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O espaço da criança sob a ótica da fenomenologia existencial 1

Marcela Astolphi de Souza – Universidade Estadual de Campinas, Brasil


marcela.astolphi@gmail.com

Luciana de Lione Melo – Universidade Estadual de Campinas, Brasil


lulione@unicamp.br

A infância é um conceito historicamente construído e, as crianças são vistas pela


sociedade de diferentes formas, ocupando diversos lugares. Em cada tempo histórico, os
papéis atribuídos à ela e sua ocupação geográfica se modificam. Assim, a criança não
está à parte da sociedade e dos valores que constituem o mundo, pois está presente em
todos os lugares, tendo os mais diversos cenários (ARIÉS, 2014).
Há àquelas que estudam, as que trabalham, as que brincam, as que roubam;
algumas são amadas e outras manipuladas. Sendo assim, é possível afirmar que a
infância não acontece da mesma forma para todas as crianças e as histórias se
diversificam de acordo com cada experiência vivida (DEL PRIORE, 2010).
Se pudéssemos dar voz às crianças que estão nas casas, nas ruas e nas
instituições, para construção de suas próprias histórias, é possível que elas nos relatem
situações que envolvem sentimentos e sensações diferentes (DEL PRIORE, 2010;
VIDA; GOMES; BERBAT, 2015).
Compreender as relações entre as crianças e seus mundos possibilita desvelar
sentidos sobre o cotidiano, as condições de vida e a maneira como essas são vistas na
comunidade, pois acredita-se que as experiências desses pequenos cidadãos dentro de
um espaço, impulsiona a reflexão sobre o modo como são valorizados e tratados e, além
disso, como nos relacionamos com eles (SANTOS; DIAS, 2015).

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Este trabalho recebe auxílio à pesquisa, em forma de bolsa de doutorado, do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, vigência maio/2017 a julho/2020.

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As concepções da geografia, sociologia e antropologia envolvem o estudo do
espaço e afirmam que este está atrelado as relações do ser humano no contato com o seu
ambiente, ou seja, com o seu mundo, considerando, portanto, o espaço físico também
como um espaço humano (ARAÚJO, 2016).
A geografia da infância considera as infâncias vividas de acordo com os mais
diversos contextos e interpretações feitas pelos sujeitos neles presentes. Considera
teorias relacionadas à família valorizando questões de natureza cultural, social e
psicológica. Diante disso, é relevante o sentido de pertencimento da criança ao espaço
que não somente a circunda, mas passa a cumprir um importante papel na formação de
sua identidade (ARAÚJO, 2016; ESPÍRITO SANTO; JACÓ-VILELA; FERRERI,
2006).
Quando o espaço desempenha este papel, juntamente com os outros aspectos
culturais, ele se torna lugar, influenciando a subjetividade humana e as relações sociais.
Portanto, a experiência da criança junto com o espaço pode ser considerada como
fundamental para sua constituição como sujeito. Assim, o espaço onde a criança vive se
transforma em lugar à medida que ela atribui um sentido a ele e a sua própria existência
(ARAÚJO, 2016).
Logo, partindo dos conceitos propostos pela geografia da infância, lugar e
espaço, a criança encontra-se lançada a uma facticidade que abarca possibilidades de
relação e constituem a sua experiência juntamente com seus familiares. E, considerando,
portanto o espaço como um ambiente fundamental para a constituição da criança como
sujeito, este estudo tem como objetivo refletir sobre o mundo da criança segundo o
referencial de Martin Heidegger.
Neste referencial, a concepção do espaço está atrelada a ação humana, que a
constitui como ser-no-mundo, ou seja, mundo e espaço podem ser considerados
sinônimos. Para a geografia, um dos maiores desafios é pensar as diferentes maneiras
como essas relações se dão em um espaço e como o ser apropria-se dele,
transformando-o e se revelando coerentemente de modo que a geografia o consiga
interpreta (VIDA; GOMES; BERBAT, 2015; HOLZER, 2013).

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Martin Heidegger considera a fenomenologia como uma possibilidade de
compreender e explicitar o ser na existência humana, não vislumbra o ‘que’ dos objetos
e sim, o ‘como’ os seres vivenciam suas facticidades. Afirma que a experiência diz
respeito ao modo de ser do homem no mundo, e está sempre localizada no tempo e no
espaço. A fenomenologia busca o sentido do fenômeno na existência, na facticidade, a
partir do ser-aí (Dasein) (HEIDEGER, 2012).
Este ser-aí é utilizado para designar o caráter específico do ser humano,
entendido como o lugar onde o ser se revela. Este ser-aí se encontra lançado em um
mundo que não criou e nem escolheu, mas que vive e experiência de acordo com a
forma e significados que já foram outorgados pelo homem. Ele não apenas ‘é’, mas é
‘aí’. O homem é o único ser que interroga pelo seu ser e tem uma relação com o seu
próprio ser. Portanto, o ser-aí se compreende a partir de sua existência, isto é, por meio
de sua possibilidade de ser ele próprio ou não ser ele próprio (HEIDEGER, 2012).
Existência é a relação de um ente consigo mesmo, e estas possibilidades são um
modo-de-ser, particular, de cada ente. Este ser-aí é um ser-no-mundo, e este ser-no-
mundo não significa apenas ocupar um espaço geográfico, mas corresponde também às
diversas maneiras que o homem vive e pode viver, aos vários modos como se relaciona
e atua com os entes que encontra e a ele se apresentam (HEIDEGER, 2012; HOLZER,
2013).
Como ser-no-mundo, cada indivíduo é as suas situações. Existindo, o ser-no-
mundo realiza a sua existência. Assim, o homem é entendido a partir do mundo onde se
encontra, percebendo nele o sentido do seu ser-aí, quando se abre para si mesmo e para
o mundo, quando ora envolve o mundo ‘público’ do nós, ora do mundo circundante e
próprio. Não é apenas estar em um mundo, mas também se relacionar com este mundo.
E neste relacionar-se se encontra o ser-com, o mundo é sempre o mundo compartilhado
com os outros e isto nos demonstra o caráter do ser-aí, ser-no-mundo-com-os-outro
(HEIDEGER, 2012).
A concepção do espaço ou da ação humana se inicia a partir de um espaço já
conhecido pela criança, ou seja, o espaço vivido, e pode até ser distante, porém é aquele
o qual a criança se identifica compreendendo a relação entre sociedade e natureza

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(VIDA; GOMES; BERBAT, 2015). Para a abordagem fenomenológica o mundo é
entendido a partir de uma relação originária, anterior à teorização. O mundo é a abertura
de um horizonte a partir da terra, e nesse sentido a experiência geográfica é ontológica-
existencial de “existir junto a” (DAL GALLO, MARANDOLA, 2015; MARANDOLA,
2012).
A criança é considerada desde o seu nascimento como já no mundo, não tendo
essa característica somente a partir de seu nascimento, pois é uma constituição
fundamental da existência humana, sendo uma unidade indissolúvel da existência e do
mundo (CYTRYNOWICZ , 2018).
Ser junto a, implica no caráter do existir de estar sempre apreendendo o que vem
ao seu encontro a cada instante e familiarizar-se com. O caráter de ser junto sempre
desvela o mundo de algum modo e é diferente das construções sociais, pois em qualquer
ocasião, lugar não significa nada, não revela o espaço em que a criança está ou foi
colocada (DAL GALLO, MARANDOLA, 2015).
Sendo assim, para Heidegger há o mundo existencial, o qual é sempre dotado de
significações sendo constantemente descoberto por cada ser humano e é apreendido
singularmente por cada ser-aí a partir do seu em-torno, nos acontecimentos factuais que
constantemente estão se apresentando ao longo de sua história. Deste modo o mundo, o
espaço geográfico é aquele que desde sempre é a cada situação, sendo compreendido na
sua história original (HOLZER, 2013).
No mundo de envolvimento e relações de proximidade com pessoas e coisas
mais ou menos familiares, a criança está sempre descobrindo a si mesma, o lugar onde
vive, as coisas que manuseia, o que gosta e o que não gosta. No contexto de sua
ontologia fundamental, a criança também esta envolta da espacialidade fáctica, definida
pela temporalidade (CYTRYNOWICZ, 2018).
Esse pensamento nos mostra que a criança não deve ser entendida como um ser
incompleto, que precisa se desenvolver e nem que deva ser inserida no mundo dos
adultos como foi antigamente (DEL PRIORE, 2010; ESPÍRITO SANTO; JACÓ-
VILELA; FERRERI, 2006), mas sim que se deve considerar um lugar para que ela co-
habite junto com adultos.

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Heidegger procura ampliar as questões do espaço em relação aos limites
impostos pelas ciências, concebendo-o e atrelando-o a interioridade da consciência
subjetiva, abrindo caminhos para pensar a situação do ser na sociedade contemporânea
em sua geograficidade (DAL GALLO; MARANDOLA, 2015). Esta se manifesta por
meio da ligação íntima habitar-lugar, enquanto fenômeno geográfico vivido e iluminado
pela experiência de uma pessoa que dota o espaço de sentido (MARANDOLA, 2012).
Portanto, a criança como ser-aí não ocupa um espaço geográfico definido
cartesianamente, ela possui o seu espaço existencial tendo possibilidades de vir-a-ser na
sua existência, co-habitando esse universo singular. É preciso evitar qualquer concepção
rígida sobre o espaço geográfico e o mundo da criança, é necessário compreende-la na
sua singularidade, o modo como ela se coloca nesse mundo relacionando-se com os
outros em um diálogo concordante ou não, revelando seus modos-de-ser
(CYTRYNOWICZ, 2018; COUTINHO, 2012).
Ao delimitarmos um espaço, estaremos levando em consideração uma referência
de algo que é ou não daquela criança, estabelecendo um padrão (CYTRYNOWICZ,
2018). E, ao discorrermos nesse pensamento sobre o mundo da criança é como
tomarmos como referência um mundo que se afasta da experiência da mesma,
generalizando aquilo que é único dela – a sua existência.
Portanto, cabe aos entes que se relacionam com esse ser-aí, abrir e favorecer o
desvelar de possibilidades para ser neste mundo (HOLZER, 2013). Enquanto
possibilidade, supõem-se uma abertura para desvelar aquilo que se oculta no ser-
criança, desconsiderando concepções que entendem o ser humano como alguém com
um desenvolvimento linear, um ser-aí inacabado (CYTRYNOWICZ, 2018).
Reconhecer a multiplicidade dos modos-de-ser-criança-no-mundo e seus
significados está ancorado na historicidade e temporalidade sugerindo um modo de
olhar a criança na sua dinamicidade, sem cristaliza-la a uma única concepção de
verdade sobre a sua ocupação no mundo.

Referências Bibliográficas

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ARIÉS P. História social da criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
2014. 1978p.
ARAÚJO ALC. Infância e cidade: reflexões sobre espaço e lugar da criança.
Aprender – Cad de Filofosia e Psic. da Educação, Vitória da Conquista, 10, 16, 107-
27, 2016.
COUTINHO BT. Um estudo sobre a ontologia do espaço na obra de Martin
Heidegger. Para onde!?, Porto Alegre, 6, 1, 7-12, 2012.
CYTRYNOWICZ MB. Criança e infância: fundamentos existenciais. 1.ed. São
Paulo: Chiado, 2018. 327p.
DAL GALLO PM; MARANDOLA E. O conceito fundamental de mundo na
construção de uma ontologia da geografia. GEOUSP: Espaço e Tempo, São Paulo,
19, 3, 551-63, 2015.
DEL PRIORE M. História das crianças no Brasil. 7.ed. São Paulo: Contexto, 2010.
450p.
ESPÍRITO SANTO AA; JACÓ-VILELA AM; FERRERI MA. A imagem da infância
nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro - (1832-1930). Psicologia em
Estudo, Maringá, 11, 1, 19-28, 2006.
HEIDEGGER M. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. 1.ed. Campinas/Rio de
Janeiro: Editora da UNICAMP/Vozes, 2012. 1199p.
HOLZER W. Sobre territórios e lugaridades. Cidades, São Paulo, 10, 17, 18-29, 2013.
MARANDOLA E. Heidegger e o pensamento fenomenológico em geografia: sobre os
modos geográficos de existência. GEOGRAFIA, Rio Claro, 37, 1, 81-94, 2012.
SANTOS GT; DIAS JMB. Teorias das representações sociais: uma abordagem
sociopsicológica. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de
Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, 8, 1, 173-87, 2015.
VIDA AF; GOMES VM; BERBAT MC. Pororoca de saberes: por entre crianças,
infâncias e modos de ver e viver o espaço geográfico. Revista Brasileira de Educação
em Geografia, Campinas, 5, 9, 87-102, 2015.

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