura hu-
mana mais intimamente associada à Divindade, pelo papel que
desempenhou na incarnação divina, a Virgem-Mãe oferecia-
-se como «o modelo para toda a cooperação com a graça de
Deus»244, ao mesmo tempo que a sua patente humanidade a
familiarizava e aproximava facilmente da massa dos crentes.
Finalmente, numa época em que o romantismo transformara
a família numa comunidade afectiva e elevara a maternidade
a figura de culto e veneração, a Virgem-Mãe constituía um po-
deroso motivo de identificação para as mulheres de todas as
proveniências geográficas e de todas as classes sociais. Os mais
eminentes teólogos do passado nunca tinham podido admitir
que Maria houvesse sido concebida sem pecado, pois uma se-
melhante excepção à origem pecaminosa dos homens inutiliza-
ria o sacrifício de Cristo pela salvação humana ao mesmo tempo
que faria dela uma «mulher-deus», uma co-redentora da huma-
nidade?45. Pio IX decidiu violar a tradição e produzir doutri-
na nova. Proclamou o dogma da Imaculada Conceição sem a

243 «Jesus aparecia frequentemente a ascetas eruditos, que estabeleciam as


modalidades da devoção a partir do seu estatuto de elite.» Garry Wills, op. cit.,
po 25,
244 Idem, ibidem.
245 Idem, ibidem, e A. Herculano, op. cit., p. 529.

306
A republicanização da monarquia (1858-62)

prévia anuência dos bispos, um caso inédito nos anais da Cúria,


e no dia 8 de Dezembro de 1854 convidou-os para Roma a
fim de celebrarem o facto consumado?246. Dali a alguns anos,
em 1870, armado com este precedente, oficializou o dogma
da infalibilidade papal. Na interpretação de Herculano, esta
tornara-se indispensável para dotar o Sy/labus (1864) com «san-
ção divina»247. Quer dizer, para transformar em dever de cons-
ciência para os católicos o alistarem-se na guerra santa contra
o liberalismo, decretada e dirigida pela autoridade indisputável
do Sumo Pontífice. Nestas circunstâncias, não se colocava fora
da Igreja, e contra a Igreja, quem não obedecesse ao apelo do
Papa? Na segunda metade do século x1x, segundo a doutrina oficial
da Igreja de Roma, o «verdadeiro católico» tinha de ser, por força
da sua fé religiosa, ultramontano, e antiliberal. O indeclinável
dever de obediência a Roma fazia dele, por definição e literal-
mente, um reaccionário. Herculano escreveu em 1870 que a
questão se reduzia a escolher entre «o Syllabus ou a Carta»2*8.
Mas como poderia um católico escolher contra o Papa?
O proselitismo era outra característica pela qual o «novo
catolicismo» se distinguia. Em França, procurou-se estender o
movimento até às paróquias e reanimar a vida católica ao nível
local, «tornando a religião quente, emocional, colorida e ar-
dente», de modo a impressionar a imaginação e a seduzir a afec-
tividade popular2%. Em meados do século xIX, as peregrinações
renasceram e nos anos 70 e 80 vieram a atingir, graças aos novos
meios de transporte, uma popularidade sem precedentes, che-
gando a atrair aos lugares santos — Lurdes, La Salette — para cima
de 50 000 pessoas2?50. As tradicionais formas de devoção reli-
giosa já não bastavam para assegurar o predomínio indisputado

246 Garry Wills, op. cit., p. 24. A prática da «declaração infalível» vinha
do passado: mas aplicava-se apenas à clarificação de pontos importantes das Escri-
turas ou à definição de heresias. «Hitherto definitions de fide were grave necessi-
ties, not devotional outpourings.» Idem, ibidem.
247 Herculano, op. cit., p. 513.
248 Idem, ibidem, p. 526.
249 Owen Chadwick, The Secularization ofthe European Mind in the 19th
Century, CU.P., p. 118. '
250 Idem, ibidem.

307
Apologia da História Política

da Igreja, a tutela clerical sobre a cultura e os costumes, nem,


por conseguinte, para garantir a estrita fidelidade de uma socie-
dade cada vez mais heterogénea, perturbada na sua ordem ances-
tral pela multiplicação dos centros urbanos e pelo crescimento
de massas proletarizadas permeáveis à propaganda subversiva.
É certo que as revoluções de 1848 tinham sido derrotadas. Mas
o que elas permitiram entrever não fora esquecido nem deixara
de assustar. Passada a tormenta, os grandes e os ricos compreen-
deram que a profecia lavrada por Dofioso Cortés nos anos 40
conservava toda a sua actualidade e se aplicava plenamente à
Europa inteira. A Espanha, dissera ele, ou seria católica ou comu-
nista251, Ora a segunda metade do século parecia cada vez mais
arredada de Deus, e, embora este continuasse a figurar inscrito
nas constituições monárquicas, os Estados mostravam-se impo-
tentes para fazer valer os seus direitos na consciência do mundo
civil. Manietados pelo rol de liberdades que a Revolução Francesa
proclamara — nomeadamente de pensamento e expressão; proi-
bidos de discriminar os cidadãos pelo simples facto das suas cren-
ças heréticas; limitados a subvencionar o culto e os seus ministros,
os Estados liberais revelavam-se um baluarte bem pouco eficaz
contra o evanescimento da fé que acompanhava a maturação
dos tempos modernos e apresentavam-se desarmados contra as
forças anarquizantes que, da família à propriedade, minavam
os mais santos fundamentos da sociedade.
Como explicou Antero de Quental, Roma compreendeu
isto mesmo melhor e mais cedo do que ninguém252. Se os Esta-
dos nacionais se mostravam incompetentes para garantir o res-
peito pelos dogmas e a obediência dos crentes, a Santa Sé se
encarregaria de manter o primeiro e velar pelo segundo. E como
as igrejas nacionais, por força das doutrinas constitucionais
vigentes, não fossem inteiramente livres para executar fiel e
plenamente a sua política de «recatolicização», Roma reactivou

251 Dofioso Cortés, cit. por M. Fátima Bonifácio, «Costa Cabral no Contex-
to do Liberalismo Doutrinário», Análise Social, n.º 123/4, 1993, pp. 1069-1080.
252 E Antero de Quental compreendeu que Roma tinha compreendido: ver
a sua «Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a Chamada opinião
liberal», in Prosas Sócio-Políticas, ed. Joel Serrão, Lisboa, IN, 1982, pp. 171-193.

308
A republicanização da monarquia (1858-62)

por toda a parte as ordens religiosas que, subtraídas às autorida-


des eclesiásticas nacionais e escapando deste modo à soberania
dos Estados, apenas ao Papa obedeciam directamente. Este dis-
punha assim de um exército privativo de prosélitos que nos
países onde penetrava se empenhava em aliciar as classes altas
para a tarefa comum de restabelecer o temor de Deus no reba-
nho tresmalhado pela soberba dos tempos. Também neste ponto
o dogma da Imaculada Conceição vinha em auxílio do Pontí-
fice. Servia ele, como explicava Herculano e nos meios liberais
geralmente se acreditava, para, «lisonjeando a paixão mais enér-
gica do sexo fraco, a vaidade», facilitar a introdução do «veneno
do ultramontanismo» e consumar a corrupção da «família»
através da «fraqueza mulheril»253. O proselitismo das ordens
religiosas dirigia-se prioritariamente às classes altas, que eram
ou deviam ser as principais interessadas no revigoramento da
fé que se procurava levar a cabo. À Igreja de Pio IX não as atraía
para nenhuma espécie de comunidade mística nem as con-
vidava para a serena contemplação de Deus. Solicitava pelo
contrário a sua disponibilidade e energia para colaborarem acti-
vamente na criação de asilos, no ensino da infância, na orga-
nização da caridade: por aqui se ganhavam as almas no presente
para conquistar o futuro.
Data desta altura, de 1857-58, o efectivo relançamento
do movimento católico em Portugal, já esboçado na década de
40, e do qual o associativismo católico da década de 70 é um
prolongamento. Votado à religião católica, apostólica e roma-
na, fiel ao ultramontanismo, o movimento católico define-se
logicamente como antiliberal e nos anos setenta definir-se-á
também, com não menos lógica, como antiabsolutista. Tal como
o neocatolicismo via as coisas, com o absolutismo monárquico
se tinham criado, com efeito, a escola do regalismo, que alimen-
tava a soberba do poder temporal, e a escola do conciliarismo,
que sonegava as igrejas nacionais à legítima supremacia de
Roma. Os liberais haviam-se limitado a acolher, e desenvolver,
a doutrina destas escolas. Era este entendimento que levava

253 A, Herculano, op. cit, p. 513 ep. 519.

309
Apologia da História Política

o conde de Samodães a afirmar que entre o «liberalismo» e


o «absolutismo monárquico» não via «diferença senão de
forma»254.
Organizando, dirigindo e unificando a reacção religiosa
no mundo católico, Roma oferecia-se para alumiar o caminho
e conduzir ao porto de salvação as forças conservadoras da Eu-
ropa. Estas, compreendendo o interesse próprio, responderam
ao apelo. Em Lisboa, sob o elevado patrocínio da imperatriz
viúva de D. Pedro IV, as senhoras da sociedade tornaram-se
todas muito caridosas, enquanto o marquês de Vallada, na Cà-
mara dos Pares, velava minuciosamente pelos direitos da Cúria
e da Igreja, e Pinto Coelho, na dos Deputados, lembrava regu-
larmente ao governo os deveres do Estado num país católico.
Entre a obediência ao Estado e a devoção à pátria espiritual e
religiosa, o coração da aristocracia inclinava-se para o Papado:
era um pólo de unificação superior, uma fidelidade mais alta,
transversal às nações, tal como a solidariedade que ligava as
famílias aristocráticas da Europa através das fronteiras nacio-
nais. Acima do Estado ficava Deus, e Deus morava em Roma.
As velhas teorias regalistas, que os liberais tinham herdado do
absolutismo régio, já continham afinal o germe do decaimento
da Igreja que o constitucionalismo monárquico apressara. O ul-
tramontanismo era o remédio indicado contra doutrinas e práti-
cas que tinham produzido o desastroso resultado de enfraquecer
a Igreja e a fé, deixando a sociedade exposta ao assalto do ateís-
mo e, por conseguinte, desmunida contra a subversão da família,
o desrespeito da hierarquia e o assalto à propriedade.
Parte da aristocracia portuguesa abraçou a «religião nova»
e atacou o regalismo. O marquês de Fronteira é apenas um
exemplo da nobreza que tinha aderido a D. Pedro IV e que agora
manifestava as suas inclinações papistas convivendo com o
notório jesuíta Rademaker e dando guarida às irmãs de carida-
de. O radicalismo via essa aristocracia, em finais da década de

254 Cir. por Reis Torgal, História de Portugal, dir. José Mattoso, Lisboa,
Círculo de Leitores, 1993, p. 238. Não me parece que o autor deixe explicado o
que separava o jornal 4 Palavra (órgão do movimento católico na década de 70)
quer do catolicismo liberal quer do catolicismo legitimista.

310
A republicanização da monarquia (1858-62)

50, pender para o lado do Papado na questão da concordata,


disposta a abrir mão do padroado português do Oriente em
face dos interesses da fé interpretados por Roma; via-a na ques-
tão romana tomar partido pelo poder temporal do Papa contra
os interesses da unificação italiana; via-a acolher as irmãs de
caridade francesas e sustentar a sua desobediência às reiteradas
ordens do governo português; via-a solicitar a autorização de
Roma para a desamortização dos bens eclesiásticos; via-a resis-
tir à extinção dos conventos de freiras que subsistiam ilegal-
mente. Via-a, em suma, disposta a rasgar os famosos decretos
de D. Pedro de 1833-34 pelos quais, abolindo as ordens religio-
sas e nacionalizando os seus bens, o liberalismo completara o
processo, iniciado com Pombal, de nacionalização e subordina-
ção da Igreja ao poder de Estado. O radicalismo não via diferen-
ças entre católicos novos ou antigos, entre a aristocracia e a
riqueza ou entre «Regeneração, cabralismo e miguelismo: é tudo
a mesma coisa»255; via que todos defendiam as irmãs de carida-
de e destruíam, com isso, as «leis santas» do «Imperador» pelas
quais se alumiara o «archote da razão» em Portugal256.
No meio, entre os dois dogmatismos, o radicalismo e o neo-
catolicismo, os liberais, fiéis ao regalismo e à religião velha,
queriam a Igreja e a fé respeitadas. A Revolução expunha a or-
todoxia liberal em toda a sua aparente simplicidade: «Estado
e Igreja como sociedades distintas mas contíguas, vivendo se-
paradas mas não estranhas, aliando-se em certas condições e sub-
sistindo cada uma por sua conta, fazendo mútuos sacrifícios e
prestando-se mútuo apoio»257. E nesta partilha de espaços ou
convivência no mesmo espaço, o instituto do beneplácito régio
indicava subtilmente para que lado se inclinava a balança do
poder. Mas não era isto o que os católicos queriam. Queriam o
Estado subordinado à Igreja católica, apostólica e romana, o que
era interpretado como um retorno às concepções teocráticas
que tinham vigorado anteriormente à alvorada da Liberdade.

255 O Português, 16.3.62.


256 0 Português, 3.3.59.
257 A Revolução de Setembro, 13.3.59.

31
Apologia da História Política

Na Câmara dos Deputados, Pinto Coelho indicou com clareza


e firmeza o que o separava dos liberais: «A oposição regenera-
dora, digo eu, não combate a lei da desamortização; mas a opo-
sição a que eu pertenço, combate-a»258. Rodrigues Sampaio
não era insensível aos ataques que, dirigidos embora contra
as inclinações papistas dos católicos, ele sabia premeditados
contra a religião. Mas também ele, velho liberal educado na
tradição regalista e secularizadora de 1834, condenava os exces-
sos do «novo catolicismo». Nas páginas do seu jornal, desapro-
vou a «importação» das irmãs francesas e inclinou-se para
dispensar as portuguesas, exprimiu reserva a respeito da con-
cordata (1857) e ridicularizou o governo histórico por ter pedi-
do licença a Roma para desamortizar os bens das freiras (1861).
Mas, no meio entre dois dogmatismos, sem querer escolher entre
a «peste» do catolicismo reaccionário e a «lepra» do radicalismo
humanitário, de um lado chamavam-lhe ímpio, do outro, la-
zarista?59. A partir do momento em que a religião se fizera ultra-
conservadora, «reaccionária», combater a sua política implicava
combater a religião. E não combater implicava deixar-se con-
fundir com a reacção. Era este o dilema liberal que o radica-
lismo não se cansava de explorar. Aos liberais que recusavam
escolher entre os extremos, consideravam-nos uma «peste je-
suítica introduzida no campo liberal [...] cuja vida não medra,
como a dos vermes asquerosos, senão no lodo infecto da des-
moralização social». Eram eles «os inimigos mais irreconciliá-
veis e mais temíveis, por serem mais pérfidos, da liberdade do
género humano»260,

258 Sessão de 18.3.61, Diário de Lisboa, 20.3.61.


259 Diz Daniel Halévy que em França, Taine e Renan, confrontados com
idêntico dilema, se retiraram da «batalha» e optaram pelo «silêncio». Op. cit., vol. 1,
pp. 56-59.
260 0) Português, 21.1.61.

512
VII

Novas ameaças à «existência constitucional


dos partidos»

À ninguém escapava a gravidade dos acontecimentos do


10 de Março de 61. O apelo a Saldanha, e a receptividade por
este demonstrada a esse apelo, alertaram os «partidos» para o
perigo de uma descontrolada insubordinação radical vir a
fornecer o pretexto para uma aventura golpista justificada pelo
chamamento popular. «Depois que se viu que se apelava para
o coração do soldado, e se invocava o nome de um soldado
ilustre»261, o próprio Jornal do Comércio, onde se exprimia a
«unha negra», bem compreendeu para onde as coisas podiam
descambar e remeteu-se a uma atitude da maior prudência.
«Os acontecimentos de Domingo último», escreveu, «vieram
pôr em risco a existência constitucional dos partidos». Havia
quem alvitrasse que perante o «perigo comum» se deveria ten-
tar uma «espécie de fusão dos partidos». O Comércio não ia
contra. Dadas as arriscadas circunstâncias do momento, o que
urgia era arranjar um governo firmado no «apoio enérgico
e decidida coadjuvação» do Parlamento e do País262, capaz
de, como se subentendia, conter a fermentação de forças que
escapavam ao enquadramento dos partidos vigentes. Uma
«fusão» podia «ser tolerada como um remédio extremo e meio
de transacção»263. Mas era cedo para ensaiar a «Fusão». Ainda
não estava absolutamente provado que o radicalismo não fosse
conciliável ou que não se pudesse governar em aliança com
alguma parte dele. Foi o que se continuou a tentar até Setembro

261 Jornal do Comércio, 20.3.61.


262 Jornal do Comércio, 15.3.61.
263 Jornal do Comércio, 17.3.61.

313
Apologia da História Política

de 65, quando todas as combinações possíveis pareceram final-


mente esgotadas264 e a «Fusão» acabou por se impor.
Entretanto, no imediato, era preciso evitar a queda do go-
verno. O Comércio não fazia da situação política uma apre-
ciação diferente do O Português. Também para ele a questão
das irmãs de caridade tinha definido dois únicos partidos.

«De um lado a reacção ultracatólica com o seu quartel-


-general na Câmara dos Pares, com o sr. conde de Tomar
incumbido do comando em chefe das operações políti-
cas nos arraiais cartistas e regeneradores. Do outro, todos
os que não pedem esmola para a guerra civil em Itália, os
que não vêem nas toucas e nos rosários das irmãs o sím-
bolo exclusivo das sinceras crenças; enfim, todos os que
não abjuram em nome de fanatismos obscuros e mulheris
a virilidade da inteligência, o futuro do país e a dignidade
dos princípios e do poder.»265

Neste quadro dicotómico apenas não cabiam uns quantos


«especuladores políticos», «empresários de meeting», que am-
bicionavam chegar a «fins que por via ordinária jamais podiam
lograr» e que por isso maquinavam para «tirar os poderes públicos
da sua marcha ordinária e constitucional»266. Os «antigos par-
tidos» já não existiam. Tinham-se dissolvido ou confundido no
amplexo da Regeneração. O que já só os separava, «a emulação
dos desenvolvimentos práticos», essa apenas podia «ocasionar
litígios amigáveis e pacíficos». Assim, por exclusão de partes, se
comprovava que o motivo verdadeiro e profundo da «crise» que
se manifestara tinha «outras causas»: «A reacção [...] está dando
batalha à liberdade.»267 A 28 de Março de 61, troçando do decre-
to de 5, chegou mais «uma carregação de irmãs de caridade com
um padre lazarista», e o marquês de Loulé, segundo asseverava

264 A «Fusão» de históricos e regeneradores dá-se com o governo Aguiar


de 4.9.65.
265 Jornal do Comércio, 22.3.61. Itálico meu.
266 Ibidem, 20.3.61.
267 Ibidem, 23.3.61.

314
A republicanização da monarquia (1858-62)

A Revolução, já garantira «à família e parentes» que os lazaristas


ficariam «senhores do ensino»268. Não dissera o jornal que «o
ministério zombava do Borratém»? 269
E deixaria o Borratém que zombassem dele? O governo
triunfara nas eleições de 28 de Abril e em 17 de Maio reforçara
a Câmara dos Pares com uma «fornada de parciais»270. Na ópti-
ca radical, por conseguinte, as suas responsabilidades tinham
aumentado na medida exacta do aumento da sua força. Antes
das eleições, lembrava-lhe o Comércio, «A condição foi posta
solenemente»: a «urna» dar-lhe-ia apoio «para a grande empresa
de desafrontar o poder das trevas da reacção»271. Iria o gover-
no faltar à palavra dada? Em fins de Maio, para gáudio de todas
as oposições, as irmãs continuavam acomodadas em Santa Marta.
Surgiram dúvidas sobre «o dia do termo» do prazo que lhes fora
dado. Deviam os quarenta dias ser contados a partir de 5, ou
6 de Março??72 Segundo 4 Revolução, no princípio de Junho
ainda Mendes Leal, deputado e redactor do Comércio, andava
«ocupado em achar o termo dos quarenta dias»272. Na realida-
de, já lá iam oitenta! «Como é isto?», interrogava o Comércio
com justificada indignação, «porventura o governo não teve força
para esmagar a oposição do alto beatério»? Continuariam os
ministros, «reclinados nas cadeiras ministeriais», a estudar «em
branda sonolência uma questão que se discute há três anos»?
«Acabaram as condescendências», anunciou o Comércio?”4.
Mas não era fácil acabar com elas. A 8 de Junho aparecia
o primeiro número de um novo jornal, francamente intitula-
do Democracia. Era o órgão da Associação Patriótica. O seu
fim era «sustentar o progresso liberal mais adiantado». Por isso,
reclamava «a extinção da Câmara dos Pares, a abolição comple-
ta dos morgados» e, de modo geral, «de todos os princípios
caducos que ainda vegetam como monumentos anacrónicos

268 4 Revolução de Setembro, 31.3.61.


269 Ibidem, 1.5.61.
270 Ibidem, 19.5.61.
271 Jornal do Comércio, 21.5.61.
272 A Revolução de Setembro, 1.5.61.
275 Ibidem, 1.6.61.
274 Jornal do Comércio, 1.6.61.

315
Apologia da História Política

de uma época morta». Jornal saído do povo, reivindicava «o


voto universal» como corolário lógico de o «tributo de sangue
e de dinheiro» ser pago por todos. O seu programa não se ficava
por aqui. Incluía a exigência de «escolas para o povo» e para
«ambos os sexos», fonte certa da «regeneração futura desta terra»,
e não se esquecia de «pedir que acabem as usurpações da corte
de Roma e que aos bispos seja restituída a plenitude dos seus
poderes apostólicos». Finalmente, compreendendo a conve-
niência da «moderação», a Democracia prometia limitar-se a
aconselhar uma «resistência legal»275.
Uma vez que o direito de petição e reunião era constitucio-
nalmente reconhecido, nada de mais legal do que a Associação
Patriótica dirigir uma «representação» à Câmara de Deputados
a pedir a «aplicação no presente» dos «princípios de liberdade
proclamados no passado», reforçando o pedido com um mee-
ting convocado para domingo, dia 10 de Junho?76. Uma vez
mais, os «partidos» tremeram perante esta anarquia facciosa que
ameaçava a sua «existência constitucional». O Comércio re-
conhecia que o governo faltara à palavra dada, mas lembrava
que «os negócios públicos» não se resolviam recorrendo às «dra-
gonas de um general»; que as «doutrinas» se não sustentavam
com a ajuda de «uma espada»; e que na política não podia haver
«comandante em chefe». Quanto a meetings, a «capital» assisti-
ra com «desdém» ao que no último se passara, e esta recordação
bastava para reprovar a repetição de tais cenas277. Com que sinis-
tro fim se quereria «comover o país»?278
Assustado, o governo proibiu o meeting por portaria de
7 de Junho, no que o Comércio viu um «acto de polícia que a
voz geral não reprovou». Mas a Democracia logo explicou que
a «petição», que por isso não seguira «do Rocio para o Parla-
mento», aqui chegaria enviada «de outro local»27º. Seria do

275 Democracia, 8.6.61.


276 Representação e convocação da Sociedade Patriótica, anunciadas na De-
mocracia, 8.6.61.
277 Jornal do Comércio, 3.6.61.
278 Ibidem, 5.6.61.
279 Democracia, 15.6.61.

316
A republicanização da monarquia (1858-62)

Pátio do Geraldes? Era indesmentível que o exército andava agi-


tado, e só havia uma pessoa capaz de o acalmar. Através da
Opinião, que era a folha oficiosa do governo, este mandou reca-
do a Saldanha. Estava visto que «a salvação do país depend[ia]
dos lábios de S. Exa.» e «a existência» do governo da «decla-
mação de um marechal»280. O marechal falou: escreveu uma
carta a Loulé, com cópia para a Opinião, que «deixou morta a
facção histórica»281. Nela dizia que era «instado por muitos
homens sérios [...] para voltar às lides do governo», e que a
todos respondia que isso apenas dependia de «el-rei, o nosso
bom amo», o chamar aos seus conselhos. É certo que julgava
«uma mudança ministerial» «da maior conveniência», mas dese-
java que ela fosse «só o resultado das condições próprias dos
governos representativos» e não o resultado de «qualquer acto
meu». Quanto a «alguns papéis que têm sido espalhados nos
quartéis», o marechal garantia que tinha silenciado as manifes-
tações em seu favor.
Entretanto, a Associação Patriótica tentou entregar a «re-
presentação» ao presidente da Câmara de Deputados, mas este
recusou recebê-la em virtude de ter achado nela «um ataque ou
desconsideração a alguns dos poderes de Estado»282, Recorreu
então a José Estêvão, acabado de se filiar no Borratém, que ho-
menageara o grande orador expondo o retrato dele na sua sala
de reuniões282. Sempre dedicado a trabalhar pelo bem da pátria,
José Estêvão fizera de si próprio o embrião de um «partido nas-
cente», um «partido novo» destinado a congregar «homens
novos», desprovidos de «filiação política em nenhuma das seitas»
existentes, e cujos talentos se desperdiçavam numa flutuação
«sem organização e sem chefes»284. A Câmara de Deputados,
280 4 Revolução de Setembro, 20.6.61.
281 Carta publicada pela Opinião e transcrita em 4 Revolução de Setembro,
de 22.6.61. A carta foi publicada q pedido do próprio Saldanha.
282 A «representação» data de 6.6.61 e foi entregue na sessão de 22.6.61,
Diário de Lisboa, 26.6.61.
283 José Estêvão filiou-se em 27.7.61 e pensava, com Freitas de Oliveira
(redactor da Liberdade) e outros, fazer da Patriótica «o núcleo de um novo par-
tido popular». Democracia, 27.7.61 e 17.8.61.
284 Liberdade, 12.7.61.

a17
Apologia da História Política

apesar de recém-eleita, decidiu que a representação merecia ser


lida pela mesa. O «povo» dizia-se nela «desenganado» e apre-
sentava um extenso rol de reclamações: a Câmara dos Pares
continuava por reformar e fora pelo contrário engrossada com
«caracteres que [...] serão elementos de maiores embaraços»;
as irmãs de caridade permaneciam no País e continuavam a «en-
sinar nos colégios dos filhos do povo»; a portaria de 5 de Março
fora «uma burla» «imoralíssima»; a respeito da unificação italia-
na, parecia haver da parte do governo «certa repugnância em
reconhecer o novo reino de Itália»; a nossa subserviência peran-
te Roma era um «desdouro» que, num «país rico das mais glo-
riosas tradições», chegava a ser «humilhante»; o abandono das
«colónias», das «praças de guerra», do «exército», do «armamento
do país», da «administração», eram outros tantos motivos de en-
tristecimento do «povo de Lisboa». E o que acima de tudo se
lamentava, era «A impunidade dos grandes criminosos, a vena-
lidade da justiça, a parcialidade dos tribunais a favor dos ricos
e dos nobres». «Praza a Deus», ameaçava-se no final, que o «país»
não se veja obrigado a «recorrer à última razão dos povos»285.
Como era preciso fazer alguma coisa, o governo, no dizer
de 4 Revolução, «repetiu a burla de 5 de Março»286. Por decreto
de 22 de Junho, assinado por Loulé, declarou «dissolvida a cor-
poração das irmãs dos pobres», o que a Câmara dos Pares logo
denunciou como uma atroz ilegalidade. O problema foi levan-
tado pelo conde de Tomar na sessão do dia 25 de Junho, e a
discussão protelou-se até 9 de Julho. De parte a parte, dos que
condenavam e dos que defendiam o decreto, esgrimiram-se lon-
gos e intrincados argumentos jurídicos, mas toda a gente sabia
que a questão era puramente política. Do ponto de vista dos
católicos, o decreto atentava contra a supremacia do Papa e visa-
va indirectamente a Religião. Do ponto de vista do ministério,
a irreverência das irmãs, que o decreto pretendia vergar, repre-
sentava uma vitória da reacção ultramontana e, portanto, uma
derrota da Esquerda. Mas, para o governo e para esta, o problema

285 Sessão da CD de 22.6.61, cit.


286 4 Revolução de Setembro, 26.6.61.

318
A republicanização da monarquia (1858-62)

estava em que a simples existência do decreto representava, em


si mesma, uma confissão de impotência. Já tinha havido o de
3 de Setembro de 58; como não fosse cumprido, seguira-se a
portaria de 5 de Março de 61; e agora, o decreto de 22 de Junho
significava o reconhecimento público de que também esta não
produzira efeitos. «A minha convicção», dizia Joaquim Antó-
nio de Aguiar sem receio de ser contrariado, «é que o decreto
de 22 de Junho há-de ter o mesmo resultado que teve a porta-
ria de 5 de Março.»287 Aguiar não se enganava. No relatório do
decreto, de resto, o governo descia a mesuras que eram uma
pura confissão de medo. Nele protestava que nutria pelo Insti-
tuto de São Vicente de Paulo, «e pelas irmãs francesas em parti-
cular, uma justa veneração». Porquê esta deferência, interrogava
Fontes no Parlamento?288. Todos viam nela o reconhecimento
antecipado de que não haveria força para fazer cumprir o que
em quatro anos pela terceira vez se decretava. Como À Revo-
lução igualmente denunciou, o governo até recuava relati-
vamente às anteriores determinações. Agora dissolvia-se a
corporação, mas, desdizendo a portaria de 5 de Março, desis-
tia-se de lhe confiscar os bens, remetendo a decisão sobre o
respectivo destino para as leis vigentes. E a própria «Democra-
cia» também se mostrou descrente: «Muito mais frequente [sic]
e de maior alcance era a portaria de 5 de Março, e foi cumpri-
da?»289 Este cepticismo não agoirava nada de bom.

287 Sessão de 26.6.61, Diário de Lisboa, ATIÓ


288 Sessão de 3.7.61, Diário de Lisboa, 5.7.61.
289 Democracia, 29.6.61.

319
IX

Os tumultos do Natal de 61

As irmãs de caridade tinham servido para separar os cam-


pos partidários e desmascarar os chefes políticos, a começar pelo
marquês de Loulé. «Jamais» poderia ele ser «chefe do partido
popular». «Fidalgo» e «democrata», explicava a Democracia, «são
duas coisas inteiramente opostas e repugnantes entre si»?20, Con-
duzido por ele e pelos históricos, um «bando de harpias que só
cuidam de bem se anicharem», o País apresentava-se «o mais
medonho e aterrador»??l e o povo, tocando o auge do desespe-
ro, já dera em «atenta[r] contra os seus dias»: bastava ler «a lista
dos suicídios» para ver «confirmada esta verdade»??2. Enquanto
isto, as irmãs de caridade por cá tinham continuado e «aumen-
tado com o auxílio do governo»2?3. O Português não compreen-
dia o que se passava. O partido histórico, assim que chegava ao
governo, perdia logo aquela «energia» que o animava na oposi-
ção, caía «em completa apatia»294. O «país» fervilhava e os minis-
tros não saíam do letargo em que o poder misteriosamente os
prostrava. Mas em Dezembro de 61, depois que a tensão na
cidade se adensou em virtude da morte consecutiva dos infantes
e do rei, o povo decidiu despertá-los violentamente.
D. Pedro V e os infantes D. Fernando e D. Augusto adoe-
ceram em finais de Outubro, quando regressavam de Vila Vi-
çosa para Lisboa. D. Fernando foi o primeiro a morrer, em 6 de
Novembro. No dia 9, à hora da saída dos teatros, os sinos re-
picaram chamando os fiéis à oração pela saúde do rei. As igrejas
290 Democracia, 6.7.61.
291 Ibidem, 27.7.61.
292 Ibidem, 5.8.61.
293 Ibidem, 17.8.61.
294 O Português, 10.9.61.

320
A republicanização da monarquia (1858-62)

encheram-se, e uma multidão acorreu ao paço, invadindo «o ves-


tíbulo e as primeiras salas»25. Às sete horas da tarde do dia 11
de Novembro, D. Pedro V morria também de febre tifóide. Gri-
tou-se que o rei fora envenenado e que os ministros eram os
culpados. No funeral, no dia 16, toda a população se apresentou
vestida de negro. Por «imposição do povo», o cortejo fúnebre
deslocou-se a pé para o panteão real em S. Vicente de Fora?96.
À «autoridade» dos ministros, comentou 4 Revolução, «expirou
naquele momento»277. Apenas a urna seguiu num coche, e
mesmo isso muito contra a vontade do presidente da Sociedade
dos Artistas Lisbonenses, que tinha requerido ao governo que
fosse transportada «por todas as classes da sociedade»2?8.
A 22 de Dezembro soube-se que o infante D. João estava
gravemente enfermo, o que aos olhos do povo confirmava a
tese da culpabilidade dos ministros e dos grandes. A Associa-
ção Patriótica reuniu e redigiu uma longa «representação» diri-
gida a D. Luís, pedindo ao novo rei que protegesse a sua saúde
mudando-se para um palácio fora de Lisboa. Como o governo
proibisse «a grande reunião popular» marcada para a Praça do
Comércio, uma comissão da Patriótica dirigiu-se na manhã do
dia 25 à Câmara Municipal, rogando ao seu presidente que ser-
visse de portador dos votos populares junto do paço???. Uma
grande multidão de povo rompeu de «tropel» pela Câmara den-
tro, tendo um «cidadão» instado, «do modo mais descomedido
e sedicioso», que se aditasse à «representação» o «pedido de de-
missão do ministério»300, Outros cidadãos pediram ainda, se-
gundo o Comércio, «a de vários ou de todos os empregados do
paço»301, Parte do povo acompanhou os vereadores e o presiden-
te da Câmara até ao palácio das Necessidades, onde D. Fernando

295 História de Portugal de DP. Chagas, vol. xI1., p. 179.


296 Idem, posa
297 À Revolução de Setembro, 6.2.62.
298 Ibidem.
299 Publicada em A Revolução de Setembro, de 16.1.62.
300 «Relatório que o sr. governador civil dirigiu ao ministério do Reino,
àcerca dos acontecimentos tumultuários, que se deram nesta capital, nos dias 25
e 26 de Dezembro», O Português, 15.1.62.
301 Jornal do Comércio, suplemento ao n.º 2470 de 26.12.61.

321
Apologia da História Política

e D. Luís apareceram à janela e foram recebidos «com um cla-


mor imenso, estrondoso», logo seguido de «morras» aos «trai-
dores», aos «covardes» e aos «envenenadores»202, Outra parte
do povo encaminhou-se para a Praça do Comércio, onde du-
rante o dia prosseguiu a afluência de populares. A meio da tarde
invadiram «as escadas e algumas salas» da secretaria da Fazen-
da, obrigando os ministros que lá estavam a fugir por uma esca-
da das traseiras?03, Entretanto, em frente ao palácio real, «gente
da mais ínfima condição» continuou aos «vivas» e «morras» até
às seis horas da tarde, entretendo-se a «revistar as carruagens
dos camaristas e ajudantes de campo» do rei304. Depois dividiu-
-se «em magotes» e foi percorrer «as praças e ruas da cidade
baixa». Ao cair da noite a capital mergulhara na total anarquia.
A «plebe amotinada» desatou a atacar «certas casas e pessoas».
«Homens munidos de archotes» e «armados de paus, achas de
lenha e pedaços de paus» soltavam «morras contra o exmo. mar-
quês de Loulé, Ávila, condes da Ponte e de Thomar, Mártens
Ferrão e Casal Ribeiro»205. Segundo impressos distribuídos pela
cidade e nos quartéis, eram estes os autores morais dos crimes
que tinham vitimado a família real306. No Largo de S. Nicolau
os populares «começaram a tocar a rebate»207. Seguindo pela
Calçada de Sant'Ana, dirigiram-se para o Largo do Tourel e
«foram atacar a casa do exmo. Presidente do Conselho de Mi-
nistros, dando-lhe morras». O ataque falhou à primeira. «Refor-
çados em número, voltaram segunda vez em grande alarido e
algazarra, com homens munidos de archotes, paus e picare-
tas, na resolução de o fazerem violentamente.» No Campo de
Sant'Ana, sempre aos morras ao marquês de Loulé, «fizeram
suspender o espectáculo do circo de Cinizelli»308.
Outros grupos, «aproximando-se da casa do conde da Ponte
à Boa-Morte, quebraram os vidros das janelas do seu palácio,
302 Ibidem.
305 Thidem.
304 Relatório do governador civil, cit.
305 Idem.
306 História de Portugal de Pinheiro Chagas, vol. x11, pp. 189-190.
307 Relatório do governador civil, cit.
308 Idem.

322
A republicanização da monarquia (1858-62)

ao qual pretenderam lançar fogo, e espancaram com pancadas


e ferimentos o mesmo conde» quando este procurou recolher-
-se em casa. Na Calçada da Estrela, «quebraram mais de duzen-
tos vidros da casa de habitação do exmo. conde de Tomar, no
meio de insultos e morras a este», e fizeram o mesmo aos do
palácio do marquês de Valada30?. Em Belém, outros grupos
ainda reuniram-se defronte do quartel de Lanceiros 2, «convi-
dando o regimento a sair e a pôr-se à sua frente, isto com gran-
des vozearias acompanhadas de morras». Dirigiram-se depois
para o palácio real, forçando o marquês de Ficalho a autorizar
que três deles fossem ver o infante D. João, a fim de verifica-
rem com olhos populares o estado de saúde de «Sua Alteza»10,
Só pela meia-noite o sossego ficou restabelecido, depois
que o governador civil mandou «carregar e dispersar» os popu-
lares por duas companhias de cavalaria e infantaria da munici-
pal. Segundo o governador civil pudera averiguar, «Os grupos
eram, ao que parece, dirigidos por uns sete indivíduos decen-
temente vestidos». De resto, apenas tomaram parte nas «crimi-
nosas ocorrências» do dia 25 «pessoas das mais ínfimas classes
da sociedade»?!!. Quarenta e nove dessas pessoas foram presas
no dia seguinte212, Quinze eram serventes; seis eram sapateiros;
quatro disseram-se simplesmente trabalhadores; além destes,
havia dois aguadeiros, dois serralheiros, um oleiro, um torneiro,
um moço de fretes, um esteireiro, um canteiro, um carpinteiro,
um caixeiro, um marítimo, um ferreiro, um cauteleiro, um li-
nheiro, um serrador, um marceneiro, um chapeleiro, um bo-
lieiro, um catraeiro, um pedreiro; por fim, dois não tinham
«modo de vida». À proveniência géográfica desta gente merece
ser destacada. Apenas nove elementos eram originários de Lis-
boa. Todos os restantes, incluindo todos os serventes, eram

309 Relatório do governador civil, cit.


310 Idem.
311 Idem.
312 «Relação nominal dos indivíduos que foram presos, autuados e relaxa-
dos ao poder judicial em virtude das ocorrências criminosas dos dias 25 e 26 de
Dezembro último», Governo Civil de Lisboa, 20.1.62, Diário de Lisboa, 21.1.62.

323
Apologia da História Política

imigrantes oriundos principalmente do Minho e da Galiza.


Admitindo que a amostra é representativa das «mais ínfimas
classes da sociedade» que tomaram parte nos tumultos, deve-
mos concluir que à modéstia das profissões se acrescentava o
desenraizamento social do imigrante. E quem dirigia os tumul-
tos? Um «proprietário», dois «escritores públicos», um «livreiro»
e um «professor primário»2!2, Não fosse o carácter aparente-
mente episódico e superficial desta colaboração, bem como o
reduzido número e a marginalidade dos populares efectiva-
mente envolvidos, e estaria aqui esboçada a aliança revolucio-
nária típica da primeira metade do século XIX europeu.
No dia 26, o povo preparou-se para reeditar as cenas da
véspera. Mas assim que algum dele, pelas quatro horas da tarde,
se «começou a juntar na Praça do Comércio»3!4, o governo usou
da repressão que inexplicavelmente não empregara na véspera
a tempo e horas. Segundo O Português, os «díscolos» foram
justamente castigados?!5. Segundo o Comércio, o governo ex-
cedeu-se: a repressão que, no dia 25, teria sido «necessária», foi,
quando aplicada no dia 26, «criminosa»216. Nesta divergente
apreciação residia a «linha divisória» entre os dois grupos. Distri-
buíram-se «pranchadas» e prenderam-se pessoas a torto e a direi-
to, «soltando as de gravata lavada e conservando em custódia
a gente mal trajada ou da plebe»217. Por ordem do marquês de
Loulé, o governador civil mandou «recolher à cadeia civil desta
cidade» os membros da «comissão peticionária da denominada
associação patriótica»!8. O relatório chegava ao fim sem escla-
recer os motivos misteriosos pelos quais o governo se vira ini-
bido de atalhar no seu início os tumultos que, deixados à solta,
ganharam depois proporções incontroláveis. Mas permitia

313 Diário de Lisboa, 21.1.62. Eram todos membros da «comissão peticio-


nária» da Sociedade Patriótica: António Gonçalves Gneco, José Marques dos San-
tos, José F. Pinto Neves e A. César Vasconcelos Jr., João José Maria Jordão.
314 Ibidem.
315 0 Português, 27.12.61.
316 Jornal do Comércio, 31.12.61.
317 Jornal do Comércio, 28.12.61.
318 Relatório do governador civil, cit. Ver nota 313 supra.

324
A republicanização da monarquia (1858-62)

concluir uma coisa e deixava perceber outra: que durante o


primeiro dia o governo não esteve seguro de ser obedecido pela
força armada; e que no início transigira o suficiente para enco-
rajar os insurrectos. Com efeito, o relatório oficial dos acon-
tecimentos relativo ao dia 25 não mencionava a requisição de
tropas e referia, pelo contrário, a «ordem» do governo para dis-
persar o povo «sem o emprego de medidas repressivas». O facto
não escapou ao 4 Revolução: «No seu estouvamento, [o sr. Ávila]
disse que se no primeiro dia o governo quisesse usar de força,
podia não ser obedecido.»2!º Por outro lado, o administrador
do bairro do Rossio participara oficialmente na reunião da Pa-
triótica do dia 24, ali comunicando que o governo proibia a
reunião popular na Praça do Comércio mas que autorizava a
entrega da «representação» nos paços do concelho. 4 Revolu-
ção resumiu a moral da história em poucas palavras: «Um mi-
nistério que é apupado pelo povo, que foge dele, que não é
obedecido pela tropa, qual é a sua autoridade?»?20

319 4 Revolução de Setembro, 25.1.62.


320 Ibidem.

325
O rescaldo dos tumultos

Não era a primeira vez, como sublinhava 4 Revolução,


que o governo histórico entregava a capital a uma «anarquia
completa»32!. Que lição havia a extrair destes repetidos acon-
tecimentos? Segundo 4 Revolução, que o governo era inteira-
mente falho de força moral para reprimir os tumultos que ele
próprio instigava com o fim de obrigar a oposição parlamen-
tar a apoiá-lo no poder?22, Segundo o Comércio, a lição era
outra: O governo estava «colhendo os amargosos frutos da sua
inércia na questão religiosa». A «exaltação popular» era «movi-
da por essa inércia»223. Ao contrário do Comércio, a lição tira-
da por O Português não incriminava directamente o governo,
mas sugeria que sem liquidar aquela questão a «crise» não se
resolveria e haveria pelo contrário de continuar. Depois de quan-
to se passara, dizia em tom de censura, ainda se via por aí «a
reacção religiosa a conspirar abertamente»324.
No Parlamento, e como já acontecera no 10 de Março,
Loulé começou por pedir a cooperação de toda a Câmara para
sustentar a ordem pública. Assim que ela se restabeleceu, foi exi-
gido um relatório sobre os acontecimentos??. A 21 de Janeiro

321 4 Revolução de Setembro, 5.2.62.


322 Ibidem.
323 Jornal do Comércio, suplemento ao n.º 2470, cit.
324 0 Português, 11.1.62.
325 Trata-se do citado relatório do governador civil, que o governo adop-
tou, tendo sido enviado por Loulé ao presidente da Câmara de Deputados com
um ofício de 13.1.62. Tudo publicado em O Português de 15.1.62.
Nos Pares, a discussão do parecer sobre o relatório do governo iniciou-se
a 2 de Fevereiro e terminou a 15, com um voto desfavorável ao governo. Na Câ-
mara de Deputados, o parecer foi apresentado em 21 de Janeiro e a discussão
terminou em 31 de Janeiro com voto favorável ao governo.

326
A republicanização da monarquia (1858-62)

de 62, uma comissão especial, de maioria governamental, apre-


sentou um parecer sobre esse relatório em que absolvia o
ministério. Durante dias e dias a fio trocaram-se acusações, es-
quadrinharam-se factos, discutiram-se intenções. «Mas a ques-
tão dos tumultos é a verdadeira questão?», interrogou Mendes
Leal326, Não era, é claro. A verdadeira questão era a «reacção»
que, surgida em toda a Europa, obrigava a «recompor os cam-
pos», a «extremar as falanges» e a «levantar novas bandeiras e
novas insígnias»327. A 27 de Janeiro, José Estêvão pronunciou
mais um dos seus memoráveis discursos, que terminava com o
anúncio de uma visão sinistra: «Vejo lobos no redil e milhafres
sobre o pombal»: a citadela liberal estava assediada pela reacção:
«unamo-nos todos» contra ela?28. Como de costume, queria-
-se empurrar os liberais para o campo reaccionário. Mártens Fer-
rão recusou um tal «epíteto»: «acabe-se com a reacção [...] mas
não especulem com ela». Porque não a punia o governo? O que
tinha feito para acabar com ela? «Apresentou um projecto para
estabelecer as irmãs de caridade! Expediu umas portarias que não
quis executar. Acabe-se com essa especulação vergonhosa!»32?
A votação na Câmara de Deputados foi favorável ao go-
verno, que obteve uma maioria de 86/43330, Ainda desta vez,
a «oposição lázaro-cabralista-saldanho-miguelista-regenerado-
ra» não conseguiu empolgar o poder?3!; em vez disso e feliz-
mente, foi «fulminada pelo voto da câmara popular»232. Mas
não assim na Câmara dos Pares, cuja comissão, à vista do relató-
rio oficial, se viu, «com pesar», «obrigada a censurar o governo».
Este não usara dos meios adequados a reprimir com eficácia
os tumultos, cujo «incremento», forçoso era concluir, se ficara
a dever à sua «falta de acção e energia»?33. Na sessão de 15 de

326 Sessão de 29.1.62, Diário de Lisboa, 31.1.62.


327 Idem, ibidem.
328 Sessão de 27.1.62, Diário de Lisboa, 29.1.62.
329 Sessão de 29.1.62, Diário de Lisboa, 31.1.62.
330 Sessão de 31.1.62, Diário de Lisboa, 3.2.62.
331 Expressão abrangente usada por O Português em 19.1.62.
332 Ibidem, 1.2.62.
333 Parecer com data de 3.2.62, publicado em 4 Revolução de Setembro,
de 5.2.62.

527
Apologia da História Política

Fevereiro, o voto de censura da maioria da comissão apenas foi


rejeitado por dois votos, apesar de três ministros (Loulé, Ávila.
e Sá da Bandeira) terem votado contra e de dois pares se terem
abstido334. Depois deste desaire, ocorrido numa Câmara que
já tinha sido reforçada com uma «fornada de [15] parciais»,
a crise ministerial era inevitável. E pelo modo como foi resolvi-
da, abriu caminho a novos problemas.
A maioria que salvara o governo na Câmara de Deputa-
dos estava dividida, segundo 4 Revolução, em «partido novo»
e «partido velho»335. Não era esta a única, mas talvez fosse a
mais recente divisão que a sulcava. Os arautos mais salientes
do «partido novo» eram José Estêvão, Lobo d' Ávila e Mendes
Leal. Deste último dizia 4 Revolução gentilmente que tinha
nascido «das fezes do sr. conde de Tomar»336. Além da Associa-
ção Patriótica e dos jornais em que os três putativos chefes do
«partido novo» se exprimiam, mobilizavam as suas ramificações
maçónicas em favor da ideia. À ideia, que não era muito origi-
nal e já vinha, como vimos, de 58, partia da verificação de que
uma «linha virtual» dividia a Europa entre a «liberdade» e a
«reacção». Mendes Leal queria adaptar o xadrez partidário do-
méstico a esta realidade europeia, estabelecendo «uma linha
divisória ostensiva e real» que separasse o «partido liberal» em
«dois campos»337. Tornava-se necessária uma «segregação po-
lítica» que, afastando o trigo do joio, acabasse com as «anfibio-
logias»338. De um lado ficariam, distintamente arrumados, os
falsos liberais aliados à reacção; do outro, os que viam na resolu-
ção da questão religiosa o primeiríssimo requisito do progresso
moral do País, e que viam neste a condição de todos os outros,
incluindo o material. À receita do «partido novo» invertia por-
tanto a ordem de prioridades estabelecida pela Regeneração. A li-
quidação da questão religiosa, aliás, fora «uma das obrigações

334 História de Portugal de P. Chagas, vol. xII, p. 196; e 4 Revolução de


Setembro, 16.2.62.
335 4 Revolução de Setembro, 16.2.62.
336 Ibidem, 20.2.62. Alusão ao pasado cabralista de Mendes Leal.
337 À Revolução de Setembro, 2.2.62.
338 Jornal do Comércio, 1.2.62.

328
A republicanização da monarquia (1858-62)

solenes» contraídas pelos ministros aquando das últimas elei-


ções. «Por que esperam? Porque estão de braços cruzados?», per-
guntava o Comércio?3?. Precisariam de mais provas de que a
reacção existe e actua? Mas elas «superabundam»340, e toda a
gente conhece o seu programa. À reacção «pretende claramente
inutilizar [...] os efeitos da revolução, cortar as asas ou mode-
rar o voo à democracia». E quem são e «onde estão os reaccio-
nários», também só não via quem não queria. Não eram apenas
os legitimistas: «têm seguidores até em muitos homens liberais»
que, por ambição, fraqueza ou mal interpretada tolerância,
«prestam instrumentos poderosos às ideias antiliberais»4!. Não
dissera o conde de Tomar na Câmara dos Pares que a oposi-
ção, «toda» a oposição, regeneradora e católica, «se achava unida
e acorde» na censura ao governo? Perante este «pacto de aliança»,
oficialmente proclamado, «a força das coisas tende naturalmen-
te a tornar cada dia mais evidente a linha divisória que inevita-
velmente há-de separar os arraiais»242, Com a votação do dia 15
na Câmara dos Pares, a recomposição do governo tornara-se
uma necessidade inadiável. Não uma recomposição normal
para tempos normais. Era preciso uma recomposição «verdadei-
ramente vigorosa», que fizesse entrar no governo sangue novo,
homens novos, enérgicos e decididos, «a fim de iniciar uma
nova época de firmeza, de movimento e de acção»3*3. Era preci-
so que entrasse o «partido novo». Quando entrou, José Estêvão
ficou de fora. Afinal, entrou a velha «unha negra».
Havia uma grande lição a tirar dos últimos acontecimen-
tos. Não dos lamentáveis tumultos do Natal, que eram apenas
um sintoma de males maiores e uma consequência da errada
direcção que haviam tomado os negócios públicos em Portu-
gal. Durante alguns anos abraçara-se a «heresia» de que era pos-
sível irradicar a política da vida social e reduzir o governo a
uma questão de administração económica. Mas a política «surge

339 Jornal do Comércio, 19.1.62.


340 Ibidem, 1.2.62.
341 Ibidem, 6.2.62.
342 Ibidem, 11.2.62.
343 Ibidem, 18.2.62.

329
Apologia da História Política

perenemente», lembrando aos homens que a «controvérsia dos


interesses morais e físicos de um povo» não é coisa que se decida
por um parecer técnico, porque depende de «diferentes escolas»
e suscita «contrárias opiniões». Estas existem «no país» e resistem
ao silêncio que os políticos lhes querem impor. Expulsam a políti-
ca do «parlamento», e ela reaparece na «imprensa»; suprimem-
-na na imprensa, e ela irrompe na «praça pública» a reivindicar
«os seus direitos desatendidos». Era o que vinha acontecendo
desde 58: sucessivas manifestações da política revoltada contra
a mordaça com que a queriam sufocar. Ela aí estava, ruidosa e
ameaçadora, mostrando as «duas grandes divisões de opinião»
que se defrontavam no País. «Uma quer a revolução com todas
as suas consequências lógicas», «a outra quer a conservação»;
«uma professa a democracia», «a outra inculca nos seus diferen-
tes matizes a reacção». Impunha-se portanto constituir, com
os «elementos naturais» daquelas divisões, «os dois partidos»
que lhes correspondiam34. Para qual deles cairia Loulé?
Na realidade, a escolha de Loulé não era tão fácil como
a simples dicotomia traçada por Mendes Leal faria supor. Den-
tro da liberdade havia vários «partidos» que não se deixavam
reunir sob a tutela do «partido novo». Um deles, a «unha bran-
ca» de Loulé, espécie de Janos encravado entre a liberdade e a
democracia, vivia dos pergaminhos do marquês, da figura em-
blemática de Sá da Bandeira (ministro da Guerra), dos fiéis
de Alves Martins e da aliança com o grupo dos avilistas, que
eram «a mão oculta [que] encravou as rodas do carro» do mar-
quês245. Para tirar o ferro e fazer desandar o carro, era preciso
substituir esta aliança na verdade espúria, e não se via maneira
de o fazer sem ferir alguma das parcialidades rivais. Havia «am-
bições não satisfeitas» e «aspirações justas» entre as quais era pre-
ciso escolher24º. Estavam neste caso as de Alves Martins, bispo
de Viseu, que tinha a simpatia de O Português e reunia à sua
volta um pequeno séquito cuja fidelidade ao governo mereceria

344 Jornal do Comércio, 31.1.62.


345 Ibidem, 19.1.62.
346 4 Revolução de Setembro, 20.2.62.

330
A republicanização da monarquia (1858-62)

ser agora compensada com uma pasta. E o mesmo reclamava


a «unha negra» chefiada por Joaquim Tomás Lobo d' Ávila, que
vivera os acontecimentos de 48 em Paris e fizera entretanto uma
ascensão meteórica na maçonaria e na política. Segundo A Re-
volução, os dois grupos — O Português e o Comércio — digla-
diavam-se «mortalmente»347. É certo que ambos militavam sob
a bandeira da «democracia» e estavam certos de que por ela se
operaria, no «futuro», a «regeneração social de todo o univer-
so»348, Mas já vimos que também a estes separava uma linha
«virtual» que se tornara «ostensiva» no dia 26 de Dezembro.
É difícil saber exactamente o que terá pesado na decisão de
Loulé ao escolher a aliança com a «unha negra». Para além da
mais que certa influência das lojas, convirá notar que o grupo
de Lobo d'Ávila, pelas ligações de Mendes Leal e José Estêvão
à Associação Patriótica, devia em princípio oferecer maior capa-
cidade de mobilizar, e simultaneamente conter, o movimento
popular. Dever-se-ia concluir que «foram os amotinadores que
venceram?», interrogava 4 Revolução349.
Loulé demitiu-se a 16 de Fevereiro no meio de rumores
de traição e até mesmo de «emboscada»350. O presidente do
governo demissionário aceitara, nas costas de Ávila, uma parce-
ria com Sá da Bandeira para a formação de um novo ministério
de que aquele ficaria excluído?51. Igual destino teve Alves Mar-
tins, que chegou a ser «virtualmente» ministro durante «dia e
meio»352, Referindo-se a Lobo d' Ávila e Mendes Leal, O Por-
tuguês avisou logo que os «cavalheiros» falados para o governo
lhe «desagrada[va]m»252, Quando os nomes foram dados como
certos, escreveu sem rodeios que a «crise ministerial», tendo sido
resolvida «contra todas as indicações liberais e contra todas as
conveniências e interesses do país», deixava em aberto a «crise

347 À Revolução de Setembro, 21.2.62.


348 O Português, 17.1.62.
349 4 Revolução de Setembro, 22.2.62.
350 Ibidem, 4.3.62.
351 Ihidem, 20.2.62.
352 Ibidem, 28.2.62.
353 Ibidem, 21.2.62.

291
Apologia da História Política

política»354, e que por isso se limitaria a uma atitude expec-


tante355, Os acontecimentos deram-lhe imediatamente razão.
«Acabou uma crise e começou outra», comentou A Revolução
35º.
«Uma parte da maioria» fez saber a Loulé que achava a nova
composiçao ministerial «achavascada»2>7. Homens como Braan-
camp e Sá da Bandeira seriam sempre venerados pelo «partido
liberal», mas nos colegas que o marquês escolhera para a Fazen-
da e Marinha, Lobo d'Ávila e Mendes Leal, não se via mérito
que justificasse a sua eleição258. Loulé tentou serenar as hostes
reunindo-as na secretaria do Reino, onde Lobo d'Ávila «pro-
meteu por parte do governo a pronta resolução da questão das
irmãs de caridade».
A 21 de Fevereiro de 62 formou-se o governo que, sendo
o mais histórico de sempre, mais dividiu o próprio partido
histórico360, Triunfara o princípio do «exclusivismo», que se
supunha enterrado desde 1851, contra o das «coalisões per-
manentes» de que a aliança Loulé-Ávila era uma incarnação
paradigmática. Alves Martins era um defensor deste tipo de
coalisões, e por isso a «unha negra» vetou-lhe a entrada para
o governo. Nestas circunstâncias, deixadas de fora algumas sen-
sibilidades históricas, o novo ministério nascia condenado a
fracassar na resolução da questão em que se jogava, senão a
sua existência imediata, seguramente o prestígio que o pode-
ria impor ao respeito das facções despeitadas. A 2 de Março,
O Português informava que tinham chegado de França as irmãs
Marie, Josephine, Vincent e Louise, acompanhadas do con-
fessor Varet. É certo que estava agora no governo o «capitão

354 4 Revolução de Setembro, 22.2.62.


355 Ibidem, 23.2.62.
356 Thidem, 22.2.62.
357 Ibidem, 21.1.62.
358 O Português, 26.2.62.
359 0 Português, 23.2.62.
360 Presidência, marquês de Loulé; Reino, Anselmo José Braancamp; Fazen-
da, Joaquim Thomás Lobo d'Ávila; Guerra, Sá da Bandeira; Marinha, José Mendes
Leal; Estrangeiros, marquês de Loulé.
361 4 Revolução de Setembro, 4, 3, 62.

35%
A republicanização da monarquia (1858-62)

Mendes, o martelo do lazarismo»36!, mas O Português não se


mostrou inclinado a passar-lhe um cheque em branco:

«Os novos ministros prometeram no Parlamento que ha-


viam de resolver a questão religiosa e combater com energia
a reacção. [...] E o ministério bem merecerá do país, e do
partido popular, se resolver convenientemente a questão
religiosa. Senão, não.» 362

362 O Português, 6.3.62.

333
XI

«Querem a liberdade livre para a reacção»

O ministério tinha pouco tempo para mostrar o que valia.


«Parar é morrer», dizia O Português algo dramaticamente, exi-
gindo por isso «medidas rasgadas que arregimentem bem de-
finidamente liberais e reaccionários»63. No dia 11 de Março
apareceram as medidas que traçavam uma «linha ostensiva»
entre os dois campos em que se separava o «partido constitu-
cional». Era a proposta de lei de 11 de Março de 62, destina-
da a liquidar a «reacção religiosa» e, em simultâneo, a resolver
a questão do ensino, para cuja reorganização o governo pedia
uma autorização legislativa. No relatório que a precedia36*, assi-
nado por Braancamp, reconhecia-se que

«Fora preciso fechar de propósito os olhos sobre o que está


acontecendo em toda a parte para não ver as proporções,
na realidade vastas, com que elas [as congregações] se vão
desenvolvendo, e o perigo iminente que resulta dos meios
empregados para confirmarem por novas conquistas o im-
pério a que aspiram sobre as consciências, sobre a educa-
ção e sobre o ensino.»

Havia mais: «A tranquilidade das famílias», a necessidade


de cultivar boas relações entre a Igreja e o Estado, impunham
aos governos o duplo dever de actuar «por um modo claro e
positivo, calando com o seu veto os abusos», e de sustentar «com

363 O Português, 11.3.62.


364 Diário de Lisboa, 13.3.62. Relatório e proposta de lei também tran-
scritos em O Português, de 14.3.62.

334
A republicanização da monarquia (1858-62)

firmeza os direitos e a legítima influência do Estado». «Não o


fazer»; prosseguia Braancamp,

«seria expor o futuro a lutas mais ou menos próximas, en-


tregando a educação da infância, o ensino das gerações novas
e as consciências tímidas à tutela de associações que o seu
instituto separa da sociedade civil e dos interesses actuais.»

Do que se tratava, explicava o relatório, era de defender


as três frentes em que a reacção atacava a liberdade. Esses ata-
ques eram visíveis nas

«tentativas mais ou menos directas para restaurar, envoltas


em novos hábitos, alguma ou algumas das corporações extin-
tas em 1834»; nos «planos preserverantes para atrair o cora-
ção das classes mais acessíveis à sedução, apoderando-se do
espírito e da inteligência da infância e da juventude, isto
é, do futuro»; e, «finalmente», «no pensamento ainda mais
profundo de converter em estímulo e protecção de peculiares
intuitos, instituições piedosas consagradas à beneficência».

A finalizar, Braancamp afirmava que era intenção do governo


regulamentar a educação e o ensino, tanto oficial como particular,
«retirando-se à influência das congregações toda a intervenção»,
pelo que solicitava autorização da Câmara para «reorganizar e
regular [...] as casas de educação e de ensino para a puerícia».
Era na verdade uma linguagem nova e vigorosa na qual o
radicalismo devia poder reconhecer o eco fiel dos seus anseios.
O Português, no entanto, declarando embora que à vista da pro-
posta daria apoio franco ao governo, acrescentou logo que «na
execução é que está toda a questão»26. Mas a maioria parla-
mentar mostrou-se menos cordata e mais difícil de satisfazer.
Na sequência da constituição do gabinete de 21 de Fevereiro
desenhara-se no Parlamento, composta pelos fiéis de Ávila e
Alves Martins, uma formação partidária de um tipo novo,

365 O Português, 12.3.62.

335
Apologia da História Política

designada por «dissidência da maioria». Os seus membros não


eram da oposição, eram da maioria, mas «dissidiam» desta e,
entretanto, mantinham-se «expectantes»266. No dia em que se
elegeu a comissão especial para dar parecer acerca da proposta
do governo sobre o ensino e as congregações, os «dissidentes»
resolveram desforrar-se da «doblez» do presidente do conselho,
o que deu em resultado sair aquela comissão com um único
deputado governamental, Vicente Ferrer. Outro dos membros
era Alves Martins, um «dissidente», e os restantes eram todos
regeneradores: Casal Ribeiro, António de Serpa Pimentel, Fon-
tes Pereira de Melo, José Maria de Abreu, Nogueira Soares36”,
ou seja, segundo O Português, «cinco reaccionários declara-
dos»368. Perante este desaire, o governo reconheceu a necessida-
de de um «armistício parlamentar» para consertar as relações
com os «dissidentes»369. «Contra o voto unânime do Conselho
de Estado»370, as cortes foram adiadas para 22 de Abril.
A 1 de Maio, o Diário de Lisboa publicava o parecer da
maioria da comissão sobre a proposta de lei de 11 de Março?71,
e igualmente o parecer da minoria, unicamente assinado por
Vicente Ferrer. Raramente, como no debate a que os dois parece-
res deram lugar, as divergências antagónicas entre o liberalismo

366 Alves Martins, sessão da CD de 17.3.62, Diário de Lisboa, 19.3.62.


367 Sessão da CD de 14.3.62, Diário de Lisboa, 17.3.62.
368 0 Português, 15.3.62.
369 4 Revolução de Setembro, 19.3.62.
370 Dec. de 17.3.62. À Revolução de Setembro, 18.3.62.
371 O essencial da proposta de lei de 11 de Março residia no seguinte:
Art.1.º — Proíbe a existência de congregações de ambos os sexos e qual-
quer número «introduzidas ou modificadas» depois de Agosto de 1833.
Art. 2.º — Nenhum estabelecimento de instrução ou beneficência, público
ou privado, pode recrutar elementos de congregações, nacionais ou estrangeiros,
sem que para isso seja autorizado por uma lei especial.
Art. 3.º — O mesmo se aplica a «serviços hospitaleiros» nos «estabelecimentos
pios dependentes do estado, dos municípios, das juntas de paróquia e de quaisquer
corporações de mão morta».
Art. 4.º — «O governo proverá imediatamente à organização do ensino e edu-
cação da infância nos estabelecimentos de beneficência tanto públicos como par-
siculares, regulando tudo o que respeitar à sua administração, regimen e direcção moral»
A discussão dos dois pareceres foi dada para a ordem do dia de 5.5.62.

336
A republicanização da monarquia (1858-62)

e o radicalismo se acharam tão clara e formalmente expressas.


No centro desse debate estava a noção mesma de liberdade, con-
siderada debaixo do ponto de vista filosófico e político. Do ponto
de vista filosófico, o que dividia os radicais dos liberais era a
resposta à pergunta de saber se o Estado podia, legitimamente,
arbitrar conflitos de opinião suscitados na sociedade civil; ou,
por outras palavras, se o Estado tinha o direito de ditar os fins
da existência social e de prescrever os valores éticos pelos quais
esta se devia pautar. Do ponto de vista político, o que na decor-
rência da resposta a esta pergunta os dividia, era a questão de
saber se a liberdade devia ser livre, ou pelo contrário racionada
em função de como e para que fins fosse usada pela sociedade.
Segundo a doutrina liberal, uma vez que a sociedade se encontra
«dividida em matéria de doutrinas», deve o Estado, que tem de
«servir a todos», declarar-se «lealmente incompetente para conde-
nar as doutrinas de uns e fazer prevalecer as doutrinas de outros»;
em consequência, compete-lhe somente assegurar «a protecção
da liberdade»372 dentro dos limites das leis existentes. Segundo
a doutrina radical, o caso é outro. Todos têm o direito de pensar
livremente — «contanto que» tendam «para o único fim social —
que é o bem de todos»372, interpretado pelo Estado enquanto
«representante da sociedade»374. A origem e fundamento desta
omnisciência do Estado que garantiria a fiel representação dos
interesses e fins sociais residia numa dogmática sobre a natureza,
a vocação e o destino da humanidade. Esta realizaria a sua essên-
cia e destino propriamente humanos no decurso de um processo
histórico através do qual a Razão se libertava progressivamente
do emaranhado de superstições que envolviam e ludibriavam o
género humano na sua infância. À medida que a Razão, na sua
imparável caminhada triunfal, arrasava na passagem as falsas cren-
ças transmitidas pela tradição, os homens iam desvendando a sua
essencial e universal igualdade, e esta descoberta indicava-lhes

372 À Revolução de Setembro, 16.3.62.


373 O Português, 30.3.62 (série de artigos: «O Progresso e a Reacção»).
374 José Luciano de Castro, sessão de 21.5.62, Diário de Lisboa, 27.5.62.
José Luciano não perfilhava esta posição, mas estava precisamente a interpretar
a dos defensores da proposta do governo.

oo á
Apologia da História Política

que a realização da fraternidade era o fim superior e razão de


ser da sociedade. «A Fraternidade é pois o verdadeiro dogma»,
afirmava um ideólogo de O Português. Ela é «o dogma sacros-
santo de todo o facto que se revele em associação». E a «liberda-
de», essa era um simples «meio» que servia para se organizar a
sociedade de molde a libertar a aptidão inata de cada um para
amar no seu semelhante uma incarnação singular da Humani-
dade. A liberdade era um instrumento da fraternidade??. Por
conseguinte, devia ser dispensada em função do uso que dela
se fizesse. No caso da liberdade de ensino, por exemplo, era
notório que se queria, a benefício do «triunfo da reacção»376,
desviá-la das aplicações profícuas que devia ter. Como explica-
ria Mendes Leal no Parlamento, todos protestavam amar, prezar
e querer a liberdade, mas alguns «amam-na, prezam-na e querem-
-na de outro modo, e para outros fins»377.
A proposta de lei do governo, proibindo os estabeleci-
mentos de ensino particulares de empregarem membros de con-
gregações (art. 2.º); e arrogando-se o direito de regular «tudo
o que respeitar à sua administração, regimen e direcção morab
(art. 4.º), «ataca[va] brutalmente», no dizer dos liberais, «os di-
reitos da consciência» e, portanto, «os da liberdade»278. A maio-
ria da comissão rejeitou liminarmente a doutrina governamental,
justificando a liberdade de ensino com duas ordens de razões:
«A liberdade de ensino não é só um grande direito; é uma gran-
de necessidade social.»37? Era uma grande necessidade social
precisamente porque a liberdade requeria e supunha a integri-
dade moral dos cidadãos, e não se via que outro elemento, a não
ser a religião, podia fortalecer as consciências enraizando nelas
o conhecimento seguro do bem e do mal. A educação secular
ensinava a virtude cívica; a educação religiosa inculcava a moral,
que apenas a fé podia tornar imperativa. Havia quem dissesse
ou pensasse que a força persuasiva da razão bastava para indicar

375 0 Português, 25.3.62 («O Progresso e a Reacção», cit.).


376 0 Português, 21.3.62.
377 Sessão de 9.5.62, Diário de Lisboa, 12.5.62.
378 À Revolução de Setembro, 15.3.62.
379 Parecer datado de 24.4.62 e publicado em O Português, 29-30?.4.62.

338
A republicanização da monarquia (1858-62)

aos homens o caminho da rectidão. Funesto engano: «O racio-


nalismo é o desvario do orgulho humano» que precipita a huma-
nidade na «degradação da espécie». Por conseguinte, a maioria
da comissão defendia que o «princípio religioso» devia ter «na
educação do povo a larga parte que lhe compete»380.
Para o liberalismo, pretender o Estado regular tudo o que
respeitava aos estabelecimentos de ensino particulares, incluin-
do a sua direcção moral, e proibir neles o ensino religioso?81,
constituía uma prepotência intolerável. Aceitava-se, no ensino
público, a exclusão dos indivíduos pertencentes a congregações
religiosas estrangeiras, aliás proibidas pela lei geral. Mas no
ensino particular, o mais que se podia admitir era a exigência
das habilitações legalmente previstas e a sujeição desses estabe-
lecimentos à «inspecção» do Estado. E quanto ao ensino domés-
tico, aqui a liberdade devia ser libérrima, ilimitada. Outra coisa
seria ofender «os direitos individuais, os foros da consciência,
as ideias da propriedade, os princípios fundamentais em que
assenta a ordem pública». Direitos, foros, ideias e princípios
que o governo igualmente ofendia no art. 3.º da proposta, em
que interditava os membros de corporações religiosas de presta-
rem «serviços hospitaleiros» nos «estabelecimentos pios depen-
dentes do estado, dos municípios, das juntas de paróquia e de
quaisquer corporações de mão morta». Pretensão inadmissível,
dizia a comissão, que acabaria por matar toda a beneficência
particular. «A árvore da caridade é espontânea no nosso solo»,
e ao governo unicamente compete «proteger», «fiscalizar» e «pro-
mover o complemento e harmonia geral» de uma «obra» que
não pode ser bem cumprida por «mãos mercenárias».
Queria o governo «extremar os campos e discriminar posi-
ções»? Pois bem, dizia a maioria regeneradora da comissão, «de-
marcamos o nosso campo»:

380 O Português, cit.


381 Por «ensino religioso» entenda-se o ensino ministrado por membros
do clero secular ou regular desde que não sujeito, neste último caso, a superior
estrangeiro, o que, de qualquer modo, era uma espécie cuja existência a legisla-
ção vigente já proibia.

339
Apologia da História Política

«é o da verdadeira liberdade — liberdade sem ofensa dos di-


reitos de todos e dos direitos de cada um — liberdade ampla,
sincera e forte — liberdade para todos, para os que pensam
como nós, e para os que pensam de modo contrário ao
nosso; para os crentes na eficácia da nossa doutrina, e para
os que a desadoram, contanto apenas que a não ofendam.
[...] Queremos o estado independente, a igreja respeita-
da, a família reconhecida, liberdade com ordem, autoridade
com força, instrução com abundância, caridade sem estor-
vos, polícia sem exageração, repressão sem tirania»82.

Para Vicente Ferrer que, na linha do radicalismo, tinha da


liberdade um conceito eminentemente instrumental, as ques-
tões suscitadas pela proposta do governo tinham de ser analisa-
das, e decididas, à luz da história antiga e recente da «reacção»
e das maquinações dos seus agentes, a «oligarquia reaccioná-
ria»283, Essa história mostrava que a reacção «toma[va] cem
figuras diferentes», e o parecer de Ferrer começava consequente-
mente por passá-la em revista. Entre os seus pontos altos o lente
de Coimbra salientou o cisma de 34 a 39, a organização, ao
longo dos anos 40, de associações religiosas de membros lei-
gos?84, a criação de jornais «reaccionários», as campanhas feitas
a partir do «púlpito» contra «o sr. Alexandre Herculano» por
causa da batalha de Ourique, o convénio com Roma de 1848
e a concordata de 1857, o «cmpréstimo romano» aplicado «con-
tra a liberdade de Itália»285, a autorização pedida ao Papa para
desamortizar os bens das freiras?86, a recusa oposta por Roma
à nomeação do arcebispo português de Goa. Neste ponto, Vi-
cente Ferrer dizia ter «chegado à associação mais perigosa da
382 Parecer da maioria da comissão, cit.
383 Parecer da minoria da comissão, datado de 28.4.62, publicado em O Por-
tuguês, 28-29?. 4.62.
384 Alusão à Sociedade Católica Promotora da Moral Evangélica em toda
a Monarquia Portuguesa, cf. Reis Torgal, op. cit., p. 234.
385 Trata-se de um donativo em dinheiro a favor do Papa, pedido pelo nún-
cio aos fiéis sem a prévia autorização do governo. O caso foi depois regulariza-
do quando Mártens Ferrão assumiu a pasta dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça.
386 Ironicamente, essa autorização fora pedida por Loulé.

340
A republicanização da monarquia (1858-62)

oligarquia reaccionária [...). São as irmãs da caridade da ordem


de S. Vicente de Paulo». Até 1857 tinham vivido alheadas da
política e desprovidas da protecção «dos grandes da terra». Mas
depois que chegaram as francesas e as portuguesas se lhes uni-
ram, «Ninguém mais as viu como dantes, acudindo às casas dos
enfermos desvalidos», tendo então passado a empregar-se «prin-
cipalmente na educação e instrução da infância». Desde então,
desafiando asleis e o governo, tornaram-se nada menos do que
«um estado independente no estado», provando desassombra-
damente que «A reacção triunfa contra os poderes públicos».
Depois disto, quem não via a «reacção» arrojar-se «aos maiores
excessos»? Ferrer deixou entrever até onde ela não chegaria caso
a liberdade lhe entregasse a educação da infância:

«Entregai a instrução primária aos membros da oligarquia


reaccionária, e vereis como eles inclinam os espíritos ten-
ros da infância, e como lhes instilam princípios conformes
às doutrinas das suas ordens e institutos [a abnegação cabal
da própria vontade]. [...] Em lugar de ensinar aos infantes
[...] as virtudes rígidas do cidadão, a independência do
carácter, o armor ardente da pátria, ensinar-lhes-ão a subser-
viência e o fanatismo religioso, a obediência cega que votam
a esse rei universal, chamado geral dos lazaristas. [...] em
lugar de uma monarquia constitucional, tereis uma teo-
cracia absoluta e despótica, como a do geral da ordem de
S. Vicente de Paulo.»

Depois desta negra profecia, Ferrer deu curso oficial a um


ponto de doutrina já estabelecido nos meios radicais: «A liber-
dade de ensino só podem alardeá-la os povos onde ao mesmo
tempo existe a liberdade de cultos.» Enquanto não houver liber-
dade de cultos, o governo proíbe o ensino religioso porque,
muito logicamente, tanto o «julga perigoso» nos estabelecimen-
tos públicos como nos particulares. Quanto ao ensino domés-
tico, nem mesmo a família devia ou podia «ficar fora do alcance
das leis». Não podem «os pais» «prejudicar a sociedade civil»
por falta de educação ou má educação dos filhos? Podem e,

341
Apologia da História Política

por isso, compete às leis «punir as contravenções e crimes desta


natureza». De resto, continuava Ferrer a discorrer, a «moralida-
de» nem sempre era observada nos lares domésticos. Pelo con-
trário, em muitos casos aí reinavam «a impiedade, o roubo e a
contravenção a todas as leis divinas e humanas». Mormente em
Portugal, «as circunstâncias do nosso povo» desaconselhavam
fortemente uma «liberdade ilimitada no ensino doméstico». Deu
depois um exemplo dos perigos que correria uma sociedade
exposta ao irrefreado arbítrio da autoridade familiar:

«Ora suponde que este direito [à moralidade] não é guar-


dado no ensino doméstico? Suponde que nele se profes-
sam as maiores imoralidades, a impiedade, o roubo e a
contravenção a todas as leis divinas e humanas; não tremeis
de converter o lar doméstico em valhacouto de crimino-
sos?[...] Suponde o lar doméstico uma cova de ciganos,
aonde os pais ensinam aos filhos a arte curiosa de roubar.
Figurai o lar doméstico convertido em lupanar, onde as
mães, em vez de modéstia, ensinam as filhas a vender a
sua pureza a preço de oiro. [...] sacrificareis estes inocentes
à liberdade sem restrições, que concedeis aos pais?»

Aqueles em cujos lábios adivinhava uma resposta afirma-


tiva, Ferrer respondia com ironia: «A liberdade seduz»; ele bem
compreendia: a liberdade «deleita os nossos ouvidos», é como
«o canto das sereias». E então, estando em causa valores mais
altos, «importa ensurdecer para os seus sons». Era pequeno sa-
crifício à vista do fim que presidia à lei proposta pelo governo,
que era o de liquidar a reacção religiosa atacando-a na raiz.
Estava demonstrado que nem as conveniências sociais nem
o interesse político militavam a favor da liberdade de ensino.
Finalmente, também a boa «lógica» a não recomendava, sobre-
tudo quando pedida por aqueles mesmos «que não admitem
senão um culto, uma religião de Estado»:

«Se é só uma a religião do estado, se nenhuma das outras


é reconhecida; se só a religião do estado é subsidiada, e só

342
A republicanização da monarquia (1858-62)

os que a professam têm liberdade de ensinar, essa liberda-


de é monopólio para eles, é escravidão para os que profes-
sam um credo diferente.»

E o que era isto senão «absolutismo puro e simples», senão


a «subversão da lei fundamental do estado» e, muito mais e
mais grave do que isso, «a subversão dos santos princípios da
lei natural e da razão humana»? Os meandros pelos quais se
deduzia esta última ilação não eram evidentes. Ferrer desven-
dou esses meandros e, com isso, canonizou a justificação «lógica»
em que se fundamentaria, daqui em diante, a explícita exigên-
cia de revogação do art. 6.º da Carta Constitucional. A falta
de liberdade de cultos constituía afinal, conforme agora se veri-
ficava, um atentado contra a liberdade de consciência e, portan-
to, contra a «lei natural». Não que impedisse cada um de no
seu foro interior escolher livremente em que Deus acreditar.
Mas privava o judeu, o muçulmano, o protestante de mani-
festar publicamente a sua crença, de conquistar adeptos para
ela, de plenamente a celebrar através de cerimónias litúrgicas
e, sobre isso, de «combater os dogmas do culto oficial»287. Ora
se a consciência não se podia exteriorizar, para que servia a liber-
dade dela? Para ser vivida como uma reminiscência do espíri-
to, um sussurro interior que era proibido comunicar? O culto
era uma extensão da consciência. Proibir aquele equivalia a con-
denar esta, e tal condenação estava expressamente lavrada no
art. 6.º da Carta Constitucional. Por conseguinte, a Carta viola-
va «os santos princípios da lei natural e da razão humana».
O Português resumiu em poucas palavras a novidade dada pelo
professor de Coimbra — «O sr. Ferrer provou hoje que neste
país não há liberdade de consciência» — e gravou a sua última
definição do que por aí se devia entender: «A liberdade de cons-
ciência consiste na liberdade exterior de prestar culto a Deus
do modo que um homem julga mais conforme às divinas per-
feições.»288

387 Sessão de 6.5.62, Diário de Lisboa, 8.5.62.


388 0 Português, 6.5.62 (itálico meu).

343
Apologia da História Política

No Parlamento, defendendo o seu parecer, Ferrer não


podia acreditar que à vista da «reacção», que não só «tem divi-
dido a Europa inteira» como «se levanta tão audaciosamente»
em Portugal, alguém pudesse desejar «liberdade inteira, ampla,
para todos». Mas se assim era, se sinceramente a queriam, então
haviam de querer também «a conclusão lógica desta ideia»: a
«liberdade de consciência, e a liberdade do culto». A indicação
foi recebida com «repetidos e prolongados apoiados»38?. Fora do
Parlamento, a imprensa radical já tinha insinuado a incompati-
bilidade entre uma religião do Estado e a Liberdade, anteci-
pando-se ao lente de Coimbra e fazendo campanha aberta pelas
mesmas ideias, às quais acrescentara no entanto mais algumas
conclusões lógicas:

«Querem a liberdade livre para a reacção, bem: concedam-


-nos a liberdade dos cultos, o pagamento espontâneo desses
cultos, as associações políticas populares, a guarda nacional,
a abolição dos morgados, a [abolição] da câmara hereditária,
e, realizadas estas e outras muitas aspirações do partido libe-
ral, veremos quem faz mais prosélitos, se os reaccionários,
se os democratas.»390

Era então uma batalha ideológica que se travava, e o que


se pedia era armas iguais. Sobre quem batalhava e contra o quê,
não havia dúvidas. A democracia batalhava contra a religião
por sabê-la incompatível com a República. «Não quer a 'Políti-
ca[Liberal]' ser católica, envergonha-se do Evangelho, renega
a religião de seus pais», escrevia 4 Revolução, acrescentando
que tinha todo o direito, «contanto que respeite a [fé] dos ou-
tros»3?1, Mas o problema estava em que o radicalismo não que-
ria, nem podia, respeitar. Só podia fingir, do mesmo modo que
os neocatólicos ingiam respeitar a Liberdade. Nos confins do seu
horizonte ideológico, estes queriam a monarquia sem constitui-
ção; os radicais queriam a constituição sem monarquia. E ambos

389 Sessão de 5.5.62. Diário de Lisboa, 7.5.62.


390 4 Política Liberal, cit. pela À Revolução de Setembro, 19.3.62.
391 4 Revolução de Setembro, 20.3.62.

344
A republicanização da monarquia (1858-62)

queriam um pouco mais do que qualquer destas coisas. Os ca-


tólicos queriam uma «Teocracia», quer dizer, um Estado clerical
e uma sociedade religiosa; os radicais queriam uma República,
quer dizer, um Estado laico e uma sociedade em cuja organi-
zação pública Deus não interviesse. Entre os dois dogmatismos,
Casal Ribeiro procurava, mas não encontrava, um meio termo
em que se firmasse sem resvalar para um dos extremos. Mas,
emparedado entre dois males, a sua consciência católica enca-
rava o ateísmo como o pior de ambos. Não podia conceber um
mundo despido da presença de Deus nem uma sociedade que
não estivesse sujeita aos preceitos da religião e à disciplina quo-
tidiana da Igreja. Mas olhava em volta e o que verificava era
um esmorecimento da fé atrás do qual, conforme temia «com-
preender demais», despontava o ateísmo:

«o que não posso compreender, ou o que receio compre-


ender demais, é esta repugnância que se manifesta contra
toda a ideia religiosa, contra toda a pessoa eclesiástica, con-
tra a Igreja, numa palavra».

Começava-se por atacar o clero, em seguida atacava-se a


Igreja, e acabava-se, querendo ou sem querer, atacando a Re-
ligião:

«Vejam como são arrastados mais longe do que queriam.


Vejam como o plano inclinado em que entraram é escorre-
gadio: não há-de poder sustentar-se; não hão-de poder
parar quando quiserem.»

Havia quem dissesse que o mal ou a causa de tudo vinha


do protestantismo. Mas para Casal Ribeiro a impiedade que
corroía o corpo social tinha outra origem:

«é a tendência para a doutrina do que chamam racionalismo


[...]. É a tendência para um tal deísmo ou panteísmo con-
fuso, do qual dista um só passo o ateísmo [...] a dissolução
de todos os laços sociais. [...] O ateísmo não está aqui [...];

345
Apologia da História Política

mas a repugnância a toda a ideia religiosa conduz em direi-


tura para lá»392,

O Português acusava os «liberalões» da laia de Casal Ribei-


ro de quererem a «liberdade coarctada»: «Se querem a liberdade
de ensino, porque não querem igualmente a dos cultos?»2?3 E, de
resto, sendo a religião um assunto passado entre Deus e a cons-
ciência de cada um, porque vinha o Estado, uma «autoridade
exterior», intrometer-se «entre o indivíduo e o objecto das suas
crenças religiosas»?394 Chegada a humanidade à era do «livre
exame», dificilmente uma «convicção» podia ou devia «entrar
na inteligência» sem que esta lhe franqueasse a sua «porta».
Convicções lá entradas por outros meios não passavam de su-
perstições. A liberdade de ensino era um desses meios ilícitos
pelos quais a reacção punha a inteligência da infância em cati-
veiro. A menos que movidos por instinto suicida, os verdadeiros
liberais não podiam concedê-la: «As crianças são a esperança
da ideia, a promessa da continuação da vida liberal.»396 Os «li-
beralões» não compreendiam ou fingiam não compreender esta
evidência. Citavam a tradição constitucional portuguesa que,
tanto na versão democrática de 1822 ou 1838 como na versão
liberal de 1826, sempre tinha entendido «que a religião católica
podia ser a religião do Estado, e que a liberdade do ensino podia
completamente harmonizar-se com esse princípio»)97. Mas
agora, o «livre exame» indicava outra coisa. Indicava que era
preciso proibir aquelas liberdades que deixassem o «cidadão»
«abandonado à pressão da religião do Estado em todos os tran-
ses da vida política, civil e doméstica». Liberdade assim, era
uma «hipocrisia»??8,

392 Sessão de 7.5.62, Diário de Lisboa, 9.5.62 (itálico meu).


393 0 Português, 22.3.62.
394 Ibidem, 10.4.62.
395 Ibidem.
396 Ibidem, 6.5.62.
397 José Maria Abreu, sessão de 13.5.62, Diário de Lisboa, 15.5.62.
398 Cláudio José Nunes, sessão de 14.5.62, Diário de Lisboa, 17.5.62.

346
A republicanização da monarquia (1858-62)

O liberalismo via nestes argumentos uma «ofensa da liber-


dade religiosa nas suas manifestações mais legítimas, a liberda-
de de caridade e de ensino»2??. Reconhecia neles «a linguagem
de todos os tiranos, que é tirar a liberdade para sustentar a liber-
dade»400, Tais princípios constituíam uma invasão inteiramente
abusiva do Estado na esfera privada de cada um, uma inaceitá-
vel «subordinação da família [...] às necessidades e acção ime-
diata da sociedade»401. Mas quem, e em nome de quê, seria
o legítimo intérprete dessas «necessidades» e o legítimo con-
dutor dessa «acção»? O liberalismo respondia que ninguém,
em nome de nada, e por isso entendia que a liberdade devia
ser livre para todos. O radicalismo respondia que esse papel
cabia a quem soubesse discernir os caminhos do aperfeiçoa-
mento humano indicados pela Razão. Um fosso intransponível
os separava. «Aqueles cavalheiros do lado direito», apontava
Mendes Leal, diziam-se de acordo sobre «os mesmos princípios
constitucionais» e fiéis à «mesma crença dinástica». Mas nem
por isso havia «unidade de vistas» e de «fito» entre os dois lados
da câmara: porque «unidade de futuro não a pode haver»402.

399 À Revolução de Setembro, 21.5.62.


400 4 Revolução de Setembro, 30.4.62.
401 Fontes Pereira de Melo, sessão de 22.5.62, Diário de Lisboa, 24.5.62.
402 Sessão de 9.5.62, Diário de Lisboa, 12.5.62 (itálico meu).

347
XII

A republicanização da monarquia

«A Democracia está escrita em letras de fogo


no Evangelho»; lá se chegará «pela estrada
do progresso e de ilustração da Humanidade»403.

O ataque contra o art. 6.º da Carta Constitucional, cul-


minando uma longa série de críticas à doutrina e organização
dos poderes de Estado nela consignadas, fazia-se numa lin-
guagem e em nome de ideias que na realidade apontavam para
um «futuro» muito diverso daquele que o liberalismo de 1834
tinha idealizado. A Regeneração, como prolongamento deste,
via o futuro no desenvolvimento material do País e acredita-
va que atrás dele acabaria por vir o progresso moral e intelec-
tual; tinha da liberdade uma concepção pluralista e pensava
que esta se robustecia através da livre discussão de todas as
ideias; prezava a autonomia do indivíduo e a independência
da sociedade face ao Estado, cometendo a este tão-só o papel
de garante da lei e da ordem e declarando-o incompetente para
arbitrar conflitos entre opiniões concorrentes: o Estado devia
limitar-se a fornecer e manter um quadro jurídico-legal em que
as ideias e os interesses pudessem livremente competir. 4 condi-
ção deste futuro estava na paz política. Esta, por seu turno,
dependera da liquidação dos diferendos constitucionais e re-
queria a disposição dos partidos para colaborarem ao Centro e
abandonarem as antigas ideias de «exclusão». A boa vontade e
cooperação de todos eram precisas para o Estado arranjar dinhei-
ro, o dinheiro era preciso para realizar as obras públicas, e as obras
públicas eram precisas para que houvesse desenvolvimento. Mas,

403 0 Português, 25.3.62.

348
A republicanização da monarquia (1858-62)

alguns anos depois da Regeneração, houve quem se desligasse


deste consenso para afirmar que a «paixão» pelo fomento se
convertera numa «monomania perigosíssima». Em 56, os
históricos angariaram 50 000 assinaturas contra os impostos
que Fontes declarara indispensável arrecadar. Loulé substituiu
Fontes, mas não rompeu com o princípio das «coligações». Por
isso em 58, a pretexto das irmãs de caridade, os radicais provo-
caram uma dinâmica política que obrigaria o marquês a aban-
donar esse princípio e a adoptar o da «exclusão». Mas deve
notar-se que o pretexto não era arbitrário. Serviu, pelo contrá-
rio, para detonar um novo anticlericalismo, não apenas anti-
congreganista e secularizador, mas lazcizante e potencialmente
ateu. Deste modo se abriu, a partir de 1858, a «questão religio-
sa» que dividiria a sociedade, os partidos, e o próprio partido
liberal, entre republicanos e monárquicos. Essa questão culmi-
naria na lei de separação da Igreja e do Estado de 1911 a qual,
longe de ter constituído um expediente político para obrigar
à definição de quem estava com o regime ou contra ele, repre-
sentou a consumação da matriz ateia do republicanismo.
Que em finais da década de 50 quase ninguém se declaras-
se abertamente republicano, em nada altera a essência da reali-
dade. Conforme se viu atrás, a república, enquanto regime,
estava e ficava por ora entre parênteses, adiada para quando fosse
oportuno. Até mesmo a Democracia, o mais insofrido dos pe-
riódicos radicais, achava que, sendo o «poder monárquico»
«constitucionalmente irresponsável», podia perfeitamente
«haver monarquia hereditária com uma república». De resto,
Portugal já seria uma «república monárquica» (sic) se tivesse «ho-
mens de Estado capazes» disso44. A oportunidade para instau-
rar o regime republicano propriamente dito era entendida como
a altura em que existisse na sociedade portuguesa um consen-
so em seu favor suficientemente amplo para dispensar o recur-
so à violência. Como constatava o Comércio, tinha passado «o
triste período em que se governava nas praças ao som do tam-
bor revolucionário»405. Tinham caducado os métodos usados
404 Democracia, 22.6.61.
405 Jornal do Comércio, 12.6.61.

349
Apologia da História Política

na «época» de «1836 e 1837», que estava «morta e sepultada»496.


As revoluções de então sufocavam-se facilmente com «sangue»
e «baionetas». O que agora estava em curso era uma «revolução
moral», e esta «progride sempre, fatal, implacável, impassível»,
deixando «amortalhados» atrás de si os que querem «tolher-lhe
o passo47. A proclamação formal da república aconteceria natu-
ralmente, no termo de uma «revolução pacífica» ao longo da
qual iriam governando políticos «de todas as escolas», mas inva-
riavelmente animados «com o mesmo fim [...] de fazer adiantar
o povo»108. Até lá, a única coisa que importava era ir republicani-
zando a monarquia: democratizar as suas instituições até esvaziar
o trono de relevância política; carcomer a sua legitimidade, de-
molindo o princípio hereditário; e laicizar as consciências, substi-
tuindo a fé católica pela devoção patriótica e a disciplina religiosa
pela virtude republicana. Estes três pontos capitais do programa
começaram a ser executados a partir de 1858.
Se a estratégia para essa republicanização excluía agora o
revolucionarismo já ensaiado sem êxito antes de 1851, nem
por isso renunciava à inspiração vanguardista herdada do jaco-
binismo, embora amansada pela exiguidade do radicalismo do-
méstico, pelas lições da história recente e pelas novas «teorias»
sobre a evolução das sociedades. O «bem de todos» realizava-
-se através da «perfectibilidade social» e continuava a ser o fim
para que as sociedades tendiam ou deviam tender. No entanto,
se por definição mesma esse fim excluía «toda a ideia de estacio-
narismo», excluía igualmente «aqueles saltos precipitados, te-
merários, que os homens de acção mais expedita e insofrida
tentam, às vezes, na política»409, Tais saltos não se aconselha-
vam porque deixavam os que «os pôem em execução» isolados
dos «que ficam mais aquém». Era preciso conhecer bem a «estra-
da» e «deixar atrás o terreno desobstruído» para que a reta-
guarda pudesse «avançar, seguir — e não estorvar — os que

406 Jornal do Comércio, 11.6.61.


407 0 Português, 27.2.61.
408 O Futuro, 4.9.58.
409 «O progresso e a reacção», O Português, 25.3.62.

350
A republicanização da monarquia (1858-62)

marcham na frente»4!0. Por outras palavras: as conquistas do


progresso deviam ser sólidas para serem irreversíveis. Ao pro-
gresso opunham-se obstáculos naturais que era necessário com-
preender para ir gradualmente destruindo: «estes aceitamo-los
nós»é!l, Mas o que já não se podia «suportar» era a «reacção
atroz, iníquia» que os «apóstolos da hipocrisia farisaica», apoia-
dos na «credulidade das massas ignorantes», opunham preme-
ditadamente ao progresso a fim de «operarem o estacionarismo
ou retrocesso socialȇ1!2,
Significativamente, a estratégia para a democratização das
instituições monárquicas não incluía a arma do sufrágio uni-
versal. Os radicais de final dos anos 50 acomodaram-se con-
fortavelmente ao regime censitário próprio das monarquias
constitucionais. Enquanto o povo fosse analfabeto e os gover-
nos fossem corruptos, O voto era uma arma inútil ou mesmo
perigosa de manejar. O radicalismo apostou antes em pressionar
o regime a partir do seu interior, infiltrando-se nas suas clien-
telas, misturando-se com os seus quadros e colocando-se em
posição de fazer exigências a troco de favores. Em altura de
eleições, estes eram especialemnte valiosos, senão indispensá-
veis. Durante a governação normal, também. Deles dependia
largamente o sossego na rua e ainda, embora em menor medida,
a cordura da maioria parlamentar. Alguns jornais, meia-dúzia
de deputados e relações mais ou menos informais com os meios
populares era o suficiente para colocar os governos históricos
sob chantagem e ir radicalizando a «situação». A Liberdade, de
resto, expunha a candidamente esta teoria: «três são os partidos
que devem existir num governo constitucional: o partido con-
servador, o partido progressista e o partido democrata. Os dois
primeiros disputariam entre si o governo». Caberia a «um con-
servar o que está feito; a outro, adiantar e caminhar; e o últi-
mo, representando o extremo das ideias liberais, reforçaria na
oposição o partido governamental que fosse vencido»4!3. Deste
410 «O progresso e a reacção», O Português, 25.3.62.
411 0 Português, 26.4.62.
412 Ibidem.
413 Liberdade, 287.61.

354
Apologia da História Política

modo, o «partido democrata» existiria sempre como uma espa-


da de Dâmocles pousada sobre a cabeça dos históricos quando
estes estivessem no poder; quando não estivessem, ajudá-los-
-ja a derrubar os regeneradores. Se, na realidade, a prática não
foi uma imitação perfeita da teoria, não andou longe dela. «Os
partidos podem fazer favores aos governos», explicava O Portu-
guês, mas quando os governos «não correspondem», os partidos
viram-lhes as costast!4. Que não houvesse confusões: os jorna-
listas partidários não eram «na imprensa os representantes do
ministério». Eram sim «o órgão das opiniões do partido po-
pular»415. A vitória dos ministros na «urna» dependia dessas
opiniões, e por isso nunca eles poderiam considerar-se por ela
«absolvidos» dos seus «compromissos» e menos ainda deviam
julgar-se «homens únicos e indispensáveis»tI6. Eram estas as
regras do jogo: «senão, não».
Um aspecto sob o qual o «governo constucional» precisava
de ser radicalizado dizia respeito à Câmara dos Pares, uma incar-
nação viva do princípio de hereditariedade e, por conseguinte,
um baluarte da resistência aristocrática contra todas as medidas
progressivas e «humanitárias». Um exemplo, portanto, daque-
les obstáculos artificiais e desnecessários que a reacção opunha
acintosamente ao progresso. À conservação da Câmara Alta fazia
parte do pacto constitucional da Regeneração, mas os radicais
não se julgavam obrigados por ele. De resto, o que fora a Regene-
ração senão «uma facção feliz» que triunfoué!7? Viu-se como logo
em 58 o pariato e, indissociavelmente, a aristocracia, foram aber-
tamente contestados. Essa contestação prosseguiu nos anos se-
guintes com intermitência, umas vezes ostensiva, outras velada.
Até que, em 61-62, a «reforma da Câmara Alta em nome da
soberania popular»4!8 se tornou um tópico obrigatório do refor-
mismo zadical. Nem era tanto pela qualidade moral e intelectual
dos seus membros, embora esta fosse deplorável. Era pela sua

414 0 Português, 30.12.58.


415 Ibidem, 27.2.61.
416 Jornal do Comércio, 2.6.61.
47 O Português, 26.4.59.
418 Ibidem, 25.2.61.

352
A republicanização da monarquia (1858-62)

«organização», pelos seus «foros», pela flagrante violação do prin-


cípio da igualdade que permitia a «uns quantos homens» paira-
rem acima do Paísé!?. De resto, e vendo bem, será que havia
em Portugal uma Câmara dos Pares? Como assim, se em Portugal
apenas havia nobres «na sua maioria ignorantes, ou pobres, ou
devassos?»420 «Não temos Câmara dos Pares»:

«O que temos é um bando de facciosos, de reaccionários,


de ultramontanos furiosos, que são um verdadeiro tropeço
a todo o melhoramento útil. [...] Muitos pares, orgulhosos
da sua fútil e ridícula nobreza, defendem os privilégios de
uma casta, [...] apoiando-se hipocritamente na religião que
não têm.»421

E como se havia de liquidar essa «facção reaccionária»?

«pelos meios legais é impossível, ela não se suicidará a si


mesma. Não há senão a revolução, ou a ditadura. Duas
grandes medidas que têm os seus perigos; mas que são boas
conforme a mão que as dirige. A revolução é difícil ou im-
possível, além de perigosa. A ditadura, nas actuais circuns-
tâncias, parece-nos o meio mais fácil e eficaz»é22.

Mas quem há-de proclamar a ditadura?

«O rei e ninguém mais; o rei, cercado de homens liberais,


enérgicos e inteligentes. Venha pois a ditadura para acabar
com a câmara dos pares.»423

Que coisa seria mais natural, quando «a família reinante


ama o povo, e o povo adora e respeita a família reinante»?424

419 0 Português, 27.2.61.


420 Ibidem, 12.2.62.
421 Ibidem.
422 Ibidem.
423 Ibidem.
424 Ibidem, 8.3.62.

555
Apologia da História Política

Quando a «coroa» sabe que, uma vez «cercada de instituições


republicanas», o povo vê nela uma «garantia de liberdade, de
paz e de concórida»?425 O Português tentou impor ao governo
histórico formado em 21 de Fevereiro de 62, como uma das
medidas destinadas a separar «bem definidamente liberais e
reaccionários», a convocação de uma «constituinte para a refor-
ma da câmara dos pares»426. Compreensivelmente, o minis-
tério Loulé-Lobo d' Ávila absteve-se de convidar o rei a que se
suicidasse. «Uma assembleia única e omnipotente», explicava
A Revolução, «com todas as instituições republicanas, importa
a abolição do princípio da hereditariedade não só em relação
ao pariato, que desaparecia diante dela, mas em relação à própria
monarquia». A convocação de uma tal assembleia importaria
na «supressão da monarquia constitucional e da dinastia rei-
nante»t27,
A imprensa radical fingia que não via estas consequências
evidentes. A questão das irmãs de caridade, que o povo «con-
substanciara» com a questão dos privilégios e das classes sociais,
legitimara a crítica da aristocracia e a rejeição franca do privilé-
gio de nascimento e, portanto, do princípio de hereditariedade,
reputado «tão absurdo como o direito divino»428. Frequente-
mente, essa crítica explodia em insultos de grande violência
que deixavam transparecer um autêntico ódio de classe longa-
mente recalcado. Nas suas manifestações mais agressivas, esse
ódio envolvia a aristocracia na mesma demonização de que o
clero era alvo. Mas para este estavam reservados os doestos mais
rancorosos. O clero, secular ou regular, concitava uma abomi-
nação especial devido aos poderes quase invencíveis que alega-
damente possuía para manter a sociedade agrilhoada. Não era
apenas pelo domínio da educação que se assenhoreava do futu-
ro; nem apenas pelo domínio do púlpito e do confessionário
que inculcava no povo as «teorias da vilíssima sujeição». A in-
fluência do clero sobre a «índole» da sociedade presente e futura
425 0 Português, 8.3.61.
426 Ibidem, 23.3.62.
427 À Revolução de Setembro, 25.3.62.
428 0 Português, 25.2.61.

354
A republicanização da monarquia (1858-62)

exercia-se de forma ainda mais insidiosa e perversa através da


«consciência das mulheres», a sua presa mais fácil e favorita.
Conquistada a mulher, o campo era do jesuitismo, que através
dela tinha aberta a porta do «santuário da família» e conquistava
acesso directo à alma das crianças. O Português expunha o pro-
cesso com objectividade científica:

«no leite que alimenta o filho não vai só o sangue elabora-


do nas artérias da mãe, mas pedaços da sua alma que consti-
tuem o instinto do infante e que formarão de futuro a índole
do homem»429,

Mas se nada se podia fazer em relação ao púlpito e ao confes-


sionário, o mesmo não acontecia com a educação, que o Estado
devia promover e dirigir a fim de «afeiçoar as rudes inteligências
populares» e transmutar o «homem natural» em «homem ci-
dadão»$0. O povo acharia na educação «a felicidade da terra»
e descobriria nela «a verdadeira estrada da glória eterna»*31. A exi-
gência de «instrução», de «instrução popular», de «instrução»
para o «sexo feminino», é um tópico constante da imprensa 7adi-
cal. O radicalismo depositava uma esperança desmedida no poder
da educação para despertar nos espíritos «rudes» o amor da liber-
dade, que segundo ele se não distinguia do exercício da cidadania
através do qual, por seu turno, se realizava a natureza humana.
Nesta concepção do homem como um ser cuja essência se rea-
lizava prioritariamente na dimensão política e social da sua
existência, tudo colidia com a cosmovisão católica. Desde logo
implicava uma reorientação mundana da finalidade do homem
incompatível com a transcendência da alma, da qual decorria
ser a a vida terrena uma etapa transitória da vida humana, subor-
dinada a um destino superior. Depois, e noutro plano, aquela
essência era revelada pela Razão, tida como critério universal e
supremo da Verdade. Por conseguinte, era também a Razão que

429 0 Português, 22.3.61.


430 Jornal do Comércio, 12.12.61.
4310 Português, 30.12.59.

355
Apologia da História Política

verificava os preceitos religiosos e interpretava a palavra de Deus.


Submetida ao «livre exame», a mensagem de Cristo apresenta-
va-se muito diversa da que era propalada pela Igreja de Roma.
O «suplício do Gólgota» destinara-se, não a redimir os homens
do pecado original, mas sim a servir de «prólogo» a uma «regene-
ração» universal que teria «por epílogo o aniquilamento de todos
os poderes tirânicos e ilegítimos que existem sobre a terra»t2,
Cristo ensinara «a igualdade e confraternidade» dos homens «pe-
rante o Eterno», donde lógica e naturalmente se derivara a «igual-
dade política»433. Por conseguinte, o «puro cristianismo»$ era
uma religião «essencialmente progressiva e liberal» cujas «máxi-
mas sublimes» haviam contribuído para a «emancipação da socie-
dade»435. Mais exactamente, «o cristianismo não e[ra] senão a
fé na liberdade por meio da fé em Deus». Aquela era portan-
to um valor mais alto do que este. Os «liberais sinceros» queriam
«uma religião que sancion[asse] o verdadeiro Deus», um Deus
«independente de tudo», quer dizer, independente da Igreja e
seus ministros*7. Não afirmara José Estêvão no Parlamento que
«a religião católica não estava nem no Papa, nem nos bispos,
nem nos padres, nem nos textos»?48 E onde estava? Estava «no
sentimento íntimo de cada um»$). Estava na «consciência» indi-
vidual, «a mais santa de todas as religiões»44. Deus, criando o
homem, «pôs em redor dele o princípio do bem e do mal» e ar-
mou-o com «instinto e razão» para que pudesse «escolher, e optar
ou rejeitar»4él. Havia, portanto, uma moral laica:

«é hoje evidente que a moral existe independentemente das


ideias religiosas. A distinção do Bem e do Mal, a obrigação

432 O Português, 17.1.62.


433 Ibidem, 26.4.62.
434 Ibidem, 29.1.60.
435 Ibidem, 26.4.62.
436 Ibidem, 6.5.62.
437 Ibidem, 6.9.60.
438 Citado por 4 Revolução de Setembro, 25.5.62.
439 Thidem.
440 0 Português, 22.4.62.
441 Ibidem, 6.9.60.

356
A republicanização da monarquia (1858-62)

de evitar o mal e de fazer o bem, são leis que o homem re-


conhece na sua própria natureza tão bem como nas leis da
lógica»é42,

Os católicos, antigos ou modernos, viam nestas declara-


ções, mais do que heresias, a negação mesma da fé cristã e de
toda a espécie de religião divina. «Que religião professam os
políticos desta nova escola?», interrogava 4 Revolução. Muito
evidentemente, não era «a religião católica, a religião do Estado,
a religião dos nossos pais». Mas seriam eles «ao menos cris-
tãos»2443 Nunca se tinha ouvido a um cristão dizer tais coisas.
O Português, o Jornal do Comércio, A Política Liberal, aponta-
va À Revolução, tinham começado por atacar o clero porque era
«reaccionário»; depois insurgiram-se contra o «púlpito», o «con-
fessionário» e a «catequese» como sendo «privilégios odiosos»
do clero; e finalmente tinham acabado a «combater a religião».
«Até aqui», a imprensa democrática «pedia a liberdade de cul-
tos; agora não quer que o Estado tenha nenhum». Era verda-
de. «A separação absoluta do domínio eclesiástico e do domínio
civil», escrevia O Português, «deve ser o desideratum dos libe-
rais sinceros»; essa separação «é uma lei de pública salvação»;
defender o contrário significa retrogradar ao «despotismo», ao
«governo teocrático»4.
O liberalismo, muito pelo contrário, achava que a coopera-
ção entre a Igreja e o Estado era desejável e necessária para que
os cidadãos não deixassem de ser fiéis e para que os fiéis fossem
bons cidadãos44º. As duas qualidades, longe de serem repelentes
entre si, completavam-se harmoniosamente. Para o radicalismo,
eram incompatíveis. A fé religiosa constituía uma abdicação da
Razão e, como tal, inabilitava os homens para o exercício pleno
da cidadania, que supunha a adesão a uma ordem moral, políti-
ca e social assente em fundamentos puramente laicos.

442 0 Português, 10.4.62.


443 4 Revolução de Setembro, 28.5.62.
444 À Revolução de Setembro, 25.3.62 e 28.5.62.
445 0 Português, 5.4.62 (itálico meu).
446 À Revolução de Setembro, 13.3.59.

357
Apologia da História Política

«Pertença à Igreja quem quiser pertencer. Mas a liberdade


e as instituições livres hão-de viver, hão-de salvar-se, devem
existir da sua própria energia »447

O «elemento religioso» era, na «vida política dos povos»,


um mero «acessório»; e a Igreja, uma instituição dispensável
e talvez condenada a desaparecer:

«quem sabe se chegará um dia em que o homem ver-


dadeiramente religioso se contente em levantar a Deus um
altar na sua consciência [...]? o princípio religioso [não]
é monopólio do padre. Não é só ele que pode ensinar Deus
ao homem. [...] o coração do homem abraça o céu sem
que isso seja obra exclusiva do padre. O homem tem um
culto interior, uma consciência do divino, mesmo sem
ouvir nem consultar o padre»48.

Enquanto esse faustoso dia não chegava, o Estado tinha a


obrigação impreterível de dirigir «a educação e instrução da
mocidade» a fim de a subtrair à «máquina infernal do jesui-
tismo», de que «o lazarista e a irmã-parda» eram o mais recente
«suporte»44). Os direitos do indivíduo e da família deviam
emudecer ante o dever do Estado de encaminhar a sociedade
para a «PERFECTIBILIDADE SOCIAL» (s7c)450 que conduzia ao hem
comum. Aos liberais repugnava a idolatria estatista que presidia
à utopia radical. Viam na apologia da «omnipotência do Estado,
da sua ingerência em todas as coisas, da absorção de toda a ac-
tividade individual» um atentado mortífero contra a liberdade,
perpetrado «sempre em nome da liberdade»$1. O radicalismo
era insensível a estas razões. As suas eram inversas. As neces-
sidades do todo social tinham prevalência sobre os direitos do
indivíduo que vivia nele inserido. Nesta óptica, o necessário

447 0 Português, 5.4.62 (itálico meu).


448 Ibidem (itálico meu).
449 0 Português, 30.4.62.
450 «O progresso e a reacção», O Português, 25.3.62.
451 4 Revolução de Setembro, 25.5.62.

358
A republicanização da monarquia (1858-62)

era «aplicar a sociedade ao homem, e não este àâquela»t2, Só


desta forma o «homem» poderia «haurir todas as regalias» de
uma sociedade que, governada segundo este são princípio, deixa-
ria de «funcionar» como um «infando sistema de confiscação» em
proveito daqueles que «exploram e dominam» as «faculdades do
homem»453. Era a teoria democrática do bem comum. E quem
podia duvidar de que a sua hora chegaria? «A DEMOCRACIA (sic)
está escrita em letras de fogo no Evangelho», e lá se chegará pela
«estrada do progresso e de ilustração da humanidade».

452 «O progresso e a reacção», O Português, 25.3.62.


453 Ibidem.
454 Ibidem.

559
Epílogo

Em 23 de Maio, os dois pareceres sobre a proposta de lei


do ensino de 11 de Março foram postos à votação. O parecer
da maioria (regeneradora) da comissão foi aprovado por 67
votos e rejeitado por 87. O parecer de Vicente Ferrer foi
aprovado por 92 votos e rejeitado por 5545. Aparentemente,
o governo reconciliara os «dissidentes» e refizera com isso uma
maioria confortável. Mas, estranhamente, a soma dos votos
não produzia a soma da força necessária para mandar e ser obe-
decido. «Recomposto com o encargo de resolver a questão» das
irmãs de caridade, o governo previra, correctamente, que nem
a votação favorável da proposta de lei de 11 de Março lhe facul-
taria os meios efectivos para na prática reduzir as irmãs à obe-
diência. Encetara por isso negociações directas com o governo
francês em resultado das quais a fragata de guerra Orenoque fun-
deou no Tejo no final de Maio com a missão de as levar de cá.
O facto foi equiparado a uma «intervenção estrangeira» exe-
cutada a pedido do próprio governo de Portugal, que deste
modo calcou «aos pés a honra nacional» perante o mundo e
humilhou o parlamento e os deputados perante o País&6.
O vexame do governo não terminaria aqui. À imperatriz
do Brasil, a duquesa de Bragança, a «augusta viúva do nosso
imortal libertador», vendo que o governo do «neto do seu mari-
do» pedira o socorro da França para expulsar de Portugal as irmãs
que labutavam nos asilos que ela patrocinava, resolveu, num

455 Sessão de 23.5.62, Diário de Lisboa de 27.5.62. A proposta de lei não


teve sequência prática: acabou sepultada numa comissão da Câmara dos Pares.
456 À Revolução de Setembro, 1.6.62,

360
A republicanização da monarquia (1858-62)

gesto de solidariedade, que «devia resignar na mão de el-rei o


seu alto protectorado»457. As directoras dos asilos da Ajuda, de
Benfica e de Jesus, onde se albergavam setecentas crianças, de-
mitiram-se também dos seus cargos. Braancamp, pelo governo,
aceitou a demissão com secura, «sem uma única palavra de amor
e de reconhecimento». Nos Pares, Joaquim António de Aguiar,
o velho ministro de D. Pedro IV, ergueu a sua voz «para estigma-
tizar este facto inaudito»459, e Ávila propôs que a Câmara no-
measse uma comissão que em nome dela exprimisse a «Sua
Majestade a Imperatriz do Brasil» os seus «sentimentos de re-
conhecimento pelos relevantes serviços» que a augusta senhora
tinha prestado «em muitas obras de beneficência». O mar-
quês de Loulé e o visconde de Sá da Bandeira, os ministros que
estavam presentes, não tiveram outro remédio senão votar a favor
da proposta em que a Câmara unanimemente os censurava.
«Nunca nenhum governo passou por tantas humilhações»,
comentou 4 Revolução de Setembro 461.
Era o preço pago pela inspiração e apoio que o governo
recebia de uma «nova escola política» que aparecera em Portu-
gal na viragem da década de 50 para 60. Era uma «nova escola»
composta de «racionalistas» apostados em derrubar todos os
«obstáculos» que se opusessem ao «desenvolvimento ilimitado do
espírito humano»*82. A «nova escola» punha «a liberdade acima
de Deus» ou, quando muito, «conjuntamente, em plena igual-
dade com Deus»; propunha-se abolir «toda a autoridade supe-
rior em matéria de dogmas»; reputava o púlpito e o confessionário
como pretextos permanentes para os excessos clericais; apoda-
va a «caridade particular» de «aristocrática» e «reaccionária» e
via nas irmãs de caridade as «viandeiras espirituais» do «exército

457 A Revolução de Setembro, 5.6.62.


458 Ibidem.
459 Ibidem.
460 Ibidem, 7.6.62.
461 Ibidem.
462 Ibidem, 6.6.62 (itálico no original).

361
Apologia da História Política

de Satanaz»463. A fim de propiciar o «desenvolvimento ilimitado


do espírito humano», a «nova escola» declarou «guerra de morte
às influências religiosas», e com isso rompeu de vez a «gloriosa
e santa aliança» entre «o espírito religioso e o espírito liberal»
que desde 1834, apesar da legislação secularizadora de D. Pedro,
sempre tinham coexistido no liberalismo monárquico com har-
monia e vantagem mútua494. Com o aparecimento da «nova
escola» e a divisão por ela cavada no partido liberal, essa época
chegava ao fim. Os ataques contra os abusos da Igreja visavam,
mais além dela, a própria fé religiosa, vista como o principal
entrave à gestação de um Futuro gizado pela perfeição da Razão
humana.

463 Sobre a «nova escola política» e as «doutrinas racionalistas» ver especial-


mente os números de 4 Revolução de Setembro de 16 de Maio e 1, 4 e 6 de Junho
de 62.
464 4 Revolução de Setembro, 8.6.62.

362
Índice

TES
e Ega ARE Da RR OR A A A

APOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA


GUE NR RS Sd DO NR e 17
E Impasses da história como ciência o isporemecimirimmemanea 22
HIRO CO Ra DE DR DE Se 58
HE A bissônia política narrativa see mae rui irei aiinei 85

O SÉCULO XIX EM PERSPECTIVA POLÍTICA (1807-1890)


1 1807-1854: reacção e revolução mim sanierenii casas 133
Il 1834-1851: a guerra de todos contra todos ......................... 160
HI 1851-1890: a separação das águas na «Regeneração» . 182

SEGUNDA ASCENSÃO E QUEDA DE COSTA CABRAL (1847-1851) 209

A REPUBLICANIZAÇÃO DA MONARQUIA (1858-1862)


I O País dividido pela «roupeta de umas pobres
RCE A Eb ue RO O ES 241
IH «A pedra saiu das mãos. Ninguém sabe onde
CL DENPe So tn a “BD A ça 259
HI «Há reacção religiosa de braços dados
Da Sedec De lCAD o logos qria ora ra 265
EYES CHROME perna seia o aa od PORRA PNR 279
V Aeditadara de Berta e ag etapa raros 284
VI Entre o Pátio do Geraldes e o Pátio do Tourel................... 201
VII O neocatolicismo e o dilema liberal... 303
VIII Novas ameaças à «existência constitucional
a NPR AVEC ERR RI DD E PR RR 313
EE Ormmulcos do Naralde OL risoto neressriteelsado 320
0) tescaldo-dos Hanpultos «spirit tetas anti 326
XI «Querem a liberdade livre para a reacção» ........... 334
XII A republicanização da monarquia... 348
Epílogo ..!. os. MES Gaara DS ce RU RO e 360
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Dada a desconfiança com que nos meios académicos geral-
mente se olha para a narrativa política, este livro abre com um
ensaio cujas intenções ficam expressas no título que lhe dei:
po da História Política».
Depois da «Apologia» vem um estudo
global sobre «O século xx em pers-
pectiva política», em que procuro
apresentar uma linha interpretativa
susceptível de conferir inteligibilidade
Cc 4 anoventa anos de constitucionalismo
monárquico marcados por endémica
desordem política. Os outros dois estudos aqui reunidos desenvolvem
episódios, temporalmente delimitados, da história mais ampla que deixo
resumida no primeiro. Trata-se de «A segunda ascenção e queda de Costa
Cabral (1847-51)», que se destina a explicar como se deu, & 0 que foi, a
Regeneração; e de «A republicanização da monarquia (1858-62)», que se
destina a revelar 0 aparecimento muito precoce do anticlericalismo como
matriz da ideologia republicana e estratégia de mobilização anti-dinástica.
M. Fátima Bonifácio

M. Fátima Bonifácio é historiadora do Instituto de Ciências Sociais (U.L.)


e professora convidada da Faculdade de Ciências Sociais E Humanas
(UML).

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