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DIGNIDADE HUMANA E DIREITOS HUMANOS

Aline Albuquerque S. de Oliveira

Luana P. F. Pagani
Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília

ARTIGO 3 – Dignidade Humana e Direitos Humanos

a) A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser


respeitados em sua totalidade.

b) Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem ter prioridade sobre o interesse


exclusivo da ciência ou da sociedade.

1. Introdução

Conforme pode ser constatado na literatura corrente sobre o tema, os direitos


humanos apresentam uma ampla gama de possibilidades de abordagens. Para este
capítulo, escolheu-se conceituá-los e tratá-los sob o enfoque do contexto latino-
americano, com o intuito de mostrar como a bioética na América Latina se conecta com
a linguagem dos direitos humanos construída na região. Assim, o capítulo se encontra
organizado em quatro partes: a primeira aborda o conceito de direitos humanos, a
segunda trata de suas especificidades na América Latina, a terceira foca a sua
interconexão com a bioética e a última consiste numa análise de caso relacionado à
discussão aqui apresentada.
A primeira parte objetiva apresentar ao leitor uma introdução ao conceito dos
direitos humanos, considerando-os sob três perspectivas: filosófica, jurídica e política.
Com base nessas três visões, tem-se como escopo expor a variada gama de conceituação
dos direitos humanos, demonstrando sua complexidade e historicidade. A segunda parte
busca enfocá-los à luz da experiência latino-americana, com maior ênfase nas
especificidades dos direitos humanos na região, que emergiram dos movimentos
opositores às ditaduras militares das décadas de sessenta a oitenta e da adoção da
política econômica neoliberal, nos anos noventa e no começo do século XXI. A terceira
seção tem como escopo apontar as possibilidades da interconexão entre bioética e
direitos humanos, a partir de uma breve abordagem do ponto de vista global, que se
propõe a expor como a interface entre bioética e direitos humanos vem sendo percebida
pela comunidade de bioeticistas de diversas regiões e como tal interconexão foi
incorporada a normativas internacionais. Em seguida, detém-se na bioética
desenvolvida na América Latina e em sua correlação com os direitos humanos, bem
como são empregados dois exemplos, saúde pública e ética em pesquisa, para
demonstrar como a bioética latino-americana pode incorporar o referencial dos direitos
humanos.
Ao final, analisa-se o caso escolhido, denominado Caso Damião Ximenes
vs. Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2006, que
foi o primeiro caso analisado pela Corte. de violação de direitos humanos de pessoas
com transtornos mentais. Damião Ximenes era um paciente com transtornos mentais
que faleceu em virtude de maus tratos sofridos em clínica psiquiátrica vinculada ao
Sistema Único de Saúde. A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a
responsabilidade do Estado brasileiro por violação de direitos humanos e definiu, em
sua sentença, uma série de medidas a serem implementadas pelo Estado. O Caso
Damião Ximenes é paradigmático para a construção de uma Bioética que considere em
suas reflexões e prescrições o referencial dos direitos humanos, na medida em que a
grave violação dos direitos humanos em instituição de saúde revela flagrante
desrespeito à autonomia do paciente e à obrigação estatal de proteção dos vulneráveis.
Esse caso, Damião Ximenes, demonstra que médicos, enfermeiros e profissionais de
saúde, em geral, não apenas deveriam ter como balizamento ético de conduta os
princípios hipocráticos ou os códigos deontológicos, mas, essencialmente, princípios de
direitos humanos, tais como a igual consideração de todas as pessoas humanas,
independentemente de sua condição social ou de suas habilidades cognitivas e
apreensão racional da realidade.

2. Conceito de direitos humanos: perspectivas filosófica, jurídica e política.


A tripartição da abordagem dos direitos humanos, evocada neste capítulo
fundamenta-se nos estudos desenvolvidos por Evans (1) sobre os três discursos que
atravessam tais direitos: 1) filosófico; 2) jurídico e 3) político.
Sob o viés filosófico, segundo Evans (1), os direitos humanos consistem num
discurso abstrato que se centra essencialmente sobre os fundamentos teóricos que os
legitimam enquanto exigências da pessoa humana em face dos Estados.
Embora a filosofia jusnaturalista, por meio da construção teórica em torno do
direito natural e do contrato social, ter sido a maior influência filosófica do arcabouço
dos direitos humanos, há uma ampla gama de teóricos e correntes que buscam alicerces
filosóficos em outras teorias. Por exemplo, Fernández (2), filósofo do Direito, apresenta
o problema do fundamento dos direitos humanos dividindo-o em três vertentes: a
fundamentação jusnaturalista, correlacionando direitos humanos e natureza humana;
fundamentação historicista, a qual compreende os direitos humanos como direitos
históricos; e fundamentação ética, que os classifica como direitos morais e aponta sua
dupla natureza: ética e jurídica, ambas ancorando-se nos valores da dignidade humana.
Já Perez Luño (3), constitucionalista, ao abordar a temática da fundamentação dos
direitos humanos, enumera três espécies de fundamentação: objetivista, que abarca a
ética material dos valores e o objetivismo ontológico cristão; subjetivista, a qual
abrange as teorias que se ancoram na liberdade individual e a libertária; e
intersubjetivista, baseada na teoria consensual da verdade. Esses teóricos, que buscam
fundamentar os direitos humanos filosoficamente, sustentam afirmações fundacionais,
pois têm como alvo apresentar justificativas teóricas para alicerçá-los. Ao passo que
outros, como Bobbio (4) e Ignatieff (5) criticam teorias fundacionais sobre os direitos
humanos, na medida em que elas muitas vezes os enfraquecem em razão da ausência de
consenso entre os possíveis fundamentos teóricos dos direitos humanos (5). Nessa linha,
Bobbio (4) pontua que a crise dos fundamentos dos direitos humanos não é uma questão
central na atualidade, mas sim o “problema fundamental em relação aos direitos do
homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los” (4). Então, pode-se
afirmar que há abordagens fundacionais, as que investigam filosoficamente
fundamentos legitimadores dos direitos humanos, e as abordagens não-fundacionais,
que mitigam a importância de discursos filosóficos na tarefa de legitimação dos direitos
humanos.
Com o intuito de conceituar os direitos humanos sob a ótica de uma abordagem
filosófica, neste capítulo, optou-se por adotar uma das vertentes fundacionais: a
fundamentação ética desenvolvida por Fernández (2), que compreende os direitos
humanos como exigências éticas positivadas. Explicando, os direitos humanos
apresentam-se como exigências sociais historicamente contextualizadas cuja natureza
ética decorre de sua vinculação com a satisfação de necessidades básicas e liberdades
fundamentais. Sendo assim, os direitos humanos podem ser conceituados como:
Os direitos humanos são exigências éticas ou valores e paralelamente normas
positivadas, pois sua “autêntica realização” (2) pressupõe que estejam incorporados ao
ordenamento jurídico.

Com o propósito de expor a dificuldade de adotar uma conceituação filosófica


unívoca de direitos humanos, registre-se que para Sen (6), os direitos humanos são
pretensões éticas imbricadas com a liberdade humana, consistindo em uma abordagem
ética e não em estatutos legais. Para Sen (6), os direitos humanos motivam, além da
adoção de outros meios e instrumentos de alteração social, a elaboração de legislações
específicas, portanto, é equivocado restringi-los aos dispositivos de normas jurídicas.
Em suma, segundo o prisma de Sen, os direitos humanos são “declarações éticas
realmente fortes sobre o que deve ser feito” (6).
O discurso jurídico acerca dos direitos humanos foca-se nos instrumentos
normativos internacionais que os positivam. Os direitos humanos, sob a perspectiva
legal, referem-se a um sistema de direito positivo (7), ou seja, ao conjunto de normas
que conformam o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), cujos
instrumentos principais são: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, compreendidos como o
coração do DIHD. Nas esferas dos Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos
Humanos, ou seja, no Interamericano, Europeu e no Africano, há normas e meios de
monitoramento próprios. Além desses instrumentos, a Organização das Nações Unidas
(ONU) conta, atualmente, com sete convenções sobre direitos humanos, que
representam a passagem do “homem genérico”, contido na Declaração de 1948, para o
“homem específico”, “tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base
em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um
dos quais revela diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e igual
proteção” (4). As normativas específicas são: Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Racial, de 1965, Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, Convenção contra a Tortura e
Outras Formas de Tratamento ou Punição Cruel, Desumano ou Degradante, de 1984,
Convenção sobre os Direitos das Crianças, de 1989, Convenção Internacional sobre a
Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de sua Família,
de 1990, Convenção Internacional para a Proteção de Pessoas submetidas a
Desaparecimento Forçado, de 2006, e Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, de 2006.
O discurso jurídico sobre os direitos humanos pode ser dividido em duas áreas:
a primeira envolve os debates sobre a natureza e status do direito internacional a partir
da problematização de conceitos como soberania, não intervenção e jurisdição
doméstica; e a segunda abarca a análise de questões relacionadas à interpretação e
aplicação das normativas internacionais (1), como, por exemplo, o exame de situações
particulares de violação de direitos humanos extraídas de determinada Convenção, a
análise de documentos produzidos pelos órgãos de monitoramento dos direitos
humanos, e o estudo da jurisprudência das Cortes de direitos humanos.
O discurso jurídico é o que confere maior visibilidade para os direitos
humanos, assim como garante a existência de normas próprias e um aparato construído
para monitorá-los, aparato esse composto por órgãos e cortes; esse conjunto revela que,
em termos jurídicos, os direitos humanos consistem num discurso universalmente
consolidado. Assim, com base em sua dimensão jurídica, pode-se afirmar que:

Os direitos humanos são direitos que as pessoas têm tão somente pelo fato de
pertencerem à espécie humana (8), são direitos legalmente assegurados em normativas
internacionais, centrados na dignidade humana, que visam à proteção de pessoas ou
grupos populacionais, e possuem caráter vinculante para os Estados e agentes estatais,
assim como são interdependentes e universais (9)

Quanto à questão da universalidade dos direitos humanos, embora a


complexidade do tema impeça que seja adequadamente tratado neste capítulo, é
importante não deixar de mencionar que a assunção da sua universalidade é permeada
por dissensos. Neste capítulo, parte-se da premissa constante da Declaração e Programa
de Ação de Viena, adotada por 171 Estados na II Conferência Internacional de Direitos
Humanos realizada em 1993 (10), em que, no item 5 afirma: “todos os direitos humanos
são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados”. A partir de 1993,
pode-se afirmar que, no nível formal, os direitos humanos foram reconhecidos pela
maior parte dos Estados como normas universais. Tal reconhecimento significa que os
direitos humanos são uma linguagem partilhada mesmo por Estados com culturas ou
sistemas políticos divergentes. Não obstante o universalismo formal afirmado em 1993,
observa-se três fontes distintas de desafio cultural ao universalismo: a primeira provém
do islamismo, a segunda dos denominados valores asiáticos e a terceira do próprio
Ocidente. Os três desafios serão ligeiramente tratados sem seguida. Em primeiro lugar,
o discurso universalista dos direitos humanos, baseado na exigência ética de que os
indivíduos sejam soberanos e independentes, choca-se com certas interpretações do
Alcorão, em Estados cujos direitos de casar-se, fundar uma família ou escolher
livremente seu par colidem com a autoridade islâmica. Em segundo lugar, os “valores
asiáticos”, que foram defendidos por países asiáticos em Bancoc, durante o ano de 1993,
enquanto uma abordagem particular dos direitos humanos no sentido de justificar
regimes autoritários com base nas especificidades culturais e políticas asiáticas (10). E,
por fim, dentre as culturas que deram origem aos direitos humanos, a inglesa, a francesa
e a estadunidense, há perspectivas discordantes sobre aspectos fundamentais, tais como
privacidade, liberdade de expressão, e direito à vida (1). Portanto, evocar a
universalidade dos direitos humanos não significa ignorar seus limites na sociedade
global e reconhecer sua relevância, enquanto linguagem comum, para a constituição de
mínimos básicos que articulam de modo mais coerente a igualdade moral de todos os
indivíduos (5).
No processo de elaboração da Declaração Universal de 1948 não estava apenas
presente a tradição ocidental, havia representantes de tradições culturais e religiosas
distintas, tais como chinesa, cristã do Oriente Médio, a hindu, a islâmica, a latino-
americana e outras, e consistiu numa tentativa de definir um conjunto limitado de
moralidades universais (5). É sabido que o conceito de universalismo nunca será
universalmente compartilhado, pois num mundo onde a assimetria de poder é crescente,
os poderosos e os vulneráveis não estão de acordo sobre proposições que sustentam os
direitos humanos, que são universais porque empoderam os vulneráveis contra a
opressão que sofrem em sociedades desiguais. Entretanto, do universalismo dos direitos
humanos não decorre o direito de intervir em culturas tradicionais que são aceitas por
seus membros, pois “os direitos humanos não são universais por ser um mandato
cultural, mas sim um discurso de atribuição de poder moral” (5). Com efeito, o papel
dos direitos humanos não é o de definir o conteúdo de culturas particulares, mas sim de
atribuir poder a seus componentes a fim de que possam deliberar sobre suas próprias
vidas e os caminhos políticos da sociedade da qual fazem parte, salvo em situações onde
há violações maciças e irreparáveis, situações nas quais se tem o recurso à intervenção
humanitária. Em ultima instância, os direitos humanos apregoam a defesa de padrões
mínimos de dignidade humana, sem violar o direito à autonomia cultural (5).
O discurso político dos direitos humanos confere ênfase ao contexto político
em que se inserem, do que se depreendem entendimentos variados acerca de tais direitos
conforme a textura histórica. Nessa linha, destaca-se que a criação das Nações Unidas
colocou os direitos humanos no centro da política internacional. Foram criados
convenções e meios de monitoramento, tais como relatórios periódicos e comunicações
individuais no seio das Nações Unidas e dos Sistemas Regionais. Contudo, as violações
dos direitos humanos permanecem sendo corriqueiras. Conforme aponta Evans (1), a
disjunção entre o arcabouço formal dos direitos humanos e as práticas dos governos, de
corporações transnacionais e de instituições financeiras pode ser explicada a partir de
duas hipóteses: a primeira diz respeito à postura leniente da comunidade internacional
quanto ao monitoramento dos direitos humanos, distintamente de seu afã normativo; e a
segunda refere-se a uma abordagem dos direitos humanos focada em sua violação e não
em sua causa ou meios de prevenção. As causas de grande parte das violações dos
direitos humanos podem ser encontradas na política econômica global, por isso o
entendimento dos direitos humanos à luz do discurso político implica sua percepção a
partir de contextos sociais, econômicos, culturais e políticos.
Tendo em conta o início da formulação dos direitos humanos, as primeiras
Declarações de Direitos do século XVIII, tais como a Estadunidense e a Francesa,
refletem a radical transformação da sociedade à época, que se deu a partir da
substituição de princípios da antiga ordem, do direito divino dos reis, da autoridade da
Igreja e do dever de obedecer ao monarca, pelos princípios do povo como soberano e os
direitos dos cidadãos. A opressão do poder tirânico e a luta do povo contra essa opressão
produziram uma ambiência propícia para acepções como as de dignidade humana e
liberdade pessoal (1). Dessa forma, o discurso político sobre direitos humanos os
considera como um instrumento dos oprimidos pelo poder, como uma arma moral apta a
instrumentalizá-los na luta contra a tirania. No século XIX, os direitos humanos quase
desapareceram do discurso legal e político, conceitos como “civilização”, “nação”,
“raça” e “classe” ganharam predominância. Apenas na segunda metade do século XX os
direitos humanos adquiriram um papel proeminente na agenda política global (11).
Assim, o discurso dos direitos humanos unificou os Estados aliados contra o Nazismo,
porém, esse consenso durou pouco. Durante a Guerra Fria, destaca-se a contenda entre
os países dos blocos socialista e capitalista. Os primeiros argumentavam que os direitos
desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa eram reflexo de valores burgueses e de
pouca valia para os pobres e excluídos, ao passo que a visão dos socialistas seria,
segundo sustentavam, a mais apropriada para a promoção e realização dos direitos
humanos. Ainda durante os anos sessenta, após o processo de descolonização, os países
do chamado “Terceiro Mundo” passaram a ser maioria nas Nações Unidas (10). Com
isso tais países conseguiram introduzir sua concepção de direitos humanos nos
organismos internacionais, a qual estava, em geral, em consonância com a do bloco
socialista, ou seja, os direitos sociais e econômicos não estavam em segundo plano
quando cotejados com os direitos civis e políticos. Sustentavam, inclusive, que a Carta
das Nações Unidas alçou os direitos humanos ao centro da nova ordem mundial e que o
princípio da autodeterminação dos povos, previsto no artigo 1º do Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos, era um valor a ser resguardado, incluindo-se a soberania
permanente sobre seus recursos naturais, o que não agradou aos países desenvolvidos
porque ameaçava as corporações transnacionais. Durante a Guerra Fria, os direitos
humanos foram utilizados pelos dois blocos conforme seus interesses, de modo a
justificar sua superioridade moral, desempenhando um papel ideológico importante na
batalha entre capitalismo e socialismo (1). No mesmo sentido, os países do “Terceiro
Mundo” evocaram os direitos humanos para expor a hipocrisia do Ocidente rico (11).
Em suma, os direitos humanos constituíram uma linguagem política global.
Nesse contexto, a sociedade civil inicia, durante as décadas de setenta e oitenta,
o ativismo dos direitos humanos, levado a cabo por organizações não governamentais
internacionais. As pioneiras são a Anistia Internacional, em 1961, a Human Rigthts
Watch, em 1978, e os Médecins sans Frotières, em 1971 (12).
No pós Guerra Fria, com o final da batalha entre socialistas e capitalistas, as
intervenções humanitárias, levadas a cabo pelas Nações Unidas, foram eleitas como
instrumento hábil a lidar com maciças violações dos direitos humanos. Embora a
adoção de mecanismos contundentes para obstar graves violações dos direitos humanos
revele-se favorável à proteção dos vulneráveis e oprimidos, a passagem de mundo
bipolar para multipolar provocou usos distintos dos direitos humanos de acordo com a
necessidade dos Estados de apoiar suas posições políticas e medidas interventivas (1).
Isto é, as escolhas dos Estados hegemônicos quanto às intervenções humanitárias muitas
vezes baseiam-se em interesses econômicos e políticos, configurando um uso seletivo
do que dispõem as Nações Unidas e organizações internacionais para a defesa dos
direitos humanos. Como exemplo, os direitos humanos foram empregados como
argumento pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para a intervenção
da Bósnia, entre os anos de 1992 a 1995. Nesse percurso histórico, a globalização,
mormente econômica, acarretou a centralização do poder em organizações
internacionais, como Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do
Comércio, bem como em corporações transnacionais e instituições do sistema
financeiro, em consequência, verifica-se o declínio dos Estados na nova ordem global. A
globalização acarretou a diminuição do Estado como centro deliberativo internacional,
em contraposição aos imperativos do mercado. Assim, o atual desafio para os direitos
humanos e, particularmente para os direitos sociais e econômicos, está nos imperativos
das instituições e dos organismos internacionais financeiros que objetivam a restrição
dos gastos sociais dos governos, sendo os maiores cortes nos gastos com saúde,
educação e seguridade social. Observa-se, então, que a globalização desempenha um
papel crucial nas possibilidades concretas das vulneráveis, excluídos e oprimidos de
gozar das políticas sociais decursivas dos direitos humanos (1). Portanto, atualmente a
luta pelos direitos humanos é intrinsecamente contra hegemônica e eles atendem
basicamente a grupos oprimidos pelos poderes dominantes (12).
O exame do conceito de direitos humanos enquanto discurso político desvela
sua historicidade e complexidade, bem como demonstra que são historicamente
contingentes e politicamente contestáveis (11).
Portanto, sob tal perspectiva, os direitos humanos são uma linguagem política utilizada
pelos Estados na arena internacional, com o objetivo de legitimar suas práticas e, ao
mesmo tempo, consistem, na atualidade, em instrumentos reivindicatórios do ativismo
social contra a hegemonia das organizações internacionais, corporações transnacionais
e instituições do sistema financeiro.

No item subsequente serão objeto de exame alguns aspectos singulares dos


direitos humanos na América Latina com ênfase em suas perspectivas política e jurídica.
2.1. Direitos humanos na América Latina

Nesta parte do capítulo, tem-se como foco o exame dos direitos humanos no
contexto latino-americano, a partir de sua abordagem política e jurídica. Objetiva-se
traçar o percurso histórico, iniciado no pós-Segunda Guerra Mundial até os dias atuais,
referente à incorporação jurídica e política dos direitos humanos na latino-américa.
Registre-se que o tratamento do tema não é exaustivo, teve-se como escopo tão somente
ilustrar de que modo alguns países dessa região se relacionaram com o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, incluindo suas normativas e órgãos de
monitoramento.

As raízes da democracia na América Latina nunca foram sólidas (13), suas


instituições não foram suficientemente consolidadas e a participação efetiva do povo
nas instâncias de poder não se revela capaz de fazer com que o exercício do poder
estatal seja efetivado com a finalidade de atender suas demandas. Com efeito, durante as
décadas de setenta e oitenta, enquanto atores governamentais e não governamentais
promoviam o incremento do Sistema de Proteção dos Direitos Humanos das Nações
Unidas mediante a produção normativa e a instituição de meios de monitoramento, a
maior parte dos países da América Latina estavam imersos em ditaturas militares, que
rotineiramente lançavam mão da tortura, desaparecimento forçado, execução
extrajudicial e outras práticas violadoras dos direitos humanos para manterem-se no
poder. Como exemplo, os governos ditatoriais da Argentina, Chile e Guatemala, nos
anos setenta, adotaram a prática sistemática do desaparecimento forçado e a Anistia
Internacional revelou, nos anos oitenta, a prática de tortura em quinze países: Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras,
México, Paraguai, Peru, Suriname, e Uruguai (14).

Os direitos humanos tornaram-se um referencial político importante na América


Latina a partir das ditaduras militares. As graves violações dos direitos humanos na
região perpetradas pelos governos ditatoriais fizeram dos direitos humanos um elemento
essencial do debate político, pois a defesa dos direitos humanos dos oprimidos pelas
ditaduras era um discurso de oposição difícil de ser neutralizado pelos governos.
Organizações não governamentais e grupos políticos dissidentes lançavam mão do
discurso dos direitos humanos para reivindicar a redemocratização do Estado (15). No
plano internacional, as violações dos direitos humanos na América Latina se
projetavam. Impulsionada pelo que ocorria em países do “Terceiro Mundo”, a Comissão
de Direitos Humanos das Nações Unidas passa a ter uma posição mais
“intervencionista”, que se materializou na criação do Grupo de Trabalho sobre a
Situação de Direitos Humanos no Chile, em 1975. Consistiu no primeiro caso de
investigação ostensiva de situação relacionada à violação maciça de direitos civis e
políticos, ocorrida dentro de um Estado (16). Ainda, na esfera internacional, as
vicissitudes do regime militar no Brasil refletiram nos posicionamentos adotados pelo
Estado em foros internacionais, como, por exemplo, na posição quanto à
responsabilidade exclusiva do governo de cada país acerca da situação de direitos
humanos (16).

Com o processo de democratização dos países latino-americanos, entre os anos


de 1978 e 1991, período em que todos passaram a ter regimes democráticos com
exceção de Cuba (15), verificou-se que os direitos humanos, elemento crucial na luta
contra as ditaduras militares, passaram a ter um papel proeminente nas novas
democracias constitucionais (15). No Brasil, a Constituição da República de 1988
espelha exemplarmente a ênfase que é dada pela sociedade civil e grupos políticos à
linguagem dos direitos humanos, com a previsão de rol extenso de direitos e garantias
fundamentais. Ademais, como reflexo da mudança de postura do país com relação aos
direitos humanos, com a abertura democrática o Brasil ratificou uma série de tratados de
direitos humanos na década de noventa, em particular, ressalta-se a ratificação dos dois
Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (16).

Entretanto, a incorporação da linguagem dos direitos humanos ao discurso


político regional e a ratificação dos instrumentos normativos internacionais não
implicaram maior comprometimento dos governos latino-americanos com os direitos
humanos, principalmente os direitos sociais. O acolhimento de políticas neoliberais na
década de noventa, por grande parte dos países da região, acentuou problemas sociais
estruturais que, em sua essência, conduzem à violação dos direitos humanos (16). O
relatório do Banco Mundial de 2004 afirma que a América Latina padece de enorme
desigualdade, o que marca variados aspectos da vida de sua população, como acesso à
educação, à saúde, ao trabalho formal e aos serviços públicos em geral (18). Como
visto, o poder das corporações transnacionais e das instituições financeiras de interferir
nas políticas públicas, associado a elites subservientes, vêm acarretado a supressão de
direitos sociais, tais como: a flexibilização dos direitos trabalhistas e a redução de
investimentos em saúde e educação, minando a fruição desses direitos humanos por
parte da população mais vulnerável.
Conforme assinala Parisí (17), as paisagens nacionais dos Estados constituintes
da América Latina são similares: pobreza, corrupção, negligencia governamental,
clientelismo político e desigualdade. A despeito das democracias instaladas e da adesão
formal aos direitos humanos e sua adoção como instrumental de luta política dos
excluídos e vulneráveis, ainda se tem um notável distanciamento entre o discurso
jurídico dos direitos humanos, seu uso pelos Estados como forma de legitimação de seu
poder na arena internacional, e a sua implementação, principalmente no que diz respeito
a certos grupos populacionais, como indígenas, afrodescendentes, e aqueles de baixa
renda.

Considerando as peculiaridades dos direitos humanos na América Latina no


tópico seguinte tratamos da relação entre bioética e tais direitos.

3. Os direitos humanos e a bioética

Consoante o apontado neste capítulo, os direitos humanos não apresentam


conceito unívoco, o entendimento de seu significado varia conforme suas percepções
filosófica, jurídica ou política. Da mesma forma, a bioética, além de seu conceito não
ser consenso na comunidade dos bioeticistas, pode se apresentar como discurso teórico,
desenvolvido na academia, ou jurídico, por meio de normativas. Sendo assim, com o
intuito de mapear modos de interface entre direitos humanos e a bioética, optou-se por
partir da conceituação jurídica de tais direitos, ou seja, fundamentando-se na acepção de
direitos humanos como conjunto de normas previstas em tratados e declarações
internacionais, e da bioética segundo suas dimensões teórica e normativa. Em primeiro
lugar, apresenta-se uma abordagem dessa interconexão de modo global e, em seguida,
apontam-se questões relacionadas a essa interconexão com base nos estudos de Bioética
da América Latina.

No plano global e em nível teórico, há dissenso no que toca à conexão entre


bioética e direitos humanos. Alguns bioeticistas rechaçam a importância do referencial
dos direitos humanos e outros vão além, criticando qualquer tentativa de aproximação
entre ambos. Sakamoto (19) prega o abandono do referencial dos direitos humanos por
considerá-lo extremamente antropocêntrico e estranho a culturas não Ocidentais, como
a Asiática. Ladman e Schülenk (20) ressaltam que os direitos humanos é um referencial
ideológico sem proeminência na análise profissional bioética, além de fazerem parte da
filosofia europeia iluminista. Por outro lado, outros, como Andorno (21), McLean (22) e
Annas (23) advogam a conexão entre bioética e direitos humanos, sustentando essa
posição na compreensão de que os direitos humanos ampliam a agenda da bioética para
temas sociais, como pobreza e saúde pública; os direitos humanos constituem uma ética
universal, compartilhada pelos Estados na sociedade internacional, facilitando a
construção de consensos no âmbito da bioética global e a construção de uma estratégia
internacional em prol do enfrentamento das iniquidades em saúde; e os direitos
humanos, sob o viés jurídico, são acompanhados de um sistema de monitoramento e de
tribunais, que permitem maior proteção dos bens éticos também objeto de tutela por
parte da bioética, como a integridade física, a privacidade e a saúde. Portanto, à luz da
discussão teórica travada entre bioeticistas de variadas regiões do planeta, a conexão
entre bioética e direitos humanos é polêmica. Há defensores ferrenhos da importância
de trazer para o campo de reflexão bioético o referencial dos direitos humanos e há
aqueles que criticam contundentemente tal aproximação. Essa contenda refletiu-se nas
reações dos bioeticistas em relação à adoção da DUBDH pelo fato de ter incorporado o
referencial dos direitos humanos em seu corpo. Dessa forma, a disputa no que toca à
conexão entre direitos humanos e a bioética projetou-se na DUBDH, sendo aclamada
por alguns e desprezada por outros.

Do ponto de vista normativo, embora alguns bioeticistas sejam reticentes quanto


a admitir a existência de normas bioéticas, é inegável que a Declaração Universal sobre
o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997, a Declaração Internacional sobre
Dados Genéticos Humanos, de 2003, e DUBDH, são normas que integram a bioética.
Todas essas normas formalizam a conexão com o referencial dos direitos humanos,
mediante a incorporação das normativas internacionais de direitos humanos em seu
preâmbulo e a sua adoção como parâmetro superior de avaliação ética de condutas.
Desse modo, constata-se que as normas bioéticas, ademais de associarem direitos
humanos e a bioética, elegem tais direitos como imperativo ético. Com efeito, mesmo
que academicamente teóricos neguem o entrelaçamento entre bioética e direitos
humanos, a UNESCO, mediante sua produção legislativa, afirmou categoricamente os
direitos humanos como referencial de análise e avaliação em bioética.

Considerando a situação ambígua dos direitos humanos na América Latina e no


Brasil, ou seja, se, por um lado, há sua adoção formal e incorporação na linguagem
política, e, por outro, flagrantes violações de tais direitos, a conexão com a bioética na
região há que levar em conta essa complexidade. As abordagens bioéticas latino-
americanas vêm se moldando a tal quadro. Há uma aproximação teórica com o
referencial dos direitos humanos, por exemplo, a Bioética de Intervenção, articulada por
Garrafa e Porto, levando em conta a realidade dos países periféricos, que se ocupa da
realização universal dos direitos humanos, dentre eles o direito à vida digna,
consubstanciado na possibilidade de acesso à saúde e outros direitos essenciais para a
sobrevivência humana (24). A outra escola, a Bioética dos Direitos Humanos, formulada
por Juan Carlos Tealdi, como a própria denominação indica, fundamenta-se
integralmente no referencial dos Direitos Humanos. A Bioética dos Direitos Humanos
sustenta que a bioética associa-se aos direitos humanos, independentemente do
reconhecimento de seu pluralismo teórico ou moral. Segundo Tealdi (25) é inegável o
fato de que há “diversas bioéticas”, cujos aportes se constroem ancorados em teorias
éticas e moralidades variadas, porém assevera que a ética dos direitos humanos deve ser
um ponto de partida único, homogeneizando-as. Por fim, a vertente denominada
Bioética de Proteção, formulada por Schramm e Kottow, ancora-se no princípio da
proteção, que implica amparar a obrigação do Estado de resguardar a integridade física
dos seus cidadãos e de assegurar políticas públicas, fundamento do Estado do Bem-
Estar (26). A Bioética de Proteção parte do mesmo pressuposto dos direitos humanos,
qual seja o dever dos Estados de prover condições de vida humana digna. Sendo assim,
nota-se que, em relação à perspectiva teórica, a bioética que vem sendo desenvolvida na
América Latina introjeta os direitos humanos, mantendo, dessa forma, a tradição da
região de se aproximar, ao menos formal e teoricamente, de tais direitos.

As vertentes da bioética latino-americana também apontam violações de direitos


humanos na região, principalmente as relacionadas aos direitos sociais, como o não
acesso a serviços de saúde com qualidade, a medicamentos essenciais, à água potável, e
à alimentação adequada. Assim, a bioética da América Latina reflete a importância que
a linguagem dos direitos humanos vem ganhando na arena pública, principalmente
quando se trata dos espaços em saúde pública. Esse liame entre bioética e direitos
humanos na região acarretou uma ampliação da agenda bioética, essa passou a
incorporar questões de cunho social, que eram estranhas à pauta bioética de origem
estadunidense.

A correlação entre bioética e demanda social, estabelecida academicamente na


América Latina, retratou-se na dimensão normativa da bioética. Nesse sentido, a Carta
de Buenos Aires sobre Bioética e Direitos Humanos, subscrita por bioeticistas,
profissionais da saúde e outras áreas, de instituições estatais e não estatais de onze
países da América Latina, em 2004, defendeu o fundamento da bioética nos direitos
humanos, ressaltou o enfrentamento dos problemas de saúde e meio ambiente, assim
como se comprometeu com a adoção de esforço no sentindo da redação de uma
Declaração Regional de Bioética e Direitos Humanos. Em 2005, no processo de
elaboração da DUBDH, a atuação de bioeticistas da América Latina foi fundamental
para a inserção da pauta social na DUBDH, os quais participaram de reuniões
mobilizados previamente em razão do papel organizativo da Red de Bioética
Latinoamericana y del Caribe (27). Na mesma direção, a Declaração de Santo Domingo
sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada pelos participantes do Seminário
Internacional de Bioética “Na direção de uma Convenção Sub-regional de Bioética”, em
2007, propõe aos Estados que promovam a implementação dos direitos humanos em
suas relações com a bioética e se comprometem a apoiar a difusão dos princípios da
DUBDH.

Sob a perspectiva teórica, a relação entre direitos humanos e bioética, no âmbito


global, é complexa e disputada, ao passo que, do ponto de vista normativo, a UNESCO
a consolidou em três declarações internacionais. Na América Latina, o quadro é outro. A
comunidade bioética é praticamente unânime em destacar a importância de conectar
bioética e direitos humanos, o que é depreendido das correntes teóricas apontadas, assim
como da Carta de Buenos Aires e da Declaração de Santo Domingo. A força da
incorporação dos direitos humanos à bioética da região decorre do contexto histórico e
político exposto no item anterior sobre os direitos humanos como a linguagem política
mais forte na luta contra as ditaduras militares da região e sua ulterior absorção pelos
atores dos processos de democratização dos países, passando a ser, assim, patrimônio
moral da região, o que não poderia ser negado pelos bioeticistas latino-americanos.

Partindo do pressuposto de que empregar o referencial dos direitos humanos à


reflexão e prescrição de condutas na esfera bioética é justificado, especialmente no
âmbito da bioética construída na América Latina, no próximo tópico tratar-se-á de
alguns modos de incorporação de tal referencial à bioética.

4. O que significa incorporar o referencial dos direitos humanos à bioética?

Neste tópico, tem-se como objetivo desenvolver de forma sucinta as


implicações de conectar a bioética ao referencial dos direitos humanos e, em seguida,
expor alguns exemplos sobre as repercussões dessa interface na prática bioética. A linha
de análise escolhida segue a abordagem deste capítulo que se foca no contexto latino-
americano. Sendo assim, compreendendo a importância que os direitos humanos têm na
região, enquanto linguagem de reivindicação de políticas sociais e comprometimento
dos Estados com as populações mais vulneráveis e excluídas, o acoplamento de tal
referencia à bioética, quer seja teórica ou normativamente, confere-lhe maior adjacência
com questões sociais que assolam a América Latina. Os seguintes problemas da região
consistem em temáticas que atravessam os direitos humanos e a bioética: os serviços
públicos de saúde, o acesso das populações pobres a água potável e saneamento básico,
a desatenção para com as condições de vida dos povos indígenas, a submissão de
políticas públicas de saúde a interesses do livre mercado, e a violação do direito à vida e
à integridade física de jovens marginalizados. Desse modo, aproximar bioética e direitos
humanos no contexto latino-americano significa incorporar além de temas estranhos à
agenda tradicional da bioética para a reflexão e prescrição do bioeticista, também:

1) ampliar o elenco de comandos éticos balizadores da reflexão e ação de


bioeticistas e atuação em bioética, visando à inclusão das normativas do Direito
Internacional dos Direitos Humanos e de todo o conjunto de documentos produzidos
pelos órgãos de monitoramento dos Sistemas das Nações Unidas e Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos, como, por exemplo, os relativos ao direito humano à
saúde, à alimentação adequada, à privacidade, e aos princípios dos direitos humanos -
princípio da igualdade, accountability, não discriminação, empoderamento e
participação; 2) introduzir, principalmente, nas instâncias bioéticas, tais como comitês de
avaliação ética e de ética hospitalar, a perspectiva do vulnerável, do excluído, ou seja,
daquele cujos direitos humanos são violados não numa dimensão individual, mas sim
social, ou seja, se encontram insertos em situações de violação permanente e sistemática
dos direitos humanos, como os que vivem abaixo da linha de pobreza ou em regiões de
conflito armado; 3) dimensionar o papel do Estado em questões bioéticas, como as
vinculadas à saúde pública e pesquisa envolvendo seres humanos, enquanto o principal
responsável pela proteção dos vulneráveis.

Com o objetivo de ilustrar a penetração dos direitos humanos no campo


bioético, expõem-se dois exemplos sobre as seguintes temáticas: ética em pesquisa,
envolvendo seres humanos, e saúde pública. Iniciando com a ética em pesquisa, a maior
parte dos países da América Latina é receptora de pesquisas financiadas por grandes
corporações transnacionais e que utilizam populações vulneráveis da região como
sujeitos da pesquisa. No Brasil, a maior parcela das pesquisas relativas a fármacos é
internacional, com patrocínio que advém da indústria farmacêutica transnacional (28).
Tendo em conta as especificidades dos países latino-americanos – a existência de
vulneráveis, excluídos social e economicamente, que podem ser facilmente cooptados
pelos patrocinadores e pesquisadores de pesquisas multicêntricas, e a ausência de
robustos mecanismos estatais normativos e institucionais no campo da ética em
pesquisa - o referencial dos direitos humanos deve ser introduzido na avaliação ética de
protocolos de pesquisa, cujo aspecto central deve recair sobre a proteção do sujeito da
investigação científica. Disso decorre: 1) a ressignificação da infração ética no âmbito
da pesquisa clínica, compreendendo-a como violação de direitos humanos; 2) a pesquisa
envolvendo seres humanos é matéria de natureza pública a ser regulada e fiscalizada
pelo Estado, em consequência tem-se: i. maior proteção para o sujeito da pesquisa,
principalmente em razão dos direitos humanos serem particularmente sensíveis a
populações vulneráveis: ii. probabilidade aumentada de que a pesquisa destine-se ao
interesse público; iii. possibilidade de que o Estado, os pesquisadores e patrocinadores
que causem danos à saúde do sujeito da pesquisa possam ser responsabilizados em nível
internacional junto aos órgãos do Sistema de Proteção dos Direitos Humanos da ONU e
ao Tribunal Penal Internacional; 3) a produção de normativas nacionais sobre ética em
pesquisa deve não apenas considerar seus componentes tradicionais, tais como: o
consentimento informado, a minimização dos riscos para o sujeito da pesquisa e a
maximização dos benefícios (29), mas agregar os elementos que compõem o
referencial dos direitos humanos, tais como: o direito humano à saúde do sujeito da
pesquisa, que envolve o acesso a medicamentos, inclusive àquele cuja pesquisa
constatou sua eficácia, bem como o direito à informação.

Na esfera da saúde pública, registre-se que as desigualdades na saúde são


fortemente influenciadas pelas profundas iniquidades predominantes na sociedade
latino-americana (18). Garrafa e Lorenzo (29) pontuam a baixa qualidade dos serviços
de saúde na América Latina e a carência de investimentos governamentais na compra de
medicamentos para população de baixa renda. Ressalte-se, ainda, que a desnutrição
afeta 16% das crianças da região, no que toca à saúde materna, 7,6% das mulheres não
possuem assistência pré-natal e 12% carecem de cuidados médicos no momento do
parto (18). Ainda, o não acesso à educação formal básica promove a compressão das
oportunidades relativas à saúde, na medida em que “quanto mais baixo o nível de
escolaridade, menor é a expectativa de vida” (18). Consciente da repercussão da
pobreza, do baixo nível de escolaridade, corrupção e omissão estatal nas condições de
saúde da população latino-americana, particularmente das pessoas de baixa renda, é
imperioso que qualquer reflexão bioética ou prescrição de comandos envolva o
referencial dos direitos humanos, pois é a principal linguagem política na região para a
atribuição de obrigações aos Estados. Quer seja o gozo dos serviços e bens de saúde ou
dos determinantes sociais da saúde, como nutrição adequada, moradia, condições de
trabalho saudáveis e água limpa potável, tudo depende inexoravelmente da atuação
efetiva dos Estados, no sentido de impedir que terceiros obstruam a fruição pela
população desses direitos e de prover, por meio de políticas públicas, as bases
estruturantes de tal fruição. Uma bioética aplicada à saúde pública implica a assunção
pelo Estado de responsabilidades para com sua população, visando à prevenção de
enfermidades e o fomento de um meio ambiente saudável (26). Com efeito, quando se
trata de responsabilização dos Estados, os direitos humanos se revelam a linguagem
mais adequada para tanto, na medida em que seu surgimento deu-se, historicamente,
como exigências do povo em face dos Estados e, especificamente, na América Latina
foram assimilados pelos Estados democratizados como herança da luta contra as
ditaduras militares, portanto, como instrumentos de reivindicação popular diante dos
governos. Por fim, a inserção do referencial dos direitos humanos na bioética aplicada à
saúde pública contribui para a ampliação da compreensão da atuação do Estado na
direção dos fatores que atuam direta ou indiretamente na saúde das pessoas, pois
permite a percepção do paciente ou do sujeito da política de saúde como titular de um
direito humano, inserido em dado contexto social, econômico e cultural que consiste nas
bases estruturais da sua relação com o sistema de saúde. Desse modo, aquele que acessa
as políticas e programas de saúde não é usuário ou consumidor, é titular de direitos
humanos, elevando-o a um patamar moral superior, o que deve ser levado em conta no
fazer bioético.

A despeito de reconhecer que o referencial dos direitos humanos não é


adequado para o tratamento indiscriminado de questões bioéticas, tendo em conta o
contexto latino-americano de desigualdade, que se reflete na saúde pública, acesso a
novas tecnologias, e falta de robustez do seu sistema de avaliação ética de pesquisa
envolvendo seres humanos, tal referencial é indiscutivelmente necessário. O papel que
os direitos humanos têm nos países latino-americanos de alimentar os ativismos sociais
em prol da defesa dos vulneráveis ou excluídos é mandatório para sua incorporação a
uma bioética que se pretende emancipatória.

5. Estudo de Caso

Conforme exposto na parte introdutória deste capítulo, escolheu-se para análise


um caso de violação de direitos humanos envolvendo paciente com transtornos mentais,
Damião Ximenes Lopes, que faleceu, em 1999, em decorrência dos maus tratos sofridos
na Casa de Repouso Guararapes, clínica psiquiátrica conveniada com o Sistema Único
de Saúde. Em razão disso, o Brasil foi demandado na Corte Interamericana de Direitos
Humanos por violação de direitos humanos decorrente das condições desumanas e
degradantes de hospitalização de Damião Ximenes Lopes, condições que resultaram em
sua morte.

O breve exame do caso objetivou investigar de que forma a decisão da Corte


contempla a aproximação entre bioética e direitos humanos, tendo como foco o contexto
latino-americano, a partir dos três referenciais discorridos no tópico 4 deste capítulo, a
saber: 1) ampliação do elenco de comandos éticos balizadores da reflexão e ação em
bioética por meio da incorporação dos direitos humanos; 2) introdução da perspectiva
da dimensão social ou de situações de violação permanente e sistemática dos direitos
humanos, nas quais o vulnerável se encontra inserido; e 3) dimensionamento do papel
do Estado.

Quanto ao primeiro referencial, constata-se que a decisão faz alusão a alguns


direitos humanos intrinsecamente vinculados aos direitos dos pacientes que também
evidenciam valores éticos próprios da bioética clínica, como a dignidade humana, a
autonomia do paciente e o consentimento informado. A Corte ponderou que os cuidados
de saúde aos pacientes com transtornos mentais devem ter como finalidade principal o
respeito à dignidade do paciente como ser humano, razão pela qual os serviços de saúde
devem fornecer cuidados mínimos e condições de internações dignas. Com relação à
autonomia e ao consentimento informado, afirmou-se que a incapacidade mental não
deve ser sinônima de incapacidade plena do poder de autodeterminação, devendo-se ter
como pressuposto o princípio da autonomia e do consentimento informado a fim de se
assegurar que seja respeitada a vontade dos pacientes com transtornos mentais. Nessa
linha, a Corte enfatizou que a sujeição, entendida como “qualquer ação que interfira na
capacidade do paciente de tomar decisões ou que restrinja sua liberdade de movimento”
(30), é uma condição extremamente agressiva a qual o paciente com transtorno mental
pode ser submetido.

Os contextos de violação de direitos humanos nos quais os vulneráveis se


encontram insertos, que diz respeito ao segundo referencial, foram abordados no
julgado a partir do reconhecimento do liame direto entre transtornos mentais, pobreza e
exclusão social. Considerou-se que as pessoas que vivem em condições
socioeconômicas desfavoráveis, a exemplo da extrema pobreza, estão sujeitas a um
risco maior de vir a ter algum transtorno mental e, de acordo com a Corte, essa
vulnerabilidade social deve ser levada em conta pelas políticas públicas.

Por último, cabe abordar o referencial relativo ao papel do Estado. A Corte


ressalta, no decorrer de todo o julgado, o dever do Estado de assegurar o acesso das
pessoas aos serviços de saúde, inclusive e principalmente, no que diz respeito à saúde
mental. De modo mais específico, a Corte enuncia os seguintes deveres do Estado com
relação às pessoas com transtornos mentais: o dever de cuidar; de regular e fiscalizar as
instituições de prestação de serviços sanitários; e de investigar as possíveis violações de
direitos humanos aos pacientes com transtornos mentais.

Portanto, o caso do Damião Ximenes Lopes reforça o sustentado neste capítulo


quanto à importância da introjeção do referencial dos direitos humanos na análise
teórica e na prescrição bioética de determinadas temáticas, como a saúde pública, pois
amplia seu espectro temático e suas ferramentas teóricas e prescritivas.

5. Considerações finais

Neste capítulo, buscou-se apresentar distintas concepções de direitos humanos a


partir de três olhares: o filosófico, o jurídico e o político. Com a adoção dessa
tripartição, pretendeu-se demonstrar que o estudo dos direitos humanos perpassa
variados campos do saber e, além disso, implica reconhecer que, ademais de terem
conteúdo filosófico, passível de grande contenda teórica, são normas de natureza
jurídica, cujo impacto político é inegável. Em suma, pensar os direitos humanos em toda
sua completude impõe debruçar-se sobre sua complexidade e historicidade. Na esfera
latino-americana, viu-se que os direitos humanos vêm exercendo, desde os regimes
ditatoriais e, principalmente, a partir da transição democrática, o papel de instrumento
discursivo que sustenta reivindicações políticas emergentes do ativismo social.
Tratou-se também da importância de advogar a correlação entre bioética e
direitos humanos como forma de inserir na reflexão e prescrição bioéticas novas
temáticas de cunho social, redimensionar o papel do Estado, incorporar a perspectiva do
contexto social em que se insere o indivíduo, assim como preceitos éticos universais.
Especialmente na América Latina, essa interface vem sendo promovida pelas correntes
bioéticas da região, que reafirmam a importância histórica dos direitos humanos.
Portanto, conclui-se que aliar os direitos humanos à bioética consiste numa escolha
política que tem como ultimo desiderato contribuir para uma perspectiva bioética que
não esconde sua opção pelos oprimidos, excluídos e vulneráveis.

6. Referências bibliográficas

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http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm

7. Leituras de suporte recomendadas ao tema do capítulo

Ignatieff M. Los derechos humanos como política e idolatría. Barcelona: Paidós,


2003.

Oliveira AAS. Bioética e Direitos Humanos. São Paulo: Loyola, 2011.

Tealdi JC. Bioetica de los Derechos Humanos. In: Tealdi JC. (org.) Diccionario
Latinoamericano de Bioetica. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2008.

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