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A Epidemia Disseminada
entre as Crianças
"Para muitos pais efamílias, a experiência {de ter
umfilho diagnosticado com uma doença mental} pode
ser uma desgraça; isto nós devemos dizer."
- E.Jane Costello, professora de psiquiatria
da Universidade Duke, 2006 1

Prescrever medicamentos psiquiátricos para crianças e adolescentes é um


fenômeno recente, já que relativamente poucos jovens eram medicados antes de
1980, e assim, ao investigarmos essa história, teremos a oportunidade de submeter
a tese deste livro a uma segunda prova. Porventura constatamos, na literatura
científica e nos dados sociais, que a medicação de crianças e adolescentes vem
fazendo mais mal que bem? Estaria isso pondo muitas crianças, inicialmente às
voltas com um problema relativamente pequeno - um desinteresse pela escola,
ou um período de tristeza -, num caminho que leva à incapacidade vitalícia?
Um dos princípios da ciência é que os resultados de um experimento devem ser
replicáveis, e, em essência, medicar crianças equivale a um segundo experimento.
Primeiro, medicamos adultos diagnosticados com doenças mentais e, como vimos
nos capítulos anteriores, isso não levou a ótimos resultados a longo prazo. Em
seguida, nos últimos trinta anos, diagnosticamos vários distúrbios em crianças e
adolescentes e lhes receitamos remédios psiquiátricos, e agora podemos ver se os
resultados dessa segunda experiência são os mesmos.
Reconheço que isso situa nossa investigação da medicação dos jovens num
quadro bastante frio e analítico, dada a assustadora possibilidade que está em
jogo aqui. Se os resultados em crianças e adolescentes forem iguais aos dos
adultos, receitar fármacos psiquiátricos para milhões de jovens norte-americanos
estará causando danos numa escala quase incomensurável. Mas essa possibilidade
se presta a uma resenha emotiva da literatura médica, e é justamente por isso
que vamos conduzir nossa investigação da maneira mais desapaixonada possível.
É preciso que os fatos falem por si.

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ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

A história de progresso que a psiquiatria conta sobre a medicação de crianças


é de natureza ligeiramente diferente da que ela conta sobre seus avanços no
tratamento de adultos. Em 1955, quando chegou o Thorazine, havia centenas
de milhares de adultos em hospitais psiquiátricos, com diagnósticos de doenças
que tinham um passado reconhecível. Mas, ao se iniciar a era farmacológica,
pouquíssimas crianças eram diagnosticadas como "doentes mentais". Havia
valentões e vadios nas escolas primárias, mas eles não eram diagnosticados como
portadores de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), porque
esse diagnóstico ainda não tinha nascido. Havia adolescentes temperamentais e
emocionalmente voláteis, mas a expectativa da sociedade era que, ao crescerem,
eles se tornassem adultos mais ou menos normais. Todavia, depois que a
psiquiatria começou a tratar crianças com psicotrópicos, ela repensou essa visão
da infância. A história hoje contada pela psiquiatria é que, nos últimos cinquenta
anos, ela descobriu que as crianças sofrem regularmente de doenças mentais, ditas
de natureza biológica. Primeiro, a psiquiatria materializou o TDAH como uma
doença identificável; depois, determinou que a depressão aguda e o transtorno
bipolar atingem regularmente crianças e adolescentes. Eis como o psiquiatra
Ronald Kessler, da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, resumiu essa
"história" em 2001:
Embora se conduzam há muitos anos estudos epidemiológicos de transtornos
do humor na infância e na adolescência, durante muito tempo o progresso foi
impedido por duas ideias equivocadas: a de que os distúrbios do humor são raros
antes da idade adulta e a de que a perturbação do humor é uma faceta normativa e
autolimitante do desenvolvimento infantil e adolescente. Hoje as pesquisas deixam
claro que nenhuma dessas crenças é verdadeira. A depressão, a mania e sintomas
de tipo maníaco são todos relativamente comuns entre crianças e adolescentes na
população geral.2

Doenças que passavam despercebidas, ao que parece, foram agora


identificadas. A segunda parte dessa história de progresso científico conta como
as drogas psiquiátricas são úteis e necessárias. Milhões de crianças que antes
sofriam em silêncio recebem agora um tratamento que as ajuda a prosperar. Aliás,
a história que vem emergindo na psiquiatria pediátrica é que os medicamentos
psicotrópicos ajudam a criar cérebros sadios. Em seu livro de 2006, Chi/d and
Adolescent Psychopharmacology Made Simple [Psicofarmacologia simplificada da
infância e da adolescência], o psiquiatra John O'Neal explicou aos leitores por
que era tão essencial que as crianças com doenças mentais fossem tratadas com
medicamentos:

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A Epidemia Disseminada entre as Crianças

Provas cada vez mais numerosas mostram que alguns transtornos psiquiátricos
podem levar a uma deterioração neurológica progressiva quando não são tratados.
(...) Níveis tóxicos de neurotransmissores, como os glutamatos, ou de hormônios
do estresse, como o cortisol, podem danificar o tecido nervoso ou interferir nas
vias normais de neuromaturação. O tratamento farmacológico desses distúrbios
pode não só ter sucesso na melhora dos sintomas, mas também ser neuroprotetor
(em outras palavras, os tratamentos medicamentosos podem proteger de lesões
cerebrais ou promover a neuromaturação normal).3
Se isso é verdade, a psiquiatria realmente deu um grande salto nos últimos
trinta anos. O campo aprendeu a diagnosticar em crianças doenças cerebrais que
antes passavam despercebidas, e seus medicamentos "neuroprotetores" agora as
transformam em adultos normais.

A Ascensão do TDAH
Embora o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade não aparecesse
do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais da psiquiatria antes de
1980, esse campo profissional gosta de assinalar que tal distúrbio não surgiu
simplesmente do nada. Trata-se de um problema cujas raízes remontam a 1902.
Naquele ano, sir George Frederick Still, pediatra inglês, publicou uma série de
palestras sobre vinte crianças que tinham a inteligência normal, mas "exibiam
explosões violentas, peraltice desenfreada, destrutividade e falta de reação aos
castigos".4 Além disso, Still ponderou que esse mau comportamento provinha de
um •problema biológico (e não da má qualidade da educação dada pelos pais).
Crianças com doenças conhecidas - epilepsia, tumores cerebrais ou meningite
- eram amiúde agressivamente desafiadoras, e assim, Still calculou que essas
vinte crianças sofriam de uma "disfunção cerebral mínima", mesmo não havendo
doença nem trauma óbvios que a houvessem causado.
Nos cinquenta anos seguintes, um punhado de outros autores formulou a ideia
de que a hiperatividade era um marcador de lesão cerebral. As crianças que se
recuperaram da encefalite letárgica, uma epidemia virai que varreu o planeta
entre 1917 e 1928, exibiam com frequência comportamentos antissociais e
oscilações acentuadas de humor, o que levou os pediatras a concluir que a doença
havia causado uma lesão cerebral leve, ainda que a natureza dessa lesão não
pudesse ser identificada. Em 1947, Alfred Strauss, que era diretor de uma escola
para jovens agitados em Racine, no Wisconsin, chamou seus alunos extremamente
hiperativos de "crianças normais com lesão cerebral".5 O primeiro Manual de

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ANATO:MIA DE UMA EPIDE:MIA

Diagnóstico e Estatística da psiquiatria, publicado em 1952, disse que tais crianças


sofriam de uma "síndrome cerebral orgânica".
A ideia de que os estimulantes pudessem ser benéficos para essas crianças
surgiu em 1937, quando Charles Bradley deu uma anfetamina recém-sintetizada,
a Benzedrina, a crianças hiperativas que se queixavam de cefaleia. Embora o
medicamento não curasse a dor de cabeça, Bradley relatou que ele "aquietava"
as crianças e aS ajudava a se concentrarem melhor nas tarefas escolares. As
crianças chamavam a Benzedrina de "pílula da aritmética".6 Embora o relatório
de Bradley tenha basicamente caído no esquecimento nos vinte anos seguintes,
em 1956 a Ciba-Geigy introduziu a Ritalina (metilfenidato) no mercado como
tratamento para a narcolepsia, alardeando-a como uma alternativa "segura" para
as anfetaminas, e os médicos da Faculdade de Medicina da Universidade Johns
Hopkins, que tinham conhecimento das descobertas de Bradley, não tardaram a
julgar que a nova droga seria útil para acalmar crianças "perturbadas", que se
supunha sofrerem de uma "síndrome de lesão cerebral".7
Durante os anos 1960, não houve grande pressa dos psiquiatras em receitar a
Ritalina para crianças irrequietas que frequentavam escolas comuns. Na época,
havia uma ideia de que os fármacos psicoativos, dados os seus muitos riscos, só
deviam ser ministrados a crianças hospitalizadas ou a crianças de instituições
residenciais comunitárias. A população de crianças hiperativas que podia ser
diagnosticada como portadora de "disfunção cerebral orgânica" era pequena. Aos
poucos, entretanto, o uso da Ritalina pela psiquiatria começou a aumentar, durante
os anos 1970, a tal ponto que, no fim da década, umas 150.000 crianças dos Estados
Unidos estavam tomando esse remédio. Depois, em 1980, a classe psiquiátrica
publicou uma terceira edição de seu Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM- III),
que pela primeira vez identificou o "transtorno do déficit de atenção" (TDA)
como uma doença. Os sintomas principais eram "hiperatividade", "desatenção"
e "impulsividade" e, visto que muitas crianças se remexem nas carteiras e têm
dificuldade de se manter atentas na escola, o diagnóstico de TDA começou a
decolar. Em 1987, a psiquiatria afrouxou ainda mais as fronteiras diagnósticas,
redenominando a doença de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade,
numa edição revista do DSM-III. Em seguida, a Ciba-Geigy ajudou a financiar
a criação do Children and Adults with Attention Deficit Hyperactivity Disorder
(CHADD),1 um "grupo de apoio de pacientes" que começou imediatamente a
promover a conscientização popular em relação a essa "doença". Por fim, em 1991,

Crianças e Adultos com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. (N.T.)

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A Epidemia Disseminada entre as Crianças

o CHADD pressionou o Congresso e conseguiu que ele incluísse o TDAH como


uma deficiência coberta pela Lei de Educação de Indivíduos com Deficiências. As
crianças diagnosticadas como portadoras de TDAH passaram a ter direito a serviços
especiais, que deveriam ser financiados por verbas federais, e as escolas começaram
a identificar com regularidade crianças que pareciam sofrer dessa doença. Corno
observou a Harvard Review efPsychiatry em 2009, até hoje o diagnóstico de T DAH
provém sobretudo das queixas de professores, já que "apenas uma minoria de
crianças com esse transtorno exibe sintomas durante urna consulta médica".8

De repente, podiam-se encontrar crianças com TDAH em todas as salas de


aula. O número das que receberam esse diagnóstico subiu para quase um milhão
em 1990 e mais do que duplicou nos cinco anos seguintes. Hoje em dia, talvez 3,5
milhões de crianças norte-americanas tomem algum estimulante para o TDAH,
e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças informaram, em 2007, que
uma em cada criança ou adolescente norte-americano de 4 a 17 anos usa essa
medicação. Essa prática de prescrição é sobretudo um fenômeno norte-americano
-as crianças dos Estados Unidos consomem o triplo da quantidade de estimulantes
consumidos pelo resto das crianças do mundo inteiro, consideradas em conjunto.
Embora o público ouça com frequência que as pesquisas mostraram que
o TDAH é uma "doença cerebral", a verdade é que sua etiologia continua
desconhecida. ''As tentativas de definir uma base biológica para o TDAH têm
sido um insucesso sistemático", escreveu o neurologista pediátrico Gerald
Golden em 1991. ''A neuroanatomia do cérebro, como demonstram os estudos por
imagem, é normal. Nenhum substrato neuropatológico foi demonstrado."9 Sete
anos depois, um grupo de especialistas reunido pelo Instituto Nacional de Saúde
reiterou a mesma afirmação: ''Após anos de pesquisas clínicas e experiência com
o IDAH, nosso conhecimento sobre a causa ou causas desse transtorno continua
a ser predominantemente especulativo." 1 º Durante a década de 1990, o CHADD
informou ao público que as crianças com TDAH sofriam de um desequilíbrio
químico, caracterizado por um sistema dopaminérgico insuficientemente ativo,
mas essa foi apenas uma afirmação para comercialização de medicamentos.
A Ritalina e outros estimulantes elevam os níveis de doparnina na fenda sináptica,
de modo que o CHADD estava tentando dar a impressão de que tais fármacos
"normalizavam" a química cerebral; no entanto, como confessou o Manual
de Neuropsiquiatria de 1997 da American Psychiatric Press, "os esforços para
identificar um desequilíbrio neuroquímico seletivo [em crianças com TDAH] têm
sido decepcionantes". 1 1

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ANATOMlA DE UMA EPIDEMIA

Portanto, vemos nessa história que não se descobriu nada novo d e que revelasse
uma "doença mental" chamada TDAH. Havia na medicina um longo histórico de
especulação de que as crianças extremamente hiperativas sofreriam d e algum tipo
de disfunção cerebral, o que decerto era uma ideia razoável, mas a natureza dessa
disfunção nunca foi d escoberta; e então, em 1980, a psiquiatria simplesmente
criou, com uma penada no DSM-III, uma d efinição drasticamente expandida da
"hiperatividade'\ O garoto irrequieto d e 7 anos que em 1970 poderia ser chamado
de "moleque" tornou-se um indivíduo que sofria d e um distúrbio psiquiátrico.

Dado que a biologia do TDAH permanece d esconhecida, é lícito dizer que a


Ritalina e outros medicamentos para esse transtorno "funcionam" perturbando
os sistemas neurotransmissores. A melhor maneira d e descrever a Ritalina
seria chamá-la de inibidor da recaptação de dopamina. Na dose terapêutica, ela
bloqueia 70% dos "transportadores" que retiram dopamina da fenda sináptica e
a devolvem ao neurônio pré-sináptico. A cocaína age do m esmo modo no cérebro.
Mas o metilfenidato sai do cérebro muito mais devagar do que a cocaína, e por
isso bloqueia a recaptação de dopamina durante horas, em contraste com a
perturbação relativamente breve dessa função causada pela cocaína.11
Em resposta ao metilfenidato, o cérebro infanto-juvenil passa por uma série de
adaptações compensatórias. A dopamina passa a permanecer na fenda sináptica
por um tempo excessivo e, por causa disso, o cérebro da criança ou adolescente
reduz o ritmo de seu mecanismo dopaminérgico. A densidade dos receptores
dopaminérgicos nos neurônios pós-sinápticos declina. Ao mesmo tempo, reduz­
se a quantidade d e m etabolitos de dopamina no líquido cefalorraquidiano, prova
d e que os neurônios pré-sinápticos estão liberando uma quantidade m enor dela.
A Ritalina também age sobre os neurônios serotoninérgicos e noradrenérgicos,
o que causa mudanças compensatórias similares nessas duas vias neuronais.
A densidade dos receptores de serotonina e norepinefrina diminui e a liberação
dessas duas substâncias químicas pelos neurônios pré-sinápticos também se
altera. O cérebro da criança, nas palavras d e Steven Hyman, passa a operar de um
modo "qualitativa e quantitativamente diferente daquele do seu estado normal". 12

Podemos agora voltar nossa atenção para os dados relativos aos resultados.
Será que esse tratamento ajuda os jovens com diagnóstico d e TDAH a longo
prazo? O que mostra a literatura científica?

ll
É pelo fato de ter uma ação tão breve que a cocaína vicia mais do que o metilfenidato, pois, assim
que ela deixa o cérebro, o viciado pode querer tornar a experimentar o "barato" que vem quando
as vias dopaminérgicas são levadas a um estado hiperativo pela primeira vez .

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A Epidemia Disseminada entre as Crianças

Passivos, Parados, Solitários


A Ritalina e outros remédios para o 1DAH mudam o comportamento da
criança, sem dúvida, e em seu relatório de 1937 Charles Bradley preparou o
terreno para a história de eficácia que acabaria emergindo: "Quinze das trinta
crianças responderam à Benzedrina, tornando-se nitidamente dóceis em suas
reações emocionais. Clinicamente, na totalidade dos casos, isso foi uma melhora
do ponto de vista social".13 A Ritalina, que a Administração Federal de Alimentos
e Medicamentos (FDA) aprovou para uso infantil em 1961, mostrou ter um efeito
moderador semelhante. Num estudo duplo-cego conduzido em 1978, o psicólogo
Herbert Rie, da Universidade do Estado de Ohio, estudou 28 crianças ''hiperativas"
durante três meses, havendo-se receitado metilfenidato para metade delas. Eis o que
escreveu:
As crianças que estavam em. tratamento medicamentoso ativo, como se confirmou
retrospectivamente, pareceram., nos momentos de avaliação, nitidamente mais
impassíveis ou "chochas" em. termos afetivos, sem a variedade e a frequência de
expressão emocional que são típicas da idade. Reagiram menos, exibiram pouca
ou nenhuma iniciativa ou espontaneidade, deram pouca indicação de aversão ou
interesse, praticamente não demonstraram curiosidade, surpresa nem prazer, e
pareceram desprovidas de humor. Os comentários jocosos e as situações cômicas
passaram despercebidos. Em suma, sob o efeito do tratamento medicamentoso
ativo, as crianças ficaram relativa, mas inconfundivelmente, sem afeto, sem. humor
e apáticas. 14

Numerosos investigadores relataram observações similares. Sob o efeito da


Ritalina, as crianças exibiam "um aumento acentuado das brincadeiras solitárias,
relacionado com o medicamento, e uma redução correspondente da iniciativa
de interações sociais", anunciou Russell Barkley, um psicólogo da Faculdade de
Medicina de Wisconsin, em 1978. 15 Esse remédio, observou a psicóloga Nancy
Fiedler, da Universidade Estadual de Bowling Green, reduzia a "curiosidade
[da criança] sobre o ambiente". 16 Às vezes a criança medicada "perde o brilho",
escreveu o dr. T ill Davy, um pediatra canadense, em 1989. 17 As crianças tratadas
com estimulantes, concluiu uma equipe de psicólogos da Universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA) em 1993, não raro se tornam "passivas,
submissas" e "socialmente retraídas".1 8 Sob o efeito do medicamento,. algumas
"parecem zumbis", assinalou o psicólogoJames Swanson, diretor de um centro de
TDAH na Universidade da Califórnia em Irvine. 19 Os estimulantes, explicaram os
editores do Oxford Textbook efClinical Psychopharmacology and Drug Therapy,m cerceiam
a hiperatividade "reduzindo o número de respostas comportamentais".20
m "Manual de psicofarmacologia e terapia medicamentosa de Oxford". (N.T.)
23 1
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

Todos esses relatórios contavam a mesma história. Com a Ritalina, o(a)


aluno(a) que antes tinha sido um incômodo na sala de aulas, remexendo-se
demais na carteira ou falando com colegas próximos enquanto o professor escrevia
no quadro-negro, aquietava-se. Não se movimentava tanto e não buscava tanto
o contato social com seus pares. Quando recebia uma tarefa como responder a
problemas aritméticos, sabia concentrar-se intensamente nela. Charles Bradley
tinha achado que essa mudança de comportamento era "uma melhora do ponto de
vista social". E é essa a perspectiva que aparece nos testes de eficácia da Ritalina
e outros remédios para o TDAH. Os professores e outros observadores preenchem
instrumentos de avaliação que veem como positiva a redução da movimentação
da criança e de seu contato com os outros, e, quando os resultados são tabe-lados,
considera-se que de 70% a 90% das crianças "respondem bem" à medicação para o
TDAH. Esses fármacos, como escreveram investigadores do Instituto Nacional de
Saúde Mental (NIMH) em 1995, são altamente eficazes para "reduzir de maneira
drástica uma gama de sintomas nucleares do TDAH, tais como as atividades
irrelevantes para a tarefa (por exemplo, tamborilar dos dedos, irrequietação,
movimentos motores finos, [comportamento] desvinculado da tarefa durante a
observação direta) e a perturbação da sala de aulas".21 Especialistas em TDAH do

Hospital Geral de Massachusetts resumiram de maneira semelhante a literatura


científica: ''A literatura existente documenta com clareza que os estimulantes
diminuem os comportamentos prototípicos do TDAH, inclusive a hiperatividade
motora, a impulsividade e a falta de atenção".22
Entretanto, nada disso fala de um tratamento medicamentoso que beneficie
os jovens. Os estimulantes funcionam bem para os professores, mas será que
ajudam as crianças? Nesse ponto, desde o começo os pesquisadores esbarraram
numa muralha. ''Acima de qualquer outra coisa", escreveu Esther Sleator, médica
da Universidade de Illinois que perguntou a 52 crianças o que achavam da
Ritalina, "deparamos com uma antipatia generalizada por tomar estimulantes
entre as crianças hiperativas".23 As crianças medicadas com Ritalina, relatou em
1990 a psicóloga DeborahJacobvitz, da Universidade do Texas, consideravam-se
"menos felizes e [menos] satisfeitas com elas mesmas, além de mais disfóricas".
Em matéria de ajudar as crianças a fazer e preservar amizades, os estimulantes
produziam "poucos efeitos positivos significativos e uma alta incidência de efeitos
negativos", disse Jacobvitz.24 Outros pesquisadores detalharam como a Ritalina
feria a autoestima das crianças, pois estas achavam que deviam ser "más1' ou
"burras", se tinham que tomar esse remédio. "A criança passa a acreditar não na
firmeza de seu cérebro e seu corpo, não em sua própria capacidade crescente de

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A Epidemia Disseminada entre as Crianças

aprender e de controlar seu comportamento, mas nas 'minhas pílulas mágicas, que
fazem de mim um bom menino"', disse o psicólogo Alan Sroufe, da Universidade
de Minnesota. 25

Tudo isso falava dos males causados, de uma medicação que deixava a
criança deprimida, solitária e carregada de um sentimento de inadequação, e,
quando os pesquisadores foram examinar se ao menos a Ritalina ajudava as
crianças hiperativas a se saírem bem no plano acadêmico, a tirarem boas notas
e terem sucesso como estudantes, constataram que não era esse o caso. Poder se
concentrar intensamente numa prova de matemática, como se revelou, não se
traduzia em realizações acadêmicas a longo prazo. Esse fármaco, explicou Sroufe
em 1973, melhora o desempenho em "tarefas rotineiras repetitivas, que exigem
atenção contínua", mas "o raciocínio, a resolução de problemas e a aprendizagem
não parecem ser [positivamente] afetados".25 Cinco anos depois, Herbert Rie foi
muito mais negativo. Informou que a Ritalina não produzia benefício algum no
"vocabulário, na leitura, na ortografia ou na matemática" dos estudantes, além
de prejudicar sua capacidade de resolver problemas. "As reações das crianças
sugerem fortemente uma redução do tipo de engajamento que pareceria crucial
para a aprendizagern."27 Naquele mesmo ano, Russell Barkley, da Faculdade de
Medicina de Wisconsin, fez um levantamento da literatura científica pertinente
e concluiu: "o efeito principal dos estimulantes parece ser a melhora no manejo
das crianças na sala de aulas, e não no desempenho acadêmico".28 Em seguida, foi
a vez de James Swanson fazer sua avaliação. O fato de as drogas frequentemente
deixarem as crianças "isoladas, retraídas e excessivamente concentradas" podia
"prejudicar mais a aprendizagem do que aprimorá-la", disse ele.29 Carol Whalen,
psicóloga da Universidade da Califórnia em Irvine, assinalou em 1997 que "tem
sido especialmente preocupante a sugestão de que os efeitos insalubres [da
Ritalina] ocorrem no âmbito de funções cognitivas complexas, de ordem superior,
como a resolução flexível de problemas ou o pensamento divergente".30 Por último,
em 2002, investigadores canadenses conduziram urna meta-análise da literatura,
revendo 14 estudos que tinham envolvido 1.379 crianças e adolescentes e durado
pelo menos três meses, e determinaram que houve "poucos indícios de melhora no
desempenho acadêmico".31
Houve mais um desapontamento com a Ritalina. Quando os pesquisadores
averiguaram se os estimulantes melhoravam o comportamento da criança a longo
prazo, não conseguiram encontrar nenhum benefício. Quando a criança parava
de tornar a Ritalina, era comum eclodirem os comportamentos ligados ao TDAH,

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ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

ficando "a excitabilidade, a impulsividade ou a tagarelice" piores do que nunca.


"Muitas vezes, é desanimador observar a rapidez com que o comportamento
se deteriora quando a medicação é suspensa", confessou Whalen.32 E também
não houve provas de que manter o uso do estimulante levasse a uma melhora
permanente da conduta. "Os professores e os pais não devem esperar melhoras
a longo prazo no desempenho acadêmico nem redução do comportamento
antissocial", escreveu Swanson em 1993.33 A edição de 1994 do Manual de Psiquiatria
da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA) admitiu a mesma conclusão
essencial: "Os estimulantes não produzem melhoras duradouras na agressividade,
nos distúrbios da conduta, na criminalidade, nas conquistas educacionais, no
funcionamento no emprego, nas relações conjugais ou na adaptação a longo prazo".34
Trinta anos de pesquisas não conseguiram fornecer nenhuma boa comprovação de
que os estimulantes ajudassem as crianças ''hiperativas" a se desenvolver, e, no
começo da década de 1990, uma equipe de eminentes especialistas em TDAH,
escolhida para chefiar um estudo de longo prazo do NIMH, conhecido como Estudo
Plurilocalizado e Multimodal do Tratamento de Crianças com TDAH, reconheceu
que era essa a situação. ''A eficácia a longo prazo da medicação estimulante não foi
demonstrada em nenhum campo do funcionamento infantil", escreveu.35

Os Estimulantes São Reprovados


O NIMH alardeou seu estudo sobre o TDAH como "o primeiro grande ensaio
clínico" já conduzido pelo instituto sobre '1um transtorno mental infantil".
Todavia, tratou-se de um exercício intelectual bastante falho, já desde o começo.
Embora os investigadores, chefiados por Peter Jensen, diretor adjunto de
pesquisas sobre infância e adolescência no NIMH, reconhecessem, durante as
fases de planejament'o, que não havia na literatura científica provas de que os
estimulantes melhdrassem os resultados a longo prazo, eles não incluíram no
9f
estudo um grupo controle que recebesse um placebo, sob a alegação de que seria
"antiético" susp/nder um "tratamento de eficácia conhecida" durante um longo
período. Basicamente, o estudo comparou o tratamento medicamentoso com a
terapia comportamental, mas, neste último grupo, 20% dos sujeitos tomavam um
estimulante no início do estudo, e nunca houve um período, durante os 14 meses,
em que todas as crianças desse grupo ficassem sem a medicação.36
};\pesar de'ssa falha óbvia na concepção do estudo , os investigadores financiados
pelo NIMH declararam a vitória dos estimulantes, ao término dos 1 4 meses.
O "manejo cuidadosamente trabalhado da medicação" tinha se provado "superior"

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A Epidemia Disseminada entre as Crianças

ao tratamento comportamental, em termos de redução dos sintomas nucleares do


T DAH. Houve também uma sugestão de que as crianças medicadas tinham se
saído melhor nos testes de leitura (mas não em qualquer outro assunto acadêmico)
e, como resultado, a psiquiatria passou a dispor de um estudo de longo prazo que
documentava os benefícios contínuos dos estimulantes. "Dado que o T DAH é
hoje visto pela maioria dos especialistas como um distúrbio crônico, o tratamento
contínuo comumente parece necessário", concluíram os pesquisadores.37
Depois desse período inicial de tratamento por 14 meses, os investigadores
fizeram acompanhamentos periódicos com os estudantes, avaliando como eles iam
e se estavam tomando algum medicamento para o TDAH. A pesquisa tornou-se··
um estudo naturalista, muito semelhante ao conduzido por Martin Harrow sobre
os resultados da esquizofrenia, e os leitores deste livro, já familiarizados com a
literatura científica, podem facilmente adivinhar o que veio depois. Ao cabo de
três anos,Jensen e os outros descobriram que
a medicação era um marcador significativo não de um resultado benéfico, mas de
deterioração. Em outras palavras, os participantes que usaram a medicação no
período de 24 a 36 meses mostraram, na verdade, um aumento da sintomatologia
durante esse período, comparados aos que não estavam tomando medicamentos.38

Dito de outra maneira, as crianças e adolescentes medicados viram seus


sintomas nucleares de TDAH - impulsividade, desatenção, hiperatividade -
piorarem, pelo menos em comparação com os dos jovens não medicados. Além
disso, os que tomavam remédios apresentavam "índices de delinquência" mais
altos ao fim dos três anos, o que significava que eram mais propensos a se meter
em encrencas na escola e com a polícia.39 Também já eram mais baixos e mais
leves do que seus pares não medicados, numa prova de que os fármacos inibiam
o crescimento. Esses resultados deram conta de uma terapia medicamentosa que
causava danos a longo prazo, e quando os investigadores financiados pelo NIMH
apresentaram seus resultados, após seis anos, os dados se mantiveram os mesmos.
O uso da medicação estava "associado a uma hiperatividade/impulsividade pior e a
sintomas de transtorno desafiador opositivo", bem como a um "prejuízo funcional
global maior".40
Existe há muito uma controvérsia acirrada a respeito de o TDAH ser ou
não uma doença 1'real", mas esse estudo mostrou que, em matéria do uso de
estimulantes para tratá- la, a controvérsia é irrelevante. Mesmo que o T DAH seja
real, os estimulantes não fornecerão nenhuma ajuda a longo prazo. "Pensávamos
que as crianças medicadas por mais tempo teriam resultados melhores. Não foi o

235
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

que aconteceu", disse William Pelham, da Universidade Estadual de Nova York,


em Buffalo, que foi um dos principais investigadores. "Não houve efeitos benéficos,
nenhum. A curto prazo, [a medicação] ajuda a criança a se comportar melhor, mas
não a longo prazo. E essa informação deve ser deixada muito clara para os pais."41

Calculando o Prejuízo
Em relação a qualquer medicamento, há que se fazer urna avaliação dos riscos
e benefícios, e a expectativa é de que _os benefícios compensem os riscos. Nesse
caso, porém, o NIMH constatou que, no longo prazo, não havia nada a registrar na
coluna de benefícios do balanço. Isso deixava apenas o cálculo dos riscos a ser feito,
razão por que, neste ponto, devemos examinar todas as maneiras pelas quais os
estimulantes podem prejudicar as crianças.

A Ritalina e outros medicamentos para o TDAH causam uma longa lista de


efeitos adversos físicos, emocionais e psiquiátricos. Os problemas físicos incluem
tonteira, perda do apetite, letargia, insônia, dores de cabeça, dor abdominal,
anormalidades motoras, tiques faciais e vocais, briquismo [ranger de dentes],
problemas cutâneos, doenças hepáticas, perda de peso, inibição do crescimento,
hipertensão e morte cardíaca súbita. As dificuldades afetivas incluem depressão,
apatia, embotamento geral, oscilações de humor, acessos de choro, irritabilidade,
ansiedade e sentimento de hostilidade em relação ao mundo. Os problemas
psiquiátricos incluem sintomas obsessivo-compulsivos, mania, paranoia, surtos
psicóticos e alucinações. O metilfenidato também reduz o fluxo sanguíneo e o
metabolismo da glicose no cérebro, mudanças estas que costumam associar-se a
"estados neuropatológicos".42

Os estudos sobre estimulantes conduzidos com animais também são


motivo de alarme. A exposição repetida às anfetaminas, relataram em 1999
cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade Yale, faziam os macacos
exibirem "comportamentos aberrantes", que persistiam muito depois de cessar
a exposição à droga.43 Vários estudos com ratos sugeriram que a exposição
prolongada ao metilfenidato podia levar à dessensibilização permanente das vias
dopaminérgicas e, como a dopamina é o "sistema de recompensa" do cérebro,
medicar a criança poderia produzir adultos com uma "capacidade reduzida de
sentir prazer".44 Cientistas do C entro Médico do Sudoeste do Texas, em Dallas,
constataram que ratos "pré-adolescentes", expostos ao m etilfenidato por 15
dias, transformaram-se em ratos "adultos" ansiosos e deprimidos. Os ratos

236
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

adultos movimentavam-se menos, eram menos receptivos a novos ambientes


e exibiam um "déficit no comportamento sexual". Os cientistas concluíram
que "a administração de metilfenidato", enquanto o cérebro ainda está em
desenvolvimento, "resulta em adaptações comportamentais aberrantes durante
a idade adulta".45
É essa a literatura a respeito de resultados referente à Ritalina e a outros
medicamentos para o TDAH. Os fármacos alteram o comportamento da criança
hiperativa, a curto prazo, de um modo que os professores e alguns pais consideram
útil, mas, afora isso, os medicamentos apequenam de muitas maneiras a vida
da criança, e podem transformá-la num adulto com uma capacidade fisiológica
reduzida de sentir prazer. E, como veremos mais adiante neste capítulo, há outro
risco desolador dos estimulantes que ainda está por ser explorado.

Resultados Deprimentes
Ainda em 1988, ano em que o Prozac chegou ao mercado, apenas uma em cada
250 crianças e adolescentes abaixo de 19 anos, nos Estados Unidos, tomava algum
antidepressivo.46 Isso se devia, em parte, à convicção cultural de que os jovens
eram naturalmente temperamentais e se recuperavam depressa dos episódios
depressivos, e em parte, ao fato de um estudo após outro haver demonstrado que
os tricíclicos não funcionavam melhor do que um placebo nesse grupo etário.
"Não há como escapar ao fato de que os estudos de pesquisa certamente não
corroboraram a eficácia dos antidepressivos tricíclicos em adolescentes deprimidos
medicados", reconheceu em 1992 um editorial do Journal ef Child and Adolescent
Psychopharmacology .47
Todavia, quando o Prozac e outros inibidores seletivos de recaptação da
serotonina (ISRS) foram introduzidos no mercado e alardeados como drogas
milagrosas, a prescrição de antidepressivos para crianças e adolescentes entrou
em alta. A percentagem de jovens assim medicados triplicou entre 1988 e 1994 e,
em 2002, uma em cada quarenta crianças e jovens abaixo de 19 anos tomava algum
antidepressivo nos Estados Unidos.48 Seria de se presumir que esses fármacos
proporcionassem às crianças e adolescentes um benefício a curto prazo que os
tricíclicos não fornecem, mas, infelizmente, não há possibilidade de examinarmos
a literatura científica para averiguar se isso é verdade, porque, como hoje se
reconhece em larga escala, a literatura está irremediavelmente corrompida.
Os ensaios foram deliberadamente tendenciosos; os resultados divulgados nas

237
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

publicações científicas não corresponderam aos dados reais; os eventos adversos


foram minimizados ou omitidos; e os estudos negativos ficaram inéditos, ou foram
distorcidos em estudos positivos. ''A história da pesquisa do uso de inibidores
seletivos de reabsorção de Serotonina na depressão infantil é uma história de
confusão, manipulação e fracasso institucional", a revista Lancet escreveu em 2004
em um editorial. O fato de psiquiatras das principais faculdades de medicina
haverem participado dessa fraude científica constituiu um "abuso da confiança
que os pacientes depositam em seus médicos".49
Entretanto, um retrato mais ou menos preciso dos méritos da eficácia dessas
drogas nas crianças emergiu por um processo indireto. No curso de ações judiciais
relacionadas com os ISRS, especialistas que depuseram corno peritos em favor
dos queixosos - em especial David Healy, na Inglaterra, e Peter Breggin, nos
Estados Unidos - deram uma olhada em alguns dados de testes e observaram
que os medicamentos aumentavam o risco de suicídio. Eles falaram do que
haviam constatado e, com o número crescente de pais angustiados contando
que seus filhos tinham se matado depois do começar a tomar um ISRS, a FDA foi
obrigada a conduzir um inquérito sobre esse risco em 2004. Por sua vez, isso levou
a uma espantosa confissão de Thomas Laughren, da FDA, sobre a eficácia dos
medicamentos nas crianças. Doze dos 15 ensaios conduzidos com antidepressivos
pediátricos haviam falhado. A FDA, de fato, havia rejeitado as solicitações de seis
fabricantes que buscavam aprovação para vender seus antidepressivos a crianças
e adolescentes. "São resultados que dão muito que pensar", confessou Laughren.50
A FDA aprovou o Prozac para uso infanta-juvenil, visto que dois dos três estudos
positivos resenhados por Laughren tinham vindo de ensaios desse medicamento.
Entretanto, como assinalaram muitos críticos, do ponto de vista científico não há
razão para crer que o Prozac seja melhor do que os outros ISRS. A percentagem de
crianças que respondeu bem a esse fármaco nos dois ensaios positivos assemelhou­
se ao índice de resposta às drogas nos 12 ensaios que falharam; a farmacêutica
Eli Lilly simplesmente foi mais hábil no uso de modelos tendenciosos de ensaios,
feitos para dar a impressão de que seu remédio funcionava. Por exemplo, num dos
dois ensaios do Prozac, todas as crianças receberam inicialmente um placebo,
durante uma semana, e as que melhoraram durante esse período foram excluídas
do estudo. Isso ajudou a derrubar o índice de resposta ao placebo. Em seguida, as
crianças aleatoriamente escolhidas para usar o Prozac foram avaliadas durante
uma semana, e só as "que se adaptaram bem" ao medicamento foram inscritas
no estudo. Isso ajudou a elevar o índice de resposta ao fármaco. ':Antes mesmo de

238
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

se iniciar o estudo", explicoujonathan Leo, editor-chefe da revista Ethical Human


Psychology and Psychiatry; "instaurou-se um mecanismo para maximizar qualquer
diferença entre os grupos com o medicamento e com o placebo - o grupo do
placebo foi pré-selecionado para ter sujeitos não receptivos, ao passo que o grupo
medicado foi pré-selecionado para ter sujeitos receptivos".51 No entanto, mesmo
com esse modelo extremamente tendencioso de ensaio,. as crianças tratadas com
Prozac continuaram a não se sair melhor, nas escalas de autoavaliação ou nas
avaliações dos pais, que as do grupo que recebeu o placebo. Além disso, o ensaio
não conseguiu mostrar a eficácia da fluoxetina em seu "objetivo final", de modo
que a eficácia proveio inteiramente de uma escala secundária de "melhora",
preenchida pelos psiquiatras pagos pela farmacêutica Eli Lilly para conduzir o
teste.

Foi esse o histórico da eficácia produzida pelos ISRS em ensaios pediátricos


referentes à depressão. A maioria dos ensaios não mostrou benefício algum, e a
Eli Lilly teve de usar um projeto de teste grosseiramente tendencioso para fazer
o Prozac parecer eficaz. Em 2003, a Agência Reguladora de Medicamentos e
Serviços de Saúde (MHRA),N no Reino Unido, essencialmente proibiu o uso dos
ISRS, excetuada a fluoxetina, em pacientes abaixo de 1 8 anos. Posteriormente,
cientistas ingleses reexaminaram todos1 os dados relevantes e comunicaram,
na revista Lancet, que respaldavam "a� conclusões extraídas pela MHRA".52
A verdade, explicaram os editores da Lancet num editorial que acompanhou esse
texto, era que tais medicamentos "eram ineficazes e nocivos em crianças". 53
Cientistas australianos contribuíram com uma resenha similar no British Medical
Journal, e seu artigo foi avivado, por descrições das falcatruas praticadas pelos
psiquiatras norte-americanos para fazer com que os ISRS parecessem benéficos,
para começo de conversa. Os autores dos estudos positivos, disseram eles,
haviam "exagerado os benefícios, minimizado os prejuízos, ou as duas coisas". Os
australianos também revisaram os ensaios da farmacêutica Lilly com a fluoxetina
em crianças e determinaram que "a comprovação da e�cácia não é convincente".
Assim sendo, concluíram que "recomendar [qualquer antidepressivo] como
opção de tratamento, muito menos como primeira opção de tratamento, seria
inadequado".54
Na falta de qualquer benefício em eficácia, resta-nos agora a ingrata tarefa
de calcular os prejuízos causados pela prescrição de antidepressivos para crianças
e adolescentes. Podemos começar pelos problemas físicos. Os ISRS podem
1
N
Sigla da denominação original, Medicines and Healthcare Regulatory Agency. (N.T.)

239
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

causar insônia, disfunção sexual, cefaleias, problemas gastrintestinais, tonteira,


tremores, nervosismo, cãibras musculares, fraqueza muscular, convulsões e
uma aguda agitação interna conhecida como acatisia, que está associada ao
aumento do risco de violência e suicídio. Os problemas psiquiátricos que esses
medicamentos podem desencadear são ainda mais complicados. Timothy Wilens
e Joseph Biederman, do Hospital Geral de Massachusetts, conduziram uma
revisão de prontuários de 82 crianças tratadas com ISRS e determinaram que
22% delas tinham sofrido um evento psiquiátrico adverso; 10% haviam se tornado
psicóticas e 6%, maníacas. "Um dos resultados nocivos mais perturbadores é o
agravamento de sintomas afetivos, cognitivos e comportamentais", escreveram.
"Esses eventos psiquiátricos adversos da medicação podem ser significativamente
incapacitantes."55 O psiquiatra T homas Gualtieri, da Carolina do Norte,
determinou que 28% das 128 crianças e adolescentes que ele tratou com ISRS
desenvolveram algum tipo de "toxicidade comportamental".56 Outros médicos
relataram que seus pacientes mais jovens, tratados com ISRS, sofreram ataques
de pânico, ansiedade, nervosismo e alucinações.
Esses resultados dão conta de crianças e adolescentes que foram levados
a adoecer pelos ISRS, e isto, falando no curto prazo. Para aquilatar os riscos a
longo prazo, podemos examinar os problemas surgidos em adultos e em estudos
com animais. Quando as crianças e jovens suspendem a medicação, podem
esperar sofrer com sintomas de abstinência, tanto físicos quando psíquicos.
Caso mantenham o uso dos fármacos durante anos, correm um alto risco de
ficarem cronicamente deprimidos. Também podem desenvolver - como adverte a
Sociedade Norte- Americana de Psiquiatria num de seus manuais - uma "síndrome
de apatia" que "se caracteriza por perda da motivação, aumento da passividade e,
não raro, sentimentos de letargia e 'insipidez"' .57 Temos também de nos preocupar
com a perda da memória e o declínio cognitivo e, como vimos antes, os estudos com
animais sugerem que os medicamentos podem fazer os neurônios serotoninérgicos
ficarem inchados e deformados.

Surge Mais Uma Doença


Primeiro houve o aumento explosivo do TDAH, em seguida veio a notícia de
que a depressão infantil corria solta e, não muito depois, no fim da década
de 1990, o transtorno bipolar juvenil irrompeu na cena pública.Jornais e revistas
publicaram matérias sobre esse fenômeno e, mais uma vez, a psiquiatria explicou
seu aparecimento com uma história de descoberta científica. "Na comunidade

240
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

psiquiátrica, pensou-se durante muito tempo que não era possível fazer um
diagnóstico de transtorno bipolar em crianças ou jovens antes de meados ou final
da adolescência, e que a mania nas crianças era extremamente rara", escreveu o
psiquiatra Demitri Papolos em seu livro The Bipolar Chi/d [A criança bipolar], que
se tornou um campeão de vendas. "Mas cientistas na vanguarda das pesquisas
começam a provar que esse transtorno pode começar numa fase muito precoce
da vida e é muito mais comum do que se supunha anteriormente."58 No entanto,
tão assombroso foi o aumento do número de crianças e adolescentes com esse
diagnóstico - um aumento de quarenta vezes, de 1995 a 2003 - que a revista
Time, num artigo intitulado 'Jovem e bipolar", indagou se haveria alguma outra
coisa acontecendo.59 ''A nova consciência do transtorno talvez não seja suficiente
para explicar a explosão dos casos juvenis de bipolaridade", explicou a matéria.
''Alguns cientistas temem que possa haver no meio ambiente ou nos estilos de
vida modernos algo que esteja empurrando para a doença bipolar crianças e
adolescentes que, de outro modo, escapariam dela."6º
_
Essa especulação fazia todo sentido. Como era possível que uma doença mental
grave houvesse passado despercebida por tanto tempo, só agora vindo os médicos
a notar que milhares de crianças estavam ficando desenfreadamente maníacas?
Mas, se houvesse algo novo no meio ambiente que incitasse a esse comportamento,
como sugeriu a Time a seus leitores, haveria uma explicação lógica para a
epidemia. Os agentes infecciosos provocam epidemias, e portanto, ao traçarmos
a ascensão do transtorno bipolar juvenil, isto é o que nos convirá descobrir: é
possível identificarmos "agentes externos" que estejam causando essa praga da
era moderna?
Como aprendemos antes, a psicose maníaco-depressiva era uma doença
rara antes da era da psicofarmacologia, afetando talvez uma em cada dez mil
pessoas. Embora a instauração inicial às vezes ocorresse em jovens de 15 a 19
anos, em geral ela só aparecia quando as pessoas se achavam na casa dos 20 anos.
Mais importante, porém, ela praticamente nunca aparecia em crianças abaixo
de 1 3 anos, e tanto os pediatras quanto os pesquisadores médicos enfatizavam
sistematicamente esse ponto.
Em 1945, Charles Bradley disse que a mania pediátrica era tão rara que "é
melhor evitar o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva em crianças".61 Um
médico de Ohio, Louis Lurie, revisou a literatura em 1950 e constatou que "os
observadores concluíram que a mania não ocorre em crianças".62 Dois anos
depois, Barton Hall reviu as anamneses de 2.200 pacientes psiquiátricos de 5 a

241
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

1 6 anos e encontrou apenas dois casos de psicose maníaco-depressiva. Em ambos,


os pacientes tinham mais de 13 anos. "Esses fatos endossam a convicção geral
de que os estados maníaco-depressivos são doenças da personalidade madura,
ou em processo de amadurecimento", disse Hall.63 Em 1960,James Anthony, um
psiquiatra da Universidade Washington, vasculhou a literatura médica em busca
de relatos de casos de psicose maníaco-depressiva em crianças, e só conseguiu
encontrar três. "A ocorrência da depressão maníaca nos primeiros anos da infância
comofenômeno clínico ainda está por ser demonstrada", escreveu.64
Mas então, aos poucos, porém de forma segura, esses relatos de caso
começaram a aparecer. No fim dos anos 1960 e início dos 1970, os psiquiatras
começaram a receitar Ritalina para crianças hiperativas e, de repente, em 1976,
Warren Weinberg, um neurologista pediátrico da Universidade Washington,
escreveu noAmericanjournal efDiseases efChildhood que já era hora de a psiquiatria
se aperceber de que as crianças podiam ficar maníacas: "A aceitação da ideia
de que a mania ocorre em crianças é importante para que as crianças afetadas
possam ser identificadas, para que a história natural seja definida e para que um
tratamento apropriado seja estabelecido e oferecido a elas".65
Foi nesse momento da literatura médica que o transtorno bipolar pediátrico foi
essencialmente "descoberto". Em seu artigo, Weinberg reexaminou os históricos
clínicos de cinco crianças que sofriam dessa doença antes não reconhecida,
mas se apressou em passar ao largo do fato de que pelo menos três das cinco
crianças haviam sido tratadas com um tricíclico ou com Ritalina antes de se
tornarem maníacas. Decorridos dois anos, alguns médicos do Hospital Geral de
Massachusetts anunciaram haver identificado nove crianças com psicose maníaco­
depressiva, e também eles passaram por cima do fato de que sete das nove tinham
sido previamente tratadas com anfetaminas, metilfenidato ou "outras medicações
que afetam o comportamento".66 Mais adiante, em 1982, Michael Strober e
Gabrielle Carlson, do Instituto de N europsiquiatria da UCLA, deram uma nova
guinada na história do transtorno bipolar juvenil. Doze dos sessenta adolescentes
que eles haviam tratado com antidepressivos tinham se tornado "bipolares" no
intervalo de três anos, o que1 seria de se supor, sugeria que os fármacos haviam
causado a mania. Em vez disso, Strober e Carlson ponderaram que seu estudo
havia mostrado que os antidepressivos podiam ser usados como um instrumento
de diagnóstico. Não era que os antidepressivos estivessem fazendo algumas crianças
se tornarem maníacas, mas sim que as drogas estavam desmascarando o transtorno
bipolar, já que somente as crianças portadoras da doença sofreriam essa reação a

242
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

um antidepressivo. "Nossos dados dão a entender que as diferenças biológicas entre


subtipos depressivos latentes já estão presentes e são detectáveis na fase inicial da
adolescência, e que o desafio farmacológico pode servir de adjuvante confiável na
delimitação de síndromes afetivas específicas nos jovens", disseram eles.67
O "desmascaramento" do transtorno bipolar em crianças não tardou a
acelerar. A prescrição de Ritalina e antidepressivos decolou no fim dos anos 1980 e
início dos 1990, e, à medida que isso ocorreu, eclodiu a epidemia da bipolaridade.
O número de crianças hostis, agressivas e descontroladas admitidas em
enfermarias psiquiátricas deu um salto, e em 1995 Peter Lewinsohn, do Instituto
de Pesquisas do Oregon, concluiu que, agora, 1 % de todos os adolescentes norte­
americanos eram bipolares.68 Três anos depois, Gabrielle Carlson relatou que 63%
dos pacientes pediátricos tratados em seu hospital universitário sofriam de mania,
o mesmo sintoma que os médicos anteriores à era psicofarmacológica não viam
quase nunca em crianças. "Os sintomas maníacos são a regra, não a exceção",
observou ela.69 Na verdade, hoje os dados epidemiológicos de Lewinsohn estão
quase obsoletos. O número de crianças que receberam alta de hospitais com
diagnóstico de bipolaridade quintuplicou entre 1996 e 2004, a tal ponto que se
passou a dizer que essa "doença mental feroz" ataca uma em cada cinquenta
crianças pré-púberes nos Estados Unidos. ''Ainda não temos os números exatos",
disse à revista Time, em 2002, o psiquiatra Robert Hirschfeld, da Universidade do
Texas, "mas sabemos que a doença existe e é subdiagnosticada."7º
Uma epidemia atingiu a maioridade, e a história revela que ela cresceu pari
passu com a prescrição de estimulantes e antidepressivos para crianças.

Criando a Criança Bipolar


Tendo em vista essa cronologia, deveríamos estar aptos a encontrar dados
explicativos de por que estimulantes e antidepressivos surtiriam esse efeito
iatrogênico. Deveria haver dados mostrando que, se tratarmos cinco milhões
de crianças e adolescentes com esses fármacos, aproximadamente 20% deles
deteriorarão de maneiras que levarão a um diagnóstico de transtorno bipolar.
Deveria haver provas do dano iatrogênico que vai compondo matematicamente
uma epidemia.
Comecemos pela Ritalina.
Antes mesmo que a prescrição de Ritalina se tornasse aceita, era bem sabido
que as anfetaminas eram capazes de provocar surtos psicóticos e maníacos. Aliás,

243
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

as anfetaminas o faziam com tanta regularidade que os pesquisadores psiquiátricos


apontavam esse efeito como prova corroborante da hipótese dopaminérgica
da esquizofrenia. As anfetaminas elevavam os níveis de dopamina no cérebro,
sugerindo que a psicose era causada por um excesso desse neurotransmissor.
Em 1974, David Janowsky, médico da Faculdade de Medicina da Universidade
da Califórnia em San Diego, testou essa hipótese, dando três agentes elevadores
da dopamina - D-anfetamina, L-anfetamina e metilfenidato - a seus pacientes
esquizofrênicos. Embora todas as três substâncias os deixassem mais psicóticos,
o metilfenidato revelou-se o campeão nesse aspecto, duplicando a gravidade dos
sintomas.71
Considerando-se essa compreensão do rnetilfenidato, a psiquiatria podia
esperar que dar Ritalina a crianças pequenas causaria em muitas delas um surto
maníaco ou psicótico. Embora esse risco não esteja bem quantificado, psiquiatras
canadenses relataram, em 1999, que 9 em 96 crianças com TDAH tratadas por
eles com estimulantes, durante uma média de 21 meses, desenvolveram "sintomas
psicóticos".72 Em 2006, a FDA emitiu um relatório sobre esse risco. De 2000 a
2005, a agência havia recebido quase mil relatos de psicose e mania induzidas por
estimulantes em crianças e adolescentes e, como se acredita que esses relatórios
da MedWatch representem apenas 1% do número real de eventos adversos,
isso sugere que cem mil jovens diagnosticados com TDAH sofreram episódios
psicóticos e/ou maníacos durante aquele período de cinco anos. A FDA estabeleceu
que esses episódios ocorriam regularmente em "pacientes sem nenhum fator de
risco identificável" de psicose, o que significava que eram claramente induzidos por
medicamentos, e que uma "parcela substancial" dos casos ocorria em crianças de
1O anos ou menos. "Nas crianças pequenas, a predominância de alucinações visuais
e táteis envolvendo insetos, cobras e vermes é impressionante", escreveu a FDA.73
Uma vez ocorrida essa psicose induzida por drogas, as crianças costumam ser
diagnosticadas corno portadoras de transtorno bipolar. Além disso, essa progressão
diagnóstica do TDAH medicado para o transtorno bipolar é bem reconhecida por
especialistas da área. Num estudo sobre I 95 crianças e adolescentes bipolares,
Demitri Papolos constatou que 65% "tinham reações hipornaníacas, maníacas
e agressivas aos medicamentos estimulantes".74 Em 2001, Melissa DelBello, do
Centro Médico da Universidade de Cincinnati, relatou que 2 1 de 34 pacientes
adolescentes internados por mania vinham usando estimulantes "antes da
instalação do surto afetivo". Esses remédios, confessou ela, podiam "precipitar
a depressão e/ou a mania em crianças que, de outro modo, não desenvolveriam o
transtorno bipolar".75

244
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

Mas há um problema ainda maior com os estimulantes. Eles fazem as crianças


passarem ciclicamente por estados de excitação e disforia todos os dias. Quando uma
criança toma o remédio, os níveis de dopamina se elevam na sinapse e isso produz
um estado de excitação. A criança pode exibir uma energia maior, uma concentração
mais intensa e ficar hiperalerta. Pode tornar-se ansiosa, irritadiça, agressiva,
hostil e incapaz de dormir. Os sintomas mais extremos da excitação incluem
comportamentos obsessivo-compulsivos e hipomaníacos. Mas, quando a droga deixa
o cérebro, os níveis dopaminérgicos na sinapse sofrem uma queda acentuada, o que
pode levar a sintomas tão disfóricos quanto fadiga, letargia, apatia, retraimento
social e depressão. Os pais falam com regularidade desse "desmoronamento''" diário.
Mas - e aí está a chave - esses sintomas excitados e disfóricos são justamente os que
o NIMH identifica como característicos da criança bipolar. Os sintomas de mania
nas crianças, diz o NIMH, incluem aumento da energia, intensificação da atividade
orientada para o alvo, insônia, irritabilidade, agitação e explosões destrutivas. Os
sintomas de depressão nas crianças incluem perda de energia, isolamento social,
perda do interesse pelas atividades (apatia) e tristeza.

A progressão do TDAH para o transtorno bipolar

Sintomas induzidos pelo estimulante Sintomas bipolares

Excitação Disforia Excitação Disforia

Aumento da Sonolência Aumento da energia Tristeza


energia Fadiga, letargia Intensificação de Perda de energia
Concentração Retraimento social, atividades orientadas Perda de interesse
intensificada isolamento para o alvo nas atividades
Estado hiperalerta Redução da Redução da Isolamento social
Euforia espontaneidade necessidade de sono
Comunicação
Agitação, Redução da curiosidade Grave oscilação de precária
humor
ansiedade Constrição do afeto Sentimento de: não
Irritabilidade ter valor
Insônia Depressão
Irritabilidade Agitação Choro inexplicado
Labilidade emocional
Explosões destrutivas
Hostilidade
Aumento da fala
Hipomania
Distração
Mania
Hipomania
Psicose
Mania

Os estimulantes usados para tratar o TDAH induzem sintomas de excitação e disforia. Esses sintomas
induzidos pela medicação superpõem-se em grau notável aos sintomas tidos como característicos do
transtorno bipolar juvenil.

245
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

Em suma, toda criança que toma estimulantes torna-se um pouco bipolar, e o


risco de que uma criança com diagnóstico de TDAH passe para um diagnóstico
de transtorno bipolar depois de ser tratada com um estimulante já foi até
quantificado.Joseph Biederman e seus colegas do Hospital Geral de Massachusetts
relataram, em 1996, que 15 de 140 crianças (11%) diagnosticadas com TDAH
desenvolveram sintomas bipolares - que não estavam presentes no diagnóstico
inicial- no prazo de quatro anos.76 Isso nos dá nossa primeira equação matemática
para solucionar a epidemia bipolar juvenil: quando uma sociedade receita
estimulantes a 3,5 milhões de crianças e adolescentes, como acontece nos Estados
Unidos de hoje, ela deve esperar que essa prática crie quatrocentos mil jovens
com transtorno bipolar. Como assinalou a revista Time, a maioria das crianças com
transtorno bipolar é inicialmente diagnosticada com um distúrbio psiquiátrico
diferente, sendo "o TDAH o mais provável diagnóstico inicial".
Agora, consideremos os inibidores seletivos de reabsorção de serotonina (ISRS).
Está bem estabelecido que os antidepressivos podem induzir surtos maníacos
em adultos e, naturalmente, também têm esse efeito nas crianças. Já em 1992,
quando a prescrição de ISRS para crianças mal estava começando, pesquisadores
da Universidade de Pittsburgh relataram que 23% dos meninos de 8 a 19 anos
tratados com Prozac desenvolveram mania ou sintomas de tipo maníaco, e outros
19% desenvolveram uma hostilidade "induzida pelos fármacos".77 No primeiro
estudo da Eli Lilly sobre o Prozac na depressão pediátrica, 6% das crianças
tratadas com o medicamento sofreram um episódio maníaco, o que não se deu
com nenhuma do grupo tratado com um placebo.78 Enquanto isso, relatou-se que
o Luvox causava um índice de 4% de mania em crianças e jovens abaixo de 18
anos.79 Em 2004, pesquisadores da Universidade Yale avaliaram esse risco da
mania induzida por antidepressivos em jovens e velhos, e constataram que ele é
mais alto em pessoas abaixo de 13 anos.80
As taxas de incidência citadas acima vêm de ensaios de curto prazo; o risco
aumenta quando as crianças e adolescentes mantêm o uso de antidepressivos por
períodos extensos. Em 1995, psiquiatras de Harvard determinaram que 25% das
crianças e adolescentes diagnosticados com depressão convertem-se em doentes
bipolares no prazo de dois a quatro anos. "É bem possível que o tratamento com
antidepressivos induza a uma passagem para a mania, a ciclos rápidos ou a uma
instabilidade afetiva nos jovens, como é quase certo que faça com os adultos",
explicaram.81 Barbara Geller, da Universidade Washington, estendeu o período
de acompanhamento para dez anos e, em seu estudo, quase metade das crianças

246
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

pré�púberes tratadas por depressão acabaram se tornando bipolares.82. Essas


constatações nos dão nossa segunda equação matemática para solucionar a
epidemia da bipolaridade: quando dois milhões de crianças e adolescentes são
tratados de depressão com ISRS, essa prática cria de quinhentos mil a um milhão
de jovens bipolares.

Agora dispomos de números que nos falam de uma epidemia iatrogênica:


quatrocentas mil crianças bipolares chegando pela via de acesso do TDAH, e pelo
menos outro meio milhão pela via de acesso dos antidepressivos. Há também um
modo de conferir esta concl�são: será que, quando os investigadores estudam os
pacientes bipolares juvenis, eles constatam que a maioria percorreu uma dessas
duas vias iatrogênicas?
Eis os resultados. Num estudo de 2003 com 79 pacientes bipolares juvenis,
o psiquiatra Rif El-Mallakh, da Universidade de Louisville, determinou que 49
(62%) tinham sido tratados com um estimulante ou um antidepressivo antes
de se tornarem maníacos.83 No mesmo ano, Papolos informou que 83% das 195
crianças bipolares estudadas por ele tinham sido inicialmente diagnosticadas
com outro distúrbio psiquiátrico, e que dois terços delas tinham sido expostas a
um antidepressivo.84· Por último, Gianni Faedda constatou que 84% das crianças
tratadas de transtorno bipolar na Clínica Luci Bini de Transtornos do Humor,
na cidade de Nova York, entre 1998 e 2000, tinham sido previamente expostas a
drogas psiquiátricas. "O notável é que em menos de 10% [dos casos] se considerou
inicialmente o diagnóstico de transtorno bipolar", escreveu Faedda.85
Como não é de admirar, os pais dão testemunho desse curso iatrogênico. Em
maio de 1999, Martha Hellander, diretora executiva da Child and Adolescent
Bipolar Foundation, e Tomie Burke, fundadora da Parents of Bipolar Children,v
escreveram juntas ao Journal ef the Academy of Child and Adolescent Psychiatry uma
carta em que disseram:
Quase todos os nossos filhos receberam, inicialmente, o diagnóstico de TDAH,
foram tratados com estimulantes e/ou antidepressivos e, ou não responderam,
ou sofreram sintomas de mania, como acessos de raiva, insônia, agitação, fala
compulsiva e similares. Em linguagem leiga, os pais chamam isso de "quicar pelas
paredes". Em nossos filhos, muitas vezes a primeira internação ocorreu durante
estados maníacos ou mistos (que incluíam gestos suicidas e tentativas de suicídio),
desencadeados ou exacerbados pelo tratamento com estimulantes, tricíclicos ou
inibidores de reabsorção de serotonina.86
V
Os nomes das duas organizações, baseadas na internet, se traduziriam por Fundação das Crianças
e Adolescentes Bipolares, e Pais de Crianças Bipolares. (N.T.)

247
ANATO:MIA DE Ui:11A EPIDEMIA

Com a prescrição de ISRS para tantos adolescentes, uma epidemia de mania


eclodiu também nos campi universitários. Num artigo de 2002 intitulado "Crise
no campus", a revista Psychology Today informou que um número crescente de
estudantes, havendo chegado à faculdade com uma receita de antidepressivo na
mão, vinha sofrendo colapsos graves durante o período letivo. "Estamos vendo mais
surtos iniciais de mania a cada ano", disse Morton Silverman, chefe do senriço de
orientação psicológica da Universidade de Chicago. "É algo muito destrutivo. Em
geral, significa hospitalização para o aluno." A revista conseguiu até identificar uma
data exata em que essa epidemia de mania começou a emergir: 1988.87 Para ligar os
pontinhos, os leitores só precisam se lembrar de quando o Prozac entrou no mercado.

Uma última evidência vem da Holanda. Em 2001, psiquiatras holandeses


registraram apenas 39 casos de doença bipolar pediátrica em seu país.
A pesquisadora holandesa Catrien Reichart estudou então os filhos de pais com
transtorno bipolar nos Estados Unidos e na Holanda, e verificou que os norte­
americanos eram dez vezes mais propensos do que os jovens holandeses a exibir
sintomas bipolares antes dos 20 anos. A razão provável dessa diferença, concluiu
Reichart, é que "a prescrição de antidepressivos e estimulantes para crianças nos
Estados Unidos é muito maior".88

Tudo isso dá conta de uma epidemia que é, sobretudo, de natureza iatrogênica.


Cinquenta anos atrás, os médicos praticamente nunca viam psicose maníaco­
depressiva em pré-adolescentes e raras vezes a diagnosticavam em adolescentes.
Depois, pediatras e psiquiatras começaram a receitar Ritalina para crianças
hiperativas e, de repente, as publicações médicas começaram a divulgar relatos
de casos de crianças maníacas. O problema cresceu com o aumento das receitas de
Ritalina, depois explodiu com a introdução dos ISRS. As pesquisas mostraram
então que esses dois tipos de droga desencadeiam regularmente sintomas bipolares
em_crianças e adolescentes. São eles os dois "agentes externos" que alimentam a
epidemia, e convém lembrar que de fato perturbam o funcionamento cerebral
normal. As crianças maníacas que aparecem nas emergências dos hospitais têm
vias dopaminérgicas e serotoninérgicas que foram alteradas pelos fármacos, e que
agora funcionam de maneira "anormal". Há uma lógica passo a passo que explica
essa epidemia.
Além disso, há pelo menos mais três caminhos para o diagnóstico de transtorno
bipolar juvenil. Como constataram El-Mallakh, Papolos e Faedda, há crianças
e adolescentes assim diagnosticados que não foram previamente expostos a
antidepressivos ou estimulantes, e é bem fácil ver de onde vem a maioria desses

248
A Evolução de uma Epidemia

Disseminam-se os agentes iatrogênicos Os diagnósticos de transtorno bipolar E o número de inválidos dispara


Percentagem de jovens norte-americanos com juvenil dão um salto Pensionistas da SSI abaixo de IS anos,
menos de 20 anos que tomam estimulantes ou Consultas ambulatoriais de jovens de menos de considerados incapacitados por doença mental,
antidepressivos 20 anos com diagnóstico de transtorno bipolar 1987-2D07

900,000 600.000
,,; 800.000
600.000
700.000
'·' Estimulantes 600.000 400.000
500.000
,., 400.000
300.000

300.000 200.000
'·'
i
Anlldeprosslvcs
200.000
100.000
100.000

""
o,;

•= 1991 ,oo, "" "" "" '"" ,.,, '"' '"' '""' 2007 �­

Os índices de prescrição foram calculados com base
em três relatórios distintos. Ver, em particular, Zito,
J. "Psychotropic practice patterns for youth",Archives
Fonte: Moreno, C. "National trends in the outpatient
diagnosis and treatment ofbipolar disorder in youth",
ArchivesefGeneralP,tJChiatry 64, 2007: 1.032-1.039.
Fonte: Relatórios da Administração da Seguridade
Social, 1987-2007. ;.
efPediatricAdolescent Medicine 157, 2003: 17-25.

(")

j'
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

pacientes. Primeiro, o psiquiatraJoseph Biederman, da Universidade Harvard,


liderou a expansão das fronteiras do diagnóstico na década de 1990, ao propor
que a "irritabilidade" extrema podia ser vista como indício de transtorno
bipolar. A criança já não precisava ficar maníaca para receber o diagnóstico
de bipolar. Segundo, em muitos estados, as crianças abrigadas em lares adotivos
temporários recebem agora, com regularidade, o diagnóstico de doentes
bipolares - aparentemente, sua raiva não seria resultante de haverem nascido
em famílias disfuncionais, mas se deveria a uma doença biológica. Por último, os
adolescentes que se complicam com a lei são hoje regularmente categorizados
com rótulos psiquiátricos. Muitos estados criaram os chamados '1tribunais de
saúde mental", que os despacham para hospitais e abrigos psiquiátricos, e não
para instituições correcionais, e esses jovens também vão engrossando o número
dos doentes bipolares.

O Destino que Nos Espera


Como vimos antes neste livro, os desfechos dos pacientes bipolares adultos
sofreram uma deterioração dramática nos últimos quarenta anos, e os piores
resultados são vistos nos que apresentam sintomas de "estados mistos" e ''ciclos
rápidos". Esse curso clínico nos adultos praticamente nunca era visto antes da era
psicofarmacológica; ao contrário, foi associado à exposição a antidepressivos e,
tragicamente, são justamente esses os sintomas que afligem a esmagadora maioria
dos pacientes bipolares juvenis. Eles exibem sintomas "semelhantes ao quadro
clínico relatado em adultos gravemente enfermos, resistentes ao tratamento",
explicou Barbara Geller em 1997.89
Portanto, esta não é apenas urna história de crianças que se tornaram bipolares;
é a história de crianças afetadas por uma forma particularmente grave da doença.
Papolos verificou que 87% de seus 195 pacientes bipolares juvenis sofriam
de "alterações cíclicas ultra, ultrarrápidas", o que significava que oscilavam
constantemente entre estados de humor maníacos e deprimidos.90 Similarmente,
Faedda constatou que 66% dos pacientes bipolares juvenis tratados na Clínica Luci
Bini de Transtornos do Humor tinham "ciclos ultra, ultrarrápidos", e outros 19%
sofriam com alterações cíclicas rápidas apenas um pouco menos extremadas. "Em
contraste com um curso bifásico, episódico e relativamente lento de ciclos, em
alguns adultos com transtorno bipolar, as formas pediátricas costumam envolver
estados mistos de humor e um curso subcrônico, instável e constante", escreveu
Faedda.91

250
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

Os estudos sobre resultados descobriram que o prognóstico dessas crianças a


longo prazo é sombrio. O Nll\fi-I, como parte do seu estudo STEP-BD, mapeou os
resultados de 542 pacientes bipolares infanto-juvenis e relatou que a instauração
anterior à idade adulta "estava associada a índices mais altos de transtornos
comórbidos de ansiedade e abuso de substâncias tóxicas, a mais recidivas, a
períodos mais curtos de eutimia [estado de humor normal] e a uma probabilidade
maior de tentativas de suicídio e violência".92 Boris Birmaher, na Universidade de
Pittsburgh, constatou que os pacientes com transtorno bipolar "de instauração
precoce" ficam sintomáticos aproximadamente 60% do tempo e que, em média,
mudam de ''polaridade" - da depressão para a mania, ou vice-versa - no espantoso
número de 1 6 vezes por ano. Os pacientes pré-púberes eram "duas vezes menos
propensos a se recuperar do que os bipolares de instauração pós-púbere", disse
Birmaher, sendo "esperável que as crianças respondam mal ao tratamento, ao
chegarem à idade adulta".93 DelBello acompanhou um grupo de adolescentes
hospitalizados por um primeiro episódio bipolar e concluiu que apenas 4 1% tiveram
recuperação funcional no prazo de um ano.94 Esse comprometimento, constatou
Birmaher, se agrava depois do primeiro ano. ''O comprometimento funcional nos
pacientes bipolares parece aumentar durante a adolescência, independentemente
da idade de instauração da doença."95
Os jovens diagnosticados com transtorno bipolar são tipicamente tratados com
coquetéis medicamentosos que incluem um antipsicótico atípico e um estabilizador
do humor. Isso significa que eles passam a ter múltiplas vias de neurotransmissores
cerebrais que vão sendo bagunçadas e, naturalmente, esse tratamento não
os reconduz à saúde emocional e física. Em 2002, Geller relatou que o lítio, os
antidepressivos, os estabilizadores de humor, nenhum deles ajudou os jovens
bipolares a se saírem melhor ao cabo de dois anos. Os que foram tratados com
neurolépticos, acrescentou ela, "tiveram uma probabilidade significativamente
menor de se recuperarem do que aqueles que não receberam neurolépticos".96
Seis anos depois, a Hayes Inc., uma empresa de consultoria da Pensilvânia que
conduz avaliações "imparciais" de medicamentos para prestadores de serviços de
saúde, concluiu que não havia boas provas científicas de que os estabilizadores
de humor e os antipsicóticos atípicos receitados para o transtorno bipolar pediátrico
fossem seguros ou eficazes. "Nossos resultados indicam que, neste momento, os
anticonvulsivantes e os antipsicóticos atípicos não podem ser recomendados para
crianças diagnosticadas com transtornos bipolares", disse Elisabeth Houtsrnuller,
analista sênior da Hayes.97 Esses laudos atestam a falta de eficácia dos fármacos,
mas, como assinalou Houtsmuller, os efeitos colaterais desses "tratamentos

251
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

farmacológicos" são "alarmantes". Em particular, os antipsicóticos atípicos podem


causar disfunção metabólica, anormalidades hormonais, diabetes, obesidade,
embotamento afetivo e discinesia tardia.VI Com o tempo, os remédios induzem ao
declínio cognitivo, e a criança que continua a tomar os coquetéis até a idade adulta
também pode esperar uma morte prematura.

É esse o curso a longo prazo dessa doença iatrogênica: a criança, que talvez
esteja hiperativa ou deprimida, é tratada com uma medicação que desencadeia
um surto maníaco, ou algum grau de instabilidade afetiva, e depois é medicada
com um coquetel de fármacos que leva a uma vida de invalidez.

Os Números da Invalidez
Ainda não existem bons estudos sobre a percentagem dos pacientes bipolares
"de instauração precoce" que, ao atingir a idade adulta, acabam nas listas
de inválidos da Renda Complementar da Previdência (SSI) e do Seguro da
Previdência Social por Invalidez (SSDI) . No entanto, o salto espantoso no número
de crianças "doentes mentais graves" que recebem auxílio ou pensão diz muito
sobre a devastação que vem sendo criada. Havia 16.200 jovens abaixo de 18 anos
considerados incapacitados por problemas psiquiátricos no rol da SSI em 1987, e
eles abrangiam menos de 6% do número total de crianças inválidas. Vinte anos
depois, havia 561.569 crianças e jovens inválidos por doença mental nas listas
da SSI, e eles correspondiam a 50% do total. Essa epidemia vem atingindo até
crianças pré-escolares. A prescrição de psicotrópicos a crianças de 2 ou 3 anos
começou a se tornar mais comum há cerca de dez anos e, dito e feito, o número de
doentes mentais graves abaixo de 6 anos que recebem auxílio da SSI triplicou desde
então, subindo de 22.453 em 2000 para 65.928 em 2007. 98

Num laudo de 2008 publicado pelo Colégio Europeu de Neuropsicofarmacologia, investigadores


espanhóis observaram que "as crianças e adolescentes parecem correr um risco maior que os
adultos de sofrer efeitos adversos, como sintomas extrapiramidais [perturbações dos movimentosJ,
elevação da prolactina [altos níveis hormonais], sedação, aumento de peso e efeitos metabólicos,
ao tomarem antipsicóticos". Os pesquisadores também relataram que esses riscos podem ser
maiores nas meninas que nos meninos.

252
A Epidemia Disseminada entre as Crianças

A epidemia atinge as crianças e adolescentes dos Estados Unidos


Pensionistas da SSI abaixo de 18 anos incapacitados por doença mental, 1987-2007

600.000
Total

500.000

400.000

300.000
6-12 anos
13-17 anos
200.000

100.000

o
1987 1992 1997 2002 2007

Antes de 1992, os relatórios governamentais sobre a SSI não separavam os beneficiários infanta-j uvenis
em subgrupos etários. Fonte: relatórios da Administração da Seguridade Social, 1987-2007.

Além disso, os números da SSI mal começam a sugerir o alcance do estrago que
vem sendo causado. Há em toda parte indícios de piora da saúde mental de crianças
e adolescentes. De 1995 a 1999, a procura dos prontos-socorros psiquiátricos
por jovens aumentou 59%.99 A deterioração da saúde mental das crianças do
país, declarou em 2001 o diretor nacional de Saúde dos Estados Unidos, David
Satcher, constituía "urna crise sanitária". 100 Em seguida, as faculdades começaram
a se perguntar, de repente, por que tantos alunos _ seus estavam sofrendo surtos
maníacos ou apresentando comportamentos perturbados; um levantamento de
2007 descobriu que um em cada seis estudantes universitários havia se "cortado ou
queimado" de propósito no ano anterior. 101 Tudo isso levou o GeneralAccountability
Office (GAO)vrr a investigar o que estava acontecendo, e ele relatou em 2008 que
um em cada 15 adultos jovens, com 18 a 25 anos de idade, sofre hoje de urna
"doença mental grave". Há 680.000 indivíduos desse grupo etário com transtorno
bipolar e outros oitocentos mil com depressão grave, e o GAO assinalou que, na
verdade, essa era uma contagem abaixo da realidade do problema, pois não incluía
os adultos jovens sem teto, encarcerados ou institucionalizados. Todos esses jovens
têm al m grau de "comprometimento funcional", afirmou o GAO.'º2
gu

É nesse ponto que nos encontramos hoje, como nação. Vinte anos atrás, nossa
sociedade começou a receitar regularmente drogas psiquiátricas a crianças e

Ver nota VIII do Capítulo 1, p. 25.

253
ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA

adolescentes, e agora, um em cada 15 norte-americanos entra na idade adulta com


uma "doença mental grave". Trata-se de uma prova do tipo mais trágico de que o
nosso paradigma de tratamento medicamentoso tem feito muito mais mal do que
bem. Medicar crianças e jovens só se tornou corriqueiro há pouco tempo, e já fez
milhões de indivíduos enveredarem pelo caminho da doença vitalícia.

254

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