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DIREITO AMBIENTAL

Hélcio Corrêa

A Lei de Florestas Públicas sob o


crivo da Política Ambiental do 77

Poder Público*
Assessment of the Public Forest Law by government
environmental policy
Júlio da Silveira Moreira

RESUMO ABSTRACT
Alega que, após intensas discussões, foi sancionada pelo Con- The author states that, after some intense discussions,
gresso, em 2 de março de 2006, a Lei n. 11.284/2006, que trata Brazilian Congress passed Law No. 11,284/2006
da gestão das florestas públicas brasileiras, cuja principal inova- – concerning public forests management – on the
ção é o instituto da concessão florestal, mediante o qual o poder 2nd of March 2006. Its main inovation is the forest
público outorga ao particular a exploração das áreas. concession agreement through which land exploration
Analisa a dinâmica das concessões florestais, bem como sua natu- powers are conferred by the State to private parties.
reza jurídica à luz do Direito Administrativo, e conclui que o insti- He assesses the forest concession dynamics as well
tuto apresenta contradições quanto à viabilidade de fiscalização e as its legal nature in the light of Administrative
quanto à incumbência do Poder Público na gestão florestal. Law, reaching the conclusion that it presents some
contradictions regarding both supervision feasibility
Palavras-chave and the State responsibility for forest management.
Direito Ambiental; gestão florestal; concessão; floresta pública;
meio ambiente; Lei n. 11.284/2006 (Lei de Florestas Públicas). KEYWORDS
Environmental Law; forest management;
concession; public forest; environment; Law No.
11,284/2006 (Brazilian Public Forest Law).

* Artigo apresentado como trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG), em julho de 2008, sob
a orientação do Prof. Dr. Cleuler Barbosa das Neves.

Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 43, p. 77-83, out./dez. 2008


1 Introdução do, é feito pelo método indutivo, que permite inferir afirmações
Este trabalho abordará aspectos da Lei n. 11.284/2006, que gerais, para, ao final, alcançar conclusões cujo conteúdo é mais
trata da gestão das florestas públicas, com enfoque específico amplo do que as premissas nas quais se basearam (MARCONI;
para a verificação se a concessão florestal, nos termos da nova LAKATOS, 2007, p. 86).
lei, está de acordo com a incumbência do Poder Público na O método comparativo, por sua vez, servirá como método
política ambiental. auxiliar para fazer a comparação de normas entre si e com prin-
A análise sob o crivo da constitucionalidade leva, em última cípios jurídicos, para estabelecer as repercussões da lei sobre a
instância, às perspectivas para a sustentabilidade das florestas gestão ambiental brasileira (MARCONI; LAKATOS, 2007, p. 107).
brasileiras, diante do risco de degradação e desflorestamento Tudo sem deixar de lado o referencial teórico funcionalista, vol-
que se abre com a desregulamentação do controle estatal, que tando-se para as utilidades (funções) desempenhadas pelas ins-
a referida lei introduz, numa primeira abordagem. tituições em estudo (MARCONI; LAKATOS, 2007, p. 110).
A Lei n. 11.284 foi promulgada em 2 de março de 2006,
sendo, portanto, uma norma recente no ordenamento jurídico 2 A gestão das florestas anterior
brasileiro. Sua aprovação nas instâncias legislativas (Projeto de à Lei n. 11.284/2006
Lei n. 4.776) envolveu certo nível de discussão na sociedade, O correto estudo da Lei de Florestas Públicas e dos proce-
sendo numerosas as críticas que apontaram a proposta legislati- dimentos de concessões florestais ali constantes, ao introduzir
va como lesiva à soberania nacional, em sentido lato, e à gestão novas práticas de gestão das florestas, pressupõe a análise con-
pública das florestas, em sentido estrito. Cientistas, gestores am- textual de como se encontrava essa gestão, no plano normativo,
bientais, organizações não-governamentais, membros das For- anteriormente à vigência da Lei.
ças Armadas e outros segmentos da sociedade se envolveram Para tanto, devem-se mencionar três leis que, de forma
nas discussões. coorde­nada, formam o arcabouço legislativo da gestão e da
A despeito das críticas, a lei foi promulgada e está em plena proteção florestal no país: a Lei n. 4.771, de 15 de setembro
vigência, estando em curso o primeiro Plano Anual de Outorga de 1965 (Código Florestal); a Lei n. 6.938, de 31 de agosto de
Florestal (PAOF 2008) (BRASIL, 2007), e em fase de projeção o 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente;
segundo (PAOF 2009) (BRASIL, 2008a). e a Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema
O procedimento de licitação da primeira concessão florestal, Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).
a Floresta Nacional do Jamari, foi suspenso em março de 2008, Todo esse arcabouço completa-se com as normas de Polí­
78 por força de decisão monocrática do Tribunal Regional Federal tica Ambiental da Constituição Federal de 1988, no seu art. 225
da 1ª Região, tendo sido afastada tal suspensão por decisão do e parágrafos. Assim, forma-se, com coerência e hierarquia de
presidente do STF, Gilmar Mendes, em maio de 2008. normas, o ordenamento jurídico da gestão e da proteção flo-
A constitucionalidade da lei, especificamente em relação ao restal do país.
art. 49 da Constituição, que veda a concessão de terras públicas Sem pretender abordar e exaurir os detalhes e mecanis-
acima de 2.500 hectares sem prévia aprovação do Congresso mos de cada uma dessas normas, o que não é objeto deste
Nacional, é objeto de discussão da ADI (Ação Direta de Incons- trabalho, a menção dos dispositivos normativos faz-se impor-
titucionalidade) 3.989/DF, cujo relator é o Ministro Eros Grau. tante para demonstrar que o Poder Público, em atenção à pro-
A Lei n. 11.284/2006, ao estabelecer as concessões flores- teção ambiental, pode (e deve) reservar áreas florestais sob o
tais, parece trazer graves riscos à sustentabilidade das florestas. seu domínio. Tratam-se das florestas públicas, às quais a Lei n.
11.284/2006 conferiu nova definição.
O correto estudo da Lei de Florestas Públicas e Para analisar de quais maneiras o Poder Público pode gerir
dos procedimentos de concessões florestais ali as áreas florestais, torna-se relevante a remissão aos supracita-
dos dispositivos legais.
constantes, ao introduzir novas práticas de gestão
O Código Florestal (Lei n. 4.771/65), mais voltado para as
das florestas, pressupõe a análise contextual de áreas de propriedade particular, traz conceitos cuja análise é im-
como se encontrava essa gestão [...]. prescindível para a compreensão da importância do patrimônio
florestal brasileiro.
Verificar-se-á, neste artigo, se a concessão florestal, nos ter- Preceitua que as florestas existentes no território nacional
mos da nova lei, está de acordo com a incumbência do Poder são bens de interesse comum a todos os habitantes do país
Público na política ambiental, passando pelo contexto da gestão (art. 1º, caput) e que as ações e omissões que importem em
florestal anterior à vigência da Lei n. 11.284/2006; a dinâmica infração das disposições daquele código constituem uso nocivo
das concessões florestais na nova lei; a natureza jurídico-admi- da propriedade (art. 1º, § 1º).
nistrativa da concessão florestal, com a supremacia do interesse Quanto à designação de “bens de interesse comum”, o
público sobre os contratos relativos a essas concessões; enfim, legislador afirma que qualquer cidadão brasileiro pode acom-
como as incumbências do Poder Público sobre a política am- panhar e exigir que sejam mantidos os atributos naturais das flo-
biental interferem na dinâmica das concessões florestais. restas, e seu papel no contexto ambiental, estejam elas situadas
O método de pesquisa mais apropriado é o de análise de em territórios privados ou públicos. Em outras palavras, pode
alterações legislativas, mediante o método indutivo auxiliado qualquer indivíduo exigir, administrativa ou judicialmente, do
pelo comparativo. titular de domínio florestal, que este cumpra as normas legais
A apreciação das leis, como fenômeno particular em estu- relativas à sua proteção (ANTUNES, 2006, p. 502).

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Quanto à menção a “uso nocivo da como órgão central, com a finalidade diante procedimentos participativos e
propriedade”, quis o legislador estabe- de planejar, coordenar, supervisionar e democráticos. O resultado da elaboração
lecer a faculdade de qualquer habitante controlar, como órgão federal, a política legislativa foi marcado pelo anseio de re-
do país de se opor a qualquer ato de nacional e as diretrizes governamentais dimir, ao menos em parte, o que estava
infração à legislação ambiental incidente fixadas para o meio ambiente; perdido e a desenvolver o que se encon-
sobre as florestas, ainda que o autor de d) o Instituto Brasileiro do Meio Am- trava sadio (MILARÉ, 2007, p. 653).
tais atos seja o próprio titular do domínio biente e dos Recursos Naturais Renováveis As unidades de conservação cons-
florestal (ANTUNES, 2006, p. 503). (Ibama), como órgão executor, com a fina- tituem-se num conceito amplo de terri-
O Código Florestal estabelece a de- lidade de executar e fazer executar, como tórios e recursos ambientais instituídos
finição de “florestas de preservação per- órgão federal, a política e diretrizes gover- pelo Poder Público, com objetivos de
manente” por definição legal (art. 2º) e namentais fixadas para o meio ambiente; conservação e limites definidos (art.
por ato do Poder Público (art. 3º). O con- e) órgãos ou entidades estaduais res- 2º, inc. I, da supracitada lei), nos quais
ceito confunde-se com o de “áreas de ponsáveis pela execução de programas, se inclui um rol de categorias, divididas
preservação permanente” cuja proteção projetos e pelo controle e fiscalização de em duas grandes áreas: as Unidades de
possui a [...] função ambiental de preser- atividades capazes de provocar a degra- Proteção Integral e as Unidades de Uso
var os recursos hídricos, a paisagem, a dação ambiental; Sustentável.
estabilidade geológica, a biodiversidade, f) órgãos ou entidades municipais, As Unidades de Proteção Integral
o fluxo gênico de fauna e flora, proteger responsáveis pelo controle e fiscaliza- (Estação Ecológica; Reserva Biológica;
o solo e assegurar o bem-estar das po- ção dessas atividades, nas suas respec- Parque Nacional; Monumento Natural;
pulações humanas1. tivas jurisdições. e Refúgio de Vida Silvestre) são assim
Além das áreas de preservação per-
manente, aquela norma institui a reserva O Código Florestal (Lei n. 4.771/65), mais voltado para as
legal, obrigação devida ao proprietário
áreas de propriedade particular, traz conceitos cuja análise é
ou possuidor de imóvel rural, de reser-
var uma fração legal de sua propriedade, imprescindível para a compreensão da importância do
para a conservação como área florestal patrimônio florestal brasileiro.
(art. 1º, § 2º, inc. III,
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c./c. art. 16).
O Código Florestal dá ainda ao Poder Como se vê, a lei dá condições ad- definidas por terem como objetivo fun- 79
Público a prerrogativa de declarar qual- ministrativas ao Poder Público para gerir damental a preservação da natureza,
quer árvore como imune de corte, de- o patrimônio florestal, sob a observância poupando ao máximo a intervenção hu-
vido à sua localização, raridade, beleza de determinados princípios, estatuídos mana, admitido apenas o uso indireto de
ou condição de porta-sementes (art. 7º), no art. 2º da mesma Lei. seus recursos naturais, vedados seu con-
bem como proibir ou limitar o corte das Como um dos instrumentos da Polí- sumo, coleta, dano ou destruição2.
espécies vegetais raras, endêmicas, em tica Nacional do Meio Ambiente, referida As Unidades de Uso Sustentável (Área
perigo ou ameaçadas de extinção e as lei inclui a criação de espaços territoriais de Proteção Ambiental; Área de Relevante
espécies necessárias à subsistência das especialmente protegidos (ETEPs) (art. Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Re-
populações extrativistas (art. 14, b) 9º, inc. VI), inaugurando assim um con- serva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva
A Lei n. 6.938/81, por sua vez, institui ceito de essencial colocação nos estudos de Desenvolvimento Sustentável; e Reserva
o Sistema Nacional do Meio Ambiente de gestão florestal (MILARÉ, 2007, p. Particular do Patrimônio Natural) possuem
(Sisnama), contendo (art. 6º): 157), que foi consagrado na Constitui- o objetivo de compatibilizar a preservação
a) O Conselho de Governo, como ór- ção Federal de 1988, no art. 225, § 1º, da natureza com o uso sustentável, ou
gão superior, para assessorar o Presidente inc. III, com destaque para a vedação do seja, que garanta a perenidade dos recur-
da República na formulação da política na- uso que comprometa a integridade dos sos naturais renováveis e dos processos
cional e nas diretrizes governamentais para atributos que justifiquem sua proteção, ecológicos, mantendo a biodiversidade e
o meio ambiente e os recursos ambientais; e permissão para alteração ou supressão os demais atributos ecológicos, de forma
b) O Conselho Nacional do Meio de tais espaços apenas mediante lei. socialmente justa e economicamente viável
Ambiente (Conama), como órgão con- O impulso constitucional motivou a (art. 2º, inc. XI, da Lei n. 9.985/2000).
sultivo e deliberativo, com a finalidade criação, em 2000, do Sistema Nacional O SNUC inclui ainda uma categoria
de assessorar, estudar e propor ao Con- das Unidades de Conservação da Nature- especial de Unidade de Conservação, a
selho de Governo, diretrizes de políticas za (SNUC), com a Lei n. 9.985/2000, após Reserva da Biosfera (art. 41), um modelo
governamentais para o meio ambiente e doze anos de intensos debates, expectati- adotado internacionalmente, a partir de
recursos naturais e deliberar, no âmbito vas e ansiedades (MILARÉ, 2007, p. 653). programa intergovernamental da Unesco
de sua competência, sobre normas e pa- Esta lei representou um grande (United Nations for Education, Science
drões compatíveis com o meio ambiente avanço na gestão florestal, por ter sido and Culture Organization, ou Organiza-
ecologicamente equilibrado e essencial à o primeiro instrumento legal a classificar ção das Nações Unidas para a Educação,
sadia qualidade de vida; as diferentes categorias de unidades de a Ciência e a Cultura), para gestão e mo-
c) a Secretaria do Meio Ambiente conservação e estabelecer mecanismos nitoramento de grandes áreas (MILARÉ,
(Sema) da Presidência da República, para a sua criação e administração, me- 2007, p. 673).

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Não se pode deixar de mencionar as universidades de con-
servação atípicas, protegidas pela Lei n. 9.985/2000, porém sem
menção expressa. São, por exemplo, os hortos florestais, jardins
botânicos, parques públicos urbanos e jardins zoológicos (MI-
LARÉ, 2007, p. 690).
Importante destacar que, no conceito de unidades de con-
servação (art. 2º, inc. I, da supracitada lei), sobressai o “regime
especial de administração”, que se caracteriza pela gestão inte-
grada de vários órgãos componentes do SNUC, dentre os quais
se incluem o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Conama
e o Ibama, e sob as diretrizes estabelecidas na lei. Ademais,
cada unidade de conservação deve possuir um plano de mane-
jo, documento técnico no qual se estabelecem o zoneamento
e normas que devem presidir o manejo dos recursos naturais
(art. 2º, inc. XVII). Figura 1 – Definição das Florestas Públicas legalmente aptas para concessão.
Primeira etapa do processo de seleção de florestas para concessão.
Fonte: BRASIL, 2007, p. 26.
3 O regime de concessões florestais
na Lei n. 11.284/2006
A Lei n. 11.284, de 2 de março de 2006, que dispõe sobre O próximo mapa, por sua vez, mostra, de acordo com o
a gestão de florestas públicas para a produção sustentável e dá PAOF 2007/2008, quais são as áreas passíveis de concessão,
outras providências nesse âmbito, surgiu sob o crivo de inten- dentre as florestas públicas federais:
sas discussões e questionamentos na sociedade civil, que tive-
ram como centro a discussão do Projeto de Lei n. 4.776/2005
(KRAKOVICS, 2006).
A par de atualizar definições, diretrizes e princípios já es-
tabelecidos na legislação ambiental, a lei inova principalmente
ao introduzir o mecanismo de concessão florestal, estabelecido
80 no seguinte conceito: [...] delegação onerosa, feita pelo poder
concedente, do direito de praticar manejo florestal sustentável
para exploração de produtos e serviços numa unidade de ma-
nejo, mediante licitação, à pessoa jurídica, em consórcio ou
não, que atenda às exigências do respectivo edital de licitação
e demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta
e risco e por prazo determinado3. Figura 2 Florestas Públicas legalmente disponíveis para o processo de conces-
A unidade de manejo é o perímetro do objeto da conces- sões, entre as Florestas Públicas Federais.
são, localizado em florestas públicas, que, por sua vez, são flo- Fonte: BRASIL, 2007, p. 28.
restas, naturais ou plantadas, em bens sob domínio da União,
Estados, Municípios, Distrito Federal ou entidades da adminis- O objeto da concessão está disposto no art. 14, como sendo
tração indireta. a exploração de produtos e serviços florestais, contratualmente
Ficaram instituídos: o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), ór- especificados. Forçoso é reconhecer que se trata de objeto vago,
gão gestor das concessões florestais em âmbito federal; o Fun- pois a lei delega ao contrato administrativo a incumbência de
do Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF), de natureza especificar que tipo de exploração será objeto da concessão.
contábil, destinado ao fomento de exploração e aperfeiçoamen- Diante da análise geral da lei, parte da doutrina afirma que
to técnico das atividades florestais; e o Cadastro Nacional de se trata da transferência ao particular (concessionário) da posse
Florestas Públicas (CNFP), que integra o cadastro das florestas da área circunscrita à unidade de manejo (GRANZIERA, 2008). A
públicas da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, regido polêmica ganhou espaço diante da apreciação do Ministro Gil-
pelo Decreto n. 6.063, de 20 de março de 2007. mar Mendes, do STF, na Suspensão de Tutela Antecipada 235-5
O órgão gestor no âmbito federal deverá elaborar, anual- Rondônia (BRASIL, 2008b). O Ministro, fundamentando ato de-
mente, o Plano Anual de Outorga Florestal, contendo a descri- cisório que negou incidência do art. 49, inc. XVII, da Constitui-
ção de todas as florestas públicas a serem submetidas a conces- ção Federal, sobre a concessão florestal, considerou “razoável”
são no ano de sua vigência. o argumento da União de que tal modalidade de contrato não
O PAOF estabelece quais são as áreas aptas para concessão, implica transferência da posse da terra pública.
nos termos do art. 11 da Lei n. 11.284/2006, bem como as de Todavia, contrariando o entendimento daquele pretório,
concessão prioritária. visto como decisão meramente casuística, há manifestação no
O quadro a seguir mostra o método utilizado pelo órgão sentido de que de fato há transferência da posse, porque: a) a
gestor para o reconhecimento de áreas florestais passíveis de concessão é um ato administrativo que institui direito real de
concessão, uma vez que há várias incidências que podem impe- uso, aproveitamento e exploração de coisas sob domínio públi-
dir as florestas públicas de serem objeto de tais contratos: co; e b) não é possível explorar uma floresta sem o exercício da

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posse direta sobre o solo e tudo quanto e indicadores para que a exploração seja sem contudo rela­cioná-los nas modali-
lhe for incorporado natural ou artificial- sustentável, ações de recuperação am- dades de concessão previstas no Direito
mente (PEREIRA, 2008). biental assumidas pelo concessionário, Administrativo.
Adiante, a lei é expressa quanto a preços e critérios de reajuste contratual, Carvalho Filho (2006) indica o insti-
determinados direitos de exploração que garantias (cauções) oferecidas pelo con- tuto da concessão florestal como conces-
o concessionário não adquire (art. 16, cessionário, casos de extinção da conces- são de serviço público, tal como prevista
§ 1º): titularidade imobiliária ou prefe- são, a obrigatoriedade de prestação de no art. 175 da Constituição Federal de
rência em sua aquisição; acesso ao pa- contas e realização de auditorias. 1988, e regulamentada pela Lei n. 8.987,
trimônio genético para fins de pesquisa A lei também estabelece as obriga- de 13 de fevereiro de 1995. Significa a
e desenvolvimento, bioprospecção ou ções mínimas do concessionário (art. transferência pela Administração Públi-
constituição de coleções; uso dos recur- 31), destacando-se a responsabilidade ca a pessoas jurídicas ou consórcios de
sos hídricos acima do especificado como por danos ambientais, seja por ações ou empresas da execução de determinadas
insignificante na Lei n. 9.433/97; explo- omissões danosas; o dever de dar “uso atividades de interesse coletivo, remune-
ração dos recursos minerais; exploração múltiplo” à floresta, o que se insere na radas por tarifas pagas pelos beneficiá-
de recursos pesqueiros ou da fauna sil- vedação de exploração predatória e na rios dessas atividades (usuários do servi-
vestre; comercialização de créditos de- obrigação de agregar valor econômico ço público). Trata-se de transferência de
correntes da emissão evitada de carbono à atividade; que a devolução da área, serviços que, dado seu interesse público,
em florestas naturais. após extinção do contrato, deve se dar são de incumbência do Estado, mas este
A lei também exclui do objeto da con- nas condições ali previstas; a realização os delega mediante contrato administra-
cessão os produtos de uso tradicional e periódica de auditorias; o acesso amplo tivo e sob fiscalização.
de subsistência para as comunidades lo- e irrestrito dos órgãos de fiscalização, a Há de se reconhecer, todavia, que a
cais, prevendo expressamente a responsa- qualquer momento, às instalações e do- concessão florestal, como regulada na Lei
bilização do concessionário por eventuais cumentos; o acesso livre, de qualquer n. 11.284/2006, não se afigura nas defi-
prejuízos a eles causados (art. 17). indivíduo, em visitas de comprovação nições de concessão de serviço público.
A concessão é feita mediante pro- das operações florestais de campo, sem Todavia, antes de concluir a esse respei-
cedimento de licitação, aplicando-se obstar o regular desenvolvimento das ati- to, verifique-se a doutrina balizadora de
acessoriamente os mecanismos da Lei vidades, e mediante prévia obtenção de referido entendimento.
n. 8.666/93. Podem concorrer ao pleito licença de visita no órgão gestor e pro- A já mencionada decisão de tutela 81
apenas empresas ou outras pessoas ju- gramação prévia com o concessionário antecipada da Desembargadora Federal
rídicas constituídas sob as leis brasileiras (art. 41). Selene de Almeida, a respeito da sus-
e que tenham sede e administração no pensão dos procedimentos licitatórios da
país, desde que não possuam inscrições 4 A natureza jurídico- concessão florestal da Floresta Nacional
na dívida ativa por débitos referentes a administrativa da do Jamari, é um caso paradigmático. Há
infrações ambientais, nem decisões con- concessão florestal e o de se transcrever, nos precisos termos, a
denatórias, transitadas em julgado, por crivo constitucional fundamentação da magistrada sobre a
crimes ambientais, tributários ou previ- Diante da exposição dos mecanismos natureza jurídica da concessão florestal.
denciários (art. 19). instituídos na Lei n. 11.284/2006, percebe- A doutrina subdivide a concessão
Antes do lançamento do edital, o ór- se que a concessão florestal, ali inaugura- em duas modalidades: a de serviço pú-
gão licitante deverá promover o licencia- da, é espécie sui generis de concessão, no blico e concessão dominial. A concessão
mento ambiental da unidade de manejo, âmbito do Direito Administrativo. de floresta pública seria dessa última es-
bem como realizar audiências públicas
por região, abrangendo todos os muni- O impulso constitucional motivou a criação, em 2000, do
cípios afetados pela concessão.
Sistema Nacional das Unidades de Conservação da Natureza
O edital deverá conter, além do
disposto na Lei n. 8.666/93, os elemen- (SNUC), com a Lei n. 9.985/2000, após doze anos de intensos
tos especiais previstos no art. 20 da Lei debates, expectativas e ansiedades [...].
n. 11.284/2006, entre eles, o prazo da
concessão, até o máximo de 40 anos, as A novel legislação cria um instituto, pécie, porque implica a outorga de um
condições de prorrogação, e, ainda, des- espécie derivada do gênero concessão privilégio ao vencedor da licitação sobre
crição das condições necessárias à explo- em Direito Administrativo, mas não um bem imóvel da União.
ração dos produtos e serviços florestais. adapta esse instituto ao Direito Admi- [...]
Vencido o certame, é celebrado o nistrativo vigente no país. Inexiste na doutrina e na jurispru-
contrato administrativo, vinculando o A jurisprudência muito pouco se dência tese de que a concessão do do-
concessionário ao estrito cumprimento ocupou do assunto, restando o caso mínio público, qualquer que seja, afaste
das cláusulas contratuais. A lei especifica, já narrado neste trabalho; a escassa a soberania do Estado das áreas dadas
dentre as cláusulas obrigatórias, a descri- doutrina predominantemente cinge-se em concessão.
ção dos produtos e serviços a serem ex- a descrever os mecanismos da Lei n. Hely Lopes Meireles (1996, p. 443) ex-
plorados, o prazo da concessão, critérios 11.284/2006, tal como estão ali expostos, plica que, no contrato administrativo de con-

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cessão de uso, o Estado atribui a utilização exclusiva de um bem de Neste artigo procurou-se compreender o instituto da con-
seu domínio ao particular, atendendo ao interesse público, para que cessão florestal no contexto da gestão ambiental, enfocando
seja explorado segundo sua destinação específica. Deve ser sempre as leis que tratam da proteção das florestas, dimensionando
precedida de autorização legislativa; e prevalece o interesse público a importância delas para a sociedade brasileira. Num segun-
sobre o particular, pelo que admite cláusulas regulamentares espe- do momento, foi exposta a dinâmica das outorgas florestais,
ciais e a rescisão antecipada, mediante composição dos prejuízos, visando à reta compreensão do instituto. Estabelecidos tais
quando houver motivo para tanto. marcos de análise, tornou-se possível colidir a concessão
Uma vez estabelecida a natureza da concessão florestal no florestal com a doutrina de Direito Administrativo e com os
Direito Administrativo, passa-se ao questionamento se as flores- princípios constitucionais.
tas públicas poderiam ser objeto de concessão. Por mais que a lei regulamente instrumentos de fiscaliza-
Tal questionamento é feito com fundamento no art. 225, caput, ção, inerentes à própria natureza administrativa da concessão
da Constituição Federal de 1988, verbis: Art. 225 Todos têm direito (supremacia do interesse público), receia-se que a demanda
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co- criada seja superior à capacidade fiscalizatória das instituições
mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se nacionais (SERVILHA; STRUCHEL, 2007).
ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preser- Não se trata de afirmar que a fiscalização das concessões
vá-lo para as presentes e futuras gerações. (Grifo nosso) florestais não irá ocorrer de alguma forma. A questão é que o
A acepção “bem de uso comum do povo” já estava sendo cunha- instituto cria um ônus ao poder de polícia florestal, maior do
da desde o Código Florestal (Lei n. 4.771/65), como bens de interesse que o próprio ônus já existente de fiscalizar as florestas públicas
comum a todos os habitantes do país. Há de se fazer referência aos independentemente das concessões. Se a fiscalização ocorresse
entendimentos de que a concessão não pode incidir sobre o bem regularmente nas florestas públicas não outorgadas em conces-
de uso comum (BRAZ, 2001, p. 88), e, ainda, que os bens de uso são, não seria necessária uma nova política de gestão florestal,
comum do povo são inalienáveis, conforme estabelece o art. 100 do que a Lei n. 11.284/2006 pretende inaugurar.
Código Civil. São, assim, insuscetíveis de serem objeto de posse ou de Ou seja, o discurso de que as concessões florestais visam à
quaisquer contratos (CAETANO apud DI PIETRO, 2001, p. 542). garantia da proteção das florestas (manejo florestal sustentável),
Doravante, o dispositivo constitucional, ao inserir categoria sobretudo da região Amazônica, perde-se em si mesmo: se a ad-
abstrata (meio ambiente) na condição específica de bem de uso ministração pode fiscalizar as concessões, também poderia fiscali-
comum do povo, criou uma aparente inconsonância. Fiorillo ex- zar as florestas públicas independentemente de concessão.
82 trai do dispositivo que o legislador constitucional teria criado Ademais, não se pode extrair o cunho mercadológico dado
uma categoria diferente do bem público: o bem difuso, cuja ao uso florestal, o qual, do modo como está instituído, é ineren-
responsabilidade e defesa incumbem tanto ao Poder Público temente contraditório com a preservação ambiental.
quanto à coletividade (FIORILLO, 1997, p. 94). O que se torna mais grave, dentro desse cunho mercadoló-
Seria, assim, uma categoria de bem civil ainda mais protegida gico, é a instituição do monopólio sobre o manejo florestal, na
que o bem público de uso comum, pois, pelo sentido de “difuso”, medida em que o aproveitamento econômico de cada unidade
o bem é patrimônio de toda a coletividade, ao mesmo tempo, e até de manejo será imputado apenas ao grupo econômico vence-
mesmo das gerações futuras, como ressaltou o texto constitucional. dor nos procedimentos licitatórios.
Diante desses fundamentos, a concessão florestal, tal Por mais que a lei restrinja os participantes das licitações
como instituída no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. a pessoas jurídicas com sede e administração no país (art.
11.284/2006, não encontra validade nesse mesmo ordenamen- 19), a mesma lei permite a formação de consórcios. A reali-
to, sendo defenestrada pelo crivo constitucional. dade objetiva não impedirá que grandes corporações trans-
Ainda que a finalidade expressa da concessão, conforme a nacionais assumam o controle das florestas, mediante me-
mencionada lei, seja o manejo sustentável, o aproveitamento canismos formais que não excluam o cumprimento daquele
econômico dos recursos naturais é outorgado ao particular, sem dispositivo legal, uma vez que o atual estágio do capitalismo
que este esteja prestando um serviço público, já que ficou con- dá plenas condições para isso.
substanciado que não se trata de concessão de serviço público. Vale ressaltar que os procedimentos licitatórios estão ocor-
Aziz Ab’Saber (2005) e outros notáveis do meio científico rendo por Florestas Nacionais inteiras, sendo que só a primeira
nacional e de órgãos relacionados à gestão ambiental, lançaram, delas, já em fase de licitação, a Floresta Nacional do Jamari, no
ainda em dezembro de 2005, quando estava em tramitação o Estado de Rondônia, possui uma área total de 222.299 hectares
Projeto de Lei que se tornaria a Lei n. 11.284/2006, um manifes- (BRASIL, 2007, p. 39).
to sobre a questão florestal brasileira, dizendo que o chamado Assim, o Poder Público age ao contrário do que lhe incum-
“manejo florestal sustentado” seria a introdução de um “conjunto be o art. 225, caput, e parágrafos, da Constituição Federal de
de mecanismos e favorecimentos” que só tendem a beneficiar 1988, colocando milhões de hectares de florestas brasileiras sob
grandes corporações já reconhecidamente promotoras de des- monopólio de exploração mercadológica.
matamento e exportações em madeiras em nível mundial.

5 Conclusão
As concessões florestais instituídas na Lei de Florestas Pú- NOTAS
1 Art. 1º, § 2º, II, do Código Florestal.
blicas (Lei n. 11.284/2006) são assunto ainda pouco abordado 2 Milaré (2007, p. 660) e art. 7º, § 1º, da Lei n. 9985/2000.
pela doutrina jurídica. 3 Art. 3º, inc. VI, da Lei n. 11.284/2006.

Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 43, p. 77-83, out./dez. 2008


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Artigo recebido em 24/8/2008.

Júlio da Silveira Moreira é membro da comissão de Direitos


Humanos da OAB/GO, vice-presidente da Associação Interna-
cional dos Advogados do Povo e advogado em Goiânia – GO.

Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 43, p. 77-83, out./dez. 2008

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