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TEXTOS QUE
TODO PSICANALISTA
DEVERIA LER
Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão. Você estaria procurando
neste livro alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar psicoterapeuta. E
estaria perguntando: antes de começar uma formação que vai durar no mínimo uma década e
custar uma nota preta, será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo?
É uma ótima pergunta. Para ser um bom psicoterapeuta, é úti l que a gente possua alguns
traços de caráter ou de personalidade que, dito aqui entre nós , dificilmente podem ser
adquiridos no decorrer da formação: melhor mesmo que eles estejam com voc ê desde o
começo.
Meu pai era médico, internista e cardiologista, mas funcionava, para muitos de seus
pacientes, como o médico da família. A c ada ano, no Natal, na Páscoa e no dia de São José
(ele se chamava Giuseppe), nossa casa se enchia de presentes. Mas enchia mesmo: a sala era
abarrotada de caixas de vinhos e liquores , panetones , doces , cestas de frutas exóticas, sem
contar a prataria e os objetos variados de decoração, as canetas, as agendas e os conjuntos
para escrivaninha. Nos últimos dias antes da festa, a campainha não parava de tocar. Nós,
crianças, tínhamos a função e o privilégio de abrir os pacotes , deixando cuidadosamente os
cartões que os acompanhavam, para que meu pai pudesse responder agradecendo.
Quer saber por quê? Pense, por exemplo, no olhar de uma mãe para um caçula que teria
nascido depois da morte do pai. Desde seu primeiro vagido, esse filho seria, para a mãe, ao
mesmo tempo uma compensação e um memorial do marido que el a perdeu; el e seri a objeto
de veneração e de eterna gratidão a Deus.
Escolho esse exempl o porque foi o caso, justamente, de meu pai : ele nasceu quatro meses
depoi s da morte do seu pai (meu avô). Obviamente, não é is s o que fez dele um grande
médico. Mas , na escolha de sua profissão, deve ter contado a necessidade de repetir a
experiência inicial do olhar adorador de sua mãe. Essa necessidade também deve ter contado
na sua capacidade de ganhar uma gratidão que não se resolvia no pagamento dos honorários
e, portanto, se expressava naquelas orgias festivas de presentes.
Pois bem, se, por alguma razão (que não precisa ser a mesma do meu pai), é
importante para você se alimentar no reconhecimento e no agradecimento infinitos dos outros,
então não escolha a profissão de psicoterapeuta. Por duas razões.
Primeiro, na vida social, o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espéc i e de
gratidão que, no geral, é reservada ao médico (como um agradecimento preventivo, caso
acabemos em suas mãos). O psicoterapeuta encontra uma atitude (nem sempre escondida por
trás da polidez dos costumes) que é uma mistura de temor com escárnio. Funciona assim, ao
redor das mesas de jantar: “Puxa, este cara, aqui ao meu lado, é psicocoiso; vai ver que ele
sabe ou entende sobre mim e minhas motivações mais do que eu mesmo sei e certamente mais
do que eu gostaria que os outros soubessem.” A medida protetora mais banal é o ataque: “Ah,
você é psicanalista? Justamente acabo de ler uma matéria, onde é que era?. sabe, daqueles
americanos que provam que a psicanálise é uma baboseira, você leu?”
Segundo, o psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes. Nada de presentes
no Natal, na Páscoa ou nas outras festas. Nas curas que proporciona, o psicoterapeuta é, por
assim dizer, el e mesmo o remédio. E, nos melhores dos casos , quando tudo dá certo, ele
acaba exatamente como um remédi o que a gente usou e que fez seu efeito: uma caixinha
aberta, com as poucas pílulas que sobraram, no fundo do armário do banheiro. A caixinha é
guardada durante um tempo, porque nunca se sabe; um dia a gente a encontra, não se lembra
mais qual era seu uso, constata que, de qualquer forma, o remédio está vencido e joga fora. E
é bom que seja assim.
Quando os consultamos, levando-lhes nossas dores, depositamos neles toda nossa confiança,
porque imaginamos, supomos que eles saibam sobre nós e nossos males exatamente o que é
preciso para que eles possam nos curar. É bem possível que essa confiança sej a excessiva,
mas, mesmo em seu excesso, ela é útil para que uma cura funcione.
Acreditar no médico que nos prescreve um remédio ‘ não é tudo, claro; ainda é preciso que
ele prescreva o remédio certo. Mas é bem provável que, para quem acredita em seu médico,
aumentem as chances de que o remédio prescrito sej a eficaz, de que o paciente não cai a na
percentagem estatística dos que (sempre existem) não obtêm efeito algum com o remédio.
A importância da confiança para que as curas funcionem val e provavelmente para todas as
profissões da saúde. E vale mais ainda no caso da psicoterapia.
Então, por que o psicoterapeuta não poderia esperar o tipo de víncul o duradouro e afetuoso
que garante panetones, vinho e outros presentes nas festas?
Voltarei sobre isso em outras cartas, mas, desde já, aqui vai: nenhuma psicoterapia, seja ela
qual for, deveri a almejar a dependência do paciente. Como disse antes, na psicoterapia, o
terapeuta funciona um pouco como o remédio. Ora, transformar a confiança inicial numa
eterna admiração e gratidão seria como substituir uma doença por uma toxicomania: você não
tem mais pneumonia, mas tem uma necessidade visceral de tomar e venerar antibióticos. Ou,
ainda, seria como curar um alcoolista tornando-o heroinômano.
De fato, se a psicoterapia faz seu efeito, o paciente para de idealizar o terapeuta. Tudo isso
apenas para dizer que, se você gosta da ideia de ser um notável na cidade e de se sentir
amado, a psicoterapia talvez não seja a melhor escolha profissional para você.
Só uma nota à margem, para ser sincero. Há terapeutas que, aparentemente, cultivam o amor,
a admiração e a gratidão de seus pacientes acima de tudo. Eles parecem se importar mais
com isso do que com a eficácia das curas. Ou seja, há terapeutas que escolheram a profissão
com uma boa dos e daquel a vontade de ser amado e admirado, a mesma que, acabo de lhe
dizer, talvez seja uma contraindicação para o exercício da profissão.
Pois bem, devo lhe confessar que alguns desses terapeutas podem ter o maior sucesso: eles
se tornam frequentemente, aliás, chefes de escolas e (talvez empurrados pela necessidade de
ser admirados ) podem vir a ser teóricos brilhantes e inventivos . Seus consultórios são,
eventualmente, abarrotados, mas eles devem seu sucesso profissional ao amor e à admiração
que nunca se esquecem de alimentar em seus pacientes. De fato, pela experiência acumulada,
pelo talento e pela capacidade de inspirar confiança, eles são, em geral, ótimos terapeutas no
começo das curas . Mas os tratamentos que dirigem duram para sempre, transformam-se em
dependências químicas. Não é raro que esse tipo de terapeuta considere e vivencie mesmo o
fim ou a interrupção de uma cura como uma espécie de traição amorosa de seu paciente.
Por isso, insisto. As psicoterapias, em geral, se beneficiariam muito com algumas décadas de
menos brilho, menos neurose de seus chefes e mais cuidado com os pacientes. Portanto, por
favor, se sua personalidade pede amor e admiração ao mundo, invente uma crença, torne-se
médico, mas, pelo bem das psicoterapias, desista. Ou então (mas este é um caminho longo),
antes de se autorizar a ser psicoterapeuta, faça o necessário para mudar mesmo.
Mas deixemos as razões de desistir e vamos ao que importa. Esta carta deveria tratar dos
traços de caráter que eu procurari a em quem quisesse se tornar psicoterapeuta. Não sei
decidira ordem, mas todos estes eu gostaria de encontrar:
1) Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes
que sejam de você. Proponho-lhe um teste um pouco difícil, mas, afinal,
você deve tomar uma decisão importante: bata um papo com dois ou três moradores de rua,
aproxime-se, deixe-os falar o que, em geral, ninguém escuta (salvo justamente os
psicoterapeutas dos Centros de Atenção Psicossocial). Se você conseguir escutar, digamos,
uma hora, sem que o discurso (quase sempre desconexo) abale sua atenção, e se não recuou
instintivamente quando eles passaram uma mão encardida na sua camisa ou direto no seu
braço, passou no teste. Repita, se possível , com outras amostras : pacientes psiquiátricos
numa enfermaria ou num hospício, pacientes terminais num hospital geral e pessoas assoladas
por um luto.
Sei, claro, que são provas que podem parecer estranhas e extremas, sugeridas por alguém
(eu, no caso) que tem desde sempre uma simpati a (senão uma atração) pelas sarjetas do
mundo. Mas minha intenção é prevenir. Vej a bem, eu me formei numa escol a de gente
engravatada ou, então, alardeando camisas de seda modelo Revolução Cultural Chinesa.
Alguns anos depois de ter começado minha prátic a de psicanalista, decidi trabalhar durante
um tempo (foram dois anos ) num IME (Instituto Médico Educativo) do norte da França, em
Le Havre. Eu seria terapeuta de crianças que só tinham em comum o traço seguinte: todos - os
pais, a assistência social, a escola - haviam desistido delas. Durante a visita preliminar para
obtero emprego, sentei no páti o da instituição, contemplando a estranha agitação ao meu
redor. De repente, um menino, bonito e inquietante pel o olhar esbugalhado, vei o até mim,
subiu no meu colo (eu pensei: legal, ele me acha simpático, não é?) e começou a comer meu
rosto. Não eram mordidas , eram chupadas largas , de boc a aberta, nos olhos , no nariz, nas
bochechas; num instante, minha cara estava coberta de uma saliva espessa que tinha o cheiro
e o gosto inconfundíveis de café com leite, ruim como só a instituição psiquiátrica consegue
fazer. Durou uma eternidade, e eu deixei, até que ele mesmo, talvez estranhando que eu não o
afastasse nauseado, parou e ficou me olhando. Passei a mão na cabeça dele, devagar, para
não assustá-lo, num gesto que queri a dizer: está bem, entendi que este é seu jeito de falar,
esta é (literalmente) sua “língua”, pode falar comigo. O diretor da instituição, que estava
sentado ao meu lado, comentou: bom, acho que você foi aprovado. E pensei o seguinte: isso
deveria ter acontecido comigo muito tempo atrás, antes de começar minha formação, quando
ainda daria para desistir. Por sorte, passei nesse teste tardio.
2) Uma extrema curiosidade pel a variedade da experiência humana com o mínimo possível
de preconceito. Voc ê pode ter crenças e convicções . Aliás, é ótimo que as tenha, mas, se
essas convicções acarretam aprovação ou desaprovação morais preconcebidas das condutas
humanas, sua chance de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida, para não dizer nula.
Explico melhor. Você pode ser religioso, acreditar em Deus, numa revelação e mesmo numa
ordem do mundo. No entanto, se essa fé comportar para você uma noção do bem e do mal que
lhe permite saber de antemão quais condutas humanas são louváveis e quais condenáveis, por
favor, abstenha-se: seu trabalho de psicoterapeuta será desastroso.
Você poderia perguntar: mas será que não há condutas que eu posso julgar desprezíveis, seja
qual for seu lugar, origem e função na vida de meu paciente? O que faço, se meu trisavô era
Zumbi dos Palmares, e alguém se apresenta, me conta que odeia negros e orientais, acredita
na supremacia da raç a branca e quer ajuda porque (o exemplo é real ) só consegue desejar
corpos dessas outras raças? Pois bem, de duas uma: ou você pode escutar esse paciente sem
juízo moral preconcebido (mas sem, mesmo) ou, então, é um limite, um caso do qual você
não pode se ocupar. Encaminhe para outro terapeuta que talvez tenha limites diferentes.
É fácil entender que, se você tiver opiniões morais prontas sobre a metade dos atos possíveis
nesta terra, é melhor deixar a profissão de terapeuta para quem tem mais indulgência pela
variedade da experiência humana.
3) Este ponto é controvertido: além de uma grande e indulgente curiosidade pel a variedade
da experiência humana, eu gostari a que o futuro terapeuta já tivesse, nessa variedade, uma
certa quilometragem rodada. Claro, sei que Freud era, ao que parece, bem certinho, e isso
não impediu que ele se tornasse capaz de lidar como terapeuta (e não como moralista) com
sintomas e fantasias sexuais que sua época condenava radicalmente. Também não impediu a
“descoberta” da existência da sexualidade infantil, da qual ninguém queria sequer ouvir falar.
Como ele conseguiu? É que, na sua própri a análise (ou autoanálise que fosse), el e soube
encontrar fantasias e desejos que não eram muito distantes dos que animam vidas estranhas e
reprovadas socialmente. El e aprendeu, em suma, que é difícil, senão impossível , encontrar
“desvios” pelos quais ao menos uma parte de nossa mente não se tenha engajado em algum
momento.
Por que qualquer terapeuta não faria o mesmo? Acontece que duvido que a coragem analítica
de Freud possa ser compartilhada por muitos. Por isso, prefiro contar com a experiência
efetiva, ou seja, gostari a que a capacidade de considerar a variedade das vidas e das
condutas com carinho e indulgência vies s e ao terapeuta da variedade “animada” de sua
própria vida.
No cas o de Freud, essa exigência teria sido inútil e enganosa. Mas, como considero Freud
uma exceção, na hora de escolher um terapeuta, minha preferência iri a para alguém que não
fosse um cartão-postal do conformismo.
Enfim, se sua vida sexual for um pouc o colorida e voc ê esbarrar numa instituição que
condena seu desejo, não hesite, passe longe, siga em frente e procure outra instituição.
Lembre-s e de duas coisas . Primeiro, um psicoterapeuta (e ainda mai s um psicanalista) que
define uma conduta como “desvio” não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome
da psicanálise. Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social, quer seja em
nome de seu esforç o para reprimi r nel e mesmo o desej o que parece condenar. Segundo, e
mai s geral , quem estigmatiza categorias universais, como “os homossexuais”, “os
sadomasoquistas”, “os exibicionistas” etc., é um atacadista, enquanto a psicanálise trabalha
no varejo: a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares.
4) O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose
de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está “muito bem, obrigado”, por
duas razões.
Primeiro, uma parte essencial da formação de um terapeuta que trabalhará com as motivações
conscientes ou inconscientes de seus pacientes consiste no seguinte: o futuro terapeuta deve,
el e mesmo, ser paciente durante um bom tempo. Certo, é possível , aparentemente,
submeter-se a uma terapi a ou a uma psicanálise só por razões didáticas , para aprender o
método ou, como dizem alguns, para se conhecer melhor. Mas insisto no “aparentemente”,
pois, de fato, é improvável que uma psicanálise aconteça sem que um sofrimento reconhecido
motive o paciente. O processo não é necessariamente desagradável , mas pede uma
determinação e uma coragem que podem falhar mai s facilmente em quem não precis a de
tratamento. Por que diabo me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça, lugares
malcheirosos e arriscados, se eu não for empurrado pel a vontade de resolver um conflito,
acalmar um sintoma e conseguir viver melhor? Uma terapia puramente didática é geralmente
uma simulação de terapia.
E eis uma segunda razão para preferir que o futuro psicoterapeuta traga consigo uma boa dose
de sofrimento psíquico e precise se curar. Durante os anos de sua prática clínica, no futuro,
muitas vezes voc ê duvidará da eficác i a de seu trabalho. Encontrará pacientes que não
melhoram, agarrados a seus sintomas mai s dolorosos como um náufrago a um salva-vida;
viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão alfinetes de
brinquedo agitados em vão contra forças imensamente superiores . Nesses momentos (que,
acredite, serão frequentes) será bom lembrar que voc ê sabe mesmo (e não só pelos livros)
que sua prática adianta. Sabe porque a prática que você propõe a seus pacientes já curou ao
menos um: você.
Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são
um pouc o (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com
carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se
não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado
pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia sej a uma profissão para
você.
Abç.
Int J Psychoanal (2009) 90:311–327 doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00130.x
Poucos de nós sentimos que realmente sabemos o que estamos fazendo quando
completamos a nossa formação psicanalítica formal. Nós nos debatemos.
Lutamos para encontrar a nossa „voz‟, o nosso 'estilo' próprio, um sentimento de
1
que estamos comprometidos com a prática da psicanálise de uma maneira que
leva a nossa própria marca:
É apenas depois de se ter qualificado [como um analista] que se tem a chance de
tornar-se um analista. O analista no qual você se torna é você, e somente você; a
singularidade de sua própria personalidade tem que ser respeitada - isso é o que
você usa, não todas aquelas interpretações [aquelas teorias que se usa para combater
o sentimento de que você não é realmente um analista e que não sabe como tornar-
se um].
(Bion, 1987, p. 15)
No presente artigo discutimos uma variedade de experiências de
amadurecimento que foram importantes para nós em nossos esforços para nos
tornarmos analistas após nossa formação analítica. Certamente os tipos de
experiência que tiveram valor especial para cada um de nós foram diferentes,
mas também se sobrepuseram de formas importantes. Tentamos transmitir tanto
a padronização quanto as diferenças entre os tipos de experiência que foram
mais significativos para nós em nossos esforços para nos tornarmos analistas (e
para amadurecermos como tal). Além disso, discutimos várias medidas
defensivas que os analistas em geral, e nós em particular, temos usado diante
da ansiedade que é inerente ao processo de tornar-se genuinamente um analista
nos seus próprios termos.
Um contexto teórico
Uma variedade de experiências ao longo do desenvolvimento como analista é
fundamental para o amadurecimento tanto como analista quanto como
indivíduo. O amadurecimento do analista tem muito em comum com o
desenvolvimento psíquico em geral. Identificamos quatro aspectos do
crescimento psíquico que são essenciais para a nossa visão do processo de
tornar-se um analista.
O primeiro é a idéia de que pensar / sonhar a própria vivência no mundo
constitui um meio principal, talvez o meio principal pelo qual se aprende com a
2
experiência e se atinge o crescimento psicológico (Bion, 1962a). Além disso, a
vivência de alguém é geralmente tão perturbadora que excede a capacidade do
indivíduo de usá-la psiquicamente de algum modo, ou seja, pensar ou sonhar a
experiência. Sob tais circunstâncias, são requeridas duas pessoas para pensar ou
sonhar a experiência. A psicanálise de cada um dos nossos pacientes,
inevitavelmente nos coloca em situações que nunca foram antes experimentadas
e, como conseqüência, exige de nós uma personalidade mais ampla do que
aquela que trouxemos para a análise. Consideramos que isso seja verdadeiro
para todas as análises: não existe uma análise “fácil” ou “direta”. A re-
conceituação da identificação projetiva como um processo intrapsíquico ⁄
interpessoal nos trabalhos de Bion (1962a, 1962b) e Rosenfeld (1987)
reconhece que nessas situações analíticas novas e perturbadoras, o analista
requer outra pessoa para ajudá-lo a tornar o impensável pensável. Esta outra
pessoa é na maioria das vezes o paciente, mas pode ser um supervisor, um
colega, um mentor, um grupo de consulta, e assim por diante.
Inerente a esse conceito de pensamento intersubjetivo existe a idéia de que,
ao longo da vida do indivíduo, „„É preciso [pelo menos] duas pessoas para
formar uma‟‟ (Bion, 1987). Precisa-se de uma mãe-e-bebê capaz de ajudar a
criança a alcançar „„status de unidade‟‟ (Winnicott, 1958a, p. 44). Três pessoas
são necessárias - mãe, pai e filho - para criar uma criança edipiana saudável; é
preciso haver três pessoas - mãe, pai e adolescente - para criar um jovem adulto;
precisa-se de dois jovens adultos para criar um espaço psicológico no qual se
possa criar um casal que, por sua vez, seja capaz de criar um espaço psicológico
no qual um bebê possa ser concebido (literalmente e metaforicamente); é
preciso uma combinação de uma jovem família e de uma velha família (uma
avó, um avô, mãe, pai e filho) para criar condições que contribuam para que se
aceite, ou que facilitem a aceitação e o uso criativo da experiência de
envelhecimento e morte dos avós (Loewald, 1979).
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No entanto, essa concepção intersubjetiva do desenvolvimento do analista é
incompleta na ausência de sua contraparte intra-psíquica. Isso nos leva ao
segundo aspecto do contexto teórico para essa discussão: para pensar / sonhar a
nossa própria experiência, precisamos de períodos de isolamento pessoal, não
menos do que precisamos da participação das mentes dos outros. Winnicott
(1963) reconheceu esse requisito essencial do desenvolvimento quando
observou: „„Há um estágio intermediário no desenvolvimento saudável no qual
a experiência mais importante do paciente em relação ao objeto bom ou
potencialmente satisfatório é a recusa do mesmo‟‟ (p. 182). No setting analítico,
o trabalho psicológico que é realizado entre as sessões não é menos importante
que o trabalho feito com o analista nas sessões. Na verdade, analista e paciente
precisam „dormir sobre‟ a sessão, isto é, precisam sonhá-la por si próprios antes
de serem capazes de realizar um trabalho mais profundo como um par analítico.
De maneira semelhante, nas sessões, o trabalho psicológico que o paciente
realiza separado do analista (e que o analista realiza no seu espaço isolado atrás
do divã) é tão importante quanto o pensar / sonhar que os dois realizam um com
o outro. Essas dimensões – a interpessoal e a solitária – são totalmente
interdependentes e permanecem em tensão dialética uma com a outra. (Quando
falamos de isolamento pessoal, estamos nos referindo a um estado psicológico
diferente do estado de estar sozinho na presença de outra pessoa, isto é, „a
capacidade de estar só‟ de Winnicott [1958b]. Ao invés disso, o que temos em
mente é um estado que é muito menos dependente das relações de objeto
externas, ou mesmo internalizadas [ver Ogden, 1991, para uma discussão desse
estado saudável de „isolamento pessoal‟]).
O terceiro aspecto do crescimento psíquico, que é essencial para a nossa
concepção de amadurecimento do analista, é a idéia de que se tornar um
analista envolve um processo de ''sonhar-se mais plenamente na existência''
(Ogden, 2004a, p. 858) de maneiras cada vez mais complexas e inclusivas. Na
tradição de Bion (1962a), estamos usando o termo 'sonhar' com referência à
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forma mais profunda de pensamento. É um tipo de pensamento no qual o
indivíduo é capaz de transcender os limites da lógica do processo secundário
sem perda do acesso a esse tipo de lógica. O sonho ocorre continuamente, tanto
durante o sono como durante a vigília. Da mesma maneira que as estrelas
persistem mesmo quando a sua luz é obscurecida pela luz do sol, assim também
sonhar é uma função contínua da mente que persiste durante a vigília, mesmo se
obscurecida pela consciência e pelo resplendor da vigília. (Sonhar acordado no
setting analítico toma a forma da experiência de reverie do analista [Bion,
1962a; Ogden, 1997].) A atemporalidade dos sonhos permite que se elabore
simultaneamente uma multiplicidade de perspectivas em uma experiência
emocional de uma maneira que não é possível no contexto de tempo linear, e da
lógica de causa e efeito que caracteriza a vigília, processo secundário de
pensamento. (A simultaneidade de perspectivas múltiplas que foi capturada na
arte cubista de Picasso e Braque teve influência sobre a arte do século 20 de
todos os gêneros – a poesia de T.S. Eliot e Ezra Pound, os romances de
Faulkner e os últimos romances de Henry James, as peças de Harold Pinter e
Ionesco, e os filmes de Kieslowski e David Lynch, bem como a arte da
psicanálise).
O trabalho do sonho é o trabalho psicológico através do qual criamos
significados simbólicos e pessoais, deste modo nos tornando nós mesmos. É
nesse sentido que nos sonhamos dentro da existência como analistas,
analisandos, supervisores, pais, amigos, e assim por diante. Na ausência do
sonho, não podemos aprender com nossa experiência de vida e,
conseqüentemente, continuamos presos em um presente infinito e imutável.
O quarto aspecto do crescimento psíquico que acreditamos ser fundamental
para a forma como pensamos sobre o processo de tornar-se um analista é o
conceito de continente-conteúdo de Bion (1962a, 1970). O „continente‟ não é
uma coisa, mas um processo de realizar o trabalho psicológico com nossos
pensamentos perturbadores. A expressão „realizar um trabalho psicológico‟ é
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aproximadamente equivalente a idéias/sentimentos como a experiência de
„entrar em acordo com‟ um aspecto da própria vida que foi difícil de admitir ou
„fazer as pazes com‟ acontecimentos importantes e profundamente
perturbadores da vida da pessoa, tais como a morte dos pais, de um filho ou do
cônjuge, ou a própria morte que se aproxima. O „conteúdo‟ é a representação
psicológica daquilo com que se está fazendo as pazes ou entrando em acordo. O
colapso de um relacionamento mutuamente produtivo entre os pensamentos
provenientes de uma experiência perturbadora (o conteúdo) e a capacidade de
pensar/sonhar estes pensamentos (o continente) pode tomar uma série de formas
que se manifestam em uma variedade de tipos de fracasso em amadurecer como
um analista (Ogden, 2004b). As vivências perturbadoras – „o conteúdo‟ (por
exemplo, as violações de limites por parte do analista pessoal do analista) –
pode destruir a capacidade do analista de pensar como um analista („o
conteúdo‟), particularmente sob certas circunstâncias emocionais (Gabbard e
Lester, 1995).
Com essas idéias em mente, consideraremos então um conjunto de
experiências de amadurecimento que são comuns aos analistas no decorrer do
seu desenvolvimento. Quando se completa a formação psicanalítica, muitas
vezes tem-se a vaga sensação de um sentimento um pouco fraudulento. Tem-se
a autorização para um 'vôo solo', sem a ajuda de um supervisor, no entanto
sente-se um certo grau de turbulência que pode ser desconcertante. Às vezes, os
analistas bendizem a oportunidade de aprender (e amadurecer) com os tipos de
situações analíticas que estamos prestes a descrever. Em outras vezes e em
outras circunstâncias, de repente e inadvertidamente, os analistas encontram-se
imersos nessas situações analíticas perturbadoras e conseguem um crescimento
psicológico „agindo por intuição e percepção‟.
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Experiências de amadurecimento do analista
Nas seções seguintes deste artigo, discutiremos uma série de tipos de
experiências de amadurecimento que desempenharam um papel importante no
desenvolvimento de nossas identidades analíticas. Essas experiências incluem o
processo gradual de desenvolvimento de uma maneira própria de falar com os
pacientes; o desenvolvimento do senso de si próprio como um analista no
processo de apresentar o trabalho clínico a um consultor; o fazer uso auto-
analítico de experiências com os pacientes; e o criar/descobrir a si mesmo como
analista no processo de escrever artigos analíticos.
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criar-se como um analista. As vozes que se ouve estão principalmente na mente
(Smith, 2001) e pertencem aos nossos '„„fantasmas‟‟ e „„ancestrais‟‟ (Loewald,
1960, p. 249). Os fantasmas nos habitam de uma maneira que não está
totalmente integrada ao nosso senso de self; nossos ancestrais nos fornecem um
sentido de continuidade com o passado. No processo de tornar-se um analista,
precisamos „sonhar‟ por nós mesmos uma maneira autêntica de falar que
envolva nossa liberação de nosso(s) próprio(s) analista(s), bem como de nossos
supervisores, professores e escritores que admiramos, enquanto também
recorremos ao que aprendemos com eles. A tensão dialética existe entre
reinventar-se, por um lado, e utilizar de forma criativa a própria ascendência
emocional, por outro lado.
Ninguém descreveu melhor do que Loewald os dilemas psicológicos que
estão envolvidos na passagem da autoridade de uma geração para a seguinte.
Em The waning of the Oedipus complex, Loewald (1979) descreve as maneiras
pelas quais o crescer (tornando-se um indivíduo amadurecido por direito
próprio) exige que se mate os próprios pais (em mais que uma forma
metafórica) e simultaneamente os imortalize. O parricídio é um ato de
reivindicar o próprio lugar como uma pessoa responsável por si própria; a
imortalização dos próprios pais (um ato de reparação ["at-one-ment"] para o
parricídio) envolve uma internalização metamórfica dos pais. Esta
internalização é „metamórfica‟ no sentido de que os pais não são simplesmente
transformados em um aspecto de si mesmo (uma simples identificação). Pelo
contrário, é uma internalização de um tipo muito mais rico: o da incorporação
na própria identidade de uma versão dos pais que inclui uma concepção de
quem eles poderiam ter se tornado, mas foram incapazes de se tornar, como
conseqüência das limitações de suas próprias personalidades e das
circunstâncias em que viveram. Que melhor reparação se pode fazer em relação
aos pais que se matou (Ogden, 2006)?
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No processo de tornar-se um analista, é preciso que se seja capaz de cometer
atos parricidas em relação aos próprios pais analíticos, enquanto se repara o
parricídio no ato de internalizar uma versão transformada dos mesmos. Essa
internalização metamórfica reconhece seus pontos fortes e suas fraquezas e
envolve uma incorporação na própria identidade de um sentido não somente de
quem eles foram, mas também de quem eles poderiam ter se tornado, caso as
circunstâncias externas e internas o tivessem permitido.
Na seguinte vinheta clínica, um de nós (Ogden) descreve uma experiência
em que paciente e analista viveram e sonharam juntos uma experiência que
facilitou o amadurecimento de ambas as partes.
Por um período de tempo significativo, o analista descobriu-se usando a
palavra bem [well] para introduzir praticamente cada pergunta e comentário que
dirigia aos seus pacientes. Parecia tão natural que levou um bom tempo para
que ele reconhecesse o fato de que tinha adotado essa maneira de falar.
Observou também que falava dessa maneira somente quando falava com os
pacientes e não quando falava com supervisionandos, quando conversava em
seminários, ou quando falava com colegas, e assim por diante. Ao tornar-se
consciente de que estava falando dessa maneira, ficou imediatamente aparente
para ele que tinha adotado um maneirismo do seu primeiro analista. Disse a si
mesmo que não sentia necessidade de „corrigi-lo‟, já que o experimentava como
uma conexão emocional com um homem que admirava e de quem gostava. O
que ele não percebeu foi que também não tinha visto necessidade de analisá-lo
(isto é, refletir sobre a razão pela qual essa identificação tinha se evidenciado
daquela forma, naquela conjuntura de sua vida e naquela conjuntura de seu
trabalho com aqueles pacientes em particular).
Um dos pacientes com o qual ele estava trabalhando em análise durante esse
período era o Sr. A, um homem que tinha escolhido uma carreira na mesma
área em que seu pai era uma figura proeminente. Foi nas sessões com o paciente
– embora houvesse experiências relacionadas com outros pacientes – que ele
9
começou a se sentir de uma maneira diferente a respeito do que tinha parecido
um subterfúgio inofensivo no seu modo de falar. Essa mudança de perspectiva
surgiu em um período de semanas enquanto ele ouvia o Sr. A minimizar o
efeito causado pelo fato dele ter entrado na mesma área de seu pai enquanto que
ao mesmo tempo usava repetidamente a frase „a área dele‟ em vez de „a minha
área‟ ou „a nossa área‟. Durante esse período da análise, o Sr. A mencionou
uma ocasião na qual tinha parecido ao analista que o paciente estava
estranhamente provocando um de seus filhos para „tentar agir como um adulto‟.
Embora o analista não tenha feito comentários sobre esse comportamento, isso
teve um efeito perturbador sobre ele.
No início de uma sessão durante esse período de trabalho, o paciente
queixou-se que o analista estava valorizando demais os efeitos de sua escolha
para entrar „na área de meu pai'. O analista acreditou que ele tinha tido o
cuidado de não tomar partido em relação ao assunto, então optou por
permanecer em silêncio em resposta a essa acusação de seu paciente. Mais tarde
na sessão, o Sr. A contou o seguinte sonho:‘‘Um terremoto havia começado
com apenas uns poucos tremores, mas eu sabia que isso era apenas o início de
um enorme terremoto no qual eu poderia muito bem ser morto. Tentei reunir
umas poucas coisas que gostaria de levar comigo antes de deixar a casa em
que estava. Era como se fosse a minha casa. Peguei uma fotografia de família –
uma que na verdade eu deixava sobre uma mesa na minha sala de estar. É uma
foto de meus pais, de Karen (sua esposa) e das crianças que tirei na Flórida.
Senti uma enorme pressão de tempo – sentia-me como se estivesse sufocando e
como se fosse uma loucura gastar o último fôlego que tinha para salvar uma
fotografia. A sufocação não é a maneira pela qual um terremoto nos atinge, mas
era assim que eu me sentia. Acordei assustado, com meu coração disparado‟‟.
(Por razões que não foram de maneira alguma aparentes para o analista,
também ele sentiu-se intensamente ansioso enquanto o paciente contava o
sonho).
10
No decorrer da conversa sobre o sonho, o Sr. A ficou impressionado com o
fato de que: „„porque eu tirei a foto, eu não estava nela. Estava nela como um
observador, não como um membro do grupo‟‟. O analista disse: „„Você ficou
primeiramente assustado com a sensação do início de um terremoto que poderia
aumentar de intensidade ao ponto de poder matá-lo e a todos os que lhe são
caros; mais tarde no sonho, você sentiu que estava prestes a morrer sufocado.
Penso que no sonho você estava falando consigo mesmo e comigo sobre o seu
sentimento de estar sendo expulso da sua própria vida – você era apenas um
observador na foto de sua família e, no entanto, estava pronto a usar seu último
fôlego para preservar aquele lugar, ainda que marginal. Isso lhe pareceu
loucura, mesmo no sonho‟‟.
Enquanto o analista estava dizendo isso, ocorreu-lhe que o Sr. A, no seu
relato sobre o sonho, poderia estar fazendo uma observação sobre o analista. A
fala do paciente ao dizer que ele sabia que „„poderia muito bem ser morto‟‟ no
terremoto, envolvia um fraseado que não somente usava a mesma palavra na
qual o analista estava focalizado, como também a ligava diretamente à idéia de
ser morto. Isso levou o analista a suspeitar que o Sr. A estava respondendo a
algo que estava acontecendo no analista e que estava refletido na mudança em
sua maneira de falar. Pareceu-lhe que o paciente temia que o analista tivesse
desenvolvido uma forma de tique verbal que refletia uma loucura no analista
que o impediria de ser o analista que ele precisava. Se também o analista
estivesse sendo expulso de sua própria vida como um analista e de sua própria
maneira de falar (com a qual o paciente tinha se tornado familiarizado com o
passar dos anos), como poderia o analista ajudá-lo com um problema muito
semelhante?
O analista pensou que era altamente improvável que o relato desse sonho
fosse o primeiro comentário inconsciente do Sr. A sobre algo que ele percebia
ser significativamente diferente no modo de falar do analista. O sonho do
paciente foi crítico para o trabalho analítico, não somente porque estava se
11
referindo a sentimentos tão diferentes daqueles que estavam sendo abordados
em outros sonhos, mas porque foi a primeira vez em que o analista foi capaz de
ouvir e responder ao que ele acredita ser o esforço inconsciente do paciente para
falar com ele sobre seu medo de que ele percebesse uma mudança ameaçadora
no analista. Retrospectivamente, a origem do sintoma (como o analista veio a
compreendê-la) havia afetado sua capacidade de amadurecer como uma pessoa
e como um analista. Também pensando retrospectivamente, o analista
reconheceu que o fato do paciente cruelmente apontar que seu filho estava
„tentando agir como um adulto‟ representava uma comunicação ao analista
referente ao auto-ódio do paciente pela forma com que ele se sentia como uma
criança. (Consideramos o sonho como um sonho que não pode ser atribuído
somente ao paciente, mas a um sujeito inconsciente que é co-construído pelo
paciente e pelo analista – „o terceiro analítico‟ [Ogden, 1994]. É este terceiro
sujeito que sonha os problemas na relação analítica [além do paciente e do
analista como sonhadores individuais].)
A observação inconsciente do paciente de que ele era um observador na foto
de família, associada à percepção do analista da sua própria ansiedade enquanto
ouvia o relato do sonho, fez com que o analista iniciasse uma linha de
pensamento, uma conversa consigo mesmo, sobre os significados de sua
imitação de seu primeiro analista. O que era mais poderoso na nova percepção
do padrão da fala que ele havia adotado era sua persistência e invariabilidade
através da plena gama de situações emocionais e através de formas diversas de
conversações com tipos muito diferentes de pacientes. Parecia-lhe que a
qualidade impessoal dessa forma genérica de falar refletia um sentimento
subliminar que ele tinha abrigado por um tempo muito longo, mas que não tinha
anteriormente colocado em palavras para si mesmo: ele havia tido a impressão
durante a sua primeira análise (e posteriormente) que seu analista tinha em
alguns aspectos importantes percebido-o de formas genéricas que não eram
pessoais nem para ele e nem para o analista. Havia uma maneira na qual ele
12
sentiu que a primeira percepção do analista em relação a ele foi inabalável e que
alguma coisa importante estava faltando. Ambos os sentimentos também se
refletiam na fotografia do sonho, no qual também a foto estava inalterada e não
incluía o fotógrafo. O analista sentiu uma certa decepção em relação ao seu
primeiro analista, mas sentiu-se principalmente envergonhado por não ter tido a
coragem de conscientemente reconhecer a qualidade impessoal da forma como
ele sentiu que estava sendo percebido e registrar um protesto. No sonho, houve
uma escolha entre o sonhador salvar a foto ou salvar a sua própria vida. O
analista percebeu que ele tinha metaforicamente escolhido salvar a fotografia –
sua imagem fixa de seu próprio analista – e, como conseqüência, tinha
abandonado algo de sua própria vitalidade.
Com base nesses pensamentos e em outros que se seguiram nos meses e
semanas subseqüentes, o analista foi finalmente capaz de falar com o Sr. A
sobre os seus sentimentos de vergonha (a vergonha de ter traído a si próprio) ao
escolher buscar uma carreira na „área de seu pai‟ e não uma carreira na sua
própria área (mesmo que fosse na área na qual seu pai também tinha
trabalhado). (Voltaremos a esse exemplo clínico mais adiante neste artigo).
13
relação a si mesmo, sua ansiedade, temor, vergonha, culpa, tédio, luxúria,
inveja, ódio, terror e seus pontos cegos, – são todos expostos a um colega em
um ato de fé. A experiência dos seus próprios limites (como um analista e como
uma pessoa), e a aceitação desses limites pelo consultor, ajudam a moldar a
identidade do analista no sentido da humildade, da curiosidade sobre si mesmo
e da percepção de que sua própria análise é uma tarefa para toda a vida. Uma
parte da identidade do analista envolve conflito, ambivalência, anseios e medos
da infância, e uma tentativa de reconciliar-se com o fato de que a sua análise
pessoal não lhe permitiu transcender o tormento interno que o levou
primeiramente ao trabalho analítico. Além disso, o fato de que o consultor não
recua em resposta às lutas do analista fornece a confirmação de que ser
“suficientemente bom” nos termos de Winnicott (1951, p. 237) é aceitável para
os outros e que ao analista inevitavelmente faltará a compreensão abrangente e
os resultados terapêuticos pelos quais ele pode lutar.
Aspectos da vivência do analista excedem sua capacidade de realizar um
trabalho psicológico com os mesmos e muitas vezes emergem no contexto de
seus encontros com seus pacientes. Buscar uma supervisão pode fornecer um
continente muito necessário quando um analista se encontra na impossibilidade
de processar o que ele está confrontando, tanto nele próprio quanto nos seus
pacientes. Um de nós (Gabbard) trabalhou durante anos com uma paciente
inflexivelmente suicida que continuava a planejar seu suicídio apesar dos
melhores esforços do analista para entender, conter e interpretar os motivos e
significados múltiplos envolvidos no desejo dela de morrer.
Após o analista ter apresentado esse dilema a um consultor, este observou
que o analista estava tentando evitar a idéia de que todos os seus esforços bem
intencionados poderiam vir a dar em nada, e que a paciente provavelmente daria
fim à própria vida a despeito do tratamento. O consultor enfatizou que o
analista estava irritado com a fantasia interpessoalmente atuada da paciente de
ter controle onipotente sobre ele e também com sua própria incapacidade de
14
aceitar a sua impotência para impedir a paciente de cometer suicídio. Em última
análise, o suicídio seria a escolha da paciente, sem levar em conta os desejos ou
necessidades do analista. Ouvir os comentários do consultor permitiu ao
analista trabalhar com esses pensamentos assustadores e forneceu uma maneira
de desintoxicá-los para que eles pudessem realmente ser considerados pelo
analista, aceitos como inerentes à situação do tratamento e ouvidos como uma
comunicação do próprio sentimento da paciente de não ter voz ativa a respeito
de sua própria vida ou morte.
A mente do analista tinha sido colonizada pelo mundo interno da paciente e
na medida em que essa colonização diminuiu, o analista tomou consciência de
como as suas próprias aspirações para o empreendimento analítico estavam
sendo contrariadas pelo firme desejo de morte da paciente (Gabbard, 2003).
Como muitos analistas, ele abrigava uma poderosa fantasia inconsciente em
relação ao relacionamento analítico – uma fantasia na qual uma forma
específica de relacionamento do objeto seria gerada. Ele seria o curador
dedicado e generoso e a paciente melhoraria progressivamente e finalmente
expressaria gratidão ao analista por sua ajuda (Gabbard, 2000). Sua paciente
suicida não tinha concordado com esse contrato inconsciente, e sua marcha em
direção à auto-destruição continuava, a despeito do – ou desatenta ao – desejo
do analista de ajudá-la. Com uma reflexão posterior, o analista reconheceu que
havia sido relegado a uma posição de transferência que seria mais tarde descrita
por Steiner (2008) como o observador excluído que se ressente do fato de que
ele não é o objeto mais importante para o paciente.
A consulta também liberou o analista para refletir sobre ressonâncias de
experiências precoces de desenvolvimento onde ele percebeu sua impotência
em face do declínio e morte inevitáveis dos outros e dele próprio, um
determinante inconsciente importante em sua escolha de carreira. Analisar
firmemente seus desejos mágicos e reconhecer a impossibilidade de determinar
o que um outro ser humano (ou ele próprio) fará em última instância
15
constituíram-se em elementos centrais do amadurecimento do analista. Parte do
conhecimento sobre quem se é como um analista é conhecer os limites do
próprio poder de influenciar um paciente e usar esse conhecimento para ser
capaz de ouvir e responder a um paciente que confronta seus próprios limites
(assim como os do analista).
16
sozinho, com a determinação de analisar inflexivelmente o que se descobre,
mas sempre ficando aquém do alvo. A partir dessa perspectiva, o término de
uma análise, o „fim‟ de uma parte do trabalho de auto-análise ou do trabalho
analítico com um consultor não é o ponto no qual o conflito inconsciente é
resolvido, mas o ponto no qual o sujeito do trabalho analítico é capaz de pensar
e sonhar a sua experiência (em um alto grau) por si mesmo.
17
sensibilidade especial para com seu co-autor – afinal, cada sentença deve
representar dois autores, e não apenas um.
Esse exemplo de colaboração surgiu no decorrer da elaboração deste artigo.
Começamos com uma idéia compartilhada, ou seja, uma atualização da idéia de
Freud de que o que era definitivo na análise como um tratamento para
problemas psicológicos é o fundamento do trabalho na compreensão da
transferência e da resistência (Freud, 1914). Planejamos descrever como a nossa
própria definição de análise evoluiu a partir das idéias de Freud em 1914, e/ou é
descontínua com estas mesmas idéias. Começamos nosso trabalho nesse projeto
colaborativo com entusiasmo. No entanto, descobrimos que as palavras não
fluíam tão livremente como tínhamos esperado de cada um de nós.
Sentindo-nos presos em nossos esforços para fazer com que as coisas
avançassem, relemos e estudamos o texto de Freud de 1914. Ficamos
particularmente decepcionados quando viemos a reconhecer que muito do
artigo de Freud apresentava uma polêmica bastante cáustica contra os desvios
de Jung das premissas teóricas de Freud e uma insistência feroz em afirmar que
ele, e somente ele, foi o fundador da psicanálise. A partir daí viemos a entender
que o tom defensivo de Freud era um reflexo de suas inseguranças a respeito
das reivindicações concorrentes de autoria da sua idéia (isto é, da psicanálise
como uma disciplina) e um receio de que Jung subvertesse o que ele tinha
inventado e continuasse a chamá-lo de psicanálise. Tínhamos escolhido uma
citação que mostrava Freud em um momento não auspicioso da história de seu
próprio amadurecimento psicológico.
Como o nosso entusiasmo diminuiu, tivemos que re-pensar o tema de nosso
trabalho.
Trocamos várias revisões até que começamos a ver claramente que o que
era mais urgente para nós não era a tarefa de propor uma definição
contemporânea de psicanálise. Em vez disso, a colaboração em si tinha servido
para esclarecer para cada um de nós como nós tínhamos evoluído como
18
analistas no decorrer de 30 anos de prática. Conversamos longamente sobre
como cada um de nós tinha chegado à sua percepção atual e desenvolvida de si
mesmo como um psicanalista. Nossas experiências de desenvolvimento no
decorrer da formação analítica e nos primeiros anos após a mesma eram
nitidamente diferentes em alguns aspectos, e, no entanto, descobrimos que
havia uma grande justaposição na forma como concebíamos nossa maneira de
trabalhar e de quem éramos como psicanalistas. Apesar de nos conhecermos por
mais de 20 anos, descobrimos que no decurso dessas discussões viemos a
conhecer um ao outro de uma maneira nova. Entretanto, com relação à tarefa de
decidir o que esperávamos atingir dividindo a autoria de um artigo, falar
consigo mesmo não era suficiente. Somente através de nossos esforços
repetidos para escrever nossos pensamentos (ou, mais precisamente, nos
permitir ver o que nós pensávamos no próprio ato de escrever), é que fomos
finalmente capazes de discernir o que era que queríamos tentar. Colocando
palavras na página obrigou-nos (e nos liberou) para transformar os pensamentos
e sentimentos incipientes em conceitos e em uma idéia do que era aquilo que
queríamos comunicar na forma de trabalho analítico de co-autoria.
Ao refletir sobre como os leitores poderiam responder à nossa perspectiva,
reconhecemos que nossas experiências de amadurecimento não poderiam ser
compartilhadas por outros analistas. Certamente não queríamos usar um tom
prescritivo. Fizemos então um esforço conjunto para apresentar nossas idéias
como simplesmente uma descrição de nossas próprias experiências, ao invés de
sugerir que elas eram universais. Tornamos mais claro para nós mesmos que
entre as qualidades de um analista que consideramos como a mais importante
está a maneira pela qual um analista faz uso do que é único e idiossincrático na
sua personalidade.
Trabalhar com um co-autor também envolve uma experiência de se ter um
editor ou consultor incorporado (quer se queira tê-lo ou não) que pode oferecer
uma perspectiva „externa‟ a respeito do material clínico do outro autor. Ao
19
longo da nossa colaboração neste trabalho, um de nós (Ogden) enviou um
rascunho do artigo ao seu co-autor incluindo a vinheta clínica apresentada
acima envolvendo o sonho do terremoto. O co-autor (Gabbard) respondeu (por
escrito) com os seguintes pensamentos sobre o caso em geral e o sonho em
particular:
Concordo inteiramente com seu ponto de vista de que o sonho não pode ser atribuído
somente ao paciente, mas a um sujeito co-construído. Senti que o sonho era tanto seu
quanto dele. Minha fantasia sobre o sonho é a seguinte: que mesmo que você tenha
percebido o seu analista tratando-o de uma forma genérica, você sentiu algum tipo
de proteção – um porto seguro, se você preferir – ao recorrer ao seu estilo de falar.
Ao fazer isso, você não tinha se separado dele e, portanto, não tinha que suportar a
dor associada à perda dele. Lembro-me do famoso comentário de Freud de que a
única maneira pela qual o ego pode desistir de um objeto é colocá-lo para dentro. O
terremoto, então, poderia ser visto como uma consciência crescente no paciente de
que você estava prestes a ser arrancado de sua casa internamente criada – ou seja, o
porto seguro do consultório do seu analista ou sua presença internalizada – e
lançado em um mundo onde você precisava falar com a sua própria voz. Em algum
nível, o paciente sentiu-se daquela maneira a respeito de ser arrancado da ‘casa’ de
seu pai. O que estava acontecendo em você teve uma grande ressonância com o que
estava acontecendo dentro dele. Não adicionei isso ao artigo porque é puramente a
minha própria conjectura e pode não se encaixar à sua experiência.
Como essa citação indica, uma perspectiva do co-autor a respeito do material
clínico deve ser então filtrada através de pensamentos do autor fornecendo os
dados clínicos para se verificar se é „um bom encaixe‟ com o momento analítico
real descrito.
Ogden, que não estava habituado a essa „interferência‟ no seu processo de
escrita, sentiu-se perturbado pelos comentários inesperados de Gabbard.
Solicitou mais de dois meses para „dormir sobre‟ (sonhar) o que havia sido
despertado nele pelas observações de Gabbard antes que fosse capaz de oferecer
uma resposta ponderada (também por escrito):
20
Relendo meu relato do meu trabalho com o Sr. A, penso que o mesmo aponta o fato
de que eu vi na invariabilidade da fotografia no sonho do paciente somente estase
[stasis], ao contrário de confiabilidade; e que eu vi na ausência do fotógrafo na
fotografia somente a ausência de uma pessoa que pensa / sente, contrapondo-se à
discrição. Seus comentários sobre a vinheta me ajudaram a ver o que tinha estado lá
ao longo de todo a minha escrita sobre o relato: minha avaliação profunda sobre o
que eu sinto serem duas de minhas melhores qualidades como analista – a disposição
de permanecer emocionalmente presente durante os períodos dolorosos na análise e
durante os períodos muito difíceis da vida; e a habilidade de ‘ficar fora do caminho’
(e não fazer reflexivamente interpretações de transferência) quando eu estava
realizando sozinho o trabalho psicológico nas sessões.
Os co-autores consideram a experiência emocional que Ogden descreve
como sendo uma resposta atual tanto para sua memória do seu trabalho com o
Sr. A quanto para os comentários de Gabbard no seu relato escrito dessa
experiência. Essa troca entre os co-autores constitui um tipo de experiência de
amadurecimento que foi valiosa para ambos os autores.
V. Ousar improvisar
Com cada paciente, temos a responsabilidade de tornar-nos um analista que
nunca vimos antes. Isso requer que deixemos de lado o script e entremos em
uma conversa, uma conversa de um tipo que nunca experimentamos antes
(Hoffman, 1998; Ringstrom, 2001). Isso pode tomar a forma de resposta a uma
menção de um filme por parte do paciente que diz: „„Quase não há uma só
palavra falada no filme inteiro, pelo menos foi assim que o filme me fez
sentir‟‟. Com outro paciente, improvisar pode significar permanecer em silêncio
– não aquiescer a exigências coercitivas implícitas para tranqüilização ou
mesmo para o som da nossa voz. A improvisação é claramente uma metáfora
teatral. O grande professor russo de teatro, Konstantin Stanislavski, certa vez
observou:
O melhor que pode acontecer é ter-se o ator completamente arrebatado pela peça.
Então, independentemente da sua própria vontade ele vive o papel, não percebendo
21
como se sente, não refletindo sobre o que faz, e tudo se move por conta própria de
forma subconsciente e intuitiva.
(Stanislavski, 1936, p. 13)
De uma maneira análoga, o amadurecimento como analista envolve a
permissão crescente que concedemos a nós mesmos para sermos apanhados no
momento (no inconsciente da análise) e sermos transportados pela música da
sessão. A análise não é uma experiência que possa ser mapeada e planejada.
Ocorrem acontecimentos entre duas pessoas que estão juntas em uma sala, e o
significado desses acontecimentos são discutidos e compreendidos. Os analistas
aprendem mais sobre quem são através da participação na 'dança' do momento.
A extensão na qual a análise está „viva‟ pode depender da disposição e
habilidade do analista para improvisar, e para ser improvisado pelo inconsciente
da relação analítica.
VI. Observação dos aspectos de nós mesmos que, como se por sua
própria iniciativa, protestam contra sermos o analista que temos
sido por tanto tempo
O que em certa época poderia ter sido chamado de confiável e estável, pode
gradualmente tornar-se demasiado fácil e bastante envelhecido e previsível. Às
vezes nos tornarmos conscientes durante uma sessão com um paciente de que
nos tornamos confortáveis demais com nós mesmos como analistas. 'Erros',
nessas sessões, podem muitas vezes ser vistos como expressões de nossas partes
mais saudáveis e são de valor inestimável para o nosso amadurecimento, se
pudermos fazer uso desses alertas. Esses "erros" incluem o analista atrasar-se
para uma sessão, terminar uma sessão mais cedo, dormir durante uma sessão, e
esperar um paciente diferente quando encontra o analisando na sala de espera.
(Não estão incluídos nesse tipo de erro as violações de fronteira, tais como,
relações sexuais com um paciente, quebras da confidencialidade, relações de
negócios com um paciente, e assim por diante [Gabbard e Lester, 1995].) Os
22
erros que não envolvem violações de fronteiras muitas vezes representam os
esforços inconscientes do analista para perturbar o seu próprio equilíbrio
psíquico, para forçar-se a tomar conhecimento das formas nas quais ele se
tornou estagnado no seu papel de analista.
Acreditamos haver uma necessidade auto-imposta para se ser original – não
no sentido de uma demonstração narcisista, mas no sentido da necessidade de
entrar em uma conversa com o paciente ou com o supervisionando de maneira
tranqüila, firme e generosa, de uma forma que não poderia acontecer entre
ninguém mais no mundo a não ser essas duas pessoas (Ogden, 2004a). Se isso
for forçado, rapidamente se revelará um artifício vazio. O desenvolvimento de
um „„estilo analítico‟‟ (Ogden, 2007, p. 1185) que é experimentado como
completamente autêntico é parte de um esforço contínuo por parte de cada
analista para se tornar um analista por seu próprio direito. Pode-se conseguir
esse sentimento de ter-se tornado „original‟ somente através de um esforço
árduo para livrar-se ao longo do tempo dos grilhões da ortodoxia, da tradição e
de suas próprias proibições inconscientes e irracionais (Gabbard, 2007). A luta
do analista com a teoria, como senhora ou como serva, pode ser uma parte
integrante deste esforço. Partilhamos o ponto de vista de Sandler (1983) de que
cada analista desenvolve um amálgama particular ou um modelo misto,
tomando emprestado certos aspectos de várias teorias que são consistentes com
a própria subjetividade e com a própria abordagem da análise. Ao mesmo
tempo, concordamos com a noção de Bion de que o analista deve esforçar-se
por esquecer o que ele pensa que sabe ou conhece „bem demais‟ para que possa
ser capaz de aprender com sua experiência atual com o paciente. Bion (1987)
uma vez disse a um apresentador: ''Eu [confiaria na teoria somente] ... se eu
estivesse cansado e não tivesse idéia do que estava acontecendo ...'' (p. 58).
23
VII. Manter os olhos abertos para a maneira pela qual se está
amadurecendo / envelhecendo
Conforme se envelhece, pode-se falar a partir da experiência de uma forma que
não poderia ter sido feita anteriormente. Muitas vezes a pessoa se torna
consciente, após o fato, de que ela mudou, por exemplo, através da escuta de si
mesma ao falar com seu paciente. Idealmente, o analista se engaja em um
processo de luto no qual a perda da juventude e a inevitabilidade da velhice e da
morte são reconhecidas, aceitas e até mesmo abraçadas como uma nova forma
de existir como uma pessoa levando uma vida ponderada. O analista pode,
dessa forma, alcançar uma maior valorização das experiências de perda do
paciente e das maneiras pelas quais ele lidou com elas ou evadiu-se delas.
Esse processo de amadurecimento ocorre tanto dentro como fora do setting
analítico. O analista que atua cada dia na sala de consultas (idealmente) não é
nunca inteiramente o mesmo analista que atuava no dia anterior. A capacidade
de um analista de entender plenamente a dor de um paciente pode ser limitada
até que o próprio analista tenha navegado em sua própria dor associada à perda
de entes queridos e ao término de períodos importantes de sua vida, por
exemplo, a época em que seus filhos moravam em casa ou a época em que seus
pais estavam vivos.
24
isolamento que ele imagina que virá quando tornar-se um analista em seus
próprios termos; ou ter medo de que com um reconhecimento maduro da
incerteza virá uma confusão insuportável. Um analista pode defender-se contra
esses e outros medos empenhando-se em uma rebelião adolescente contra „a
instituição analítica‟ em um esforço para evitar definir-se nos seus próprios
termos; ou falando no início com uma voz de experiência inventada, quando, na
verdade, sente-se dolorosamente carente como conseqüência de sua
inexperiência; ou abraçando uma falsa certeza sob a forma de uma intensa
identificação com uma determinada escola de psicanálise, com seu próprio
analista, com um escritor analítico idealizado e assim por diante. Finalmente,
devemos lembrar que, por mais que amemos a análise, uma parte de nós
também a odeia (Steiner, 2000). A dedicação ao trabalho analítico contínuo (em
nós mesmos e com os pacientes), nos destina não somente à incerteza, mas
também a enfrentar o que menos gostamos em nós mesmos e nos outros
(Steiner, 2000).
Comentários finais
No presente artigo discutimos algumas de nossas experiências de
amadurecimento e as analisamos sob várias perspectivas teóricas. Alguns
leitores reconhecerão no que descrevemos algo de suas próprias experiências de
amadurecimento como analistas, enquanto que outros não o farão. De fato, um
tema recorrente em nosso trabalho tem sido o fato de que falar com pacientes,
colegas e alunos em termos genéricos é anti-analítico (no sentido de representar
um fracasso para pensar e falar por si mesmo). Como Bion (1987) observa no
comentário citado no início deste artigo, parte de tornar-se um analista é evoluir
em uma direção que não é nem determinada por teoria, nem dirigida
exclusivamente pela identificação com os outros: “O analista no qual você se
torna é você e somente você – isso é o que você usa ...” (p. 15). O discurso
analítico envolve o que é único, idiossincrático e vivo na experiência particular
25
de um determinado indivíduo. Tornar-se um analista envolve necessariamente a
criação de uma identidade altamente pessoal, que é diferente da de qualquer
outro analista.
Não podemos superestimar a dificuldade de tentar viver por esse ideal. Os
laços conscientes e inconscientes que temos com o que pensamos que sabemos
são poderosos. Mas a luta para superar estes laços (pelo menos em um grau
significativo) é o que exigimos de nós mesmos em cada sessão. Em nossa
experiência verificamos que quando o analista está confuso, é quando ele faz
seu melhor trabalho analítico.
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27
Trinta maneiras de destruir a criatividade dos
candidatos à psicanálise
Thirty ways to destroy the creativity of psychoanalytic candidates
Otto Kernberg
Em clave irônica, Kernberg mostra como a própria organização do ensino parece ter
como objetivo primordial abafar qualquer entusiasmo com o texto freudiano e a
psicanálise, matando no nascedouro qualquer desejo que os candidatos possam abrigar
no sentido de ajudar no progresso e desenvolvimento desse conhecimento.
É verdade que Kernberg mostra os erros das sociedades organizadas dentro dos
padrões estabelecidos pela ipa e poder-se-ia rápida e aliviadamente dizer que as outras
instituições não padecem dessas distorções.
Seria um equívoco pensar assim. O que Kernberg mostra pode ser reconhecido com
facilidade em outras instituições psicanalíticas fora da ipa e mesmo em instituições não
analíticas. Afinal, tais patologias florescem em todas as instituições. Elas giram em
torno das manipulações pelo poder, do empenho na manutenção inquestionada do
status quo e da ideologia prevalente, o que impõe a eliminação dos dissidentes e
contestadores. As lutas pelo prestígio respondem à esfera do narcisismo, comum a todo
ser humano.
Era de supor que nós, analistas, pudéssemos organizar nossas instituições de forma
diferente, como diz Derrida, ou seja, usando os instrumentos que a psicanálise nos
fornece. No caso em pauta, isso poderia significar o dispor-se a empreender uma
permanente “autoanálise institucional” – se é que podemos falar assim, se é que isso é
factível. Tarefa fácil seguramente não seria, mas a dificuldade em conceber medidas
que impeçam distorções tão graves não deveria ser um obstáculo e sim um estímulo a
executar um trabalho que se impõe e que nos convoca a todos.
Como mostra Kernberg, a forma como este modelo de formação está estruturado faz
com que os estudantes idealizem intensamente os professores, supervisores, analistas
mais velhos e a própria instituição.
Não deveria ser feita uma experiência nesse sentido em nossa própria instituição?
Até agora falamos das distorções que surgem dentro do processo de formação que tem
como modelo os protocolos estabelecidos há longo tempo pela ipa e reproduzidos, com
maiores ou menores modificações, por muitas outras instituições.
Enquanto há três décadas candidatos que estavam em análise didática por longos anos
não podiam se apresentar como “psicanalistas” e se diziam “psicoterapeutas de linha
analítica”, hoje em dia ouve-se, a torto e a direito, pessoas que se intitulam
“psicanalistas”.
Alguns anos atrás, ao discutir com uma colega sobre as formas de incrementar o
desempenho dos candidatos em formação psicanalítica, ela me disse sorrindo: “Nosso
problema não é tanto incrementar a criatividade e sim tentar não inibir a criatividade
naturalmente estimulada pela natureza de nosso trabalho” [2]. Seu comentário
desencadeou em mim lembranças e observações feitas ao longo de meus estudos, de
minha atividade como professor e de minha participação no ensino psicanalítico em
diferentes sociedades e institutos. Decidi juntar estas observações, discuti- las com
colegas e finalmente agrupar sob um formato negativo aquilo que, em última instância,
é um apelo em defesa da criatividade psicanalítica. Para um formato positivo deste
estudo, recomendo ao leitor o texto de 1986, no qual apresento, por um lado, uma
análise sistemática da relação entre a estrutura organizacional e o funcionamento dos
institutos psicanalíticos e, por outro, seus efeitos na formação psicanalítica. Como uma
excelente revisão dos problemas atuais na formação psicanalítica, o resumo da Quinta
Conferência de Analistas Didatas da International Psychoanalitical Association (ipa) em
Buenos Aires, feito por Wallerstein (1993), pode servir como um importante pano de
fundo para o que segue.
A lista das formas de inibir a criatividade de um candidato a psicanalista que segue não
pretende ser exaustiva, apesar de, espero, cobrir os problemas mais importantes. Então,
aqui estão minhas recomendações de como inibir com eficácia a criatividade no
processo de aprendizagem em nossos institutos:
5. Procure evitar que seus alunos participem prematuramente dos encontros científicos
de sua sociedade psicanalítica ou sejam convidados para reuniões onde colegas
respeitados possam discordar entre si de forma áspera. Isso pode ser justificado
alegando-se o cuidado necessário para que a análise didática pessoal não seja perturbada
por influências externas prematuras, particularmente aquelas que poderiam perturbar o
anonimato do analista didata. Numa sociedade psicanalítica pequena, é sempre possível
justificar a proibição de candidatos frequentarem seus encontros científicos alegando
que, num grupo tão pequeno, seria difícil evitar o contato entre os candidatos e seus
analistas fora da sessão, e isso, por sua vez, justifica perfeitamente a não comunicação
entre o ensino do instituto e as atividades científicas da sociedade e do pensamento
psicanalítico.
7. Mantenha uma rígida separação entre os seminários dos alunos em formação e o dos
analistas já formados. Por sorte, a maioria das instituições psicanalíticas tem uma
compreensão intuitiva da importância de evitar a mistura prematura de candidatos e
analistas formados nos mesmos seminários: os candidatos com facilidade descobririam
nos analistas já formados as mesmas incertezas, inseguranças e atitudes questionadoras
que são forçados a reprimir. Isso pode perturbar uma saudável idealização da eficácia
dos processos de formação analítica e acabar com a ilusão de que existe uma enorme
diferença entre candidatos e analistas formados.
8. A preservação nos alunos de um saudável respeito pelos mais velhos pode ser
conseguida ao se constituírem grupos formados por antigos analistas didatas e jovens
analistas recém-formados que almejam ser didatas no futuro, como o objetivo de ensinar
em alguns cursos e/ou seminários. Mantenha uma clara hierarquia entre os velhos e os
jovens no curso. Se o analista jovem respeitosamente se curva frente às opiniões do
analista mais velho e transmite, com seu próprio comportamento, a indubitável
aceitação de sua autoridade; se, de fato, ele mostra incertezas e inseguranças a quanto de
iniciativas ele pode se dar no ensino de qualquer seminário, a mensagem da necessidade
de aceitar e não questionar a autoridade estabelecida será reforçada. Você pode acentuar
a hierarquia por meios simples: por exemplo, nas reuniões profissionais, reserve os
melhores assentos da frente para os membros mais velhos.
9. Reforce os rituais da formação por quaisquer meios inteligentes que lhe possam
ocorrer: este é um campo com grandes potencialidades. Por exemplo: você pode pedir
ao candidato para escrever um caso para a apresentação final e então submeter este
manuscrito a numerosas revisões e correções. Com isso, os candidatos adquirem um
saudável respeito pelas enormes dificuldades inerentes à escrita de um trabalho
aceitável para publicação. Ou ainda, peça ao candidato para apresentar um trabalho à
sociedade analítica. Os debatedores deste trabalho deverão ser os membros mais antigos
e graduados daquela sociedade, que não terão, eles mesmos, escrito qualquer coisa há
muito tempo. As exigentes expectativas quanto ao que deveria ser incluído num
trabalho científico devem ser comunicadas através de uma crítica exaustiva da
apresentação do candidato. Uma variante disso é fazer com que um comitê constituído
por aqueles analistas mais velhos transmita ao candidato esta mesma avaliação. Em
alguns países, efeito semelhante tem sido alcançado através de voto secreto por parte de
todos os membros da sociedade, decidindo se o trabalho do candidato é aceitável e
preenche os critérios para a admissão para a própria sociedade. Quando divisões
políticas significativas dentro da sociedade fazem com que os jovens candidatos
automaticamente se inclinem para o grupo de poder do seu próprio analista didata, o
trabalho científico com o qual pleiteia admissão pode se transformar numa excelente
fonte de ansiedade sobre os perigos ligados ao trabalho científico [5].
10. Enfatize a ideia de que são necessários muitos anos de experiência clínica para que o
entendimento da teoria e da técnica psicanalíticas, sem falar nas aplicações da
psicanálise em outros campos, esteja profundo e sólido o bastante para justificar a
tentativa de alguém querer contribuir com a ciência da psicanálise. Levante
delicadamente, mas sem delongas, a questão de até que ponto as tentativas do candidato
de não só apresentar trabalhos, como desejar publicá-los (!), podem refletir uma
competitividade edipiana ou conflitos narcísicos mal resolvidos. Se jovens analistas
publicam raramente e se precisam que os analistas mais velhos aprovem seus
manuscritos antes de enviá-los para publicação, este costume pode vir a ser um
consenso estabelecido entre os candidatos e pode reforçar seu medo de publicar.
Naturalmente, evite estimular os candidatos a colocarem alguma ideia própria nova ou
original em seu próprio trabalho; a escrita deve ser uma obrigação desagradável, nunca
um prazer ou uma fonte primária de orgulho em contribuir para a ciência da psicanálise
enquanto ainda estudante [6].
11. Pode ser de muita utilidade mostrar que a psicanálise é entendida e desenvolvida
adequadamente apenas em lugares muito distantes de sua própria instituição e, de
preferência, numa língua não conhecida pela maioria dos estudantes. Se as exigências
da formação fazem com que os estudantes não tenham condições de passar uma longa
temporada naquele distante lugar ideal, eles poderão ficar convencidos de que é inútil
tentar desenvolver a ciência psicanalítica num lugar tão distante de onde são ensinados
as verdadeiras e únicas teoria e técnica. E esta convicção será duradoura.
13. Indique sempre o dobro de publicações que seria razoável esperar que os alunos
absorvam entre um seminário e outro. Peça-lhes para apresentar resumos a seus colegas,
teste em detalhe a extensão do que leram e, como já foi dito antes, não se esqueça de
acrescentar aqueles trabalhos de Freud que eles já leram em muitos seminários. Outra
medida útil pode ser a não indicação de qualquer texto publicado há menos de vinte
anos. Isso leva a crer que as contribuições verdadeiramente importantes já foram feitas e
que pouco deve ser esperado dos novos desenvolvimentos na teoria e na técnica feitos
recentemente, inclusive, é claro, qualquer ideia que pudesse estar germinando na mente
dos estudantes.
15. Pode ser muito útil dar proeminência, nas leituras indicadas, aos trabalhos dos
membros mais importantes de sua própria instituição, que devem ser ensinados, de
preferência, não por eles mesmos e sim por seus alunos atuais ou ex-alunos. Assegure-
se de indicar trabalhos de outros autores que reforcem as opiniões dos líderes locais e
inclua apenas uma ou duas opiniões discordantes, com o único objetivo de expor suas
debilidades. Este foco nas leituras indicadas pode ser complementado pela indicação de
um texto científico ou um estudo de caso a ser apresentado pelo estudante como parte
do processo de formação, com uma cuidadosa ênfase na necessidade de que ele cite os
autores teóricos preferidos localmente em apoio às observações de seu trabalho.
16. De forma ideal, a exposição dos alunos às escolas alternativas de psicanálise deveria
ser evitada tanto quanto possível. Nos seminários para alunos mais avançados, trabalhos
específicos representando abordagens dissidentes ou desviantes deveriam ser
brevemente comentados, no intuito de equilibrar visões opostas, mas devidamente
rejeitadas. É muito útil convidar os líderes de diferentes enfoques teóricos para rápidos
seminários que poderiam, excepcionalmente, incluir estudantes, analistas já formados e
instrutores do curso. Estes últimos podem participar para assegurar que os estudantes
podem testemunhar o impiedoso desmantelamento do representante da opinião
contrária. Seminários de um dia com um líder dissidente, cujas opiniões são atacadas de
forma respeitosa mas inabalável, podem contribuir para reassegurar que a escola local
sabe mais, que a mente do estudante fique em paz e que as novas ideias, apesar de
perigosas, podem ser destituídas de seu potencial subversivo.
17. Sempre faça com que o menos experiente dos candidatos apresente casos frente aos
mais experientes do grupo. Os analistas mais experientes jamais deveriam apresentar
casos num grupo de candidatos: as incertezas do trabalho e os inevitáveis erros dos
analistas mais velhos podem apagar o sentimento de autocrítica, o medo das repreensões
e a natural modéstia dos candidatos que estão começando seu trabalho profissional. A
convicção de que os já formados trabalham melhor do que os candidatos, de que os
analistas didatas trabalham melhor do que os analistas comuns e que os analistas didatas
mais velhos trabalham melhor do que os mais novos garante as inseguranças do
candidato.
18. Tome providências para que sejam preteridos ou estimulados a desistir da formação
os candidatos excessivamente críticos ou rebeldes que ameaçam a atmosfera
harmoniosa nos seminários, desafiam seus instrutores mais velhos ou ousam falar
publicamente contra os analistas didatas na frente de seus pacientes (que irão
possivelmente, é claro, relatar tais conversas em suas sessões). Não é tão difícil fazer
isso, por exemplo, através da morosidade na aprovação de seus casos supervisionados.
Pode-se ainda agendar encontros com líderes de seminário nos quais os candidatos
problemáticos são discutidos criticamente. As informações sobre essas discussões só
devem chegar indiretamente aos candidatos em questão através de seus supervisores ou
tutores, os quais, de forma amistosa, comunicam-lhes a avaliação negativa feita pela
instituição a respeito deles. Se um candidato recebe suficiente informação através de um
terceiro ou quarto intermediário daquilo que é dito sobre ele, isso eventualmente o fará
mudar de atitude na direção desejada pela instituição ou o levará a desistir. Uma vez que
o candidato tenha desistido ou que se lhe tenha solicitado para se afastar, nunca mais
mencione seu nome e mantenha um silêncio discreto sobre todo o episódio: a ideia de
que algo assustador e perigoso teria ocorrido, sobre o que misericordiosamente ninguém
quer falar, terá um poderoso impacto no grupo de estudantes.
29 – Acima de tudo, mantenha a discrição, sigilo e incerteza sobre o que é exigido para
que se chegue ao posto de analista didata; como, onde e por quem essas decisões são
feitas, que espécie de devolutiva ou mecanismos de recursos e apelos pode esperar
aquele que esteja temeroso das implicações traumáticas de ser avaliado e rejeitado como
analista didata. Quanto mais o grupo de analistas didatas se mantém à parte e coeso
como detentores da autoridade e do prestígio, mais os efeitos inibidores do processo de
seleção influenciarão todo o empreendimento da formação. Este é seu instrumento mais
confiável e eficaz para manter na linha não só os candidatos, mas o inteiro grupo de
professores e a própria sociedade.
Entrevistas com:
JACQUES ANDRÉ, RENÉ ROUSSILLON, OTTO KERNBERG E STEFANO BOLOGNINI
1 Projeto idealizado por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral e executado pela Associação
EPT.FNCSPT'JMJBEPT MF EP*OTUJUVUPEF1TJDBOÈMJTFEBSBPSP.
Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral é membro filiado do Instituto da SBPSP, diretora cien-
UÓĕDBEB"TTPDJBÎÍPEPT.FNCSPT'JMJBEPT AMF SFQSFTFOUBOUFEBAMF na Comissão de Ensino da
SBPSP.
Associação dos Membros Filiados da SBPSP
Jacques André2
didática. Isso quer dizer que o paciente se tornará analista. Lacan generaliza dizendo
que todos os analisandos se transformarão em analistas. Mas essa é uma posição pes-
soal de Lacan, e não uma concepção da Instituição. Logo, o mais didata de todos é
Lacan. Havia um domínio considerável sobre o pensamento dos outros, sendo Lacan
o analista, o supervisor, além de receber pacientes em seus seminários. Isso gerou um
grande desgaste na instituição. Era preciso resguardar a continuidade das sessões,
o tempo das análises, a transferência, para manter-se uma prática psicanalítica e a
liberdade de pensamento. É essa a questão da APF em relação à formação – a integri-
dade da análise didática – que leva à ruptura com Lacan e funda a APFFN
SPP,mas deverá ser da IPA. Pode ser um divã lacaniano, pode ser um desconhecido,
apesar de não ser frequente. Antes não era assim, mas hoje é.
Associação MF – Mas no caso da análise didática ele não pode ser analisado
livremente.
Jacques André – Por definição isso faz parte de uma realidade periférica, en-
tão é alguma coisa que é colocada fora da própria análise, da qual ela não pode li-
vremente se apossar. Isso quer dizer que por estar em uma zona limite também do
analista, ele não poderá perguntar, mas a didática o faz pensar em que? É uma zona
evidentemente inconsciente, onde isso não poderá ser tocado. Não pode ser analisa-
do, é um ponto cego que funciona na verdade como um dado de realidade.
René Roussillon3
3 Entrevista realizada em 28.10.2009 por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral e Michael Harald Achatz.
René Roussillon é analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP, presidente do Grupo de Analistas de
Lyon, docente da Universidade de Lyon 2. Recebeu o premio M. Bouvet por seu livro Paradoxes et situations
limites de la psychanalyse 5SBCBMIBOPEFTFOWPMWJNFOUPEFDPODFJUPTEF'SFVEBOUFSJPSFTB SFMB-
cionando-os às noções introduzidas em “Mais além do princípio do prazer”. Seus interlocutores ao trabalhar
as ideias de Winnicott na França são D. Anzieu, Pontalis e Green.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W
32 Associação dos Membros Filiados da SBPSP
4 A SPP, Sociedade Psicanalítica de Paris, é a sociedade mais antiga da França, reconhecida pela IPA.
Uma cisão, em 1954, deu origem à Sociedade Francesa de Psicanálise, com a liderança de Lacan.
A cisão aconteceu em função de um poder exacerbado de Lacan,que atendia seus pacientes no
divã, mas também em supervisão, além de dar os seminários. Com isso, ditatorialmente impunha
seu pensamento a toda Sociedade. Uma nova cisão, dez anos depois, e surgiu a APF, Associação
Psicanalítica Francesa. Esta foi reconhecida pela IPA, com a condição de que a análise didática não
fosse feita por ex analisandos de Lacan.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W
Entrevistas 33
Associação MF – &OUÍPFMFFSBEFPVUSBTPDJFEBEFy
René Roussillon – Quando me inscrevi em Lyon, a SPP iniciava um Instituto
também em Lyon, e assim fui admitido em Paris e Lyon ao mesmo tempo. A análise
deveria ser feita com um membro que fosse da IPA. Este é o único critério para ser
aceito na SPP, análise com um membro ligado a sociedades da IPA.
algo muito importante para mim. Estar livre, livre para pensar, livre para trabalhar
com os pacientes.
Vejo colegas que se preocupam muito se pertencem a essa ou aquela socieda-
de. Valorizam só a SPP. Para mim o importante é a psicanálise bem feita. Se outros
são lacanianos e podemos trabalhar bem juntos, que bom!
psicoterapia – será fazer uma psicanálise ruim. Essa não é a posição majoritária na
França, mas é a minha posição.
institucionais, grupais, individuais, de família, com crianças, com os sem teto, toxi-
cômanos etc. Entretanto, não é o que acontece em todas as universidades, mesmo na
França!
Depois, a questão passa a ser: quais são os conceitos necessários para trabalhar
psicanaliticamente e quais os dispositivos a serem articulados? A base da formação
já está lá. Essa não é uma posição majoritária na França, é uma posição particular
minha.
Isso também está ligado ao fato de eu ser Vice-Presidente do Sindicato dos
Professores de Psicologia Psicanalítica para a Europa. Tenho posições políticas na
defesa da psicanálise na universidade, na psicanálise no terreno de tratamento em
geral e não simplesmente na defesa da psicanálise nos consultórios particulares. Não
quero discorrer somente em termos de consultório particular, por uma razão muito
simples: na França, por exemplo, existem aproximadamente quatro mil psicanalistas
em consultório particular e quarenta mil psicólogos envolvidos no serviço público.
Também me ocupo dos quatro mil, mas acho que nós não podemos deixar os 40.000
sozinhos. Precisamos pensar e refletir com eles. Por isso assumi a posição política de
interesse pelos problemas da clínica psicanalítica como um todo, quer seja na socie-
dade ou fora dela.
Tenho responsabilidades na IPA e viajo pelo mundo visitando sociedades,
principalmente sociedades que estão começando. A psicanálise já está na Rússia,
Romênia, Grécia e finalmente na Turquia. As pessoas lá são jovens, diferentemente
do que se vê de um modo geral nos congressos da IPA, onde as pessoas são mais ve-
lhas. Aqui na América do Sul a população ligada à psicanálise é relativamente mais
jovem. Na França a média de idade dos analistas é de 45 anos. O início da forma-
ção se dá em geral aos 40 anos; mais oito, nove anos de formação e temos 49 anos.
Precisamos procurar candidatos mais jovens, porque temos nos dado conta de que
há muita potencialidade, criatividade que não está sendo valorizada. Na época dos
grandes psicanalistas criativos da França – Anzieu, Laplanche – éramos todos jovens.
Atualmente grandes criadores e pensadores existem cada vez menos. Onde eles es-
tão? Estão em outro lugar ou não foram recrutados suficientemente cedo para con-
servar sua potencialidade. É preciso evitar um sistema de “formatação”. Precisamos
dar menos orientação e não inibir a criatividade e espontaneidade. Devemos propor-
cionar maior liberdade e possibilidade de escolha. É importante não ter preconceito
em relação ao jovem. É paradoxal uma sociedade, centrada em tratamento, ter como
único modelo a psicanálise individual em consultórios particulares, sem observar
e refletir sobre a realidade; não levando em consideração todo o contexto social. A
experiência de prática clínica em outro contexto, que o estritamente analítico em
consultório particular é muito importante. É preciso que o analista tenha prática
em pelo menos duas situações diferentes. Por exemplo, um tratamento de adulto
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W
38 Associação dos Membros Filiados da SBPSP
e outro de criança. Acredito que existam coisas que só aparecem em análise quan-
do praticamos diversos procedimentos. É o que explica o fato de haverem diversos
dispositivos. Outro ponto importante é o trabalho com crianças. Percebo em meus
supervisionandos que aqueles que fizeram muita terapia com crianças são melhores
analistas.
Estes são fatores importantes de criatividade que, ou se perdem, ou se desen-
volvem fora da sociedade. No aniversário de 80 anos da Sociedade de Paris, organi-
zou-se um evento para o qual apenas 250 pessoas inscreveram-se. Três meses mais
tarde aconteceu o vigésimo aniversário do lançamento do livro O eu pele, de Anzieu,
quando organizamos um colóquio com lançamento de uma coletânea de artigos,
compareceram 1400 pessoas e tinham mais 400 na porta querendo entrar. O público
abrangia pessoas da SPP, APF, lacanianos de vários grupos. O que faz diferença não
é alguém pertencer a esta ou aquela sociedade, mas sim se o que essas pessoas têm a
dizer interessa aos outros. É a resposta à demanda, é o novo, a linguagem acessível,
o sob medida. O que proponho é que a resposta vai se fazer também sob medida em
função do paciente. Quando recebo uma pessoa pergunto: você tem um projeto?
Como acha que poderemos fazer? Pensou em quantas vezes viria por semana? Se
estiver frente a um psicótico que propõe um encontro a cada 15 dias, digo que assim
não vai funcionar. Mas nós conversamos. Eu explico, e o tratamento começa assim,
pela construção dos dispositivos.
Associação MF – Como podemos pensar esse trabalho “sob medida” que o Sr.
propõe?
René Roussillon – Primeiro saber que não é tão confortável como trabalhar
em um contexto preestabelecido, pois exige mais reflexão. Além disso a atitude in-
terna é importante, mas simples. É importante pensar: não sou eu quem sabe, é o
paciente que sabe. Ele não sabe que sabe e eu, escutando, posso tentar ajudá-lo a
formular o que ele sabe sem saber que sabe.
financeiras, por exemplo, pacientes com preço igual àqueles que estão em formação.
São estes os critérios. Também circula a ideia de que se não houver número suficien-
te de sessões semanais algo não poderá ser abordado. Mas, mesmo com pacientes
que vêm às sessões com maior frequência, percebemos que existe algo que não é
abordável; e, se houverem mais sessões, isso poderia levar a tal dependência que mui-
tas defesas seriam mobilizadas, dificultando muito a análise para essa pessoa.
Associação MF – Para a formação na SPP quantas sessões por semana são exi-
gidas?
René Roussillon – Um mínimo de três sessões semanais. Depois de três anos
os candidatos são examinados por três analistas formadores, desconhecidos por ele,
que depois reúnem-se com mais pessoas em uma comissão para a avaliação final.
Otto Kernberg5
5 Entrevista realizada em 15.4.2010 por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral, Silvia Puppo,
membros filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP e Leda Herrmann, membro efetivo da SBPSP.
Otto Kernberg é membro efetivo e analista didata da New York Psychoanalytic Society, foi presi-
dente da IPA de 1999 a 2003. Atualmente é diretor do Instituto de Transtornos da Personalidade do
)PTQJUBM1SFTCJUFSJBOPEF/PWB:PSL EJWJTÍP8FTUDIFTUFS 1SPGFTTPSEF1TJRVJBUSJBEB'BDVMEBEF
de Medicina Weill da Universidade de Cornell. Tem várias publicações relacionadas à pesquisa
psicanalítica, educação psicanalítica e sobre pacientes borderlines.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W
40 Associação dos Membros Filiados da SBPSP
dos candidatos é que estes possam identificar-se com seus analistas didatas. É uma
contradição fundamental, como François Gustav assinalou há muitos anos. Acho
que tal contradição impede uma análise da transferência e contribui para uma pseu-
doidentidade psicanalítica, porque cria a fantasia no candidato de aprender técnica
psicanalítica pelo aprendizado da técnica de seu próprio analista. E não se aprende
técnica com a técnica do próprio analista. Porque quando se está realmente em aná-
lise, está se explorando a si mesmo e não a técnica do analista. E se seu analista é o
ideal a que ele aspira, produz-se uma idealização que não pode ser resolvida. Isso é
“paranoicogênico”; e a paranoia move-se para a instituição, para outras instituições
ou outros métodos psicanalíticos. Isso é daninho.
A análise didática também é daninha para os analistas didatas, pois são bom-
bardeados por uma idealização permanente dos candidatos, ao mesmo tempo em
que se sentem constrangidos em sua liberdade, por sentirem-se observados por co-
legas e candidatos. Ficam impedidos de uma atitude natural, ficam na defensiva e
isso favorece ainda mais a idealização. Exercem um poder não-funcional, arbitrário;
porque os analistas didatas têm direito de fazer análise didática, de dar seminários,
tendo ou não talento para educadores, e de serem supervisores, tendo ou não ta-
lento para supervisão, e ainda serem diretores da instituição, tendo ou não talento
administrativo. Ou seja, há um exercício de funções que não correspondem à sua
capacidade. Há um acúmulo patológico de poder que os transforma em uma classe
autoritária, dominante, com seus próprios interesses de classe, que contribuem para
criar um sistema hierarquizado, rígido. É a militarização da psicanálise. O exército se
compõe dos pacientes, que são os soldados rasos e dos candidatos, que são os cabos;
dos graduados que são os tenentes; dos membros associados, que são os coronéis,
e dos membros efetivos, que são os generais; e dos analistas didatas que são os co-
mandantes na chefia. Tudo isso é um longo processo, cheio de exigências totalmente
irracionais, sem nenhum objetivo que não seja o de manter a hierarquia e o poder.
Acho que a análise dos candidatos deveria ser feita de forma totalmente separada
da instituição. Todos os analistas que se graduam têm a possibilidade de receber
uma certificação de especialista depois de certo número de anos, digamos uns cinco
anos. Todos têm essa possibilidade, há critérios objetivos, e é obrigatório para todos
os que querem trabalhar clinicamente em psicanálise, tal como a certificação das
especialidades na medicina: cirurgia, cardiologia, psiquiatria. A grande maioria dos
analistas graduados são certificados, e todos os certificados têm direito a analisar os
candidatos.
deveria contar com representantes dos supervisores, dos líderes de seminários, dos
pesquisadores e dos candidatos.
Associação MF – O que o senhor acha que seria o básico? Quais são as discipli-
nas que deveriam ser ensinadas no instituto? Que conteúdos, que autores?
Otto Kernberg – Acho que é necessário ensinar teoria psicanalítica contem-
porânea. Sugiro começar com teoria psicanalítica contemporânea e colocar a história
no contexto da teoria psicanalítica contemporânea. Estudar Freud no contexto da
teoria psicanalítica geral: teoria do desenvolvimento; teoria da estrutura da perso-
nalidade; teoria da técnica; teoria de aplicações da psicanálise. Seriam esses os temas
básicos. E dentro de cada um desses temas haveria aspectos obrigatórios e optativos.
O currículo deveria ser um currículo ativo.
técnica. Algumas boas, outras más. De modo que há algum movimento. Entretanto,
não conduz a um progresso real porque, como não há pesquisa científica, no fun-
do vence quem grita mais alto, ou quem é mais popular. Nos Estados Unidos, uma
cultura muito pragmática e otimista, os relacionistas estão surgindo, juntos com os
sullivianos e os intersubjetivistas, pensando a clínica por meio de uma boa relação
terapêutica. A tradição kleiniana, a meu ver, é a que melhor mantém o espírito psica-
nalítico fundamental. Até certo ponto, também a psicanálise francesa que surgiu da
lacaniana. Penso que a psicanálise lacaniana tornou-se anticientífíca e mistificadora.
Este é o problema constante da psicanálise: evitar que a psicanálise transforme-se em
uma religião.
psicanalítica, precisa-se de pelo menos duas, quiçá três, mas não mais. A psicoterapia
de apoio pode se dar com uma sessão semanal, duas, ou três, ou uma sessão ao mês.
Acredito que isso tem de ser pesquisado e já temos algumas pesquisas. Na Suécia de-
monstraram que a psicanálise parece ser mais efetiva do que a psicoterapia psicana-
lítica; não imediatamente, mas no longo prazo. Isso é importante, é interessante, mas
evidentemente tem de ser replicado e não está claro quais pacientes se beneficiam
mais com qual tipo de atendimento. Observo que, no mundo, tem acontecido uma
diminuição de candidatos para a psicanálise. Entretanto isso parece estar se estabili-
zando. Os psiquiatras inteligentes querem ter formação psicoterapêutica. Institutos
começam a oferecê-la; isso interessa à psicanálise. Nos Estados Unidos produziu-se
um equilíbrio, mas acho perigoso que a psicanálise tenha perdido interesse nas esco-
las de medicina, nas escolas de psiquiatria, porque a psiquiatria liga isso com a neu-
robiologia, que é um campo básico de funcionamento da mente. É importante que
mantenhamos nosso contato com a neurobiologia, de um lado, e com a psicologia
social, do outro. A psicanálise não pode funcionar num isolamento científico total.
Dizer que a psicanálise descobre realidades profundas da subjetividade inconsciente,
que não são descobertas de nenhuma outra maneira, isso é um preconceito. A reali-
dade inconsciente do indivíduo não é uma criação autóctone, mas depende de raízes
na biologia e no social. Precisamos integrar isto na teoria psicanalítica em lugar de
vê-las como um campo inimigo.
Stefano Bolognini9
9 Entrevista realizada em 23.10.2010 por Ana Maria Vieira Rosenzvaig e Rita Andréa Alcântara de
Mello, membros filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP, durante o Congresso da FEPAL em
Bogotá.
4UFGBOP #PMPHOJOJ Ï BOBMJTUB EJEBUB F BUVBM QSFTJEFOUF EB 4PDJFUÈ 1TJDPBOBMJUJDB *UBMJBOB SPI GPJ
Diretor Científico Nacional da SPI, cofundador do Comitê Patologias Graves da SPI FYQSFTJ-
dente do centro Analítico da Bologna. Na IPA foi Board Representative para a Europa, 2003-2007;
co-chair por Europa CAPSA Committee; chair IPA 100 Anniversary Committee.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W
Entrevistas 47
permitir uma co-regressão associativa mais tranquila e confortável. Nas três sessões
trabalha-se bem, mas o trabalho do analista precisa ser mais intenso interiormente.
Isso é uma realidade e um dado interessante para se levar em consideração.
Na IPAIÈBBQSPWBÎÍPEPTUSÐTNPEFMPTPGSBODÐT PDMÈTTJDP &JUJOHUPO FP
uruguaio. O modelo Eitington constituía-se como um modelo ideal e a aprovação de
outros modelos era um problema. O modelo francês já existia há muito tempo, e es-
tava excluído do “psiquismo institucional”. Todos sabiam que ele existia há mais de
40 anos nas discussões entre analistas nos congressos, mas no Internacional Journal,
nos artigos sobre os modelos, a questão não aparecia. Não existia nas regras da IPA.
Isso era um sintoma; uma condição de cisão compartilhada institucionalmente, um
splitting no board da IPA, onde o modelo francês não estava. Quando a IPA assumiu
UPNBSDPOIFDJNFOUPEJTTP JOJDJPVTFVNBEJTDVTTÍPEPTEPJTNPEFMPT &JUJOHUPOF
PGSBODÐT FEFTDPCSJVTFBFYJTUÐODJBEFVNUFSDFJSPNPEFMPoPVSVHVBJP
O modelo francês era conhecido, e não mencioná-lo oficialmente constituía
uma enorme situação enganosa. Já o modelo uruguaio servia a uma realidade local
e, assim, sofria menos impacto de ataques extremos, pois a defesa institucional neste
caso se mostrava menos ativa. A aprovação institucional dos três modelos passou
pelo board com diferença de um ou dois votos. Isso pode demonstrar a complexida-
de da situação. Isso significa que uma grande instituição como a IPA tem suas defesas,
e a necessidade de muito tempo de elaboração e perlaboração para modificar algo,
para aceitar mudanças. Há uma dinâmica muito lenta nos seus processos internos.
Agora, o mundo exterior muda, e há fatores importantes como, por exemplo,
os socioeconômicos que tornam mais difíceis imprimir e manter a frequência clás-
sica. O mundo interior de nossas vidas também muda com uma complexidade que
temos que reconhecer. Porém, há fatores positivos que poderiam permitir repensar a
redução da frequência, como por exemplo: nos cem anos de psicanálise conhecemos
melhor os processos internos, temos uma variedade de instrumentos que facilitam
trabalhar. Isso seria um fator positivo na discussão em favor de possíveis mudanças.
Entretanto, há uma complexidade na situação que nós conhecemos muito bem: as
resistências que podem estar a serviço da redução da frequência. Há uma grande
complexidade na problemática. Há fixações à tradição histórica, um fator que não
é favorável à redução do número de sessões. Há fixação nas resistências e, por ou-
tro lado, há também um reconhecimento da realidade que sugere possível redução
da alta frequência. Temos dito que a rigidez nas regras pode prejudicar as relações
autênticas nas sociedades. Ao mesmo tempo, reconhecemos que há necessidade de
uma estrutura formalizada.
/BNJOIBQPTJÎÍPQFTTPBM FJTTPFVEJSFJOPNFVstatement à IPA PNBJTJN-
portante agora, nesse momento histórico da instituição, é proporcionar e desenvol-
ver uma intensiva discussão de intersigth (intercambio/movimento horizontal) entre
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W
Entrevistas 49
se apega ao seu analista. Recorda seu analista, recorda sua estória com o analista.
O analista é um objeto interior, mas diferenciado, e deve ser possível sua substitui-
ção. Precisa haver um processo de separação para o candidato encontrar-se como
dono de seu modelo; de seu modo de ser como analista. É uma operação de “higiene
mental”. Eu me recordo que no inicio da minha vida como analista, por vezes, me
descobri dirigindo-me aos meus pacientes de maneira muito parecida com aquela
que meu analista fazia, e eu sabia que precisava encontrar a minha maneira de ser,
minha autenticidade.
CAPÍTULO UM
Identidade
1
FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
Isso me traz à mente outra questão. Se eu tiver que olhar o céu para ver as
estrelas, tenho que saber que o céu está acima, que preciso de óculos, por exemplo,
se eu sou míope ou astigmático, senão não vejo nada. Então, preciso de alguma
condição necessária, como a escuridão, sem a qual não posso fazer. Quais são as
condições que a psicanálise precisa para permanecer na psicanálise – supondo que
estamos preocupados com a psicanálise que permanece na psicanálise? Quais são as
coisas que não devemos esquecer?
Primeiro de tudo, que o céu está necessariamente acima continua a ser visto,
porque o céu também está em baixo. Lembro-me de como fiquei impressionado, a
primeira vez que fui ao hemisfério sul e vi que havia um céu completamente diferente:
estava procurando pela Estrela do Norte, mas ao invés disso, vi o Cruzeiro do Sul. Então,
se imaginarmos perfurar um buraco na Terra – felizmente podemos imaginar qualquer
coisa na psicanálise – e, através do buraco ser capaz de ver o outro lado, o céu cairia.
Além dessa esquisitice, o que quero dizer é que tudo depende da perspectiva que
adotamos.
Por enquanto, não posso prever como será a psicanálise em um determinado
período de tempo; hoje e no futuro próximo, acho que para termos uma análise precisamos
de dois indivíduos e um setting. Eu acho que o mínimo necessário é isto: que haja um
analista, um paciente e um setting. Estou convencido de que um analista pode ser definido
como tal quando na companhia de alguém que aceita a posição de paciente, em um setting
que faz sentido manter. Fora desse arranjo não há analista: não sou um “analista” das 20h
às 7h59 do dia seguinte, 24h por dia. Eu acredito que a identidade do analista é algo que
é adquirida apenas na presença do paciente e dentro de uma configuração. Em qualquer
coisa que façam fora disso, somos pessoas que estudaram, pessoas com uma certa
perspectiva sobre a vida. Podemos usar ferramentas analíticas, pensando que isso nos
ajuda a entender melhor um filme, um livro, mas parece-me que alguém que tenha
ferramentas antropológicas ou sociológicas vai entende-los melhor. Meu ponto de vista
muito pessoal é que muitas vezes somos ridículos quando tentamos a psicanálise aplicada.
2
FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
Acho que a coisa em que não somos ridículos é ser psicanalistas: apenas nós, nosso
paciente e nosso setting. Então nos tornamos algo verdadeiramente importante: pessoas
que são capazes de lidar com o sofrimento mental de uma mente atormentada, para a qual
podemos certamente trazer alívio, ajuda e que podemos acelerar em direção a um
processo de cura. Obviamente, a cura é sempre relativa e sempre com letra minúscula,
mas esse é o nosso campo, essa é nossa especialidade.
Então, nós dois pertencemos a esse grupo de psicanalistas, e acho que são
uma maioria, que acreditam que a psicanálise é, sobretudo, cura. Como
dispensadores de cura, há mais de um século os psicanalistas têm questionado quais
são os fatores terapêuticos. Hoje, existem muitas outras ferramentas de cura
psicológica: terapias cognitivas comportamentais, construtivistas e sistêmicas. Eu
acho que é realmente importante, tanto para um novo analista em desenvolvimento
quanto para um analista que tem questionado por toda a sua vida, entender qual é
a função específica da psicanálise como ferramenta de cura. Qual é ajuda específica
que um analista pode dar àqueles que se voltam para ele?
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
deve ser substituído em breve. Os mundos que continuamente se abrem fecham durante
a sessão são conhecidos apenas por nós e pelo paciente, que são seus co-narradores.
Você não sabia que magia e dragões eram minhas paixões antes da
psicanálise, então você está me dando a próxima pergunta de bandeja. Quando e
como a análise se torna mágica?
1
O termo inglês “moles” pode significar tanto “sinal”, “mancha de pele”, como “[pele de] toupeira”,
“calças de trabalho (feitas com tecido forte de algodão)”. O autor faz um jogo de palavras entre as
manchas que parecem pelo de toupeira (animal manso) ou ovelha, depois, se transformariam em um
leopardo e, por fim, em uma pantera negra.
2
O termo “Black Panther”, também pode significar um membro de uma associação de extremistas negros
norte-americanos que lutam, usando violência, pelos direitos dos negros.
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grau de saúde mental que ela tem, a qualidade do funcionamento mental com aquele
paciente.
Diverte-me um pouco quando penso que afirmo não ser ortodoxo, pois certas
coisas que Bion concebeu continuam despertar em mim certa fascinação e a dar respostas
completas. Não vejo nenhum motivo para não usá-las. Em seus seminários, Bion diz que
em cada sessão sempre devemos dar ao paciente uma boa razão para voltar na próxima
vez. Em outras palavras, o paciente deve brincar, se divertir, aproveitar. É como as Mil e
Uma Noites, tem que haver uma função Scheherazade capaz de sempre contar novas
estórias, novos contos, novas metabolizações: um novo jogo. Deve ser um jogo, que às
vezes pode ser triste, às vezes feliz, às vezes engraçado, às vezes, trágico. Não estou
dizendo “jogo” para diminuir seu impacto emocional: um jogo pode ser algo realmente
sério. O paciente deve sempre receber de nós uma boa razão para vir no dia seguinte: é
assim que não se perde. Significa ativar sua curiosidade, o prazer da curiosidade.
CAPÍTULO DOIS
As regras do jogo
Já que estamos no assunto de jogos, a primeira coisa que você faz quando
começa a jogar é estabelecer algumas regras, sem as quais o jogo se torna outra
coisa. Comecemos fixando as regras que constituem nosso setting. Os britânicos
fazem cinco sessões por semana. Na Europa, geralmente, viajam “de carro”, em
quatro rodas. Na França, eles têm triciclos...
... ou o sidecar3.
Esta é uma questão muito complexa. Acho que a metáfora que você usou é
absolutamente relevante; de minha parte, o sidecar pode funcionar. Se possível, eu
evitaria empurrar a scooter porque isso me faz pensar que estamos em um desses
aparelhos de circo...
O monociclo?
O monociclo. Claro que é muito mais difícil manter o equilíbrio em uma bicicleta
ou monociclo. Eu não deixaria minha avó, que poderia quebrar um osso, sentar em uma
3
O sidecar é um dispositivo de uma única roda preso a um lado de uma motocicleta, resultando em um
veículo de três rodas.
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cadeira de uma perna só. Uma cadeira com duas pernas me perturbaria também. Então,
uma cadeira começa a ficar estável com três pernas. Mais é melhor quando você pode.
Podemos nos perguntar se é absoluto, obrigatório. Eu acho que há coisas que
devemos renunciar. A água ferve a 100 graus Célsius. Podemos usar qualquer truque
possível: é claro, subindo a Cordilheira dos Andes ou em algum outro lugar, é possível
que a água ferva alguns graus antes com um artifício, mas você não pode reinventar a
física. A água ferve a uma certa temperatura e eu acho que a mesma coisa se aplica à
fissão nuclear, você precisa de uma certa massa crítica para desencadear uma reação em
cadeia. Acredito que, na análise, é necessário que haja certa frequência para desencadear
uma reação em cadeia. O que exatamente essa frequência é, ninguém pode dizer, eu acho.
Quanto à minha experiência, eu sempre senti que com três ou quatro sessões algo começa
a trabalhar de maneira diferente, mais viva, de uma maneira que realmente permita uma
gradual renúncia aos aspectos da realidade, que são os que realmente temos que deixar
para ser analistas.
Você poderia fazer um trabalho analítico com duas sessões ou com uma? Sim,
obviamente, mas eu diria exatamente isso: um trabalho analiticamente orientado. Uma
pessoa pode ser ajudada em seu sofrimento mental até mesmo ao encontra-lo uma vez a
cada quinze dias ou uma vez por semana. É um trabalho legítimo. No entanto, este não é
um trabalho em que haja uma análise, no sentido de ser capaz de entregar do paciente, ou
o paciente ser capaz de desenvolver, as ferramentas que não tinha antes e das quais ele se
torna o dono certo. Se estamos falando de algo que é profundamente transformador, eu
diria que o acelerador de partículas deve ser definido para três a quatro sessões. Aqui eu
diria sem restrições excessivas, também pode ser feito com duas sessões, na segunda e
sexta-feira, não importa muito. Hoje, uma certa frequência é necessária, eu não tenho
ideia de como será nosso trabalho em 100 anos. Embora você ainda possa fazer um
brilhante trabalho, o que ajuda as pessoas que sofrem, mesmo uma ou duas vezes por
semana. Sim, certamente. No entanto, devemos nos resignar ao fato de que, talvez, sem
uma alta frequência, não seja uma reforma completa, de todos os eletrodomésticos da
casa, de toda a tubulação.
Costumava haver uma distinção que eu ainda considero basicamente válida.
Pode ser que nisto eu esteja fora do meu tempo, mas acho que é útil distinguir entre
psicanálise e psicoterapia, que sempre jogou muito, para ser honesto, no número de
sessões. Então, obviamente, se você me perguntar se eu preferiria fazer uma análise de
cinco sessões com um analista incompetente ou uma análise de duas sessões com Meltzer,
não tenho dúvida de que preferiria fazer uma análise de duas sessões com Meltzer, e eu
chamaria de análise. Se você me perguntar se eu preferiria fazer uma sessão por semana
com Ogden ou cinco sessões com um colega proto-arcaico-fundamentalista, o que espera
que eu responda?
Mas aqui estamos levando as coisas ao extremo: se estamos falando de um
analista médio que funciona bem, a frequência é importante. A frequência é importante e
faz parte das constantes que devem ser tão fixas quanto possível, e que pertencem ao
conjunto. Então, temos a frequência, a duração da sessão, a duração da análise no tempo,
a relativa estabilidade – que é um componente-chave, o ritmo. O ritmo é extremamente
importante, especialmente para os núcleos mais arcaicos que estão presentes em cada um
de nós, o mais primitivo, isto é, os núcleos autísticos. Não podemos nos aproximar dos
núcleos mais arcaicos – Bleger (1967) mencionou o núcleo aglutinado – com palavras;
terapia acontece através do ritmo, que é um dos aspectos mais importantes, relacionado
ao não-verbal, com a identificação projetiva, com outras coisas bem antes da palavra.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
Eu diria que é bem simples, porque pertence ao capítulo “setting”. Uma coisa
muito importante, mas raramente discutida, no capítulo do “setting” é a constituição que
damos. Isso também se aplica a jogar um jogo de cartas, quando você diz: “estas são as
regras pelas quais jogamos na casa. Você quer jogar segundo essas regras ou não?”. O
outro é livre para aceitar ou recusar. Da mesma forma, acho que, quando encontro um
paciente, compartilho com ele nossa constituição, que, uma vez assinalada, se aplica a
nós dois. Não é uma constituição feita por mim para os pacientes: nossa constituição é
algo ao qual eu também estou submetido. Por essa razão, se estabelecemos nossas regras
no início da análise, elas não poderão ser desconsideradas. Se eu aceitar que um paciente
não vai me pagar as sessões que ele falta, como vou pagar a hipoteca da minha casa?
Como posso me comprometer a pagar a hipoteca de minha casa, o pagamento do
financiamento do carro e a mesada de meus filhos que vão para a universidade? Então,
por que eu espero pagamento pelas sessões que o paciente falta? Eu faço porque eu
preciso disso para viver, não há nenhum aspecto punitivo ou educacional do tipo “com
isso, você não vai faltar as sessões”!
Se o paciente falta com muita frequência, isso significa que ou ele é tolo ou a
análise é tola. Se um analista consegue realizar uma análise bastante animada, o paciente
deve chegar dez minutos mais cedo porque não pode esperar para começar. A análise é
boa, é isso que ninguém entende. Continuamos falando de dor, sofrimento; o sofrimento
do analista, o sofrimento do paciente. Esta liturgia do sofrimento é tão monótona que deve
haver alguma coisa, ao menos, para se divertir. Se alguém tiver experimentando um
acontecimento trágico, obviamente, nesse momento, ele não terá nada para rir, porque,
digamos, talvez sua avó tenha morrido. O que quero dizer é que, mesmo que a avó tenha
morrido, em algum momento esse fato pode se tornar uma história triste escrita por
Blixen. A transformação da narrativa, da história, de algo pensável, é um passo que nos
faz sentir melhor em comparação com o evento bruto em si, de qualquer maneira. Quando
podemos transformar qualquer realidade de evento bruto ou fonte de sensorialidade bruta
em um conto, talvez acabemos em Gadda’s Acquainted with Grief, mas isso ainda é
melhor do que sentir sua cabeça sendo martelada. Assim o prazer da análise significa
apenas isso: ser capaz de transformar estados mentais desorientados, desorganizados e
fragmentados em uma história que, sinceramente, espero que seja tão divertida e
aventureira quanto possível. É claro que, de vez em quando, encontramos Gadda também,
e depois também cruzamos a história de Gadda, mas repito, e isso é importante, o prazer
da análise deve ser exatamente o mesmo que você sente na sala de jogos ou de ler Mil e
Uma Noites. O objetivo também é se divertir. O que eu sou alérgico é toda a ênfase na
dor. Alguma quantidade de dor é necessária, ela precisa ser suportada; se eu estou
tomando antibióticos, eu tenho que tomar uma injeção também, mesmo que doa: não é o
fim do mundo. E se eu perceber que meus antibióticos funcionam, voltarei para obter uma
nova dose amanhã.
De Freud até os dias atuais, a duração da análise se tornou muito mais longa
– de alguns meses a vários anos – e alguns dizem que é demais. A análise deve ser
mais curta ou não?
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Eu acho que uma análise deve durar o tempo suficiente. Não creio que haja
critérios objetivos de fim de análise. Percebo que estou fazendo um desvio, mas darei a
resposta de maneira indireta. Houve uma vez o famoso critério para terminar uma análise,
assim como havia critérios para tudo: havia, por exemplo, alguns critérios de
analisabilidade. Havia uma trilha bem sinalizada, com muitos sinais de trânsito.
Eu realmente não acho que haja critérios para terminar uma análise hoje; no
entanto, não tenho dúvidas de que em qualquer análise, em algum momento, muitas vezes,
de forma inesperada, sinaliza que está quase na hora de terminar. Portanto, acredito que
uma análise possa terminar após um dado momento, quando esses sinais apontam para
isso. Em ocasiões anteriores, descrevi quais poderiam ser esses sinais, mas me ocorre que
eles costumam ser a prova de que o paciente tem um kit de ferramentas bom o suficiente
para sobrevivência.
4
Esta questão foi levantada pela publicação das diretrizes do Instituto Nacional de Saúde da Itália sobre
o tratamento de crianças com autismo em 26 de janeiro de 2012, que promovem intervenções de
reabilitação em detrimento da psicoterapia. Como resultado, em vários países, incluindo a França e a
Itália, houve um acalorado debate sobre a relação entre psicanálise e autismo.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
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Já que você gosta de Star Trek, vamos pegar nossa espaçonave e entrar em
uma dimensão onde há um alter ego do Dr. Ferro que vem de uma família rica.
Felizmente, não sou seu paciente nesse mundo, já que estou me perguntando que
tipo de sorrisos e apertos de mão eu teria para lhe dar para compensar um pouco do
que você me deu. Não é assim?
Pode-se até revelar o segredo de que, às vezes, o paciente também cura o analista.
Não estou dizendo que há uma análise mútua, mas tenho poucas dúvidas de que, do ponto
de vista mental, o analista se beneficia do número de horas de análise que faz.
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Pode-se dizer que a doença mais comum dos analistas é a depressão, e que
muitos deles estão sendo curados por seus pacientes, ou não?
Por que não poderíamos dizer isso? É verdade, existem analistas que se sentem
doentes sem pacientes, que realmente têm um vício em pacientes, que se sentem bem
graças a pacientes. Eu acho que um analista deveria ter uma vida suficientemente
saudável para dizer: “eu ficaria bem, gostaria de ganhar três milhões de dólares na loteria
e não ter que trabalhar mais”. Não, não, não, eu não gosto disso, ter que depender de
pacientes, que precisa haver alguém que esteja doente para que ele esteja bem.
Segundo, creio que o analista deveria ter – dentro dos limites do humano e do
possível – uma vida suficientemente satisfatória. E se eu posso dizer isso, sexualmente
satisfatória também, porque, caso contrário, um problema está prestes a acontecer. Você
deve estar satisfeito com a sua vida, até mesmo de sair de férias e ficar feliz com isso. O
analista deve ficar contente se um paciente faltar uma sessão, feliz por poder fazer outra
coisa, tomar um sorvete ou comprar um livro. E ele não deve se sentir mal se não houver
pacientes, isso é inaceitável.
O principal efeito colateral foi o que aconteceu comigo quando uma amiga me
disse que o marido dela na época tinha um baixo nível de ferro no plasma e eu pensei que
ela queria me dizer que já fazia muito tempo desde que eu lhe fizera uma visita, por isso
o seu “nível de ferro” era baixo. O risco é estar sempre fechado em um modo analítico:
se um amigo, enquanto janta conosco, nos diz que, na noite anterior, ele comeu em um
restaurante terrível, talvez, pensemos que ele está reclamando sobre como fizemos o
risoto. Eu acho que o maior risco é o excesso de interpretação, é que o analista em algum
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
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momento possa vir a acreditar que ele pode interpretar o mundo, a realidade, o futuro,
enquanto ele só pode interpretar o que acontece na terapia psicanalítica.
Quando eu era candidato, uma vez testemunhei uma disputa entre dois analistas
em treinamento, de diferentes orientações, observando juntos a coxa branca do cavalo
pintada por Paolo Uccello. Um deles afirmou que a coxa do cavalo, o glúteo, não pode
ser mais que um seio: tão branco e redondo que só podia representar o seio; enquanto o
outro analista respondia: “não, olha, é tão musculoso que só pode se referir ao pênis!” Eu
estava ouvindo e fiquei bastante perplexo. Eu não gosto de psicanálise aplicada. Acredito
que a psicanálise possa ser aplicada ao paciente e nada mais, no máximo, sobre nós
mesmos ou ao par analítico. Eu não acredito que a psicanálise possa ser aplicada a
qualquer coisa fora da terapia. Além disso, vamos nos divertir, por que não? Se alguém
quiser aplica-la à trigonometria à interpretação de uma obra de arte, nada de errado com
isso, mas há aquela famosa piada sobre o sorriso de Mona Lisa que pode ser o sorriso de
uma mulher que soube que estava grávida ou o sorriso de uma mulher que descobriu que
não estava grávida.
Quero dizer que a psicanálise tem um campo específico: curar o sofrimento
mental. O objetivo do bisturi é cortar a barriga do paciente, mas podemos usar um bisturi
para cortar um pedaço de papel? Claro! Não é o uso para o qual foi feito, mas ninguém
está nos impedindo disso. Basta lembrar que usar o mesmo bisturi na barriga de um corpo
na rua é crime!
Eu acho que é algo absolutamente específico para cada pessoa como ser humano
de acordo com a realidade social em que ele vive. O mundo em que eu gostaria de viver
é um mundo onde todos pagassem seus impostos de acordo com o que ganham, sejam
eles analistas, barbeiros, açougueiros. Não vejo razão para que um analista tenha menos
obrigação do que um barbeiro ou mais obrigação. Se um barbeiro não paga seus impostos,
você não pode dizer que seus deveres são diferentes dos de um podólogo, embora um
cuide da cabeça enquanto outro cuida dos pés.
Ser analista é um trabalho como qualquer outro, como ser um pintor, então acho
que os analistas deveriam pagar seus impostos como todo mundo. Se alguém se encontrar
em circunstâncias em que o pagamento de todos os seus impostos o deixaria faminto, seu
bom senso dirá que evite os 20% que lhe permitiriam comer, mas se ele puder pagar a
todos, isso será melhor para todos. Isto é, isso não parece uma categoria para a qual existe
uma regra especial, de modo que o pagamento de impostos teria um significado
simbólico, especial e diferente para os analistas. Você paga impostos porque existem
agências de aplicação da lei, há um serviço de receita e espera-se que você, como cidadão
italiano ou tcheco, contribua para o funcionamento da comunidade também.
Eu, certamente, adoraria pagar impostos como eles pagam na Finlândia, onde
todos pagam caro e pagam todos eles, mas há uma análise gratuita, desde que você
precise, por anos a fio. Uma vez, fui convidado para jantar com cinco ou seis colegas
escandinavos, e assinei para cada um deles um pedaço de papel porque eles estavam
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
dividindo os custos de meu jantar entre eles; minha assinatura era suficiente para garantir
que, de fato, um sexto de meu jantar fosse pago por cada um dos presentes.
Não, não me parece que os analistas sejam uma categoria que precisa ser
protegida, nem vilipendiada, e então eu não traria a imagem do superego quando se fala
sobre impostos; você paga seus impostos porque precisa.
CAPÍTULO TRÊS
COMEÇOS
E agora vamos deixar o contador para voltar ao escritório e encontrar nosso
paciente pela primeira vez. A primeira entrevista. No início da formação, ficou bem
claro para mim que as entrevistas de consulta eram a parte mais fácil do trabalho.
Na Itália, os psicólogos que não são psicoterapeutas especializados podem fazê-las
legalmente e, muitas vezes, os internos e os trainees fazem as entrevistas iniciais na
saúde pública. Mesmo na literatura analítica que estudei, os livros falam de uma
fase inicial, que deve ser curta o suficiente, que antecede a neurose de transferência.
Só estou falando o que eu li: relata refero!5. E, aqui, eu pensei que essa seria
a parte fácil, enquanto a tempestuosa deveria vir depois. Por causa da perda de
pacientes, eu aprendi, em primeira mão, que a primeira entrevista é realmente
central. E eu acho que, em particular, a análise com adolescentes nos ajudou a deixar
para trás a ideia dessas duas, no máximo, três entrevistas, e a tomar o nosso tempo,
conseguindo finalmente no devido tempo a construção do cenário. Como
poderíamos repensar essas primeiras entrevistas? A parte que vem antes da
constituição, a construção da constituição.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
brilhantemente que temos que ser capazes de sonhar com o paciente aquelas coisas que,
sem sonhar, se tornam sintomas. Precisamos ter lido Freud para entender isso? Pode ser
que, antes de alcançar essa simplicidade elementar, o pobre Ogden tivesse que ler Freud
ou talvez o analista de Ogden tivesse de ler Freud, e então, talvez, Ogden tivesse que ler
Winnicott. No entanto, quando Ogden nos diz isso, precisamos começar de novo a partir
do caso do Homem dos Ratos ou podemos começar a partir dessa situação que Ogden nos
diz e seguir daí? Por que devemos perder nosso tempo? É tão elementar, temos que
transformar em sonho aquilo que, não transformado o suficiente, se torna sintoma, é
preciso transformar o sintoma em sonho.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
mas foi uma análise em todos os aspectos, uma análise muito normal. O que importa é
saber jogar.
Por esse motivo, gostaria de formalizar – embora nem todos concordem e, por
isso, não sei se isso acontecerá – que não há diferenças entre a análise de adultos, crianças
e adolescentes. De fato, podemos aprender a ver nas crianças os aspectos infantis que
estão dentro de nós e dentro dos pacientes. Dos adultos, podemos aprender a ver os
aspectos mais estruturados. Claramente, um analista infantil estará muito menos
preocupado com uma possível infração do setting pelo paciente, porque ele não o
perceberá como um ataque, mas sim como um modo de comunicação e, acima de tudo,
como um jogo. Juntos, podemos brincar com qualquer coisa, não há uma coisa com a qual
não possamos brincar.
O analista terá que se perguntar por que isso acontece e o que isso significa:
obviamente, o analista deve possuir uma mente capaz de pensar e questionar o que está
acontecendo e tentar produzir um significado que possa ser expresso ou não; o que fazer
então do que se realizou depende de inúmeras variáveis.
Parece que Freud escolheu sentar-se atrás do divã do paciente porque não
suportava um dia inteiro de olhares. Então, talvez, o divã seja conveniente para o
analista, não é?
Não tenho dúvidas, acredito que ter o paciente no divã é o que funciona melhor,
bem como a situação mais conveniente para o analista! De fato, Freud teve a ideia do divã
porque não suportava ser olhado pelos pacientes o dia todo. O divã, graças ao qual não
há interação face a face, permite ao paciente deixar sua mente vagar, de modo que os
pensamentos e fantasias possam flutuar. O mesmo vale para o analista, que pode deixar
de lado a realidade e acessar mais facilmente um mundo de fantasia, de associação, de
caminhos mentais, de narrativas, livre do impacto com a realidade.
Em suma, não creio que o uso do divã seja crucial na análise, que acho que pode
ser realizado em muitas posições diferentes. Obviamente, é sempre importante perguntar
por que um paciente prefere estar em uma posição e não em outra. Por exemplo, é muito
difícil para os pacientes com sofrimento mental grave deitarem no divã, porque, ao fazê-
lo, sua mente vagueia um pouco longe demais da realidade em mundos que, geralmente,
são persecutórios. Lembro-me de um paciente que uma vez me disse que tinha um sonho
em que havia um leão atrás dele, pronto para ataca-lo a qualquer momento.
Outro paciente, depois de finalmente concordar em deitar no divã, sonhou que
estava em um berço feito de lâminas afiadas que o cortava e o fazia sangrar. Então, eu
não acho que deitar no divã e começar uma jornada como Star Trek para universos
desconhecidos seja fácil para todos. Há pacientes que precisam começar sua jornada no
divã e não abordo da Enterprise, visitando os arredores de sua cidade antes de explorar
outras cidades, ou talvez visitando outros mundos ou galáxias. Então, como eu disse, é
comum encontrar pacientes que não querem se deitar no divã, e é possível trabalhar com
eles face a face em uma variedade de situações.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
sentir sozinho, não! É só que eu fico entediado, ou seja, para poder funcionar e brincar,
para trabalhar e sonhar, depois de um tempo preciso de algum contato.
Portanto, há uma ideia subjacente, a ideia de que, após cinco minutos, o par
se separa.
Sim.
Porque a função analítica do par, na pessoa do analista Ferro, precisa de
contato.
Em um dia quente, você pode deitar na cama com sua namorada, mas, depois de
dez minutos na cama, eu vou procurá-la! Mas, se ela estiver dormindo, vou deixa-la
dormir.
Existe uma função de contato, na minha opinião, ou seja, é preciso manter
contato para fazer as coisas. Então, geralmente, eu espero pelo paciente começar a sessão,
depois do quinto ou quarto minuto – o que deveria ser ainda mais cedo – o terceiro minuto
em que digo “então?” ou “o que há hoje?”, “por que tão quieto?”
Eu não sei sobre a última palavra, nunca considerei a questão de quem tinha
direito à última palavra. No entanto, eu costumo dizer a ele: “até a próxima”. Sim, deixei
que ele terminasse com o discurso dele.
O que quero dizer é que talvez não seja apropriado fazer uma interpretação
ou comentário ao encerrar a sessão.
Se você, como alguns amigos meus, tem um filho morando na Suécia, ou como
alguns outros em Cingapura, então é normal vê-lo várias vezes por semana via Skype.
Não vejo por que deveria ser diferente para o analista. Uma vez lá estava o telefone e era
isso, mas agora muitas comunicações acontecem via mensagem de texto. Acredito que há
uma parte imutável do setting, certas estruturas básicas e, depois, uma parte culturalmente
variável. Se daqui a cem anos tivermos hologramas de nós mesmos que poderemos enviar,
faremos análise via hologramas; onde está o problema?
Se um paciente me enviar uma mensagem dizendo que ele chegará quinze
minutos atrasado, eu respondo “ok”. Certamente, não mantenho longas discussões via
texto, não faço interpretações por telefone, mas posso responde-lo “ok” ou se alguém me
contatar pela primeira vez por e-mail, eu respondo: “caro senhor, você poderia me ligar
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
depois das 21h de segunda a quinta?” Isso não é pecado, se você usa lógica e inocência.
Eu não seria um analista excessivamente preocupado, que vê tudo como um pecado.
“Omnia munda mundis!” O padre Cristoforo diria: tudo é puro para o puro.
... uma vez na vida. Assim, a discrição dos analistas, obviamente, assume
um papel muito diferente. Agora estou lhe perguntando: até que ponto você pode
agir em uma análise e quais são os limites a ter em mente?
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Latim: “com o grão de sal, com um pouco de bom senso e ceticismo”.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
Sim, mas quando levamos a realidade a sério, pouco antes disso, desligamos o
setting. A realidade pode entrar quando a configuração está desativada. Se houvesse um
terremoto, seria tolice ficar ali parado e tentar interpretar o choque que a criança sentiu
quando se afastou do mamilo da mãe – seria absurdo, em qualquer caso, dizer tal coisa
mesmo sem o terremoto – mas vamos imaginar que haja um terremoto: o que dizemos ao
paciente, o que fazemos? Esperamos e, se houver um segundo tremor, saímos. Nessa
ocasião, embora desliguemos o setting, não somos mais analistas e pacientes, somos dois
indivíduos assustados que precisam sair da sala com segurança.
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.
Se um paciente entra com uma hemorragia nasal, o que fazemos, não lhe
entregamos um lenço, uma toalha?
Um pouco como dizer, vamos desligar a configuração, mas não vamos nos
desligar!
Sim, não devemos desligar o paciente. Você negar uma toalha a um paciente que
vem completamente encharcado no inverno? Essas coisas são coisas que têm a ver com
bom senso; eu nunca deixaria o senso comum e as boas maneiras fora da sala de análise.
Um paciente me diz que ele está com frio. Eu interpreto a distância que ele
sente entre nós ou eu ligo o aquecedor?
Se eu tiver um, ligo o aquecedor, sem dúvidas. O que eu estou pensando é uma
questão diferente, é claro, as coisas não param por aí. Se estamos na sala de análise, por
que não devo ligar o aquecedor, se o tenho e o uso? Claro, eu me pergunto por que o
paciente me disse que quer o aquecedor hoje às duas e meia, mas não ontem, do que ele
está falando, se está me dizendo que está cansado, se está me dizendo que está se sentindo
doente, se ele está me dizendo que ele está se sentindo com frio. Eu não diria todas essas
coisas a ele, coitadinho, tentaria entender: o que ele quer me dizer com esse pedido?
Um paciente me diz: “estou morrendo de sede!” Imagine se eu respondesse:
“você está me dizendo que desde que não nos vimos por vários dias, a sessão seria como
um oásis, e você atravessou o longo deserto do fim de semana, então você está
desidratado?”, eu poderia dar a ele um copo de água sem barulho, e depois com o tempo
e reflexão, vamos entender por que isso aconteceu.
Há uma linguagem de gíria siciliana, que pode ser inadequada para um livro.
Traduzido, seria “tocar o seu fundo com sua camisa”. Se Maria está tocando seu fundo
com sua camisa, significa que ela não pode tocá-la com as mãos, que precisa fazer tudo
com luvas brancas, que não consegue entrar em intimidade, que sempre precisa de
distância. Não creio que o analista deva “tocar seu fundo com a camisa”, que ele deveria
ter uma fobia de contado. Ele não deveria ter uma fobia de contato emocional nem uma
fobia de contato físico. Se um paciente no final da análise lhe der um beijo na bochecha,
você apenas o recebe e sorri; eu, definitivamente, evitaria aspectos fóbicos.
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