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Biodiversidade | Clima | Politica Ambiental

REPORTAGENS

Entenda como fica a


proteção dos manguezais e
restingas sem a resolução do
Conama

((o))eco conversou com Sandra Cureau,


subprocuradora do MPF, para esclarecer
o papel do Código Florestal, da Lei da
Mata Atlântica e da resolução nº 303 na
proteção de restingas e manguezais

DUDA MENEGASSI

4 de outubro de 2020 · 3 anos atrás

! conama ! entrevista ! legislação ambiental

! manguezal ! restinga

Restingas cumprem papel importante para fixar


dunas e para proteger a costa brasileira. Foto: Duda
Menegassi

A decisão do Conama de revogar três de


suas resoluções na última segunda-feira
(28/09) acendeu o alerta entre
ambientalistas e na sociedade civil sobre a
fragilização da legislação ambiental. A
validade da votação do Conselho foi
suspensa no dia seguinte, em liminar
expedida pela Justiça Federal do Rio de
Janeiro, mas três dias depois, na sexta-
feira (02/10), foi restabelecida pelo
Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Enquanto o assunto ainda promete render
reviravoltas nesse “vale ou não vale” das
cortes judiciais, especialistas se mobilizam
para explicar o que está em jogo. Em
especial o fim da Resolução nº 303, que
estabelece os parâmetros para as Áreas de
Preservação Permanente, é visto como um
grave risco às áreas de restingas e
manguezais.

A questão gerou dúvidas já que essas áreas


também são protegidas pela Lei da Mata
Atlântica e pelo próprio Código Florestal. O
próprio ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, usou essa narrativa de
redundância jurídica para justificar a
revogação da norma, que passaria a ser
cumprida de acordo com critérios
estabelecidos individualmente pelos
estados.

Para esclarecer o que estabelece a


Resolução nº 303/2002 do Conama e o
que se perde com a sua revogação, em
especial para os ecossistemas costeiros,
((o))eco conversou com a subprocuradora-
geral da República, Sandra Cureau. Em
2013, Cureau foi responsável por assinar
três das quatro Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (Adins) que
questionavam pontos do Código Florestal,
entre eles a própria definição de Área de
Preservação Permanente (APP). Além
disso, a subprocuradora atuou por 10 anos
como Coordenadora da 4ª Câmara de
Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal, que trata de assuntos de
Meio Ambiente.

Na entrevista, Cureau esclarece que nem


Código Florestal nem a Lei da Mata
Atlântica são suficientes para garantir a
proteção de restingas e manguezais já que,
apesar de ambos os textos citarem a
necessidade de se proteger esses
ecossistemas costeiros, nenhum deles
define como será feita essa proteção. “Essa
proteção foi garantida pelas resoluções do
Conama especificamente. E quando as
resoluções caíram, a proteção caiu
também. Manguezais e restingas estão
desprotegidos”, alerta.

Leia a entrevista de ((o))eco com a


subprocuradora na íntegra:

((o))eco: Há o Código Florestal e,


sobre a maior parte do litoral,
também vigora a Lei da Mata
Atlântica. Especificamente sobre a
proteção desses ambientes costeiros,
as restingas e manguezais, como fica
essa proteção se a revogação da
resolução nº 303 do Conama for
mantida?

Sandra Cureau: Eu vou tentar te explicar


desde o começo o problema. Quando esse
novo Código Florestal de 2012 entrou em
vigor, fui eu que ingressei com as três
Ações Diretas de Inconstitucionalidade
[Adins], porque à época eu era substituta
do procurador-geral. E as ações visavam
justamente a inconstitucionalidade dos
dispositivos do novo Código Florestal que
flexibilizam a proteção dos ecossistemas (e
aí entra inclusive a Mata Atlântica e todos
os demais biomas), em relação ao Código
Florestal anterior. Ou seja, esse novo
Código Florestal tornou menos protegidas
essas áreas litorâneas e outras tantas áreas.
A proteção se tornou menor. E o Supremo
confirmou a constitucionalidade do novo
Código Florestal. As poucas coisas que o
Supremo julgou inconstitucionais não
mexeram nessas áreas das quais está se
falando [restingas e manguezais], ao
contrário do que a gente defendia. Nós
achávamos que tinha muita coisa
inconstitucional, tudo que, de alguma
maneira, era retrocesso em matéria
ambiental.

Restingas estão ameaçadas principalmente pelo


avanço do setor imobiliário. Foto: Duda Menegassi

A partir daquela data — e isso já faz um


tempinho — a gente começou a ficar
preocupado com as resoluções do Conama
baseadas na legislação anterior. Como são
resoluções nós chamamos de lei lato sensu.
Quer dizer, lei em sentido “largo”, não são
leis em sentido estrito [stricto sensu]
porque não são leis que provém do poder
legislativo. As resoluções são baixadas pelo
Conama. E a gente naquela época já
começou a ficar preocupado com o que iria
acontecer com todas as resoluções do
Conama que de alguma maneira não
estivessem expressamente amparadas pelo
novo Código Florestal, que é o caso dessas
que foram julgadas agora, na segunda-feira
[28/09, data da reunião do Conama]. Ou
seja, havia esse risco desde aquela época.

Do ponto de vista da proteção do meio


ambiente é péssimo porque obviamente
essa decisão do Conama visou abrir espaço
para a carcinicultura [criação de camarão
em viveiros]. Porque a proteção dos
manguezais na resolução do Conama não
possibilitava que se fizessem tanques para
carcinicultura em áreas de manguezal. O
manguezal é uma área muito importante
porque é uma área que além de servir de
abrigo para vários animais, também serve
como alimento para várias espécies. E as
restingas, que também entraram na dança,
são protetoras de dunas, e de determinadas
espécies da fauna e da flora também. E
tudo isso ficou agora desprotegido. Muito
provavelmente na parte das restingas,
quem saiu ganhando com a derrubada da
resolução foi a especulação imobiliária,
porque não se podia construir nessas áreas,
eram áreas protegidas. Agora pode. Do
ponto de vista ambiental é uma catástrofe.
Porque essas áreas não têm nenhuma
proteção específica nem na Lei da Mata
Atlântica nem no Código Florestal, essa
proteção foi garantida pelas resoluções do
Conama especificamente. E quando as
resoluções caíram, a proteção caiu
também.

Essa é a dúvida de muita gente,


porque o Código Florestal especifica
restingas e manguezais como
ambientes a serem protegidos, mas
não estabelece nenhum parâmetro
para isso. Qual a leitura sobre essa
proteção estabelecida no Código?

Cureau: Exatamente. Não estabelece


porque as resoluções servem exatamente
para estabelecer critérios, limites, até
quantos quilômetros… É a resolução que
vai especificar a forma de proteção. A
resolução não é uma lei no sentido estrito,
então ela não pode dizer que precisa ser
protegido, quem diz isso é a lei. Já a lei diz
o que tem que ser protegido, mas não diz
como. Então é a resolução que entra nesses
detalhes. E nesse caso, como a resolução
caiu, não tem mais nenhum dispositivo
legal – lato sensu ou stricto sensu – que
diga o que é que tem que ser protegido em
matéria de restinga ou em matéria de
manguezal. Essas áreas, nesse momento,
estão totalmente desprotegidas porque não
há nada que delimite o tipo de proteção,
como ele deve ser feito, quais são as áreas,
etc.

E a Lei da Mata Atlântica também


não faz isso?

Não, não faz. Nenhuma delas. As leis não


entram nesses detalhes. Normalmente são
decretos que regulamentam as leis e as
resoluções do Conama também faziam esse
papel, sempre fizeram, de entrar em
detalhes em relação ao que as leis diziam
de uma maneira ampla. Caindo as
resoluções do Conama, manguezais e
restingas estão desprotegidos.

Mangues servem também como área de alimento


para diversas espécies. Foto: Duda Menegassi

A justificativa do ministro Ricardo


Salles para votar essas revogações é
de que elas sobrepunham o que já
estava dito em leis superiores, como
o próprio Código Florestal e a Lei da
Mata Atlântica.

Não é verdade. As leis dizem de uma forma


ampla, dizem que restingas e manguezais
devem ser protegidos, mas não dizem
como, não dizem até que limite. E nem
poderiam. Você imagina o Código Florestal
entrando em detalhe em relação a cada
uma das áreas que compõem os nossos
ecossistemas, que tamanho que teria esse
Código Florestal? É uma norma geral e os
detalhes são estabelecidos por leis de
hierarquia inferior ao Código. Nesse caso, o
que amparava essa legislação eram as
resoluções do Conama, que eram
anteriores ao Código Florestal [a resolução
303 data de 2002]. E, desde que o
Supremo julgou constitucional o novo
Código, a gente tinha medo de que
acontecesse o que aconteceu agora. Que de
repente essas resoluções fossem
derrubadas.

Caberá então aos estados interpretar


o quê vai ser essa proteção? Como
você acha que isso funcionará?

Mais ou menos isso sim. Os estados


poderão, sem dúvida nenhuma, a partir do
que o que o Código Florestal diz, e as leis
específicas, como a Lei da Mata Atlântica,
dizer o que vai ser. Mas aí nós temos outro
problema. Por exemplo, nos estados do
nordeste. Economicamente, carcinicultura
pros estados é bom. Ecologicamente, é
péssimo. O quê vai prevalecer? Os
interesses econômicos ou os do meio
ambiente? Pelo que a gente está vendo
atualmente, os interesses ambientais estão
em último lugar.

O que a gente consegue prever é que daqui


para frente vai ser muito difícil. A não ser
que surja alguma iniciativa legislativa que
possa de alguma forma regulamentar esses
dispositivos, dizendo o que é que tem que
ser protegido. Mas eu não tenho esperança
nos estados, sinceramente. Não tenho
esperança de que os estados vão dizer que
não pode a carcinicultura, por exemplo. Vai
sobrar pra eles e eles vão privilegiar a
atividade econômica em detrimento da
proteção do meio ambiente.

A Resolução nº 303 regulamenta a


proteção não apenas de restingas e
manguezais, mas também de outras
APPs, como nascentes e topos de
morro. Como fica a proteção desses
ambientes sem a resolução?

Algumas delas no Código Florestal já têm


proteção específica. Por exemplo, as
nascentes de rios. Então, eu acredito que a
situação é melhor. Topos de morro
também. O que a gente vê num primeiro
momento é exatamente o risco às restingas
e manguezais, mas pode ter mais coisa que
venha a ser desprovida de proteção a partir
desse momento. Mas algumas áreas o
próprio Código Florestal já diz que não
pode haver intervenção humana, nessas
não se pode mexer. Mas essas que nem
Código nem outra lei não especificam,
essas estão desprotegidas.

Manguezais são abrigo para peixes e aves. Foto:


Duda Menegassi

No dia seguinte à votação, a Justiça


emitiu liminar que suspendia a
validade dos atos definidos na
reunião. Três dias depois, a liminar
foi derrubada e as decisões do
Conama voltaram a valer. Qual sua
perspectiva pro futuro dessa queda
de braço jurídica?

Eu coordenei por 10 anos a 4ª Câmara [de


de Coordenação e Revisão], que é a de
Meio Ambiente, do Ministério Público
Federal. E atualmente eu atuo no Superior
Tribunal de Justiça (STJ) no Núcleo de
tutela coletiva, então eu atuo nesse tipo de
ações. O que eu tenho visto é que nos
Tribunais de Justiça normalmente os
interesses econômicos sempre prevalecem.
Nos Tribunais Regionais Federais,
depende. Mas, de qualquer maneira, vai
caber recurso com o STJ ou com o
Supremo [para reverter a decisão do
Conama]. São coisas que se arrastam
durante um tempo e, enquanto isso, os
manguezais e as restingas vão sendo
destruídos. Mesmo que o Supremo venha a
dizer mais a frente que não pode construir
em área de restinga ou que não pode fazer
tanques de carcinicultura em manguezais,
mesmo assim já vai ter havido uma
destruição daqueles ecossistemas que pode
ser irreversível. E esse é o medo que a
gente tem:, da irreversibilidade do que vai
acontecer enquanto se discute na justiça,
porque nunca é rápido.

Tem muita gente que não sabe para quê


serve uma restinga ou um manguezal. E a
gente precisa ir explicando para ver se as
pessoas se tocam e veem o que estão
tirando da gente. Porque as pessoas não
sabem às vezes para que serve, aí quando
desaparece elas descobrem, mas aí já não
adianta mais.

Há um Projeto de Lei no Congresso – que


entrou agora – restabelecendo a proteção
dessas áreas [Projeto de Decreto de Lei
apresentado pelo PSOL para sustar a
decisão do colegiado] , mas que não
sabemos se será aprovado ou não. Me
parece que a única solução agora está na
mão dos legisladores. Se um Projeto de Lei
passar dizendo alguma coisa a gente fica
mais tranquilo. Mas hoje a composição do
Congresso não é favorável ao meio
ambiente, esse é o problema.

É importante também que se restabeleça a


composição original do Conama, de 96
pessoas [hoje são 23], onde a sociedade
civil possa ter participação e que seja uma
participação paritária. O Conama hoje é
um órgão composto exclusivamente por
quem? Ministérios, confederações, tem um
representante do Ministério Público e um

ENTRAR
 sociedade,
representante  que éda ONG

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