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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

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A R Q UIVOS M E N S A I S :J U N HO 2013

Acordei doente mental

15/06/2013
A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser
“normal”

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria –


APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da
Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada
vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já
mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno
psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm
afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim
poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito

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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em


“anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.

A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual


Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias,
distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda
no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das
novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase
todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se
desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por
uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a
sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento.
Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais
severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de
louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de
Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida
num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três
meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco
ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite
condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro
igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”,
mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado,
remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante,
para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova
“Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre
houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de
psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade
justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua
elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando
do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares
da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão
fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está
adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em
que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso
junto e mais alguma coisa?

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena
ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o
DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado

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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o


Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da
Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em
nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que,
para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta,
sim, nunca foi tão feliz – e saudável.

O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só,
foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da
Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas
para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada,
enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado
com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de
estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As
fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.

Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que
chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno
Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que
apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se
refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja
este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar
no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o
já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas
décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de
Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o
transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse
currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais
e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos
de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o
potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de
medicamentos em crianças vulneráveis”.

A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade)


tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a
suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas
retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma
reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell,
autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos
como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais
comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta:

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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

“Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a
diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como
anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na
criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros
sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos,
aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.

Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre
algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais
que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de
darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser
“normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas
políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda
precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum
momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinseicamente ligada a uma
das indústrias mais lucrativas do mundo atual.

Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é
o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo
ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir
do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do
National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH),
possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha
anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel
escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A
fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no
consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em
laboratório. (…) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH
iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando
investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que
também deve gerar controvérsias.

A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início
de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência.
“Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de
comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela
afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de
abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado
“distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você
é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.

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A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma
doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a
forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um
diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas
semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto
um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no
tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa
terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.

Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é
superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente?
Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos
de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5
diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.

Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao
transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão
desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que
efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo
é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há
psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas
sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que
envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.

Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que
quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma
concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto
ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e
tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender
as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há
dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas
iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos
iguais porque somos diferentes.

Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à


economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se
torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como
chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é
“normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma
construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre
normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de
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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de
ser tudo.

E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a
pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.

(Publicado na Revista Época em 20/05/2013)

COMPA R T ILHE:

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Índios, os estrangeiros nativos

10/06/2013
A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os
indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos
momentos de acirramento dos conflitos

A volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a
impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só sobre o
seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma parcela das elites,
da população e do governo, algo que poderíamos chamar de “estrangeiros nativos”. É um
curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que aqui estavam são vistos como os de fora.
Como “os outros”, a quem se dedica enorme desconfiança. No processo histórico de
estrangeirização da população originária, os indígenas foram escravizados, catequizados,
expulsos, em alguns casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados
entraves a um suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como
detentores de direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje
parecem ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa
reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria melhor dar
calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los fora no discurso. É isso
que também temos testemunhado nas últimas semanas.

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Entre os exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si. Aos estrangeiros é
negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos como parte. Sempre que
os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas quanto as simbólicas, impostas para que
continuem fora, ainda que dentro, é reeditada a versão de que são “massas de manobra”
das ONGs. Vale a pena olhar com mais atenção para essa versão narrativa, que está
sempre presente, mas que em momentos de acirramento dos conflitos ganha força.

Desta vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois episódios: a morte do
terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, e
a paralisação das obras de Belo Monte, no Pará, pela ocupação do canteiro pelos
mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35 anos, morreu com um tiro na barriga durante o
cumprimento de uma ordem de reintegração de posse em favor do fazendeiro e ex-
deputado pelo PSDB Ricardo Bacha, sobre uma terra reconhecida como sendo território
indígena desde 1993. Pela lógica do discurso de que seriam manipulados pelas ONGs,
Oziel e seu grupo, se pensassem e agissem segundo suas próprias convicções, não
estariam reivindicando o direito assegurado constitucionalmente de viver na sua área
original. Tampouco estariam ali porque a alternativa à luta pela terra seria virar mão de
obra barata ou semi-escrava nas fazendas da região, ou virar favelados nas periferias das
cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente indígenas se aceitassem pacífica e
silenciosamente o gradual desaparecimento de seu povo, sem perturbar o país com seus
insistentes pedidos para que a Constituição seja cumprida. Aí já há uma pista para o que
alguns setores da sociedade brasileira entendem como identidade “verdadeira”: ser índio
seria, quando não desaparecer, ao menos silenciar.

No caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de sua presença


no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a 800 quilômetros de sua
terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando fronteiras não escritas. Os
mundurucus estavam ali porque suas terras poderão ser afetadas por outras 14
hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo menos uma delas, São Luiz do
Tapajós, deverá estar no leilão de energia previsto para o início de 2014. Se não
conseguirem se fazer ouvir agora, eles sabem que acontecerá com eles o mesmo que
acabou de acontecer com os povos do Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito
em voga, o da obra consumada. A trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é
tocar a obra, mesmo sem o cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo
sem a devida escuta dos indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do
processo dentro e fora do governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha
consumido tanto dinheiro, que parar seja quase impossível.

Adiantaria os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem contemplados no


seu direito constitucional, respaldado também por convenção da Organização
Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai afetá-los? Não.

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Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como são indígenas, alguns
acreditam que não seriam capazes de tal estratégia política. É preciso resgatar, mais uma
vez, o discurso da manipulação – ou da infiltração. Já que, para serem indígenas
legítimos, os mundurucus teriam de apenas aceitar toda e qualquer obra – e, se fossem
bons selvagens, talvez até agradecer aos chefes brancos por isso.

Quando os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem
emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos indígenas
como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses, inclusive o de tirar
do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem o difunde. Mas esse
discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de uma parte significativa da
população brasileira. E esta adesão se dá, me parece, por essa espécie de xenofobia
invertida. Estes “estrangeiros nativos” ameaçariam um suposto progresso, já que seu
conhecimento não é decodificado como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme
diversidade cultural e de visões de mundo não são interpretadas como riqueza e
possibilidades, mas como inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de
como esse olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no
governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro
passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia “da
toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro situa o ápice
da civilização e também o seu oposto.

Há ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a única coisa pior do
que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das estrangeiras. Evocar a
ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles SPAMs, que volta e meia
reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a Amazônia” – esta também, tão nossa
que podemos destruí-la, tarefa a que temos nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma
suposta apropriação do corpo simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato,
é a frustração porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como
antes. Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que
demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é visto
como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.

Vale a pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas como “massa de
manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam outros de fazer: afirmam o
que os indígenas, todos eles, precisam e querem. Parece haver um consenso, inclusive,
de que o verdadeiro desejo dos indígenas seria se tornar um trabalhador assalariado e
urbano ou, pelo menos, o beneficiário de algum programa de transferência de renda do
governo.

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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

Nesta posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os produtores rurais.
Este é o momento chave para a entrada de outro discurso recorrente: o de que os
indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas, como fez o jornalista Fabiano
Maisonnave, na Folha de S. Paulo: com uma população de 28 mil indígenas em Mato
Grosso do Sul, os terenas têm sete reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o
produtor rural Ricardo Bacha, em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel, tem cerca
de 6.300 hectares, dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de terra na mão de
poucos que se pretende falar, há muitos números ilustrativos que podem ser citados. Outro
dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa, citada em artigo do engenheiro
florestal Paulo Barreto, no site O Eco: há 58,6 milhões de hectares de pastos degradados
pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. “A Embrapa tem
demonstrado que já existem as tecnologias para aumentar a produtividade dos pastos
degradados. Assim, ocupar terra indígena é, além de inconstitucional, prova de
incompetência”, afirma Barreto. A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser
chamados para opinar sobre as demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e
agradar a bancada ruralista.

O lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que busca o


desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra indivíduos e também
contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito importante que cada brasileiro
reservasse meia hora ou menos do seu dia para ler pelo menos as primeiras 16 páginas
do resumo do Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e
que foi descoberto no final de 2012 por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura
Nunca Mais, de São Paulo. No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7 mil
páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está disponível na
internet.

O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo
extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos responsáveis foram
nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos” infligidos pelos funcionários aos
indígenas, como crucificações e uma tortura conhecida como “tronco”, na qual a vítima
tinha o tornozelo triturado. Crianças eram vendidas para abusadores, mulheres,
estupradas e prostituídas. Duas aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para
atender aos interesses de políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena
inteira foi extinta por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer
tentassem protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma
etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões do
governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato Grosso, de
várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando estricnina ao açúcar, além de
caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre ocorreu em 1963, ainda no período
democrático, portanto, e os que ainda assim sobreviveram foram rasgados com o facão,
“do púbis a cabeça”.
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A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de Pedro
Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60 do século
XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar ainda que os crimes
foram infligidos aos indígenas, num comportamento disseminado por todo o país, por
representantes do Estado brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que
precisamos conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que
atrocidades dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como
se fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas
esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os
povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser violado,
como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar, os indígenas não eram
reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o que, então? O procurador
responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional, classificado muito abaixo dos
animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da produção, certa assistência e
farta alimentação”.

Para quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena lembrar que apenas
nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram assassinados 560 indígenas. A
Constituição precisa ser cumprida, as demarcações devem ser feitas, os fazendeiros que
possuem títulos legais, distribuídos pelo governo no passado, têm direito a ser indenizados
pelo Estado. Mas há um movimento maior, mais profundo, que é preciso empreender.
Como “estrangeiro nativo”, uma impossibilidade, só é possível perpetuar a violência.É
necessário fazer o gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como
parte, não como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que precede
o reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.

(Publicado na Revista Época em 10/06/2013)

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Os loucos, os normais e o Estado

03/06/2013
Antônio Gomes da Silva soltou a voz ao empolgar-se com a Banda da Polícia Militar. Ao
seu lado, o funcionário levou um susto:

– Por que você nunca disse que falava?

E Antônio:

– Uai, mas ninguém nunca perguntou.

Ele tinha passado 21 anos como mudo na instituição batizada de“Colônia”, considerada o
maior hospício do Brasil, no pequeno município mineiro de Barbacena. Em 21 anos,
nenhum médico ou funcionário tinha lhe perguntado nada. Aos 68 anos, Antônio ainda não
sabe por que passou 34 anos da vida num hospício, para onde foi despachado por um
delegado de polícia. “Cada um diz uma coisa”, conta. Ao deixar o cárcere para morar
numa residência terapêutica, em 2003, Antônio se abismou de que era possível acender e
apagar a luz, um poder que não sabia que alguém poderia ter. Fora dos muros do
manicômio, ele ainda sonha que está amarrado à cama, submetido a eletrochoques, e
acorda suando. A quem escuta a sua voz, ele diz: “Se existe um inferno, a Colônia é esse
lugar”.

Antônio ganhou nome, identidade e história em uma série excepcional de reportagens.


Publicado na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora (MG), o trabalho venceu o prêmio Esso de
2012 e foi ampliado para virar um livro que chega às livrarias nesta semana. Na obra, a
jornalista mineira Daniela Arbex ilumina o que chamou de “holocausto brasileiro”: a morte
de cerca de 60 mil pessoas entre os muros da Colônia ao longo do século XX. Convidada
por Daniela para fazer o prefácio de seu livro, abri uma exceção e aceitei, pela mesma
razão que me move a escrever esta coluna: a importância do tema para compreender
nossa época.

Em Holocausto Brasileiro (Geração Editorial), Daniela Arbex devolve aos corpos sem
história, que eram os corpos dos “loucos”, uma história que fala deles, mas fala mais de
nós, os ditos “normais”. Durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral
compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia. Lá
suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados. Nus no

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27/08/2020 2013 junho • Eliane Brum

corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo


crianças viravam “Ignorados de Tal”.

— (Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

Qual é a história dos corpos sem história? Esta é a questão que Daniela se propõe a
responder pelo caminho da investigação jornalística. Eram Antônio Gomes da Silva, o
mudo que falava, Maria de Jesus, encarcerada porque se sentia triste, Antônio da Silva,
porque era epilético. A estimativa é de que sete em cada dez pessoas internadas no
hospício não tinham diagnóstico de doença mental.

Quem eram eles, para além dos nomes apagados? Epiléticos, alcoolistas, homossexuais,
prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara
incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus
patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram
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filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e


mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas tímidos.
Cerca de 30 eram crianças.

Qual era o destino de quem o Estado determinava que não podia viver em sociedade, que
era preciso encarcerar, ainda que não tivesse cometido nenhum crime? Homens, mulheres
e crianças às vezes comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram
espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram atirados ao
relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto,
alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de não morrer.
Faziam o que fazem os pinguins imperadores para sobreviver ao inverno na Antártica e
chocar seus ovos, como se viu num documentário que comoveu milhões anos atrás. Os
humanos da Colônia não comoviam ninguém, já que sequer eram reconhecidos – nem
como humanos nem como nada. Alguns não alcançavam as manhãs.

Os pacientes da Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de


choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga
derrubava a rede do município. Francisca Moreira dos Reis, funcionária da cozinha, conta
no livro sobre o dia em que disputou uma vaga para atendente de enfermagem, em 1979.
Ela e outras 20 mulheres foram sorteadas para realizar uma sessão de eletrochoques nos
pacientes masculinos do Pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o
“exercício”. As candidatas à promoção cortavam um pedaço de cobertor e enchiam com
ele a boca da cobaia, amarrada à cama. Molhavam a testa, aproximavam os eletrodos das
têmporas e ligavam a engenhoca na voltagem de 110. Contavam até três e aumentavam a
carga para 120. A primeira vítima teve parada cardíaca e morreu na hora. A segunda, um
garoto apavorado aparentando menos de 20 anos, teve o mesmo destino. Francisca, cuja
vez de praticar ainda não tinha chegado, saiu correndo.

Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo – e
também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800
corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do
país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado
encolheu, os corpos passaram a ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente
dos pacientes ainda vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Dos
homens e mulheres do hospício, encarcerados pelo Estado e oficialmente sob sua
proteção, até os ossos se aproveitava.

Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo que muitos gostariam que seguisse
nas sombras, até o total apagamento, no qual parte dos protagonistas ainda está viva para
refletir tanto sobre seus atos quanto sobre suas omissões. Entrevistou mais de 100
pessoas, muitas delas nunca tinham contado a sua história. Além de sobreviventes do
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holocausto manicomial, Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um


deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está
acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra havia
denunciado a Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece na Colônia é a
desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma
pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o
protesto, qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o emprego.

Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios,
esteve no Brasil e conheceu a Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na
qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do
mundo, presenciei uma tragédia como essa”. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da
Colônia. Parte deles deverá ficar internada até a morte: são aqueles que foram tão
torturados por uma vida dentro do hospício que já não conseguem mais viver fora. Parte
foi transferida para residências terapêuticas para reaprender a tomar posse de si mesma.
Sônia Maria da Costa está entre os que conseguiram dar o passo para além do cárcere.
Às vezes ela coloca dois vestidos para compensar a nudez de quase uma vida inteira.

Ao empreender uma investigação jornalística para escrever este livro, Daniela leva adiante
pelo menos três trabalhos fundamentais de documentação contemporânea: as 300 fotos
feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo, para a revista O Cruzeiro, a primeira a denunciar a
Colônia, em 1961(duas fotografias deste acervo são publicadas nesta coluna); a
reportagem transformada no livro Nos porões da loucura (Pasquim), do jornalista Hiram
Firmino; e o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, que
se tornou o símbolo da luta antimanicomial.

Ao ler Holocausto Brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil,
é prioritário resistir à tentação de acreditar que essa história acabou. Não acabou. Ainda
existem no Brasil instituições que mantêm situações semelhantes às da Colônia, como
algumas reportagens têm denunciado – ainda que não de forma maciça como no passado
muito, muito recente, e com nomes mais palatáveis do que “hospício” ou “manicômio”. As
conquistas produzidas pela luta antimanicomial, que botou fim às situações mais bárbaras,
estão hoje sob ameaça de retrocesso. É nesse momento que entramos nós, a sociedade.

Se não quisermos continuar sendo cúmplices da barbárie descrita por Daniela Arbex neste
livro, é preciso refletir sobre o nosso papel. É bastante óbvio perceber que fábricas de
loucura como a Colônia só persistiram por um século porque podiam contar com a
cumplicidade da sociedade. Mesmo quando o holocausto foi denunciado na revista de
maior sucesso da época, O Cruzeiro, no início dos anos 60, passaram-se décadas até que
a realidade do hospício começou – muito lentamente – a mudar. E outras gerações foram
aniquiladas entre seus muros. Como é possível? É possível porque a sociedade prefere
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que seus indesejados sejam tirados da frente de seus olhos. Não enxergar, para muitos,
ainda é solução. E esta é uma das razões pelas quais a tese do encarceramento sempre
encontra ampla ressonância – e tem sido largamente manipulada por políticos ao longo da
história do Brasil, e inclusive hoje.

Tivesse a sociedade disposta a enxergar o que estava estampado na revista preferida das
famílias brasileiras, em 1961, e muitas tragédias teriam sido impedidas. Como a de Débora
Aparecida Soares. Ela foi um dos cerca de 30 bebês roubados de suas mães. As mulheres
trancafiadas na Colônia conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a
barriga, para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de
seus braços e doados. Débora nasceu em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi
adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida
Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma
mãe nunca se esquece da filha”.

Em 2005, aos 21 anos, Débora nada sabia sobre a sua origem, mas não conseguia
pertencer de fato à família de adoção. Tentou o suicídio. Como os comprimidos
demoravam a fazer efeito, dirigiu-se à estrada de ferro, a mesma onde décadas antes
havia passado o trem que levara sua mãe ao inferno. Foi salva por uma amiga, que a
carregou para o hospital no qual mais uma coincidência seria descoberta tarde demais.
Dois anos depois, Débora iniciou uma jornada em busca da mãe. O que alcançou foi a
insanidade da engrenagem que mastigou suas vidas. Sua busca pela mãe é um dos
momentos mais trágicos e reveladores do livro, ao unir passado, presente e futuro no
corpo em movimento desta filha.

Há uma tendência no senso comum de considerar que categorias como “loucos” são
determinadas, imutáveis, indiscutíveis e, principalmente, isentas dos humores do processo
histórico. Não são. Cada sociedade cria seus proscritos – uma construção cultural que
varia conforme o momento e as necessidades de quem detém o poder a cada época. Há
um livro essencial sobre este tema: Os infames da história – pobres, escravos e
deficientes no Brasil (Faperj/Lamparina). Na apresentação, a autora, a psicóloga Lilia
Ferreira Lobo, que escreve sob a inspiração de Michel Foucault, faz uma descrição
primorosa:

“Existências infames: sem notoriedade, obscuras como milhões de outras que


desapareceram e desaparecerão no tempo sem deixar rastro – nenhuma nota de fama,
nenhum feito de glória, nenhuma marca de nascimento, apenas o infortúnio de vidas
cinzentas para a história e que se desvanecem nos registros porque ninguém as considera
relevantes para serem trazidas à luz. Nunca tiveram importância nos acontecimentos
históricos, nunca nenhuma transformação perpetrou-se por sua colaboração direta.
Apenas algumas vidas em meio a uma multidão de outras, igualmente infelizes, sem
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nenhum valor. Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixões, alvos ou não da violência
instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as
vigiasse, quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento
ou as manifestações de alegria.”

Aqueles que foram encarcerados dentro da Colônia e de outros hospícios do Brasil, em


algum momento perturbaram alguém ou a ordem instituída com a sua voz – ou apenas
com a sua mera existência. Em vez de serem escutados no que tinham a dizer sobre a
sociedade da qual faziam parte, foram arrancados dela e trancafiados para morrer –
primeiro pelo apagamento simbólico, depois pela falência do corpo torturado. A pergunta
que vale a pena fazer neste momento, diante da história documentada pelo Holocausto
Brasileiro, de Daniela Arbex, é: quem são os proscritos de nossa época?

Vale a pena repetir que, na Colônia, sete em cada dez não tinham diagnóstico de doença
mental. O diagnóstico, além de não representar nenhuma verdade absoluta sobre alguém,
perde qualquer possível valor num lugar como o hospício descrito. Sua única utilidade
seria como justificativa oficial para retirar pessoas incômodas do espaço público, aquelas
cujo sofrimento não poderia existir, violando neste ato seus direitos mais básicos. Mas o
fato de 70% dos internos não ter nem sequer um diagnóstico é um dado importante para
perceber com que desenvoltura os manicômios serviram – e ainda servem – a um
propósito não dito, mas largamente exercido pelo Estado: o de ampliar as categorias das
pessoas que não devem ser escutadas, calando todos aqueles que dizem não apenas de
si, mas de toda a sociedade.

Vivemos um momento histórico muito delicado, em que está sendo determinado quais são
os novos infames da história – e qual deverá ser o seu destino. E também em que medida
o Estado tem poder sobre os corpos. Me arrisco a dizer que, se ontem os proscritos eram
os epiléticos, as prostitutas, os homossexuais, as meninas pobres e grávidas, as esposas
insubmissas, hoje os proscritos que se desenham no horizonte histórico são os drogados –
e especificamente os “craqueiros”. E o destino apresentado como solução tem sido, de
novo, a internação. Inclusive a compulsória. A tarja de dependência química funciona
como um silenciamento, já que não teriam nada a dizer nem sobre a sociedade em que
vivem, nem sobre sua própria vida. São apenas um corpo sujeitado ao Estado para ser
“curado”. E, para a maioria, nada melhor do que tirá-los da frente – às vezes literalmente.

É bom aprender com a história. Holocausto Brasileiro é um excelente começo para uma
reflexão não apenas sobre o passado, mas sobre o presente. Como afirma Daniela Arbex:
“O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos
tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos.
Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em

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direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o


final”.

— (Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

(Publicado na Revista Época em 03/06/2013)

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