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A Epidemia Disseminada
entre as Crianças
"Para muitos pais efamílias, a experiência {de ter
umfilho diagnosticado com uma doença mental} pode
ser uma desgraça; isto nós devemos dizer."
- E.Jane Costello, professora de psiquiatria
da Universidade Duke, 2006 1
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Provas cada vez mais numerosas mostram que alguns transtornos psiquiátricos
podem levar a uma deterioração neurológica progressiva quando não são tratados.
(...) Níveis tóxicos de neurotransmissores, como os glutamatos, ou de hormônios
do estresse, como o cortisol, podem danificar o tecido nervoso ou interferir nas
vias normais de neuromaturação. O tratamento farmacológico desses distúrbios
pode não só ter sucesso na melhora dos sintomas, mas também ser neuroprotetor
(em outras palavras, os tratamentos medicamentosos podem proteger de lesões
cerebrais ou promover a neuromaturação normal).3
Se isso é verdade, a psiquiatria realmente deu um grande salto nos últimos
trinta anos. O campo aprendeu a diagnosticar em crianças doenças cerebrais que
antes passavam despercebidas, e seus medicamentos "neuroprotetores" agora as
transformam em adultos normais.
A Ascensão do TDAH
Embora o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade não aparecesse
do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais da psiquiatria antes de
1980, esse campo profissional gosta de assinalar que tal distúrbio não surgiu
simplesmente do nada. Trata-se de um problema cujas raízes remontam a 1902.
Naquele ano, sir George Frederick Still, pediatra inglês, publicou uma série de
palestras sobre vinte crianças que tinham a inteligência normal, mas "exibiam
explosões violentas, peraltice desenfreada, destrutividade e falta de reação aos
castigos".4 Além disso, Still ponderou que esse mau comportamento provinha de
um •problema biológico (e não da má qualidade da educação dada pelos pais).
Crianças com doenças conhecidas - epilepsia, tumores cerebrais ou meningite
- eram amiúde agressivamente desafiadoras, e assim, Still calculou que essas
vinte crianças sofriam de uma "disfunção cerebral mínima", mesmo não havendo
doença nem trauma óbvios que a houvessem causado.
Nos cinquenta anos seguintes, um punhado de outros autores formulou a ideia
de que a hiperatividade era um marcador de lesão cerebral. As crianças que se
recuperaram da encefalite letárgica, uma epidemia virai que varreu o planeta
entre 1917 e 1928, exibiam com frequência comportamentos antissociais e
oscilações acentuadas de humor, o que levou os pediatras a concluir que a doença
havia causado uma lesão cerebral leve, ainda que a natureza dessa lesão não
pudesse ser identificada. Em 1947, Alfred Strauss, que era diretor de uma escola
para jovens agitados em Racine, no Wisconsin, chamou seus alunos extremamente
hiperativos de "crianças normais com lesão cerebral".5 O primeiro Manual de
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Portanto, vemos nessa história que não se descobriu nada novo d e que revelasse
uma "doença mental" chamada TDAH. Havia na medicina um longo histórico de
especulação de que as crianças extremamente hiperativas sofreriam d e algum tipo
de disfunção cerebral, o que decerto era uma ideia razoável, mas a natureza dessa
disfunção nunca foi d escoberta; e então, em 1980, a psiquiatria simplesmente
criou, com uma penada no DSM-III, uma d efinição drasticamente expandida da
"hiperatividade'\ O garoto irrequieto d e 7 anos que em 1970 poderia ser chamado
de "moleque" tornou-se um indivíduo que sofria d e um distúrbio psiquiátrico.
Podemos agora voltar nossa atenção para os dados relativos aos resultados.
Será que esse tratamento ajuda os jovens com diagnóstico d e TDAH a longo
prazo? O que mostra a literatura científica?
ll
É pelo fato de ter uma ação tão breve que a cocaína vicia mais do que o metilfenidato, pois, assim
que ela deixa o cérebro, o viciado pode querer tornar a experimentar o "barato" que vem quando
as vias dopaminérgicas são levadas a um estado hiperativo pela primeira vez .
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aprender e de controlar seu comportamento, mas nas 'minhas pílulas mágicas, que
fazem de mim um bom menino"', disse o psicólogo Alan Sroufe, da Universidade
de Minnesota. 25
Tudo isso falava dos males causados, de uma medicação que deixava a
criança deprimida, solitária e carregada de um sentimento de inadequação, e,
quando os pesquisadores foram examinar se ao menos a Ritalina ajudava as
crianças hiperativas a se saírem bem no plano acadêmico, a tirarem boas notas
e terem sucesso como estudantes, constataram que não era esse o caso. Poder se
concentrar intensamente numa prova de matemática, como se revelou, não se
traduzia em realizações acadêmicas a longo prazo. Esse fármaco, explicou Sroufe
em 1973, melhora o desempenho em "tarefas rotineiras repetitivas, que exigem
atenção contínua", mas "o raciocínio, a resolução de problemas e a aprendizagem
não parecem ser [positivamente] afetados".25 Cinco anos depois, Herbert Rie foi
muito mais negativo. Informou que a Ritalina não produzia benefício algum no
"vocabulário, na leitura, na ortografia ou na matemática" dos estudantes, além
de prejudicar sua capacidade de resolver problemas. "As reações das crianças
sugerem fortemente uma redução do tipo de engajamento que pareceria crucial
para a aprendizagern."27 Naquele mesmo ano, Russell Barkley, da Faculdade de
Medicina de Wisconsin, fez um levantamento da literatura científica pertinente
e concluiu: "o efeito principal dos estimulantes parece ser a melhora no manejo
das crianças na sala de aulas, e não no desempenho acadêmico".28 Em seguida, foi
a vez de James Swanson fazer sua avaliação. O fato de as drogas frequentemente
deixarem as crianças "isoladas, retraídas e excessivamente concentradas" podia
"prejudicar mais a aprendizagem do que aprimorá-la", disse ele.29 Carol Whalen,
psicóloga da Universidade da Califórnia em Irvine, assinalou em 1997 que "tem
sido especialmente preocupante a sugestão de que os efeitos insalubres [da
Ritalina] ocorrem no âmbito de funções cognitivas complexas, de ordem superior,
como a resolução flexível de problemas ou o pensamento divergente".30 Por último,
em 2002, investigadores canadenses conduziram urna meta-análise da literatura,
revendo 14 estudos que tinham envolvido 1.379 crianças e adolescentes e durado
pelo menos três meses, e determinaram que houve "poucos indícios de melhora no
desempenho acadêmico".31
Houve mais um desapontamento com a Ritalina. Quando os pesquisadores
averiguaram se os estimulantes melhoravam o comportamento da criança a longo
prazo, não conseguiram encontrar nenhum benefício. Quando a criança parava
de tornar a Ritalina, era comum eclodirem os comportamentos ligados ao TDAH,
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Calculando o Prejuízo
Em relação a qualquer medicamento, há que se fazer urna avaliação dos riscos
e benefícios, e a expectativa é de que _os benefícios compensem os riscos. Nesse
caso, porém, o NIMH constatou que, no longo prazo, não havia nada a registrar na
coluna de benefícios do balanço. Isso deixava apenas o cálculo dos riscos a ser feito,
razão por que, neste ponto, devemos examinar todas as maneiras pelas quais os
estimulantes podem prejudicar as crianças.
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Resultados Deprimentes
Ainda em 1988, ano em que o Prozac chegou ao mercado, apenas uma em cada
250 crianças e adolescentes abaixo de 19 anos, nos Estados Unidos, tomava algum
antidepressivo.46 Isso se devia, em parte, à convicção cultural de que os jovens
eram naturalmente temperamentais e se recuperavam depressa dos episódios
depressivos, e em parte, ao fato de um estudo após outro haver demonstrado que
os tricíclicos não funcionavam melhor do que um placebo nesse grupo etário.
"Não há como escapar ao fato de que os estudos de pesquisa certamente não
corroboraram a eficácia dos antidepressivos tricíclicos em adolescentes deprimidos
medicados", reconheceu em 1992 um editorial do Journal ef Child and Adolescent
Psychopharmacology .47
Todavia, quando o Prozac e outros inibidores seletivos de recaptação da
serotonina (ISRS) foram introduzidos no mercado e alardeados como drogas
milagrosas, a prescrição de antidepressivos para crianças e adolescentes entrou
em alta. A percentagem de jovens assim medicados triplicou entre 1988 e 1994 e,
em 2002, uma em cada quarenta crianças e jovens abaixo de 19 anos tomava algum
antidepressivo nos Estados Unidos.48 Seria de se presumir que esses fármacos
proporcionassem às crianças e adolescentes um benefício a curto prazo que os
tricíclicos não fornecem, mas, infelizmente, não há possibilidade de examinarmos
a literatura científica para averiguar se isso é verdade, porque, como hoje se
reconhece em larga escala, a literatura está irremediavelmente corrompida.
Os ensaios foram deliberadamente tendenciosos; os resultados divulgados nas
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psiquiátrica, pensou-se durante muito tempo que não era possível fazer um
diagnóstico de transtorno bipolar em crianças ou jovens antes de meados ou final
da adolescência, e que a mania nas crianças era extremamente rara", escreveu o
psiquiatra Demitri Papolos em seu livro The Bipolar Chi/d [A criança bipolar], que
se tornou um campeão de vendas. "Mas cientistas na vanguarda das pesquisas
começam a provar que esse transtorno pode começar numa fase muito precoce
da vida e é muito mais comum do que se supunha anteriormente."58 No entanto,
tão assombroso foi o aumento do número de crianças e adolescentes com esse
diagnóstico - um aumento de quarenta vezes, de 1995 a 2003 - que a revista
Time, num artigo intitulado 'Jovem e bipolar", indagou se haveria alguma outra
coisa acontecendo.59 ''A nova consciência do transtorno talvez não seja suficiente
para explicar a explosão dos casos juvenis de bipolaridade", explicou a matéria.
''Alguns cientistas temem que possa haver no meio ambiente ou nos estilos de
vida modernos algo que esteja empurrando para a doença bipolar crianças e
adolescentes que, de outro modo, escapariam dela."6º
_
Essa especulação fazia todo sentido. Como era possível que uma doença mental
grave houvesse passado despercebida por tanto tempo, só agora vindo os médicos
a notar que milhares de crianças estavam ficando desenfreadamente maníacas?
Mas, se houvesse algo novo no meio ambiente que incitasse a esse comportamento,
como sugeriu a Time a seus leitores, haveria uma explicação lógica para a
epidemia. Os agentes infecciosos provocam epidemias, e portanto, ao traçarmos
a ascensão do transtorno bipolar juvenil, isto é o que nos convirá descobrir: é
possível identificarmos "agentes externos" que estejam causando essa praga da
era moderna?
Como aprendemos antes, a psicose maníaco-depressiva era uma doença
rara antes da era da psicofarmacologia, afetando talvez uma em cada dez mil
pessoas. Embora a instauração inicial às vezes ocorresse em jovens de 15 a 19
anos, em geral ela só aparecia quando as pessoas se achavam na casa dos 20 anos.
Mais importante, porém, ela praticamente nunca aparecia em crianças abaixo
de 1 3 anos, e tanto os pediatras quanto os pesquisadores médicos enfatizavam
sistematicamente esse ponto.
Em 1945, Charles Bradley disse que a mania pediátrica era tão rara que "é
melhor evitar o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva em crianças".61 Um
médico de Ohio, Louis Lurie, revisou a literatura em 1950 e constatou que "os
observadores concluíram que a mania não ocorre em crianças".62 Dois anos
depois, Barton Hall reviu as anamneses de 2.200 pacientes psiquiátricos de 5 a
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Os estimulantes usados para tratar o TDAH induzem sintomas de excitação e disforia. Esses sintomas
induzidos pela medicação superpõem-se em grau notável aos sintomas tidos como característicos do
transtorno bipolar juvenil.
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A Evolução de uma Epidemia
900,000 600.000
,,; 800.000
600.000
700.000
'·' Estimulantes 600.000 400.000
500.000
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300.000
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Os índices de prescrição foram calculados com base
em três relatórios distintos. Ver, em particular, Zito,
J. "Psychotropic practice patterns for youth",Archives
Fonte: Moreno, C. "National trends in the outpatient
diagnosis and treatment ofbipolar disorder in youth",
ArchivesefGeneralP,tJChiatry 64, 2007: 1.032-1.039.
Fonte: Relatórios da Administração da Seguridade
Social, 1987-2007. ;.
efPediatricAdolescent Medicine 157, 2003: 17-25.
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É esse o curso a longo prazo dessa doença iatrogênica: a criança, que talvez
esteja hiperativa ou deprimida, é tratada com uma medicação que desencadeia
um surto maníaco, ou algum grau de instabilidade afetiva, e depois é medicada
com um coquetel de fármacos que leva a uma vida de invalidez.
Os Números da Invalidez
Ainda não existem bons estudos sobre a percentagem dos pacientes bipolares
"de instauração precoce" que, ao atingir a idade adulta, acabam nas listas
de inválidos da Renda Complementar da Previdência (SSI) e do Seguro da
Previdência Social por Invalidez (SSDI) . No entanto, o salto espantoso no número
de crianças "doentes mentais graves" que recebem auxílio ou pensão diz muito
sobre a devastação que vem sendo criada. Havia 16.200 jovens abaixo de 18 anos
considerados incapacitados por problemas psiquiátricos no rol da SSI em 1987, e
eles abrangiam menos de 6% do número total de crianças inválidas. Vinte anos
depois, havia 561.569 crianças e jovens inválidos por doença mental nas listas
da SSI, e eles correspondiam a 50% do total. Essa epidemia vem atingindo até
crianças pré-escolares. A prescrição de psicotrópicos a crianças de 2 ou 3 anos
começou a se tornar mais comum há cerca de dez anos e, dito e feito, o número de
doentes mentais graves abaixo de 6 anos que recebem auxílio da SSI triplicou desde
então, subindo de 22.453 em 2000 para 65.928 em 2007. 98
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600.000
Total
500.000
400.000
300.000
6-12 anos
13-17 anos
200.000
100.000
o
1987 1992 1997 2002 2007
Antes de 1992, os relatórios governamentais sobre a SSI não separavam os beneficiários infanta-j uvenis
em subgrupos etários. Fonte: relatórios da Administração da Seguridade Social, 1987-2007.
Além disso, os números da SSI mal começam a sugerir o alcance do estrago que
vem sendo causado. Há em toda parte indícios de piora da saúde mental de crianças
e adolescentes. De 1995 a 1999, a procura dos prontos-socorros psiquiátricos
por jovens aumentou 59%.99 A deterioração da saúde mental das crianças do
país, declarou em 2001 o diretor nacional de Saúde dos Estados Unidos, David
Satcher, constituía "urna crise sanitária". 100 Em seguida, as faculdades começaram
a se perguntar, de repente, por que tantos alunos _ seus estavam sofrendo surtos
maníacos ou apresentando comportamentos perturbados; um levantamento de
2007 descobriu que um em cada seis estudantes universitários havia se "cortado ou
queimado" de propósito no ano anterior. 101 Tudo isso levou o GeneralAccountability
Office (GAO)vrr a investigar o que estava acontecendo, e ele relatou em 2008 que
um em cada 15 adultos jovens, com 18 a 25 anos de idade, sofre hoje de urna
"doença mental grave". Há 680.000 indivíduos desse grupo etário com transtorno
bipolar e outros oitocentos mil com depressão grave, e o GAO assinalou que, na
verdade, essa era uma contagem abaixo da realidade do problema, pois não incluía
os adultos jovens sem teto, encarcerados ou institucionalizados. Todos esses jovens
têm al m grau de "comprometimento funcional", afirmou o GAO.'º2
gu
É nesse ponto que nos encontramos hoje, como nação. Vinte anos atrás, nossa
sociedade começou a receitar regularmente drogas psiquiátricas a crianças e
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