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Psiquiatria infantil,
medicalização e a Síndrome
da Criança Normal
Por Rossano Cabral Lima
Introdução
Em 2005, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicava o Atlas: Child and adolescent
mental health resources. Nele, a entidade citava estudos epidemiológicos indicando que
a prevalência mundial de transtornos mentais na faixa etária infantil e juvenil girava em
torno de 20 %, sendo que 4 a 6 % das crianças e adolescentes teriam quadros suficiente-
mente intensos para demandar tratamento. Contudo, a partir de informações recebidas
de 66 países, a OMS concluía que em nenhum deles a necessidade de serviços de saúde
mental infanto-juvenis era atendida e que a cobertura e a qualidade dos cuidados a essa
faixa etária tendiam a estar sempre aquém daquelas oferecidas aos adultos. Esta lacuna
assistencial existia mesmo nos países desenvolvidos, mas era maior nos de renda mais
baixa, onde a proporção de crianças na população geralmente é maior (WHO, 2005). O
Atlas deixa uma série de questões em aberto que merecem ser investigadas. Em primei-
ro lugar, a que se deve a alta prevalência (20%) de transtornos mentais, incluindo aqui
quadros de leves a graves? Indicaria maior conscientização sobre os quadros e detecção
mais eficaz dos mesmos, apesar das lacunas apontadas? Apontaria para uma tendência
a maior adoecimento da população infanto-juvenil no mundo atual? Seria indício de
apropriação pela medicina de questões de ordem moral ou social, ou seja, medicaliza-
ção de problemas escolares e familiares? Para abordar essas questões, vamos organizar
este texto em três momentos: a constituição da psiquiatria infantil no mundo e no Brasil;
a expansão atual da especialidade, a partir do surgimento das categorias nosológicas
incluídas nas classificações contemporâneas e a discussão sobre os critérios de normali-
dade e patologia nessa faixa etária.
Pinel: mania, melancolia, demência e idiotismo. Destes, o único diagnóstico que, tendo
sido descrito em adultos internados em Bicêtre e Salpetrière, também poderia ser apli-
cado a uma criança era o idiotismo ou idiotia, como depois vai definir Etiène Esquirol. A
idiotia, contudo, não tinha o mesmo estatuto das demais, sendo considerada mais uma
monstruosidade intelectual, um defeito ou interrupção no desenvolvimento do que uma
doença propriamente dita (BERCHERIE, 2001).
Assim, a aposta de que o tratamento moral, método por excelência do alienismo fran-
cês da primeira metade do século XIX, poderia recuperar a razão do cidadão com uma
mania delirante, não se aplicava ao idiota, pois não haveria como recuperar faculdades
mentais que ainda não tinham se desenvolvido. Houve poucas visões dissonantes, sendo
uma delas representada pela tentativa de Jean-Marc Itard de civilizar Victor – a criança
selvagem capturada nas florestas de Aveyron – a partir de métodos educativos usados
com surdos-mudos. Seus esforços não tiveram muita repercussão na psiquiatria da épo-
ca, mas influenciaram Séguin, Delasiauve e Bourneville na implantação de estratégias
educacionais com crianças deficientes.
No segundo período, que vai dos anos 1880 até os anos 1930, os psiquiatras passam a
se interessar pela infância dos alienados no registro do estudo diacrônico das doenças
mentais, no qual a evolução dos quadros ganha relevância. Isso instala um esboço de
psiquiatria infantil, totalmente inspirada na clínica do adulto, buscando encontrar nos
primeiros anos de vida os correlatos ou os primeiros indícios das psicopatologias da vida
madura. É nessa fase que o psiquiatra italiano Sante de Sanctis descreve a Demência
Precocíssima, decalque da categoria de Demência Precoce do alemão Emil Kraepelin
(BERCHERIE, 2001).
Finalmente, para Bercherie (2001), os anos 1930 veriam nascer uma psiquiatria infantil
autônoma, na qual a psicanálise serve como principal referência para compreender a
vida mental – normal e patológica – da criança, especialmente no campo das neuroses,
com desdobramentos para a vida adulta. O modelo do conflito inconsciente agrupa qua-
dros até então dispersos, como os distúrbios psicossomáticos, tendo grande impacto na
pediatria – daí o termo ‘pedopsiquiatria’. A atenção para as especificidades da psicopa-
tologia infantil e a valorização da psicodinâmica e das relações precoces na constituição
do psiquismo instalam o ambiente no qual, por exemplo, Leo Kanner vai descrever “os
transtornos autísticos do contato afetivo”, em 1943.
Foucault (2002), por outro lado, não considera que a psiquiatrização da criança foi tar-
dia, mas fundadora, pois teria sido a partir da infância que a psiquiatria se universalizou
e generalizou. Ao invés de tratar-se de novo campo a ser anexado, a descoberta da infân-
cia pela psiquiatria teria sido determinante do sucesso da especialidade1. A constituição
e apropriação das modalidades de anormalidade infantil permitiriam que a psiquiatria
[1] É necessário ressaltar que as abordagens de Bercherie (2001) e Foucault (2002) têm objetos distintos: enquanto Bercherie se
preocupa com a constituição da psiquiatria infantil como superespecialidade, Foucault não se dedica a esse tema, mas ao modo
como o biopoder, suas instituições de controle e mecanismos de vigilância se apropriam da criança e daí se expandem ao adulto.
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O ideário higienista em relação às crianças fica ainda mais claro no folheto de propa-
ganda Exhortação às mães, material distribuído pela LBHM e dirigido às famílias – es-
pecialmente à genitora, já que ao pai cabia outro tipo de papel no ambiente doméstico.
O panfleto conclamava as mães a buscar a Clínica de Eufrenia, inaugurada pela Liga no
Rio de Janeiro em 1931, atendendo desde os primeiros meses até os 12 anos de idade2:
Cuida, pois, da alma do teu filho desde os primeiros annos ou, antes, desde os
primeiros mezes. Mas, cuida racionalmente, scientificamente, para que não pre-
judiques a sua personalidade. Muitos desvios do psychismo são fructos da má
orientação educacional. E são os paes, não raro, os responsáveis por essas graves
anomalias. É que quasi todos, ainda os mais esclarecidos, são levados, insensível
e involuntariamente, pelos sentimentos affectivos, que não lhes deixam ver os
defeitos de seus pimpolhos.
Innumeras reacções nervosas infantis, que aos olhos dos neuro-hygienistas se
afiguram verdadeiros ‘signaes de alarma’, são encarados por alguns paes como
gestos interessantes. [...]
Não esperes, portanto, que o teu filho fique nervoso, ou attinja as raias da aliena-
ção mental; submette-o, quanto antes, a um exame especialisado, a fim de que,
amanhã, não te dôa, nem de leve, a consciência.
[2] A transcrição a seguir é um pouco diferente da feita por Schechtman (2005), pois preservamos a ortografia da época e a ordem
original dos parágrafos. Os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental foram digitalizados pelo GEPHE – Grupo de Estudos e Pesquisas
Higienismo e Eugenismo.
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É esta a exhortação que te faz a Liga Brasileira de Hygiene Mental, que sómente
deseja ver felizes todas as mães, para que felizes sejam também todos os filhos
deste querido Brasil.
Teu filho tem defeitos na linguagem, é gago? Manda-o examinar para saber a sua
verdadeira causa.
Teu filho tem vícios de natureza sexual? Leva-o ao especialista para que te en-
sine a corrigil-o.
Teu filho é mentiroso, ou tem o vício de furtar? Trata-o sem demora, se não qui-
zeres possuir um descendente que te envergonhe.
Teu filho tem muitos tics ou cacoetes? É um hyperemotivo. Procure evitar a des-
graça futura do teu filho, que poderá ser um candidato ao suicídio.
Teu filho pouco progride nos estudos? Antes de culpar o professor, submette-o a
um exame psychologico. Conhecerás, então, o seu nível mental, o seu equilíbrio
emotivo, e terás, assim, elementos para melhor o encaminhar na vida.
Lê e reflecte. A felicidade do teu filho está, em grande parte, nas tuas próprias
mãos (LBHM, 1932, p.83-84).
A medicalização não é sempre um fenômeno total, havendo situações – como aquelas en-
volvendo uso de drogas – nas quais a medicina divide com outros campos – a justiça, por
exemplo – o mandato do cuidado. Além disso, a medicalização não percorre um só sentido,
mas é um fenômeno bidirecional, ou seja, há também desmedicalização (CONRAD, 2007).
Um dos exemplos diz respeito ao onanismo ou masturbação, já citado acima. No século
XIX, essa prática era tida como ameaça à saúde física, moral e intelectual dos jovens, levan-
do a prescrições médicas que incluíam mudanças na alimentação, recomendações sobre
a forma dos bancos escolares e a vigilância permanente por parte dos adultos (COSTA,
1999). No decorrer do século XX, na medida em que a sexualidade gradualmente deixava
de ser tabu, o onanismo perdeu seu status patológico e patogênico, não mais se deman-
dando ao saber médico o controle e a repressão da masturbação de um adolescente.
turas, inocentes, dependentes e não responsáveis pelos seus atos, são alvo de ações
de “proteção” no “seu melhor interesse”. Seus comportamentos “desviantes” são des-
critos e classificados pelos adultos e suas instituições e pouca voz é dada às próprias
crianças. Como resultado, a intensidade atual da medicalização/psiquiatrização na in-
fância pode ser ainda maior que a vista no mundo dos adultos.
do humor. Por outro lado, o curso do quadro tenderia a ser mais crônico, sem distinção
clara entre fases maníacas e depressivas.
Normalidade e patologia
Bipolares, disruptivas, autistas, hiperativas, opositivas, desatentas, desafiadoras, asper-
gers – somando todas, ainda restariam crianças normais? As fronteiras entre normalida-
de e patologia, especialmente no campo do mental, são constantemente redefinidas. No
caso de crianças, as mudanças físicas e psicológicas – o que chamamos usualmente de
“desenvolvimento” – instalam continuidades e descontinuidades que aumentam ainda
mais o desafio de estabelecer claramente essa distinção. Além disso, como apontou Ge-
orges Canguilhem (1904-1995), há sempre um elemento contextual na definição dessas
fronteiras. Normal e patológico se referem a uma relação entre a criança e seu meio –
familiar, escolar, comunitário, biológico –, não fazendo sentido discutir esses conceitos
e suas aplicações sem que o ambiente seja levado em conta. Assim, mudanças na visão
contemporânea a respeito da infância, do desempenho na escola, das relações entre
pais e filhos e das novas configurações familiares, do uso precoce e intensivo de tecnolo-
gias – tudo isso deve ser investigado quando pensamos sobre as novas normas na infân-
cia e o no que estaria fora da norma. Porém, esses contextos não têm sido valorizados,
parecendo que o transtorno é uma coisa alojada na criança – “meu filho tem TDAH” – ou
algo que se mistura à identidade dela – “meu filho é TDAH”.
p.169). Se a doença é a noção que convoca o conceito de saúde, podemos nos perguntar:
que concepção de normalidade está implícita nas novas categorias psiquiátricas infantis
e juvenis? Para responder, proponho um exercício – inverter as proposições presentes
nos critérios diagnósticos de alguns dos quadros psiquiátricos da infância descritos no
DSM, ou seja, partir da “doença” para entender a “norma”. Seguindo o modelo do ma-
nual norte-americano, os “anti-critérios” que surgem poderiam dar origem ao que de-
nominarei de Síndrome da Criança Normal – ou SCN, para seguir a regra dos acrônimos
que acompanha os diagnósticos atuais.
Podemos dizer que acabamos de ser apresentados a uma “não criança”. Que ideal de
normalidade nós, adultos – sim, porque não são as crianças que elaboram os critérios
diagnósticos da psiquiatria –, estamos impondo aos nossos filhos, netos, pacientes, alu-
nos? Esse debate é tão difícil quanto urgente e nada ganhamos ao adiar o enfrentamen-
to dessa questão.
Para finalizar
É importante entender que os transtornos descritos no DSM e na CID não são “coisas”
das quais a criança é “portadora”, são modos de descrever a experiência de sofrimento
ou problemas de comportamento que têm impacto na vida da criança ou adolescente.
Pode-se admitir, portanto, que os diagnósticos psiquiátricos infantis e juvenis tenham
alguma eficácia descritiva, mas sua eficácia explicativa é muito limitada. Senão, vejamos:
por que uma criança tem comportamentos desafiadores e opositivos? Porque ela tem
TOD. E porque ela tem TOD? Porque tem comportamentos desafiadores e opositivos.
Essa é a armadilha tautológica, levando à circularidade infinita e à impossibilidade de
fazer uma clínica digna deste nome.
É preciso estar atento à outra armadilha, a nosológica, na qual caímos toda vez que
acreditamos que tudo que vai mal numa criança merece um diagnóstico psiquiátrico.
Sabemos que nem todo problema envolvendo as esferas emocional, cognitiva, relacio-
nal e comportamental se traduz num transtorno mental infantil ou juvenil. A pergunta
que se deve sempre fazer é: qual é o ganho ético e clínico em descrever certo traço ou
dificuldade como patológicos ao invés de utilizar algum outro ponto de vista? Defendo
que deveríamos inverter a lógica usada atualmente e só lançar mão do diagnóstico mé-
dico e da intervenção farmacológica após explorar outras explicações e abordagens das
adversidades experimentadas pela criança ou adolescente. Deste modo, quadros como
o TDAH seriam encarados como diagnósticos de exclusão, reduzindo os riscos de iatro-
genia e de negligenciar fatores psicossociais fundamentais na compreensão das formas
de mal-estar na infância contemporânea.
72 CONVERSAÇÕES EM PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
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