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Semana de Aniversário do Psicanálise

dos Mundos Possíveis (2023)

TEXTOS QUE
TODO PSICANALISTA
DEVERIA LER

sobre nosso ofício

PSICANÁLISE DOS MUNDOS POSSÍVEIS


(SELEÇÃO)
1
VOCAÇÃO PROFISSIONAL

Meu jovem amigo,

Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão. Você estaria procurando
neste livro alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar psicoterapeuta. E
estaria perguntando: antes de começar uma formação que vai durar no mínimo uma década e
custar uma nota preta, será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo?

É uma ótima pergunta. Para ser um bom psicoterapeuta, é úti l que a gente possua alguns
traços de caráter ou de personalidade que, dito aqui entre nós , dificilmente podem ser
adquiridos no decorrer da formação: melhor mesmo que eles estejam com voc ê desde o
começo.

Um exemplo, só para começar.

Meu pai era médico, internista e cardiologista, mas funcionava, para muitos de seus
pacientes, como o médico da família. A c ada ano, no Natal, na Páscoa e no dia de São José
(ele se chamava Giuseppe), nossa casa se enchia de presentes. Mas enchia mesmo: a sala era
abarrotada de caixas de vinhos e liquores , panetones , doces , cestas de frutas exóticas, sem
contar a prataria e os objetos variados de decoração, as canetas, as agendas e os conjuntos
para escrivaninha. Nos últimos dias antes da festa, a campainha não parava de tocar. Nós,
crianças, tínhamos a função e o privilégio de abrir os pacotes , deixando cuidadosamente os
cartões que os acompanhavam, para que meu pai pudesse responder agradecendo.

Pois é, se eu tivesse escolhido a profissão de psicanalista e psicoterapeuta para receber a


mesma variedade e fartura de presentes, minha vida seria um fracasso. Você pode querer ser
médico ou coisa que o valha porque é essencial para você ser olhado com gratidão e respeito
por seus pacientes e pelos outros em geral. Claro, todo o mundo gosta disso, não é? Mas há
sujeitos para quem é crucial ser constantemente o objeto de uma veneração amorosa.

Quer saber por quê? Pense, por exemplo, no olhar de uma mãe para um caçula que teria
nascido depois da morte do pai. Desde seu primeiro vagido, esse filho seria, para a mãe, ao
mesmo tempo uma compensação e um memorial do marido que el a perdeu; el e seri a objeto
de veneração e de eterna gratidão a Deus.

Escolho esse exempl o porque foi o caso, justamente, de meu pai : ele nasceu quatro meses
depoi s da morte do seu pai (meu avô). Obviamente, não é is s o que fez dele um grande
médico. Mas , na escolha de sua profissão, deve ter contado a necessidade de repetir a
experiência inicial do olhar adorador de sua mãe. Essa necessidade também deve ter contado
na sua capacidade de ganhar uma gratidão que não se resolvia no pagamento dos honorários
e, portanto, se expressava naquelas orgias festivas de presentes.

Pois bem, se, por alguma razão (que não precisa ser a mesma do meu pai), é
importante para você se alimentar no reconhecimento e no agradecimento infinitos dos outros,
então não escolha a profissão de psicoterapeuta. Por duas razões.

Primeiro, na vida social, o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espéc i e de
gratidão que, no geral, é reservada ao médico (como um agradecimento preventivo, caso
acabemos em suas mãos). O psicoterapeuta encontra uma atitude (nem sempre escondida por
trás da polidez dos costumes) que é uma mistura de temor com escárnio. Funciona assim, ao
redor das mesas de jantar: “Puxa, este cara, aqui ao meu lado, é psicocoiso; vai ver que ele
sabe ou entende sobre mim e minhas motivações mais do que eu mesmo sei e certamente mais
do que eu gostaria que os outros soubessem.” A medida protetora mais banal é o ataque: “Ah,
você é psicanalista? Justamente acabo de ler uma matéria, onde é que era?. sabe, daqueles
americanos que provam que a psicanálise é uma baboseira, você leu?”

Segundo, o psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes. Nada de presentes
no Natal, na Páscoa ou nas outras festas. Nas curas que proporciona, o psicoterapeuta é, por
assim dizer, el e mesmo o remédio. E, nos melhores dos casos , quando tudo dá certo, ele
acaba exatamente como um remédi o que a gente usou e que fez seu efeito: uma caixinha
aberta, com as poucas pílulas que sobraram, no fundo do armário do banheiro. A caixinha é
guardada durante um tempo, porque nunca se sabe; um dia a gente a encontra, não se lembra
mais qual era seu uso, constata que, de qualquer forma, o remédio está vencido e joga fora. E
é bom que seja assim.

Tento explicar-lhe por quê.

Em regra, idealizamos nossos profissionais da saúde (médicos, enfermeiros , fisioterapeutas,


acupuntores, dentistas, eutonistas, psicoterapeutas, a lista é longa).

Quando os consultamos, levando-lhes nossas dores, depositamos neles toda nossa confiança,
porque imaginamos, supomos que eles saibam sobre nós e nossos males exatamente o que é
preciso para que eles possam nos curar. É bem possível que essa confiança sej a excessiva,
mas, mesmo em seu excesso, ela é útil para que uma cura funcione.

Acreditar no médico que nos prescreve um remédio ‘ não é tudo, claro; ainda é preciso que
ele prescreva o remédio certo. Mas é bem provável que, para quem acredita em seu médico,
aumentem as chances de que o remédio prescrito sej a eficaz, de que o paciente não cai a na
percentagem estatística dos que (sempre existem) não obtêm efeito algum com o remédio.

A importância da confiança para que as curas funcionem val e provavelmente para todas as
profissões da saúde. E vale mais ainda no caso da psicoterapia.
Então, por que o psicoterapeuta não poderia esperar o tipo de víncul o duradouro e afetuoso
que garante panetones, vinho e outros presentes nas festas?

Voltarei sobre isso em outras cartas, mas, desde já, aqui vai: nenhuma psicoterapia, seja ela
qual for, deveri a almejar a dependência do paciente. Como disse antes, na psicoterapia, o
terapeuta funciona um pouco como o remédio. Ora, transformar a confiança inicial numa
eterna admiração e gratidão seria como substituir uma doença por uma toxicomania: você não
tem mais pneumonia, mas tem uma necessidade visceral de tomar e venerar antibióticos. Ou,
ainda, seria como curar um alcoolista tornando-o heroinômano.

De fato, se a psicoterapia faz seu efeito, o paciente para de idealizar o terapeuta. Tudo isso
apenas para dizer que, se você gosta da ideia de ser um notável na cidade e de se sentir
amado, a psicoterapia talvez não seja a melhor escolha profissional para você.

Só uma nota à margem, para ser sincero. Há terapeutas que, aparentemente, cultivam o amor,
a admiração e a gratidão de seus pacientes acima de tudo. Eles parecem se importar mais
com isso do que com a eficácia das curas. Ou seja, há terapeutas que escolheram a profissão
com uma boa dos e daquel a vontade de ser amado e admirado, a mesma que, acabo de lhe
dizer, talvez seja uma contraindicação para o exercício da profissão.

Pois bem, devo lhe confessar que alguns desses terapeutas podem ter o maior sucesso: eles
se tornam frequentemente, aliás, chefes de escolas e (talvez empurrados pela necessidade de
ser admirados ) podem vir a ser teóricos brilhantes e inventivos . Seus consultórios são,
eventualmente, abarrotados, mas eles devem seu sucesso profissional ao amor e à admiração
que nunca se esquecem de alimentar em seus pacientes. De fato, pela experiência acumulada,
pelo talento e pela capacidade de inspirar confiança, eles são, em geral, ótimos terapeutas no
começo das curas . Mas os tratamentos que dirigem duram para sempre, transformam-se em
dependências químicas. Não é raro que esse tipo de terapeuta considere e vivencie mesmo o
fim ou a interrupção de uma cura como uma espécie de traição amorosa de seu paciente.

Essa perpetuação das curas não é o único problema.

É fácil reparar que, em quas e todas as orientações da psicoterapia, a históri a da disciplina


não é feita de discussões, confrontação de ideias e resultados, interrogações e pesquisas, mas
se apresenta como um vaudevilie (nem sempre engraçado), em que se alternam fiéis e infiéis,
lugar-tenentes e traidores . Ou seja, é uma históri a de amores , desamores e ódios pessoais.
Nisso, aliás, a psicanális e ganha o prêmio. Poi s é, tudo isso tem uma origem comum: os
chefes de escola vieram à psicoterapia como crianças decididas a viver para sempre com a
agradável sensação de ser objetos insubstituívei s de amores e gratidões maternas. E
delegaram a tarefa de manter essa ilusão a alunos e pacientes.

Por isso, insisto. As psicoterapias, em geral, se beneficiariam muito com algumas décadas de
menos brilho, menos neurose de seus chefes e mais cuidado com os pacientes. Portanto, por
favor, se sua personalidade pede amor e admiração ao mundo, invente uma crença, torne-se
médico, mas, pelo bem das psicoterapias, desista. Ou então (mas este é um caminho longo),
antes de se autorizar a ser psicoterapeuta, faça o necessário para mudar mesmo.

Mas deixemos as razões de desistir e vamos ao que importa. Esta carta deveria tratar dos
traços de caráter que eu procurari a em quem quisesse se tornar psicoterapeuta. Não sei
decidira ordem, mas todos estes eu gostaria de encontrar:

1) Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes
que sejam de você. Proponho-lhe um teste um pouco difícil, mas, afinal,
você deve tomar uma decisão importante: bata um papo com dois ou três moradores de rua,
aproxime-se, deixe-os falar o que, em geral, ninguém escuta (salvo justamente os
psicoterapeutas dos Centros de Atenção Psicossocial). Se você conseguir escutar, digamos,
uma hora, sem que o discurso (quase sempre desconexo) abale sua atenção, e se não recuou
instintivamente quando eles passaram uma mão encardida na sua camisa ou direto no seu
braço, passou no teste. Repita, se possível , com outras amostras : pacientes psiquiátricos
numa enfermaria ou num hospício, pacientes terminais num hospital geral e pessoas assoladas
por um luto.

Sei, claro, que são provas que podem parecer estranhas e extremas, sugeridas por alguém
(eu, no caso) que tem desde sempre uma simpati a (senão uma atração) pelas sarjetas do
mundo. Mas minha intenção é prevenir. Vej a bem, eu me formei numa escol a de gente
engravatada ou, então, alardeando camisas de seda modelo Revolução Cultural Chinesa.
Alguns anos depois de ter começado minha prátic a de psicanalista, decidi trabalhar durante
um tempo (foram dois anos ) num IME (Instituto Médico Educativo) do norte da França, em
Le Havre. Eu seria terapeuta de crianças que só tinham em comum o traço seguinte: todos - os
pais, a assistência social, a escola - haviam desistido delas. Durante a visita preliminar para
obtero emprego, sentei no páti o da instituição, contemplando a estranha agitação ao meu
redor. De repente, um menino, bonito e inquietante pel o olhar esbugalhado, vei o até mim,
subiu no meu colo (eu pensei: legal, ele me acha simpático, não é?) e começou a comer meu
rosto. Não eram mordidas , eram chupadas largas , de boc a aberta, nos olhos , no nariz, nas
bochechas; num instante, minha cara estava coberta de uma saliva espessa que tinha o cheiro
e o gosto inconfundíveis de café com leite, ruim como só a instituição psiquiátrica consegue
fazer. Durou uma eternidade, e eu deixei, até que ele mesmo, talvez estranhando que eu não o
afastasse nauseado, parou e ficou me olhando. Passei a mão na cabeça dele, devagar, para
não assustá-lo, num gesto que queri a dizer: está bem, entendi que este é seu jeito de falar,
esta é (literalmente) sua “língua”, pode falar comigo. O diretor da instituição, que estava
sentado ao meu lado, comentou: bom, acho que você foi aprovado. E pensei o seguinte: isso
deveria ter acontecido comigo muito tempo atrás, antes de começar minha formação, quando
ainda daria para desistir. Por sorte, passei nesse teste tardio.

2) Uma extrema curiosidade pel a variedade da experiência humana com o mínimo possível
de preconceito. Voc ê pode ter crenças e convicções . Aliás, é ótimo que as tenha, mas, se
essas convicções acarretam aprovação ou desaprovação morais preconcebidas das condutas
humanas, sua chance de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida, para não dizer nula.

Explico melhor. Você pode ser religioso, acreditar em Deus, numa revelação e mesmo numa
ordem do mundo. No entanto, se essa fé comportar para você uma noção do bem e do mal que
lhe permite saber de antemão quais condutas humanas são louváveis e quais condenáveis, por
favor, abstenha-se: seu trabalho de psicoterapeuta será desastroso.

A preocupação moral não é estrangeira ao trabalho psicoterápico, mas, para o terapeuta, o


bem e o mal de uma vida não se decidem a parti r de princípios pré- estabelecidos ; eles se
decidem na complexidade da própria vida da qual se trata.

Um mesmo sintoma pode será razão do sucesso ou do fracasso de uma existência.


Se você sofre de insônia, porque, por exemplo, sua história o condena a ser para sempre a
sentinela da casa, pode acontecer que você se torne o responsável noturno mais confiável de
uma central nuclear ou, ao contrário, que voc ê atravesse a vida de café em café, numa luta
extenuante contra o sono que, obviamente, sobra para o dia. Em suma, a insôni a não é nem
ruim nem boa. Agora aplique a mesma ideia ao caso de uma preferência ou de uma fantasia
sexual e entenderá que um terapeuta que tivesse um juízo moral preconcebido sobre a tal
fantasia ou preferência não teria condição de respeitar a singularidade de seu paciente.

Você poderia perguntar: mas será que não há condutas que eu posso julgar desprezíveis, seja
qual for seu lugar, origem e função na vida de meu paciente? O que faço, se meu trisavô era
Zumbi dos Palmares, e alguém se apresenta, me conta que odeia negros e orientais, acredita
na supremacia da raç a branca e quer ajuda porque (o exemplo é real ) só consegue desejar
corpos dessas outras raças? Pois bem, de duas uma: ou você pode escutar esse paciente sem
juízo moral preconcebido (mas sem, mesmo) ou, então, é um limite, um caso do qual você
não pode se ocupar. Encaminhe para outro terapeuta que talvez tenha limites diferentes.

É fácil entender que, se você tiver opiniões morais prontas sobre a metade dos atos possíveis
nesta terra, é melhor deixar a profissão de terapeuta para quem tem mais indulgência pela
variedade da experiência humana.

3) Este ponto é controvertido: além de uma grande e indulgente curiosidade pel a variedade
da experiência humana, eu gostari a que o futuro terapeuta já tivesse, nessa variedade, uma
certa quilometragem rodada. Claro, sei que Freud era, ao que parece, bem certinho, e isso
não impediu que ele se tornasse capaz de lidar como terapeuta (e não como moralista) com
sintomas e fantasias sexuais que sua época condenava radicalmente. Também não impediu a
“descoberta” da existência da sexualidade infantil, da qual ninguém queria sequer ouvir falar.
Como ele conseguiu? É que, na sua própri a análise (ou autoanálise que fosse), el e soube
encontrar fantasias e desejos que não eram muito distantes dos que animam vidas estranhas e
reprovadas socialmente. El e aprendeu, em suma, que é difícil, senão impossível , encontrar
“desvios” pelos quais ao menos uma parte de nossa mente não se tenha engajado em algum
momento.
Por que qualquer terapeuta não faria o mesmo? Acontece que duvido que a coragem analítica
de Freud possa ser compartilhada por muitos. Por isso, prefiro contar com a experiência
efetiva, ou seja, gostari a que a capacidade de considerar a variedade das vidas e das
condutas com carinho e indulgência vies s e ao terapeuta da variedade “animada” de sua
própria vida.

No cas o de Freud, essa exigência teria sido inútil e enganosa. Mas, como considero Freud
uma exceção, na hora de escolher um terapeuta, minha preferência iri a para alguém que não
fosse um cartão-postal do conformismo.

Portanto, se você estiver hesitando em escolher a profissão de psicoterapeuta só porque, por


uma razão qualquer, voc ê não é um model o de normalidade, esqueç a es s a preocupação.
Claro, é possível que voc ê ainda encontre no seu caminho instituições de formação muito
preocupadas em não comprometer sua aura de respeitabilidade social . Até pouc o tempo
atrás, por exemplo, havia instituto de formação de psicanalistas que consideravam que um ou
uma psicanalista não poderiam ser homossexuais. A j ustificativa era que os tais sujeitos não
teriam chegado à suposta “maturidade genital”, ou seja, àquel e estágio (mas seria melhor
dizer àquel e estado) da sexualidade em que as pessoas transariam só para fazer filhos,
direitinho. Provavelmente tratava-se sobretudo de fazer bonito aos olhos da sociedade bem
pensante, cujos membros são, afinal os “melhores ” pacientes (ou seja, neste caso, aqueles
que podem pagar mais). A prova disso é que os mesmos institutos, durante anos , recusaram
dar formação a candidato que tivessem algum tipo de deformidade física. Diziam que os
defeitos visíveis impediriam que os pacientes idealizassem seu terapeuta, como é necessário
que aconteça inicialmente, para que a cura funcione.

Os psicanalistas eram, no começo da história da psicanálise, um bando de tipos excêntricos,


marginai s da medicina e das ciências sociais. Entende-s e que alguns ficassem ansiosos em
ganhar cartas de recomendação para os clubes dos notáveis, normais e bonitos. Mas não se
entende que essa fachada de normalidade possa ser, hoje, um critéri o na hora de selecionar
candidatos para formação.

Enfim, se sua vida sexual for um pouc o colorida e voc ê esbarrar numa instituição que
condena seu desejo, não hesite, passe longe, siga em frente e procure outra instituição.
Lembre-s e de duas coisas . Primeiro, um psicoterapeuta (e ainda mai s um psicanalista) que
define uma conduta como “desvio” não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome
da psicanálise. Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social, quer seja em
nome de seu esforç o para reprimi r nel e mesmo o desej o que parece condenar. Segundo, e
mai s geral , quem estigmatiza categorias universais, como “os homossexuais”, “os
sadomasoquistas”, “os exibicionistas” etc., é um atacadista, enquanto a psicanálise trabalha
no varejo: a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares.

4) O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose
de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está “muito bem, obrigado”, por
duas razões.
Primeiro, uma parte essencial da formação de um terapeuta que trabalhará com as motivações
conscientes ou inconscientes de seus pacientes consiste no seguinte: o futuro terapeuta deve,
el e mesmo, ser paciente durante um bom tempo. Certo, é possível , aparentemente,
submeter-se a uma terapi a ou a uma psicanálise só por razões didáticas , para aprender o
método ou, como dizem alguns, para se conhecer melhor. Mas insisto no “aparentemente”,
pois, de fato, é improvável que uma psicanálise aconteça sem que um sofrimento reconhecido
motive o paciente. O processo não é necessariamente desagradável , mas pede uma
determinação e uma coragem que podem falhar mai s facilmente em quem não precis a de
tratamento. Por que diabo me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça, lugares
malcheirosos e arriscados, se eu não for empurrado pel a vontade de resolver um conflito,
acalmar um sintoma e conseguir viver melhor? Uma terapia puramente didática é geralmente
uma simulação de terapia.

E eis uma segunda razão para preferir que o futuro psicoterapeuta traga consigo uma boa dose
de sofrimento psíquico e precise se curar. Durante os anos de sua prática clínica, no futuro,
muitas vezes voc ê duvidará da eficác i a de seu trabalho. Encontrará pacientes que não
melhoram, agarrados a seus sintomas mai s dolorosos como um náufrago a um salva-vida;
viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão alfinetes de
brinquedo agitados em vão contra forças imensamente superiores . Nesses momentos (que,
acredite, serão frequentes) será bom lembrar que voc ê sabe mesmo (e não só pelos livros)
que sua prática adianta. Sabe porque a prática que você propõe a seus pacientes já curou ao
menos um: você.

Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são
um pouc o (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com
carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se
não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado
pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia sej a uma profissão para
você.

Abç.
Int J Psychoanal (2009) 90:311–327 doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00130.x

Sobre tornar-se um psicanalista

Glen O. Gabbard e Thomas H. Ogden


Baylor College of Medicine – Psychiatry, 6655 Travis Street, Suite 500,
Houston, Texas 77030, USA – ggabbard12@aol.com; dtrees@bcm.edu

(Data da aceitação final – 12 de Novembro de 2008)

A oportunidade e a responsabilidade de tornar-se um analista nos seus próprios


termos surgem no decorrer dos anos de prática que seguem a conclusão da
formação analítica formal. Os autores discutem seu entendimento sobre algumas
das experiências de amadurecimento que contribuíram para torná-los analistas nos
seus próprios termos. Acreditam que o elemento mais importante do processo de
seu amadurecimento como analistas seja o desenvolvimento da capacidade de fazer
uso do que é único e idiossincrático em cada um deles; cada um, em seus melhores
momentos, conduz-se como um analista, de uma maneira que reflete seu próprio
estilo analítico, sua própria maneira de estar com seus pacientes e de falar com
eles, sua própria forma da prática da psicanálise. Os tipos de experiências de
amadurecimento que os autores analisam incluem situações nas quais aprenderam
a ouvir a si próprios falando com seus pacientes e, assim fazendo, começaram a
desenvolver uma voz própria; experiências de crescimento que ocorreram em um
contexto de apresentação de material clínico a um supervisor; fazer uso auto-
analítico de sua experiência com seus pacientes; criar / descobrir a si mesmos
como analistas na experiência da escrita analítica (dando atenção especial à
experiência de amadurecimento envolvida na escrita do presente artigo); e
responder à necessidade de continuar mudando, para ser original em seu
pensamento e comportamento como analistas.

Palavras chave: desenvolvimento, história da psicanálise, educação psicanalítica.

Poucos de nós sentimos que realmente sabemos o que estamos fazendo quando
completamos a nossa formação psicanalítica formal. Nós nos debatemos.
Lutamos para encontrar a nossa „voz‟, o nosso 'estilo' próprio, um sentimento de

1
que estamos comprometidos com a prática da psicanálise de uma maneira que
leva a nossa própria marca:
É apenas depois de se ter qualificado [como um analista] que se tem a chance de
tornar-se um analista. O analista no qual você se torna é você, e somente você; a
singularidade de sua própria personalidade tem que ser respeitada - isso é o que
você usa, não todas aquelas interpretações [aquelas teorias que se usa para combater
o sentimento de que você não é realmente um analista e que não sabe como tornar-
se um].
(Bion, 1987, p. 15)
No presente artigo discutimos uma variedade de experiências de
amadurecimento que foram importantes para nós em nossos esforços para nos
tornarmos analistas após nossa formação analítica. Certamente os tipos de
experiência que tiveram valor especial para cada um de nós foram diferentes,
mas também se sobrepuseram de formas importantes. Tentamos transmitir tanto
a padronização quanto as diferenças entre os tipos de experiência que foram
mais significativos para nós em nossos esforços para nos tornarmos analistas (e
para amadurecermos como tal). Além disso, discutimos várias medidas
defensivas que os analistas em geral, e nós em particular, temos usado diante
da ansiedade que é inerente ao processo de tornar-se genuinamente um analista
nos seus próprios termos.

Um contexto teórico
Uma variedade de experiências ao longo do desenvolvimento como analista é
fundamental para o amadurecimento tanto como analista quanto como
indivíduo. O amadurecimento do analista tem muito em comum com o
desenvolvimento psíquico em geral. Identificamos quatro aspectos do
crescimento psíquico que são essenciais para a nossa visão do processo de
tornar-se um analista.
O primeiro é a idéia de que pensar / sonhar a própria vivência no mundo
constitui um meio principal, talvez o meio principal pelo qual se aprende com a

2
experiência e se atinge o crescimento psicológico (Bion, 1962a). Além disso, a
vivência de alguém é geralmente tão perturbadora que excede a capacidade do
indivíduo de usá-la psiquicamente de algum modo, ou seja, pensar ou sonhar a
experiência. Sob tais circunstâncias, são requeridas duas pessoas para pensar ou
sonhar a experiência. A psicanálise de cada um dos nossos pacientes,
inevitavelmente nos coloca em situações que nunca foram antes experimentadas
e, como conseqüência, exige de nós uma personalidade mais ampla do que
aquela que trouxemos para a análise. Consideramos que isso seja verdadeiro
para todas as análises: não existe uma análise “fácil” ou “direta”. A re-
conceituação da identificação projetiva como um processo intrapsíquico ⁄
interpessoal nos trabalhos de Bion (1962a, 1962b) e Rosenfeld (1987)
reconhece que nessas situações analíticas novas e perturbadoras, o analista
requer outra pessoa para ajudá-lo a tornar o impensável pensável. Esta outra
pessoa é na maioria das vezes o paciente, mas pode ser um supervisor, um
colega, um mentor, um grupo de consulta, e assim por diante.
Inerente a esse conceito de pensamento intersubjetivo existe a idéia de que,
ao longo da vida do indivíduo, „„É preciso [pelo menos] duas pessoas para
formar uma‟‟ (Bion, 1987). Precisa-se de uma mãe-e-bebê capaz de ajudar a
criança a alcançar „„status de unidade‟‟ (Winnicott, 1958a, p. 44). Três pessoas
são necessárias - mãe, pai e filho - para criar uma criança edipiana saudável; é
preciso haver três pessoas - mãe, pai e adolescente - para criar um jovem adulto;
precisa-se de dois jovens adultos para criar um espaço psicológico no qual se
possa criar um casal que, por sua vez, seja capaz de criar um espaço psicológico
no qual um bebê possa ser concebido (literalmente e metaforicamente); é
preciso uma combinação de uma jovem família e de uma velha família (uma
avó, um avô, mãe, pai e filho) para criar condições que contribuam para que se
aceite, ou que facilitem a aceitação e o uso criativo da experiência de
envelhecimento e morte dos avós (Loewald, 1979).

3
No entanto, essa concepção intersubjetiva do desenvolvimento do analista é
incompleta na ausência de sua contraparte intra-psíquica. Isso nos leva ao
segundo aspecto do contexto teórico para essa discussão: para pensar / sonhar a
nossa própria experiência, precisamos de períodos de isolamento pessoal, não
menos do que precisamos da participação das mentes dos outros. Winnicott
(1963) reconheceu esse requisito essencial do desenvolvimento quando
observou: „„Há um estágio intermediário no desenvolvimento saudável no qual
a experiência mais importante do paciente em relação ao objeto bom ou
potencialmente satisfatório é a recusa do mesmo‟‟ (p. 182). No setting analítico,
o trabalho psicológico que é realizado entre as sessões não é menos importante
que o trabalho feito com o analista nas sessões. Na verdade, analista e paciente
precisam „dormir sobre‟ a sessão, isto é, precisam sonhá-la por si próprios antes
de serem capazes de realizar um trabalho mais profundo como um par analítico.
De maneira semelhante, nas sessões, o trabalho psicológico que o paciente
realiza separado do analista (e que o analista realiza no seu espaço isolado atrás
do divã) é tão importante quanto o pensar / sonhar que os dois realizam um com
o outro. Essas dimensões – a interpessoal e a solitária – são totalmente
interdependentes e permanecem em tensão dialética uma com a outra. (Quando
falamos de isolamento pessoal, estamos nos referindo a um estado psicológico
diferente do estado de estar sozinho na presença de outra pessoa, isto é, „a
capacidade de estar só‟ de Winnicott [1958b]. Ao invés disso, o que temos em
mente é um estado que é muito menos dependente das relações de objeto
externas, ou mesmo internalizadas [ver Ogden, 1991, para uma discussão desse
estado saudável de „isolamento pessoal‟]).
O terceiro aspecto do crescimento psíquico, que é essencial para a nossa
concepção de amadurecimento do analista, é a idéia de que se tornar um
analista envolve um processo de ''sonhar-se mais plenamente na existência''
(Ogden, 2004a, p. 858) de maneiras cada vez mais complexas e inclusivas. Na
tradição de Bion (1962a), estamos usando o termo 'sonhar' com referência à

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forma mais profunda de pensamento. É um tipo de pensamento no qual o
indivíduo é capaz de transcender os limites da lógica do processo secundário
sem perda do acesso a esse tipo de lógica. O sonho ocorre continuamente, tanto
durante o sono como durante a vigília. Da mesma maneira que as estrelas
persistem mesmo quando a sua luz é obscurecida pela luz do sol, assim também
sonhar é uma função contínua da mente que persiste durante a vigília, mesmo se
obscurecida pela consciência e pelo resplendor da vigília. (Sonhar acordado no
setting analítico toma a forma da experiência de reverie do analista [Bion,
1962a; Ogden, 1997].) A atemporalidade dos sonhos permite que se elabore
simultaneamente uma multiplicidade de perspectivas em uma experiência
emocional de uma maneira que não é possível no contexto de tempo linear, e da
lógica de causa e efeito que caracteriza a vigília, processo secundário de
pensamento. (A simultaneidade de perspectivas múltiplas que foi capturada na
arte cubista de Picasso e Braque teve influência sobre a arte do século 20 de
todos os gêneros – a poesia de T.S. Eliot e Ezra Pound, os romances de
Faulkner e os últimos romances de Henry James, as peças de Harold Pinter e
Ionesco, e os filmes de Kieslowski e David Lynch, bem como a arte da
psicanálise).
O trabalho do sonho é o trabalho psicológico através do qual criamos
significados simbólicos e pessoais, deste modo nos tornando nós mesmos. É
nesse sentido que nos sonhamos dentro da existência como analistas,
analisandos, supervisores, pais, amigos, e assim por diante. Na ausência do
sonho, não podemos aprender com nossa experiência de vida e,
conseqüentemente, continuamos presos em um presente infinito e imutável.
O quarto aspecto do crescimento psíquico que acreditamos ser fundamental
para a forma como pensamos sobre o processo de tornar-se um analista é o
conceito de continente-conteúdo de Bion (1962a, 1970). O „continente‟ não é
uma coisa, mas um processo de realizar o trabalho psicológico com nossos
pensamentos perturbadores. A expressão „realizar um trabalho psicológico‟ é

5
aproximadamente equivalente a idéias/sentimentos como a experiência de
„entrar em acordo com‟ um aspecto da própria vida que foi difícil de admitir ou
„fazer as pazes com‟ acontecimentos importantes e profundamente
perturbadores da vida da pessoa, tais como a morte dos pais, de um filho ou do
cônjuge, ou a própria morte que se aproxima. O „conteúdo‟ é a representação
psicológica daquilo com que se está fazendo as pazes ou entrando em acordo. O
colapso de um relacionamento mutuamente produtivo entre os pensamentos
provenientes de uma experiência perturbadora (o conteúdo) e a capacidade de
pensar/sonhar estes pensamentos (o continente) pode tomar uma série de formas
que se manifestam em uma variedade de tipos de fracasso em amadurecer como
um analista (Ogden, 2004b). As vivências perturbadoras – „o conteúdo‟ (por
exemplo, as violações de limites por parte do analista pessoal do analista) –
pode destruir a capacidade do analista de pensar como um analista („o
conteúdo‟), particularmente sob certas circunstâncias emocionais (Gabbard e
Lester, 1995).
Com essas idéias em mente, consideraremos então um conjunto de
experiências de amadurecimento que são comuns aos analistas no decorrer do
seu desenvolvimento. Quando se completa a formação psicanalítica, muitas
vezes tem-se a vaga sensação de um sentimento um pouco fraudulento. Tem-se
a autorização para um 'vôo solo', sem a ajuda de um supervisor, no entanto
sente-se um certo grau de turbulência que pode ser desconcertante. Às vezes, os
analistas bendizem a oportunidade de aprender (e amadurecer) com os tipos de
situações analíticas que estamos prestes a descrever. Em outras vezes e em
outras circunstâncias, de repente e inadvertidamente, os analistas encontram-se
imersos nessas situações analíticas perturbadoras e conseguem um crescimento
psicológico „agindo por intuição e percepção‟.

6
Experiências de amadurecimento do analista
Nas seções seguintes deste artigo, discutiremos uma série de tipos de
experiências de amadurecimento que desempenharam um papel importante no
desenvolvimento de nossas identidades analíticas. Essas experiências incluem o
processo gradual de desenvolvimento de uma maneira própria de falar com os
pacientes; o desenvolvimento do senso de si próprio como um analista no
processo de apresentar o trabalho clínico a um consultor; o fazer uso auto-
analítico de experiências com os pacientes; e o criar/descobrir a si mesmo como
analista no processo de escrever artigos analíticos.

I. O desenvolvimento de uma voz própria


Ao ouvir-se falando (por exemplo, com seus pacientes, supervisionandos,
colegas e membros de seminários), o analista pergunta-se: “Que impressão eu
causo quando falo desse modo?'' ''Eu realmente quero falar dessa maneira?''
''Com quem eu me pareço?'' ''De que forma pareço diferente da pessoa na qual
eu me tornei e estou me tornando?'' ''Se eu fosse falar de maneira diferente,
como isso soaria? " ''Como eu me sentiria ao falar de uma maneira que é
diferente de qualquer outro que não eu mesmo?'' Há um paradoxo no fato de
que falar naturalmente, como a própria pessoa, é tanto fácil (no sentido de não
ter que fingir ser alguém diferente de quem se é) quanto muito difícil (no
sentido de encontrar / inventar uma voz que emerge da totalidade de quem se
está sendo em um dado momento). Ao se prestar uma atenção cuidadosa,
descobre-se que há resíduos inconfundíveis da voz de seu analista nas palavras
faladas a seus pacientes. Essas formas de falar estão „em nossos ossos‟,
internalizadas há muito tempo e fazem parte de nós sem que tenhamos
consciência do processo de assimilação.
Embora esse tipo de experiência de amadurecimento ocorra principalmente
no contexto do falar com os outros, há também um aspecto intra-psíquico, uma
batalha consciente e inconsciente consigo mesmo no esforço de encontrar-se /

7
criar-se como um analista. As vozes que se ouve estão principalmente na mente
(Smith, 2001) e pertencem aos nossos '„„fantasmas‟‟ e „„ancestrais‟‟ (Loewald,
1960, p. 249). Os fantasmas nos habitam de uma maneira que não está
totalmente integrada ao nosso senso de self; nossos ancestrais nos fornecem um
sentido de continuidade com o passado. No processo de tornar-se um analista,
precisamos „sonhar‟ por nós mesmos uma maneira autêntica de falar que
envolva nossa liberação de nosso(s) próprio(s) analista(s), bem como de nossos
supervisores, professores e escritores que admiramos, enquanto também
recorremos ao que aprendemos com eles. A tensão dialética existe entre
reinventar-se, por um lado, e utilizar de forma criativa a própria ascendência
emocional, por outro lado.
Ninguém descreveu melhor do que Loewald os dilemas psicológicos que
estão envolvidos na passagem da autoridade de uma geração para a seguinte.
Em The waning of the Oedipus complex, Loewald (1979) descreve as maneiras
pelas quais o crescer (tornando-se um indivíduo amadurecido por direito
próprio) exige que se mate os próprios pais (em mais que uma forma
metafórica) e simultaneamente os imortalize. O parricídio é um ato de
reivindicar o próprio lugar como uma pessoa responsável por si própria; a
imortalização dos próprios pais (um ato de reparação ["at-one-ment"] para o
parricídio) envolve uma internalização metamórfica dos pais. Esta
internalização é „metamórfica‟ no sentido de que os pais não são simplesmente
transformados em um aspecto de si mesmo (uma simples identificação). Pelo
contrário, é uma internalização de um tipo muito mais rico: o da incorporação
na própria identidade de uma versão dos pais que inclui uma concepção de
quem eles poderiam ter se tornado, mas foram incapazes de se tornar, como
conseqüência das limitações de suas próprias personalidades e das
circunstâncias em que viveram. Que melhor reparação se pode fazer em relação
aos pais que se matou (Ogden, 2006)?

8
No processo de tornar-se um analista, é preciso que se seja capaz de cometer
atos parricidas em relação aos próprios pais analíticos, enquanto se repara o
parricídio no ato de internalizar uma versão transformada dos mesmos. Essa
internalização metamórfica reconhece seus pontos fortes e suas fraquezas e
envolve uma incorporação na própria identidade de um sentido não somente de
quem eles foram, mas também de quem eles poderiam ter se tornado, caso as
circunstâncias externas e internas o tivessem permitido.
Na seguinte vinheta clínica, um de nós (Ogden) descreve uma experiência
em que paciente e analista viveram e sonharam juntos uma experiência que
facilitou o amadurecimento de ambas as partes.
Por um período de tempo significativo, o analista descobriu-se usando a
palavra bem [well] para introduzir praticamente cada pergunta e comentário que
dirigia aos seus pacientes. Parecia tão natural que levou um bom tempo para
que ele reconhecesse o fato de que tinha adotado essa maneira de falar.
Observou também que falava dessa maneira somente quando falava com os
pacientes e não quando falava com supervisionandos, quando conversava em
seminários, ou quando falava com colegas, e assim por diante. Ao tornar-se
consciente de que estava falando dessa maneira, ficou imediatamente aparente
para ele que tinha adotado um maneirismo do seu primeiro analista. Disse a si
mesmo que não sentia necessidade de „corrigi-lo‟, já que o experimentava como
uma conexão emocional com um homem que admirava e de quem gostava. O
que ele não percebeu foi que também não tinha visto necessidade de analisá-lo
(isto é, refletir sobre a razão pela qual essa identificação tinha se evidenciado
daquela forma, naquela conjuntura de sua vida e naquela conjuntura de seu
trabalho com aqueles pacientes em particular).
Um dos pacientes com o qual ele estava trabalhando em análise durante esse
período era o Sr. A, um homem que tinha escolhido uma carreira na mesma
área em que seu pai era uma figura proeminente. Foi nas sessões com o paciente
– embora houvesse experiências relacionadas com outros pacientes – que ele

9
começou a se sentir de uma maneira diferente a respeito do que tinha parecido
um subterfúgio inofensivo no seu modo de falar. Essa mudança de perspectiva
surgiu em um período de semanas enquanto ele ouvia o Sr. A minimizar o
efeito causado pelo fato dele ter entrado na mesma área de seu pai enquanto que
ao mesmo tempo usava repetidamente a frase „a área dele‟ em vez de „a minha
área‟ ou „a nossa área‟. Durante esse período da análise, o Sr. A mencionou
uma ocasião na qual tinha parecido ao analista que o paciente estava
estranhamente provocando um de seus filhos para „tentar agir como um adulto‟.
Embora o analista não tenha feito comentários sobre esse comportamento, isso
teve um efeito perturbador sobre ele.
No início de uma sessão durante esse período de trabalho, o paciente
queixou-se que o analista estava valorizando demais os efeitos de sua escolha
para entrar „na área de meu pai'. O analista acreditou que ele tinha tido o
cuidado de não tomar partido em relação ao assunto, então optou por
permanecer em silêncio em resposta a essa acusação de seu paciente. Mais tarde
na sessão, o Sr. A contou o seguinte sonho:‘‘Um terremoto havia começado
com apenas uns poucos tremores, mas eu sabia que isso era apenas o início de
um enorme terremoto no qual eu poderia muito bem ser morto. Tentei reunir
umas poucas coisas que gostaria de levar comigo antes de deixar a casa em
que estava. Era como se fosse a minha casa. Peguei uma fotografia de família –
uma que na verdade eu deixava sobre uma mesa na minha sala de estar. É uma
foto de meus pais, de Karen (sua esposa) e das crianças que tirei na Flórida.
Senti uma enorme pressão de tempo – sentia-me como se estivesse sufocando e
como se fosse uma loucura gastar o último fôlego que tinha para salvar uma
fotografia. A sufocação não é a maneira pela qual um terremoto nos atinge, mas
era assim que eu me sentia. Acordei assustado, com meu coração disparado‟‟.
(Por razões que não foram de maneira alguma aparentes para o analista,
também ele sentiu-se intensamente ansioso enquanto o paciente contava o
sonho).

10
No decorrer da conversa sobre o sonho, o Sr. A ficou impressionado com o
fato de que: „„porque eu tirei a foto, eu não estava nela. Estava nela como um
observador, não como um membro do grupo‟‟. O analista disse: „„Você ficou
primeiramente assustado com a sensação do início de um terremoto que poderia
aumentar de intensidade ao ponto de poder matá-lo e a todos os que lhe são
caros; mais tarde no sonho, você sentiu que estava prestes a morrer sufocado.
Penso que no sonho você estava falando consigo mesmo e comigo sobre o seu
sentimento de estar sendo expulso da sua própria vida – você era apenas um
observador na foto de sua família e, no entanto, estava pronto a usar seu último
fôlego para preservar aquele lugar, ainda que marginal. Isso lhe pareceu
loucura, mesmo no sonho‟‟.
Enquanto o analista estava dizendo isso, ocorreu-lhe que o Sr. A, no seu
relato sobre o sonho, poderia estar fazendo uma observação sobre o analista. A
fala do paciente ao dizer que ele sabia que „„poderia muito bem ser morto‟‟ no
terremoto, envolvia um fraseado que não somente usava a mesma palavra na
qual o analista estava focalizado, como também a ligava diretamente à idéia de
ser morto. Isso levou o analista a suspeitar que o Sr. A estava respondendo a
algo que estava acontecendo no analista e que estava refletido na mudança em
sua maneira de falar. Pareceu-lhe que o paciente temia que o analista tivesse
desenvolvido uma forma de tique verbal que refletia uma loucura no analista
que o impediria de ser o analista que ele precisava. Se também o analista
estivesse sendo expulso de sua própria vida como um analista e de sua própria
maneira de falar (com a qual o paciente tinha se tornado familiarizado com o
passar dos anos), como poderia o analista ajudá-lo com um problema muito
semelhante?
O analista pensou que era altamente improvável que o relato desse sonho
fosse o primeiro comentário inconsciente do Sr. A sobre algo que ele percebia
ser significativamente diferente no modo de falar do analista. O sonho do
paciente foi crítico para o trabalho analítico, não somente porque estava se

11
referindo a sentimentos tão diferentes daqueles que estavam sendo abordados
em outros sonhos, mas porque foi a primeira vez em que o analista foi capaz de
ouvir e responder ao que ele acredita ser o esforço inconsciente do paciente para
falar com ele sobre seu medo de que ele percebesse uma mudança ameaçadora
no analista. Retrospectivamente, a origem do sintoma (como o analista veio a
compreendê-la) havia afetado sua capacidade de amadurecer como uma pessoa
e como um analista. Também pensando retrospectivamente, o analista
reconheceu que o fato do paciente cruelmente apontar que seu filho estava
„tentando agir como um adulto‟ representava uma comunicação ao analista
referente ao auto-ódio do paciente pela forma com que ele se sentia como uma
criança. (Consideramos o sonho como um sonho que não pode ser atribuído
somente ao paciente, mas a um sujeito inconsciente que é co-construído pelo
paciente e pelo analista – „o terceiro analítico‟ [Ogden, 1994]. É este terceiro
sujeito que sonha os problemas na relação analítica [além do paciente e do
analista como sonhadores individuais].)
A observação inconsciente do paciente de que ele era um observador na foto
de família, associada à percepção do analista da sua própria ansiedade enquanto
ouvia o relato do sonho, fez com que o analista iniciasse uma linha de
pensamento, uma conversa consigo mesmo, sobre os significados de sua
imitação de seu primeiro analista. O que era mais poderoso na nova percepção
do padrão da fala que ele havia adotado era sua persistência e invariabilidade
através da plena gama de situações emocionais e através de formas diversas de
conversações com tipos muito diferentes de pacientes. Parecia-lhe que a
qualidade impessoal dessa forma genérica de falar refletia um sentimento
subliminar que ele tinha abrigado por um tempo muito longo, mas que não tinha
anteriormente colocado em palavras para si mesmo: ele havia tido a impressão
durante a sua primeira análise (e posteriormente) que seu analista tinha em
alguns aspectos importantes percebido-o de formas genéricas que não eram
pessoais nem para ele e nem para o analista. Havia uma maneira na qual ele

12
sentiu que a primeira percepção do analista em relação a ele foi inabalável e que
alguma coisa importante estava faltando. Ambos os sentimentos também se
refletiam na fotografia do sonho, no qual também a foto estava inalterada e não
incluía o fotógrafo. O analista sentiu uma certa decepção em relação ao seu
primeiro analista, mas sentiu-se principalmente envergonhado por não ter tido a
coragem de conscientemente reconhecer a qualidade impessoal da forma como
ele sentiu que estava sendo percebido e registrar um protesto. No sonho, houve
uma escolha entre o sonhador salvar a foto ou salvar a sua própria vida. O
analista percebeu que ele tinha metaforicamente escolhido salvar a fotografia –
sua imagem fixa de seu próprio analista – e, como conseqüência, tinha
abandonado algo de sua própria vitalidade.
Com base nesses pensamentos e em outros que se seguiram nos meses e
semanas subseqüentes, o analista foi finalmente capaz de falar com o Sr. A
sobre os seus sentimentos de vergonha (a vergonha de ter traído a si próprio) ao
escolher buscar uma carreira na „área de seu pai‟ e não uma carreira na sua
própria área (mesmo que fosse na área na qual seu pai também tinha
trabalhado). (Voltaremos a esse exemplo clínico mais adiante neste artigo).

II. Apresentação de material clínico a um supervisor


Ao lutar com uma situação clínica em seus consultórios, os analistas
freqüentemente procuram um colega em quem confiam. Ouvir a si mesmos
nesse contexto é significativamente diferente das ocasiões nas quais se fala com
os pacientes, alunos ou supervisionandos. Ao falar com um consultor, os
analistas não estão tentando entender a outra pessoa como o fariam no seu
trabalho com um paciente. O gradiente de maturidade (Loewald, 1960) se
inclina na outra direção no trabalho do analista com um supervisor. As
inseguranças e ansiedades do analista estão no centro do palco, dado o fato de
que ele explicitamente solicitou a ajuda do consultor. A ênfase está no que o
analista não sabe. A falta de entendimento por parte do analista – sua dúvida em

13
relação a si mesmo, sua ansiedade, temor, vergonha, culpa, tédio, luxúria,
inveja, ódio, terror e seus pontos cegos, – são todos expostos a um colega em
um ato de fé. A experiência dos seus próprios limites (como um analista e como
uma pessoa), e a aceitação desses limites pelo consultor, ajudam a moldar a
identidade do analista no sentido da humildade, da curiosidade sobre si mesmo
e da percepção de que sua própria análise é uma tarefa para toda a vida. Uma
parte da identidade do analista envolve conflito, ambivalência, anseios e medos
da infância, e uma tentativa de reconciliar-se com o fato de que a sua análise
pessoal não lhe permitiu transcender o tormento interno que o levou
primeiramente ao trabalho analítico. Além disso, o fato de que o consultor não
recua em resposta às lutas do analista fornece a confirmação de que ser
“suficientemente bom” nos termos de Winnicott (1951, p. 237) é aceitável para
os outros e que ao analista inevitavelmente faltará a compreensão abrangente e
os resultados terapêuticos pelos quais ele pode lutar.
Aspectos da vivência do analista excedem sua capacidade de realizar um
trabalho psicológico com os mesmos e muitas vezes emergem no contexto de
seus encontros com seus pacientes. Buscar uma supervisão pode fornecer um
continente muito necessário quando um analista se encontra na impossibilidade
de processar o que ele está confrontando, tanto nele próprio quanto nos seus
pacientes. Um de nós (Gabbard) trabalhou durante anos com uma paciente
inflexivelmente suicida que continuava a planejar seu suicídio apesar dos
melhores esforços do analista para entender, conter e interpretar os motivos e
significados múltiplos envolvidos no desejo dela de morrer.
Após o analista ter apresentado esse dilema a um consultor, este observou
que o analista estava tentando evitar a idéia de que todos os seus esforços bem
intencionados poderiam vir a dar em nada, e que a paciente provavelmente daria
fim à própria vida a despeito do tratamento. O consultor enfatizou que o
analista estava irritado com a fantasia interpessoalmente atuada da paciente de
ter controle onipotente sobre ele e também com sua própria incapacidade de

14
aceitar a sua impotência para impedir a paciente de cometer suicídio. Em última
análise, o suicídio seria a escolha da paciente, sem levar em conta os desejos ou
necessidades do analista. Ouvir os comentários do consultor permitiu ao
analista trabalhar com esses pensamentos assustadores e forneceu uma maneira
de desintoxicá-los para que eles pudessem realmente ser considerados pelo
analista, aceitos como inerentes à situação do tratamento e ouvidos como uma
comunicação do próprio sentimento da paciente de não ter voz ativa a respeito
de sua própria vida ou morte.
A mente do analista tinha sido colonizada pelo mundo interno da paciente e
na medida em que essa colonização diminuiu, o analista tomou consciência de
como as suas próprias aspirações para o empreendimento analítico estavam
sendo contrariadas pelo firme desejo de morte da paciente (Gabbard, 2003).
Como muitos analistas, ele abrigava uma poderosa fantasia inconsciente em
relação ao relacionamento analítico – uma fantasia na qual uma forma
específica de relacionamento do objeto seria gerada. Ele seria o curador
dedicado e generoso e a paciente melhoraria progressivamente e finalmente
expressaria gratidão ao analista por sua ajuda (Gabbard, 2000). Sua paciente
suicida não tinha concordado com esse contrato inconsciente, e sua marcha em
direção à auto-destruição continuava, a despeito do – ou desatenta ao – desejo
do analista de ajudá-la. Com uma reflexão posterior, o analista reconheceu que
havia sido relegado a uma posição de transferência que seria mais tarde descrita
por Steiner (2008) como o observador excluído que se ressente do fato de que
ele não é o objeto mais importante para o paciente.
A consulta também liberou o analista para refletir sobre ressonâncias de
experiências precoces de desenvolvimento onde ele percebeu sua impotência
em face do declínio e morte inevitáveis dos outros e dele próprio, um
determinante inconsciente importante em sua escolha de carreira. Analisar
firmemente seus desejos mágicos e reconhecer a impossibilidade de determinar
o que um outro ser humano (ou ele próprio) fará em última instância

15
constituíram-se em elementos centrais do amadurecimento do analista. Parte do
conhecimento sobre quem se é como um analista é conhecer os limites do
próprio poder de influenciar um paciente e usar esse conhecimento para ser
capaz de ouvir e responder a um paciente que confronta seus próprios limites
(assim como os do analista).

III. O trabalho analítico como um meio importante para a


auto-análise
Toda análise é incompleta. Como Freud (1937) enfatizou, o término é
normalmente mais uma questão prática do que um ponto final definitivamente
determinado pela resolução de conflitos. É amplamente aceito atualmente que
não „terminamos‟ uma análise (acreditando que ajudamos o paciente a atingir
uma análise „completa‟); mais precisamente, o paciente e o analista finalizam
uma experiência em análise em um ponto no qual eles sentem que uma parte
significativa do trabalho psicológico foi realizada e que eles se encontram em
uma conjuntura na qual o trabalho principal disponível para eles parece ser a
separação. Ainda em uma forma diferente: a transferência é interminável, a
contra-transferência é interminável, o conflito é interminável. Uma experiência
produtiva em análise coloca em movimento um processo que continuará ao
longo da vida do analista.
A auto-análise do analista serve como uma função de contraponto para o
diálogo que se tem com um consultor em quem se confia. A experiência
interpessoal de trabalho com o consultor é pontuada por períodos de isolamento
nos quais o analista pensa os seus próprios pensamentos na quietude do seu
carro, ou de madrugada, ou quando está olhando para o teto, ou na privacidade
do próprio consultório quando está esperando por um paciente que não
comparece. O tratamento psicanalítico inicia uma exploração – muitas vezes
tentativa e ambivalente – da vida interior tanto do paciente como do analista. A
auto-análise contribui para esse processo, mas nessa variação trabalha-se

16
sozinho, com a determinação de analisar inflexivelmente o que se descobre,
mas sempre ficando aquém do alvo. A partir dessa perspectiva, o término de
uma análise, o „fim‟ de uma parte do trabalho de auto-análise ou do trabalho
analítico com um consultor não é o ponto no qual o conflito inconsciente é
resolvido, mas o ponto no qual o sujeito do trabalho analítico é capaz de pensar
e sonhar a sua experiência (em um alto grau) por si mesmo.

IV. Descobrir ⁄ criar o que se pensa e quem se é na experiência de


escrever
Escrever é uma forma de pensar. Muito freqüentemente, na escrita, não se
escreve o que se pensa; pensa-se o que se escreve. Há algo da sensação de que
as idéias surgem da caneta de quem escreve, do observar idéias se
desenvolverem de maneiras não planejadas (Ogden, 2005). Escrever, no
entanto, não é necessariamente uma atividade solitária. Na escrita psicanalítica,
a medida em que se escreve, tem-se muitas vezes um leitor em mente. A
fantasia de como o leitor reagirá a uma volta da frase ou a uma nova perspectiva
radical sobre teoria ou técnica, molda e influencia o que aparece na página.
Entretanto, muito do processo criativo se desenvolve isoladamente conforme se
pensa no âmago de uma idéia repetidamente em contextos diferentes. Esse
período contemplativo pode levar dias, semanas, ou mesmo anos. A maioria dos
textos envolve alguma oscilação entre, por um lado, a reflexão silenciosa sobre
o que se tem a dizer e, por outro lado, a reflexão sobre as respostas imaginadas
pelos leitores em potencial. Um público imaginário é uma constante na escrita
de Freud. Ele repetidamente inventa um público cético imaginário, antecipa de
maneira magistral as objeções do público/leitor à sua argumentação e oferece
uma réplica irrefutável.
Quando se trata de um texto de co-autoria, uma complexidade adicional é
introduzida no processo. Além da contemplação solitária e da interação
imaginada com um leitor, uma colaboração com um outro escritor requer uma

17
sensibilidade especial para com seu co-autor – afinal, cada sentença deve
representar dois autores, e não apenas um.
Esse exemplo de colaboração surgiu no decorrer da elaboração deste artigo.
Começamos com uma idéia compartilhada, ou seja, uma atualização da idéia de
Freud de que o que era definitivo na análise como um tratamento para
problemas psicológicos é o fundamento do trabalho na compreensão da
transferência e da resistência (Freud, 1914). Planejamos descrever como a nossa
própria definição de análise evoluiu a partir das idéias de Freud em 1914, e/ou é
descontínua com estas mesmas idéias. Começamos nosso trabalho nesse projeto
colaborativo com entusiasmo. No entanto, descobrimos que as palavras não
fluíam tão livremente como tínhamos esperado de cada um de nós.
Sentindo-nos presos em nossos esforços para fazer com que as coisas
avançassem, relemos e estudamos o texto de Freud de 1914. Ficamos
particularmente decepcionados quando viemos a reconhecer que muito do
artigo de Freud apresentava uma polêmica bastante cáustica contra os desvios
de Jung das premissas teóricas de Freud e uma insistência feroz em afirmar que
ele, e somente ele, foi o fundador da psicanálise. A partir daí viemos a entender
que o tom defensivo de Freud era um reflexo de suas inseguranças a respeito
das reivindicações concorrentes de autoria da sua idéia (isto é, da psicanálise
como uma disciplina) e um receio de que Jung subvertesse o que ele tinha
inventado e continuasse a chamá-lo de psicanálise. Tínhamos escolhido uma
citação que mostrava Freud em um momento não auspicioso da história de seu
próprio amadurecimento psicológico.
Como o nosso entusiasmo diminuiu, tivemos que re-pensar o tema de nosso
trabalho.
Trocamos várias revisões até que começamos a ver claramente que o que
era mais urgente para nós não era a tarefa de propor uma definição
contemporânea de psicanálise. Em vez disso, a colaboração em si tinha servido
para esclarecer para cada um de nós como nós tínhamos evoluído como

18
analistas no decorrer de 30 anos de prática. Conversamos longamente sobre
como cada um de nós tinha chegado à sua percepção atual e desenvolvida de si
mesmo como um psicanalista. Nossas experiências de desenvolvimento no
decorrer da formação analítica e nos primeiros anos após a mesma eram
nitidamente diferentes em alguns aspectos, e, no entanto, descobrimos que
havia uma grande justaposição na forma como concebíamos nossa maneira de
trabalhar e de quem éramos como psicanalistas. Apesar de nos conhecermos por
mais de 20 anos, descobrimos que no decurso dessas discussões viemos a
conhecer um ao outro de uma maneira nova. Entretanto, com relação à tarefa de
decidir o que esperávamos atingir dividindo a autoria de um artigo, falar
consigo mesmo não era suficiente. Somente através de nossos esforços
repetidos para escrever nossos pensamentos (ou, mais precisamente, nos
permitir ver o que nós pensávamos no próprio ato de escrever), é que fomos
finalmente capazes de discernir o que era que queríamos tentar. Colocando
palavras na página obrigou-nos (e nos liberou) para transformar os pensamentos
e sentimentos incipientes em conceitos e em uma idéia do que era aquilo que
queríamos comunicar na forma de trabalho analítico de co-autoria.
Ao refletir sobre como os leitores poderiam responder à nossa perspectiva,
reconhecemos que nossas experiências de amadurecimento não poderiam ser
compartilhadas por outros analistas. Certamente não queríamos usar um tom
prescritivo. Fizemos então um esforço conjunto para apresentar nossas idéias
como simplesmente uma descrição de nossas próprias experiências, ao invés de
sugerir que elas eram universais. Tornamos mais claro para nós mesmos que
entre as qualidades de um analista que consideramos como a mais importante
está a maneira pela qual um analista faz uso do que é único e idiossincrático na
sua personalidade.
Trabalhar com um co-autor também envolve uma experiência de se ter um
editor ou consultor incorporado (quer se queira tê-lo ou não) que pode oferecer
uma perspectiva „externa‟ a respeito do material clínico do outro autor. Ao

19
longo da nossa colaboração neste trabalho, um de nós (Ogden) enviou um
rascunho do artigo ao seu co-autor incluindo a vinheta clínica apresentada
acima envolvendo o sonho do terremoto. O co-autor (Gabbard) respondeu (por
escrito) com os seguintes pensamentos sobre o caso em geral e o sonho em
particular:
Concordo inteiramente com seu ponto de vista de que o sonho não pode ser atribuído
somente ao paciente, mas a um sujeito co-construído. Senti que o sonho era tanto seu
quanto dele. Minha fantasia sobre o sonho é a seguinte: que mesmo que você tenha
percebido o seu analista tratando-o de uma forma genérica, você sentiu algum tipo
de proteção – um porto seguro, se você preferir – ao recorrer ao seu estilo de falar.
Ao fazer isso, você não tinha se separado dele e, portanto, não tinha que suportar a
dor associada à perda dele. Lembro-me do famoso comentário de Freud de que a
única maneira pela qual o ego pode desistir de um objeto é colocá-lo para dentro. O
terremoto, então, poderia ser visto como uma consciência crescente no paciente de
que você estava prestes a ser arrancado de sua casa internamente criada – ou seja, o
porto seguro do consultório do seu analista ou sua presença internalizada – e
lançado em um mundo onde você precisava falar com a sua própria voz. Em algum
nível, o paciente sentiu-se daquela maneira a respeito de ser arrancado da ‘casa’ de
seu pai. O que estava acontecendo em você teve uma grande ressonância com o que
estava acontecendo dentro dele. Não adicionei isso ao artigo porque é puramente a
minha própria conjectura e pode não se encaixar à sua experiência.
Como essa citação indica, uma perspectiva do co-autor a respeito do material
clínico deve ser então filtrada através de pensamentos do autor fornecendo os
dados clínicos para se verificar se é „um bom encaixe‟ com o momento analítico
real descrito.
Ogden, que não estava habituado a essa „interferência‟ no seu processo de
escrita, sentiu-se perturbado pelos comentários inesperados de Gabbard.
Solicitou mais de dois meses para „dormir sobre‟ (sonhar) o que havia sido
despertado nele pelas observações de Gabbard antes que fosse capaz de oferecer
uma resposta ponderada (também por escrito):

20
Relendo meu relato do meu trabalho com o Sr. A, penso que o mesmo aponta o fato
de que eu vi na invariabilidade da fotografia no sonho do paciente somente estase
[stasis], ao contrário de confiabilidade; e que eu vi na ausência do fotógrafo na
fotografia somente a ausência de uma pessoa que pensa / sente, contrapondo-se à
discrição. Seus comentários sobre a vinheta me ajudaram a ver o que tinha estado lá
ao longo de todo a minha escrita sobre o relato: minha avaliação profunda sobre o
que eu sinto serem duas de minhas melhores qualidades como analista – a disposição
de permanecer emocionalmente presente durante os períodos dolorosos na análise e
durante os períodos muito difíceis da vida; e a habilidade de ‘ficar fora do caminho’
(e não fazer reflexivamente interpretações de transferência) quando eu estava
realizando sozinho o trabalho psicológico nas sessões.
Os co-autores consideram a experiência emocional que Ogden descreve
como sendo uma resposta atual tanto para sua memória do seu trabalho com o
Sr. A quanto para os comentários de Gabbard no seu relato escrito dessa
experiência. Essa troca entre os co-autores constitui um tipo de experiência de
amadurecimento que foi valiosa para ambos os autores.

V. Ousar improvisar
Com cada paciente, temos a responsabilidade de tornar-nos um analista que
nunca vimos antes. Isso requer que deixemos de lado o script e entremos em
uma conversa, uma conversa de um tipo que nunca experimentamos antes
(Hoffman, 1998; Ringstrom, 2001). Isso pode tomar a forma de resposta a uma
menção de um filme por parte do paciente que diz: „„Quase não há uma só
palavra falada no filme inteiro, pelo menos foi assim que o filme me fez
sentir‟‟. Com outro paciente, improvisar pode significar permanecer em silêncio
– não aquiescer a exigências coercitivas implícitas para tranqüilização ou
mesmo para o som da nossa voz. A improvisação é claramente uma metáfora
teatral. O grande professor russo de teatro, Konstantin Stanislavski, certa vez
observou:
O melhor que pode acontecer é ter-se o ator completamente arrebatado pela peça.
Então, independentemente da sua própria vontade ele vive o papel, não percebendo

21
como se sente, não refletindo sobre o que faz, e tudo se move por conta própria de
forma subconsciente e intuitiva.
(Stanislavski, 1936, p. 13)
De uma maneira análoga, o amadurecimento como analista envolve a
permissão crescente que concedemos a nós mesmos para sermos apanhados no
momento (no inconsciente da análise) e sermos transportados pela música da
sessão. A análise não é uma experiência que possa ser mapeada e planejada.
Ocorrem acontecimentos entre duas pessoas que estão juntas em uma sala, e o
significado desses acontecimentos são discutidos e compreendidos. Os analistas
aprendem mais sobre quem são através da participação na 'dança' do momento.
A extensão na qual a análise está „viva‟ pode depender da disposição e
habilidade do analista para improvisar, e para ser improvisado pelo inconsciente
da relação analítica.

VI. Observação dos aspectos de nós mesmos que, como se por sua
própria iniciativa, protestam contra sermos o analista que temos
sido por tanto tempo
O que em certa época poderia ter sido chamado de confiável e estável, pode
gradualmente tornar-se demasiado fácil e bastante envelhecido e previsível. Às
vezes nos tornarmos conscientes durante uma sessão com um paciente de que
nos tornamos confortáveis demais com nós mesmos como analistas. 'Erros',
nessas sessões, podem muitas vezes ser vistos como expressões de nossas partes
mais saudáveis e são de valor inestimável para o nosso amadurecimento, se
pudermos fazer uso desses alertas. Esses "erros" incluem o analista atrasar-se
para uma sessão, terminar uma sessão mais cedo, dormir durante uma sessão, e
esperar um paciente diferente quando encontra o analisando na sala de espera.
(Não estão incluídos nesse tipo de erro as violações de fronteira, tais como,
relações sexuais com um paciente, quebras da confidencialidade, relações de
negócios com um paciente, e assim por diante [Gabbard e Lester, 1995].) Os

22
erros que não envolvem violações de fronteiras muitas vezes representam os
esforços inconscientes do analista para perturbar o seu próprio equilíbrio
psíquico, para forçar-se a tomar conhecimento das formas nas quais ele se
tornou estagnado no seu papel de analista.
Acreditamos haver uma necessidade auto-imposta para se ser original – não
no sentido de uma demonstração narcisista, mas no sentido da necessidade de
entrar em uma conversa com o paciente ou com o supervisionando de maneira
tranqüila, firme e generosa, de uma forma que não poderia acontecer entre
ninguém mais no mundo a não ser essas duas pessoas (Ogden, 2004a). Se isso
for forçado, rapidamente se revelará um artifício vazio. O desenvolvimento de
um „„estilo analítico‟‟ (Ogden, 2007, p. 1185) que é experimentado como
completamente autêntico é parte de um esforço contínuo por parte de cada
analista para se tornar um analista por seu próprio direito. Pode-se conseguir
esse sentimento de ter-se tornado „original‟ somente através de um esforço
árduo para livrar-se ao longo do tempo dos grilhões da ortodoxia, da tradição e
de suas próprias proibições inconscientes e irracionais (Gabbard, 2007). A luta
do analista com a teoria, como senhora ou como serva, pode ser uma parte
integrante deste esforço. Partilhamos o ponto de vista de Sandler (1983) de que
cada analista desenvolve um amálgama particular ou um modelo misto,
tomando emprestado certos aspectos de várias teorias que são consistentes com
a própria subjetividade e com a própria abordagem da análise. Ao mesmo
tempo, concordamos com a noção de Bion de que o analista deve esforçar-se
por esquecer o que ele pensa que sabe ou conhece „bem demais‟ para que possa
ser capaz de aprender com sua experiência atual com o paciente. Bion (1987)
uma vez disse a um apresentador: ''Eu [confiaria na teoria somente] ... se eu
estivesse cansado e não tivesse idéia do que estava acontecendo ...'' (p. 58).

23
VII. Manter os olhos abertos para a maneira pela qual se está
amadurecendo / envelhecendo
Conforme se envelhece, pode-se falar a partir da experiência de uma forma que
não poderia ter sido feita anteriormente. Muitas vezes a pessoa se torna
consciente, após o fato, de que ela mudou, por exemplo, através da escuta de si
mesma ao falar com seu paciente. Idealmente, o analista se engaja em um
processo de luto no qual a perda da juventude e a inevitabilidade da velhice e da
morte são reconhecidas, aceitas e até mesmo abraçadas como uma nova forma
de existir como uma pessoa levando uma vida ponderada. O analista pode,
dessa forma, alcançar uma maior valorização das experiências de perda do
paciente e das maneiras pelas quais ele lidou com elas ou evadiu-se delas.
Esse processo de amadurecimento ocorre tanto dentro como fora do setting
analítico. O analista que atua cada dia na sala de consultas (idealmente) não é
nunca inteiramente o mesmo analista que atuava no dia anterior. A capacidade
de um analista de entender plenamente a dor de um paciente pode ser limitada
até que o próprio analista tenha navegado em sua própria dor associada à perda
de entes queridos e ao término de períodos importantes de sua vida, por
exemplo, a época em que seus filhos moravam em casa ou a época em que seus
pais estavam vivos.

VIII. Dificuldades em tornar-se um analista


As razões pelas quais um analista pode temer o processo de „crescer‟ como um
analista e as maneiras pelas quais ele pode se defender contra tais temores são
extremamente numerosas. Neste breve artigo, não podemos enumerar, muito
menos explorar, esses medos e defesas. No parágrafo seguinte, ofereceremos
alguns exemplos do vôo do analista a partir das experiências potenciais de
amadurecimento e algumas formas de defesa contra tais experiências.
O analista pode ter medo de que ele seja tão insubstancial como uma pessoa
que não seja possível para ele desenvolver uma voz própria; ou ter medo do

24
isolamento que ele imagina que virá quando tornar-se um analista em seus
próprios termos; ou ter medo de que com um reconhecimento maduro da
incerteza virá uma confusão insuportável. Um analista pode defender-se contra
esses e outros medos empenhando-se em uma rebelião adolescente contra „a
instituição analítica‟ em um esforço para evitar definir-se nos seus próprios
termos; ou falando no início com uma voz de experiência inventada, quando, na
verdade, sente-se dolorosamente carente como conseqüência de sua
inexperiência; ou abraçando uma falsa certeza sob a forma de uma intensa
identificação com uma determinada escola de psicanálise, com seu próprio
analista, com um escritor analítico idealizado e assim por diante. Finalmente,
devemos lembrar que, por mais que amemos a análise, uma parte de nós
também a odeia (Steiner, 2000). A dedicação ao trabalho analítico contínuo (em
nós mesmos e com os pacientes), nos destina não somente à incerteza, mas
também a enfrentar o que menos gostamos em nós mesmos e nos outros
(Steiner, 2000).

Comentários finais
No presente artigo discutimos algumas de nossas experiências de
amadurecimento e as analisamos sob várias perspectivas teóricas. Alguns
leitores reconhecerão no que descrevemos algo de suas próprias experiências de
amadurecimento como analistas, enquanto que outros não o farão. De fato, um
tema recorrente em nosso trabalho tem sido o fato de que falar com pacientes,
colegas e alunos em termos genéricos é anti-analítico (no sentido de representar
um fracasso para pensar e falar por si mesmo). Como Bion (1987) observa no
comentário citado no início deste artigo, parte de tornar-se um analista é evoluir
em uma direção que não é nem determinada por teoria, nem dirigida
exclusivamente pela identificação com os outros: “O analista no qual você se
torna é você e somente você – isso é o que você usa ...” (p. 15). O discurso
analítico envolve o que é único, idiossincrático e vivo na experiência particular

25
de um determinado indivíduo. Tornar-se um analista envolve necessariamente a
criação de uma identidade altamente pessoal, que é diferente da de qualquer
outro analista.
Não podemos superestimar a dificuldade de tentar viver por esse ideal. Os
laços conscientes e inconscientes que temos com o que pensamos que sabemos
são poderosos. Mas a luta para superar estes laços (pelo menos em um grau
significativo) é o que exigimos de nós mesmos em cada sessão. Em nossa
experiência verificamos que quando o analista está confuso, é quando ele faz
seu melhor trabalho analítico.
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Tradução de Margarida C. T. Busatto

27
Trinta maneiras de destruir a criatividade dos
candidatos à psicanálise
Thirty ways to destroy the creativity of psychoanalytic candidates
Otto Kernberg

Tradução: Sérgio Telles.

Otto Kernberg escreveu este artigo pouco antes de assumir a presidência da


International Psychoanalitical Association (ipa). O texto apareceu inicialmente no
número 77 do International Journal of Psycho-analysis, em 1996, e logo foi traduzido
para o português por Suzana Muszkat para o “Livro Anual de Psicanálise”, que o
publicou no volume xii daquele mesmo ano.

Por ser uma corajosa abordagem de problemas ligados à formação do analista,


pareceu-nos pertinente sua inclusão neste número da Percurso. Através de Elias da
Rocha Barros, a quem agradecemos, entramos em contato com o International Journal
of Psycho-analysis e com a editora inglesa Wiley, que prontamente nos autorizaram a
realizar uma nova tradução e a publicá-la em nossa revista.

Quando se fala da formação analítica, são citados sempre os três elementos


indispensáveis – a análise pessoal do candidato, a supervisão e os cursos teóricos.
Nunca se mencionam as contingências da instituição analítica onde se desenrolará tal
processo. Kernberg rompe com a repressão e desnuda as manobras do poder
institucional que se escondem atrás de supostos cuidados necessários com a formação
do candidato.

Em clave irônica, Kernberg mostra como a própria organização do ensino parece ter
como objetivo primordial abafar qualquer entusiasmo com o texto freudiano e a
psicanálise, matando no nascedouro qualquer desejo que os candidatos possam abrigar
no sentido de ajudar no progresso e desenvolvimento desse conhecimento.

O ensino se confunde de tal forma com as engrenagens da política institucional, que


logo os alunos entendem que, para garantir o progresso em seu trajeto de formação, as
lealdades aos grupos de poder são mais importantes do que a posse do conhecimento
em si.

É verdade que Kernberg mostra os erros das sociedades organizadas dentro dos
padrões estabelecidos pela ipa e poder-se-ia rápida e aliviadamente dizer que as outras
instituições não padecem dessas distorções.

Seria um equívoco pensar assim. O que Kernberg mostra pode ser reconhecido com
facilidade em outras instituições psicanalíticas fora da ipa e mesmo em instituições não
analíticas. Afinal, tais patologias florescem em todas as instituições. Elas giram em
torno das manipulações pelo poder, do empenho na manutenção inquestionada do
status quo e da ideologia prevalente, o que impõe a eliminação dos dissidentes e
contestadores. As lutas pelo prestígio respondem à esfera do narcisismo, comum a todo
ser humano.
Era de supor que nós, analistas, pudéssemos organizar nossas instituições de forma
diferente, como diz Derrida, ou seja, usando os instrumentos que a psicanálise nos
fornece. No caso em pauta, isso poderia significar o dispor-se a empreender uma
permanente “autoanálise institucional” – se é que podemos falar assim, se é que isso é
factível. Tarefa fácil seguramente não seria, mas a dificuldade em conceber medidas
que impeçam distorções tão graves não deveria ser um obstáculo e sim um estímulo a
executar um trabalho que se impõe e que nos convoca a todos.

Como mostra Kernberg, a forma como este modelo de formação está estruturado faz
com que os estudantes idealizem intensamente os professores, supervisores, analistas
mais velhos e a própria instituição.

O que aconteceria se os alunos estudassem textos como este já no início do curso e


fossem alertados contra os possíveis desmandos decorrentes da patologia institucional?
Isso inviabilizaria o estabelecimento das transferências necessárias à análise e ao
aprendizado teórico? Penso que não, a fantasia dos candidatos logo acharia suportes
diversos para se apoiar. Mas possivelmente se conseguiria evitar que a instituição
manipulasse em seu próprio proveito os aspectos mais frágeis e regressivos dos
candidatos. Com isso talvez se evitasse a cristalização dos desvios mais grosseiros, das
seduções mais enganadoras.

Não deveria ser feita uma experiência nesse sentido em nossa própria instituição?

Até agora falamos das distorções que surgem dentro do processo de formação que tem
como modelo os protocolos estabelecidos há longo tempo pela ipa e reproduzidos, com
maiores ou menores modificações, por muitas outras instituições.

A partir do momento em que a ipa perdeu o monopólio do ensino da psicanálise aqui


no Brasil, assistimos a uma proliferação de instituições as mais variadas que se
propõem a transmitir o legado freudiano. É de perguntar como lidam com as questões
próprias da formação analítica.

Enquanto há três décadas candidatos que estavam em análise didática por longos anos
não podiam se apresentar como “psicanalistas” e se diziam “psicoterapeutas de linha
analítica”, hoje em dia ouve-se, a torto e a direito, pessoas que se intitulam
“psicanalistas”.

Será que trocamos um tipo de exagero por seu oposto?

Para concluir, lembramos o conhecido aforismo de Freud, de que há três profissões


impossíveis – governar, psicanalisar e educar.

O ensino da psicanálise conjuga dois destes irreconciliáveis impossíveis.

Embora em determinados momentos, como em “Alguns tipos de caráter encontrados no


trabalho psicanalítico” (1916), o próprio Freud diga que a psicanálise é um “processo
educativo”, há uma antinomia entre o lugar do pedagogo (professor, mestre, educador,
o que ensina) e aquele ocupado pelo psicanalista, tal como especifica Catherine Millot.
Ainda assim, diz ela, “pode-se deduzir uma ética da experiência analítica na qual a
pedagogia poderia se inspirar: ética fundada na desmistificação da função do ideal,
fundamentalmente enganador e contrário a uma lúcida apreensão da realidade” [1].
SÉRGIO TELLES

Alguns anos atrás, ao discutir com uma colega sobre as formas de incrementar o
desempenho dos candidatos em formação psicanalítica, ela me disse sorrindo: “Nosso
problema não é tanto incrementar a criatividade e sim tentar não inibir a criatividade
naturalmente estimulada pela natureza de nosso trabalho” [2]. Seu comentário
desencadeou em mim lembranças e observações feitas ao longo de meus estudos, de
minha atividade como professor e de minha participação no ensino psicanalítico em
diferentes sociedades e institutos. Decidi juntar estas observações, discuti- las com
colegas e finalmente agrupar sob um formato negativo aquilo que, em última instância,
é um apelo em defesa da criatividade psicanalítica. Para um formato positivo deste
estudo, recomendo ao leitor o texto de 1986, no qual apresento, por um lado, uma
análise sistemática da relação entre a estrutura organizacional e o funcionamento dos
institutos psicanalíticos e, por outro, seus efeitos na formação psicanalítica. Como uma
excelente revisão dos problemas atuais na formação psicanalítica, o resumo da Quinta
Conferência de Analistas Didatas da International Psychoanalitical Association (ipa) em
Buenos Aires, feito por Wallerstein (1993), pode servir como um importante pano de
fundo para o que segue.

A lista das formas de inibir a criatividade de um candidato a psicanalista que segue não
pretende ser exaustiva, apesar de, espero, cobrir os problemas mais importantes. Então,
aqui estão minhas recomendações de como inibir com eficácia a criatividade no
processo de aprendizagem em nossos institutos:

1. Retarde o processamento dos pedidos de inscrição; adie a aceitação dos candidatos;


torne mais lenta a divulgação de informações para eles: isso ajudará, por sua vez, a lhes
diminuir o ímpeto. Se o encaminhamento dos candidatos é sistematicamente vagaroso e
pouco ágil, se seus relatos clínicos são submetidos a numerosas revisões e,
particularmente, se longos períodos de espera na incerteza se tornam parte integrante de
sua experiência no processo de formação, eles tenderão, por sua vez, a se tornar lentos
para responder e tomar iniciativas. Mais lento o processo de aceitação e
encaminhamento, mais os próprios candidatos evitarão os passos finais para concluir a
formação, ter autonomia e buscar a posição de membros da sociedade; e, é claro, mais
adiarão suas contribuições na produção científica, se é que o farão algum dia.

2. Os escritos de Freud serão de boa utilidade para desencorajar o interesse dos


candidatos em pensar por conta própria. Os instrutores devem insistir para que os
candidatos leiam Freud cuidadosamente, em ordem cronológica, de forma completa e
exaustiva, assegurando-se de que eles aprendam exatamente em que consistia sua teoria
em qualquer ponto de seus desdobramentos. Os professores devem deixar clara a
mensagem de que qualquer análise crítica das conclusões de Freud tem que ser adiada
até que os alunos tenham lido Freud por inteiro e tenham mais experiência e
conhecimento no campo psicanalítico. Antes de tudo, eles precisam saber, tanto quanto
possível, o que Freud pensava: consequentemente, é útil dissociar o ensino dos textos de
Freud de qualquer crítica externa ou contemporânea de seu trabalho, de temas
controversos atuais ou ainda de problemas clínicos de candente atualidade. A proteção
dos textos freudianos contra a contaminação por outras teorias ou críticas fará
maravilhas no sentido de diminuir gradualmente o interesse dos candidatos pelos
desenvolvimentos posteriores do pensamento psicanalítico. É importante que o instrutor
mantenha em mente que são as conclusões às quais Freud chegou o que tem de ser
ensinado e memorizado, e não o processo de pensamento de Freud. De fato, se os
estudantes se apercebem da metodologia do pensamento de Freud, que era
indiscutivelmente revolucionário, isso poderia levá-los a fazer perigosas identificações
com sua originalidade, pondo assim a perder o objetivo de manter o foco isolado e
exaustivo em suas conclusões [3].

3. Um útil reforço na destruição de qualquer possível entusiasmo a respeito da escrita


freudiana pode ser conseguido ao designar, no começo de cada novo seminário, alguns
dos textos mais criativos e importantes de Freud, descer a grandes detalhes quanto a
tudo que ele disse nesses artigos já então familiares e sublinhar suas conclusões. Essa
tranquilizadora repetição de aspectos plenamente estabelecidos dos trabalhos de Freud,
combinada com a ênfase toda especial que lhe é dada no currículo, dessensibiliza os
estudantes à contribuição de Freud, processo entorpecedor que fica ainda mais
intensificado ao fazer os estudantes escreverem extensivos sumários destes trabalhos ou
fazê- los apresentar nas aulas resumos daquilo que todos já leram. Pode-se incrementar
ainda mais o processo ao se exigir exames específicos sobre o conteúdo do trabalho
completo de Freud como precondição para avançar nos seminários.

4. Esteja bem atento a candidatos que tendem a questionar as opiniões de qualquer um


dos autores preferidos e prestigiados em sua instituição psicanalítica. Deixe clara a
mensagem de que o pensamento crítico é bem-vindo, desde que confirme as opiniões de
seus líderes dominantes mais importantes. Não deixe de premiar os estudantes que
estejam entusiasmados e inteiramente convencidos com aquilo que você lhes ensina
(exceto, é claro, as contribuições das “escolas divergentes” – espera-se que estas
provoquem apropriadas reações de incredulidade e indignação entre os estudantes). Se,
com tato e firmeza, você mostra apreço pelos estudantes que concordam com a visão
oficial de sua instituição, as tentações para desenvolver visões novas, diferentes,
questionadoras ou divergentes poderão gradualmente desaparecer [4].

5. Procure evitar que seus alunos participem prematuramente dos encontros científicos
de sua sociedade psicanalítica ou sejam convidados para reuniões onde colegas
respeitados possam discordar entre si de forma áspera. Isso pode ser justificado
alegando-se o cuidado necessário para que a análise didática pessoal não seja perturbada
por influências externas prematuras, particularmente aquelas que poderiam perturbar o
anonimato do analista didata. Numa sociedade psicanalítica pequena, é sempre possível
justificar a proibição de candidatos frequentarem seus encontros científicos alegando
que, num grupo tão pequeno, seria difícil evitar o contato entre os candidatos e seus
analistas fora da sessão, e isso, por sua vez, justifica perfeitamente a não comunicação
entre o ensino do instituto e as atividades científicas da sociedade e do pensamento
psicanalítico.

6. Controle cuidadosamente os cursos opcionais: esses cursos são habitualmente usados


pelos membros mais jovens da instituição para apresentar ideias novas e desafiadoras.
Vigie com atenção os seminários opcionais e mantenha-se alerta às possibilidades de
que eles possam perturbar a visão harmoniosa e integrada da psicanálise mantida por
seu instituto ou por sua sociedade.

7. Mantenha uma rígida separação entre os seminários dos alunos em formação e o dos
analistas já formados. Por sorte, a maioria das instituições psicanalíticas tem uma
compreensão intuitiva da importância de evitar a mistura prematura de candidatos e
analistas formados nos mesmos seminários: os candidatos com facilidade descobririam
nos analistas já formados as mesmas incertezas, inseguranças e atitudes questionadoras
que são forçados a reprimir. Isso pode perturbar uma saudável idealização da eficácia
dos processos de formação analítica e acabar com a ilusão de que existe uma enorme
diferença entre candidatos e analistas formados.

8. A preservação nos alunos de um saudável respeito pelos mais velhos pode ser
conseguida ao se constituírem grupos formados por antigos analistas didatas e jovens
analistas recém-formados que almejam ser didatas no futuro, como o objetivo de ensinar
em alguns cursos e/ou seminários. Mantenha uma clara hierarquia entre os velhos e os
jovens no curso. Se o analista jovem respeitosamente se curva frente às opiniões do
analista mais velho e transmite, com seu próprio comportamento, a indubitável
aceitação de sua autoridade; se, de fato, ele mostra incertezas e inseguranças a quanto de
iniciativas ele pode se dar no ensino de qualquer seminário, a mensagem da necessidade
de aceitar e não questionar a autoridade estabelecida será reforçada. Você pode acentuar
a hierarquia por meios simples: por exemplo, nas reuniões profissionais, reserve os
melhores assentos da frente para os membros mais velhos.

9. Reforce os rituais da formação por quaisquer meios inteligentes que lhe possam
ocorrer: este é um campo com grandes potencialidades. Por exemplo: você pode pedir
ao candidato para escrever um caso para a apresentação final e então submeter este
manuscrito a numerosas revisões e correções. Com isso, os candidatos adquirem um
saudável respeito pelas enormes dificuldades inerentes à escrita de um trabalho
aceitável para publicação. Ou ainda, peça ao candidato para apresentar um trabalho à
sociedade analítica. Os debatedores deste trabalho deverão ser os membros mais antigos
e graduados daquela sociedade, que não terão, eles mesmos, escrito qualquer coisa há
muito tempo. As exigentes expectativas quanto ao que deveria ser incluído num
trabalho científico devem ser comunicadas através de uma crítica exaustiva da
apresentação do candidato. Uma variante disso é fazer com que um comitê constituído
por aqueles analistas mais velhos transmita ao candidato esta mesma avaliação. Em
alguns países, efeito semelhante tem sido alcançado através de voto secreto por parte de
todos os membros da sociedade, decidindo se o trabalho do candidato é aceitável e
preenche os critérios para a admissão para a própria sociedade. Quando divisões
políticas significativas dentro da sociedade fazem com que os jovens candidatos
automaticamente se inclinem para o grupo de poder do seu próprio analista didata, o
trabalho científico com o qual pleiteia admissão pode se transformar numa excelente
fonte de ansiedade sobre os perigos ligados ao trabalho científico [5].

10. Enfatize a ideia de que são necessários muitos anos de experiência clínica para que o
entendimento da teoria e da técnica psicanalíticas, sem falar nas aplicações da
psicanálise em outros campos, esteja profundo e sólido o bastante para justificar a
tentativa de alguém querer contribuir com a ciência da psicanálise. Levante
delicadamente, mas sem delongas, a questão de até que ponto as tentativas do candidato
de não só apresentar trabalhos, como desejar publicá-los (!), podem refletir uma
competitividade edipiana ou conflitos narcísicos mal resolvidos. Se jovens analistas
publicam raramente e se precisam que os analistas mais velhos aprovem seus
manuscritos antes de enviá-los para publicação, este costume pode vir a ser um
consenso estabelecido entre os candidatos e pode reforçar seu medo de publicar.
Naturalmente, evite estimular os candidatos a colocarem alguma ideia própria nova ou
original em seu próprio trabalho; a escrita deve ser uma obrigação desagradável, nunca
um prazer ou uma fonte primária de orgulho em contribuir para a ciência da psicanálise
enquanto ainda estudante [6].

11. Pode ser de muita utilidade mostrar que a psicanálise é entendida e desenvolvida
adequadamente apenas em lugares muito distantes de sua própria instituição e, de
preferência, numa língua não conhecida pela maioria dos estudantes. Se as exigências
da formação fazem com que os estudantes não tenham condições de passar uma longa
temporada naquele distante lugar ideal, eles poderão ficar convencidos de que é inútil
tentar desenvolver a ciência psicanalítica num lugar tão distante de onde são ensinados
as verdadeiras e únicas teoria e técnica. E esta convicção será duradoura.

12. Os candidatos deveriam ser desencorajados a fazer visitas precoces a outras


sociedades ou institutos, a participar de congressos e encontros ou a fazer trabalho
analítico em outras instituições. Isso vale particularmente para aqueles encontros em sua
própria cidade, região ou país, e complementa a idealização dos lugares distantes e de
língua estrangeira, inacessíveis a seus candidatos. Por sorte, algumas sociedades e
institutos psicanalíticos ergueram poderosas muralhas contra a intrusão de visitantes
estrangeiros, exceto aqueles recebidos ocasionalmente, a serem abatidos em reuniões
cuidadosamente preparadas. Em vários lugares do mundo seria muito difícil para um
candidato transferir-se de um instituto a outro, de um país para outro e até mesmo de
uma cidade para outra, sem ter de enfrentar múltiplos obstáculos. Isso ajuda a evitar
comparações potencialmente prejudiciais, mantém o zelo com os experimentos com
novas metodologias educacionais feitas pelos institutos e sociedades psicanalíticas e
afasta a contaminação por um questionável espírito de mudança e inovação.

13. Indique sempre o dobro de publicações que seria razoável esperar que os alunos
absorvam entre um seminário e outro. Peça-lhes para apresentar resumos a seus colegas,
teste em detalhe a extensão do que leram e, como já foi dito antes, não se esqueça de
acrescentar aqueles trabalhos de Freud que eles já leram em muitos seminários. Outra
medida útil pode ser a não indicação de qualquer texto publicado há menos de vinte
anos. Isso leva a crer que as contribuições verdadeiramente importantes já foram feitas e
que pouco deve ser esperado dos novos desenvolvimentos na teoria e na técnica feitos
recentemente, inclusive, é claro, qualquer ideia que pudesse estar germinando na mente
dos estudantes.

14. Ao contrário de alguns institutos que deixam as decisões a respeito de se os


candidatos podem assistir aos seminários dados por seus próprios analistas didatas
abertos à exploração conjunta desta questão pelo próprio analista e seu analisando, faça
disso um rígido princípio de que os candidatos jamais deveriam participar de um
seminário dado por seu analista didata. De fato, assegure-se de que os candidatos não
apareçam em reuniões, painéis ou em quaisquer outras reuniões profissionais onde a
transferência poderia ser perturbada por informações objetivas sobre o trabalho
profissional de seus analistas, para que o desejável anonimato para a análise didática
não seja perturbado. O anonimato alimenta idealizações inanalisáveis e uma saudável
insegurança [7].

15. Pode ser muito útil dar proeminência, nas leituras indicadas, aos trabalhos dos
membros mais importantes de sua própria instituição, que devem ser ensinados, de
preferência, não por eles mesmos e sim por seus alunos atuais ou ex-alunos. Assegure-
se de indicar trabalhos de outros autores que reforcem as opiniões dos líderes locais e
inclua apenas uma ou duas opiniões discordantes, com o único objetivo de expor suas
debilidades. Este foco nas leituras indicadas pode ser complementado pela indicação de
um texto científico ou um estudo de caso a ser apresentado pelo estudante como parte
do processo de formação, com uma cuidadosa ênfase na necessidade de que ele cite os
autores teóricos preferidos localmente em apoio às observações de seu trabalho.

16. De forma ideal, a exposição dos alunos às escolas alternativas de psicanálise deveria
ser evitada tanto quanto possível. Nos seminários para alunos mais avançados, trabalhos
específicos representando abordagens dissidentes ou desviantes deveriam ser
brevemente comentados, no intuito de equilibrar visões opostas, mas devidamente
rejeitadas. É muito útil convidar os líderes de diferentes enfoques teóricos para rápidos
seminários que poderiam, excepcionalmente, incluir estudantes, analistas já formados e
instrutores do curso. Estes últimos podem participar para assegurar que os estudantes
podem testemunhar o impiedoso desmantelamento do representante da opinião
contrária. Seminários de um dia com um líder dissidente, cujas opiniões são atacadas de
forma respeitosa mas inabalável, podem contribuir para reassegurar que a escola local
sabe mais, que a mente do estudante fique em paz e que as novas ideias, apesar de
perigosas, podem ser destituídas de seu potencial subversivo.

17. Sempre faça com que o menos experiente dos candidatos apresente casos frente aos
mais experientes do grupo. Os analistas mais experientes jamais deveriam apresentar
casos num grupo de candidatos: as incertezas do trabalho e os inevitáveis erros dos
analistas mais velhos podem apagar o sentimento de autocrítica, o medo das repreensões
e a natural modéstia dos candidatos que estão começando seu trabalho profissional. A
convicção de que os já formados trabalham melhor do que os candidatos, de que os
analistas didatas trabalham melhor do que os analistas comuns e que os analistas didatas
mais velhos trabalham melhor do que os mais novos garante as inseguranças do
candidato.

18. Tome providências para que sejam preteridos ou estimulados a desistir da formação
os candidatos excessivamente críticos ou rebeldes que ameaçam a atmosfera
harmoniosa nos seminários, desafiam seus instrutores mais velhos ou ousam falar
publicamente contra os analistas didatas na frente de seus pacientes (que irão
possivelmente, é claro, relatar tais conversas em suas sessões). Não é tão difícil fazer
isso, por exemplo, através da morosidade na aprovação de seus casos supervisionados.
Pode-se ainda agendar encontros com líderes de seminário nos quais os candidatos
problemáticos são discutidos criticamente. As informações sobre essas discussões só
devem chegar indiretamente aos candidatos em questão através de seus supervisores ou
tutores, os quais, de forma amistosa, comunicam-lhes a avaliação negativa feita pela
instituição a respeito deles. Se um candidato recebe suficiente informação através de um
terceiro ou quarto intermediário daquilo que é dito sobre ele, isso eventualmente o fará
mudar de atitude na direção desejada pela instituição ou o levará a desistir. Uma vez que
o candidato tenha desistido ou que se lhe tenha solicitado para se afastar, nunca mais
mencione seu nome e mantenha um silêncio discreto sobre todo o episódio: a ideia de
que algo assustador e perigoso teria ocorrido, sobre o que misericordiosamente ninguém
quer falar, terá um poderoso impacto no grupo de estudantes.

19 – Nos anos recentes, um novo e maravilhoso método para restringir o entusiasmo


com a formação analítica foi encontrado sob a forma de um ano de aulas informal e
preparatório: nele a teoria e a técnica psicanalíticas inteiras podem ser brevemente
sumarizadas em nível colegial simples e introdutório, onde já são expostos os temas
centrais do pensamento freudiano que serão discutidos com mais detalhes
posteriormente, bem como se fornece aos alunos uma breve história introdutória da
psicanálise, desde seus primórdios até o presente. Ao mesmo tempo, é enfatizado que
tudo isso são áreas nas quais o conhecimento deles será aprofundado posteriormente.
Como muitos candidatos já terão estudado a teoria psicanalítica em diferentes níveis, o
processo de embotamento pela repetição já terá começado nesse nível introdutório. A
sensação de não conhecer realmente de forma completa o que será ensinado e desejos
impacientes por explorações mais profundas podem ser induzidos desta maneira, junto
com a simplificação rotineira dos conceitos básicos que os privará de seu entusiasmo
quando estes temas forem explorados em detalhe mais tarde. E, naturalmente, você pode
usar esse método para provocar a perda de interesse em qualquer curso de nível
“introdutório”, insinuando que o material “pra valer” será apresentado em outro lugar.

20 – Não estabeleça um curso atualizado de técnica psicanalítica. Concentre o ensino da


técnica nos textos introdutórios de Freud sobre o método psicanalítico e em seus casos
clínicos. O Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, Dora, Joãozinho já terão sido
lidos, é claro, no estudo mais amplo da obra freudiana, mas agora esses textos podem
ser vistos novamente com o objetivo de ensinar os princípios gerais da técnica
psicanalítica. Se o candidato adquire conhecimento em algum outro lugar sobre os
novos desenvolvimentos e abordagens alternativas do processo psicanalítico, como
infelizmente é quase inevitável hoje em dia, sua ansiedade sobre sua própria falta de
familiaridade com as diferentes abordagens da, digamos, ego-psychology, das escolas
francesas, das escolas britânicas, etc., causará um aumento da insegurança sobre seu
trabalho. Isso diminuirá sua confiança em contribuir para os desafios que a população
dos pacientes de hoje nos apresentam. Se, ao mesmo tempo, é insinuada sutilmente a
ideia de que o trabalho psicanalítico é, na verdade, uma arte que será dominada
intuitivamente e que o crescimento e a intuição dependerão do progresso em suas
análises pessoais e nas supervisões, esta ansiedade pode manter seus úteis efeitos
inibitórios por um longo período de tempo [8].

21 – Os supervisores poderão desenvolver uma função crucial na inibição da confiança


dos candidatos em seu próprio trabalho e na possibilidade de aprender com a própria
experiência. É importante que os supervisores falem o menos possível. De fato, pode ser
útil o candidato sentir uma continuidade natural entre sua condição de paciente de
análise e sua posição de supervisando. A escuta cuidadosa e silenciosa do supervisor à
apresentação do trabalho do candidato com seus pacientes, com um ocasional
comentário ilustrando o que o candidato fez de errado, pode manter o candidato numa
saudável incerteza e humildade em relação a seu próprio trabalho. Seu esforço para
construir, para si mesmo, a moldura mental que determina as opiniões de seu supervisor
ocupará sua mente, a ponto de influenciar significativamente o trabalho com seus
pacientes. O candidato deve sentir que é absolvido dos graves erros de seu trabalho caso
siga os conselhos de seu supervisor sem questioná- los e demonstre ao supervisor que
fez o tipo de interpretação que ele entendeu que o supervisor teria feito naquelas
circunstâncias. Este desenvolvimento prevenirá o perigoso processo pelo qual o
candidato poderia integrar para si mesmo uma teoria ou um enfoque pessoal da técnica
por ele mesmo desenvolvido e modificado criativamente ao testá-lo na situação do
tratamento, tendo em conta o desenvolvimento autônomo de seu paciente. Se os
supervisores nunca se reúnem para discutir seus enfoques pedagógicos educacionais
quanto à supervisão, e se uma cisão completa é mantida entre a instituição que ensina
técnica psicanalítica e os supervisores dos casos de controle, um caos e uma confusão
produtivos podem fazer o candidato concluir que demorará muitos anos antes que ele
possa dominar suficientemente bem as técnicas analíticas para ousar contribuir
criativamente com elas.

22 – Um certo grau de medo paranoide, que é a contraparte dos processos de idealização


desencadeados pela análise didática, permeia a maioria das instituições psicanalíticas,
mas é importante lembrar que, de fato, toda organização social luta com tais
desenvolvimentos. Esse medo paranoide pode contribuir para desencorajar os
candidatos no que diz respeito a qualquer trabalho independente, a iniciativas corajosas
ou pesquisas desafiadoras. Felizmente, não é difícil estimular os medos paranoides
através de variadas medidas. A mais eficaz tem sido o depoimento do analista didata
sobre o desenvolvimento dos candidatos em análise com ele. A tradição dos analistas
didatas relatores, ou seja, de que analistas didatas informem ao comitê educacional
sobre a habilitação de seus analisandos para começar os cursos teóricos ou assumir seu
primeiro caso de supervisão, etc., tem sido o instrumento inventado dentro da formação
psicanalítica que mais gera paranoia. É lamentável que esse instrumento tenha sido
eliminado e até mesmo considerado antiético pela maioria dos institutos psicanalíticos.
Afortunadamente, a incontrolável tendência de alguns analistas didatas de indicar com
sutis gestos e sem dizer uma palavra o que efetivamente sentem sobre seus candidatos
ainda continua viva. Essa atitude pode ser alimentada pela utilização do sistema do
“telefone sem fio”, ou seja, a utilização do que os candidatos dizem para seus analistas
didatas sobre o que outros candidatos dizem a respeito deles, como um modelo para
movimentos de retaliação por parte desses analistas didatas. Pelo menos, o medo das
consequências de um comentário descuidado é um saudável suporte para
desenvolvimentos paranoides [9].

23 – Outro método perfeitamente legítimo para aumentar o temor paranoide nos


candidatos é simplesmente deixar de informá-los plena e adequadamente sobre
requerimentos, expectativas, leis, regulamentos e canais para queixas e pedidos de
reparação. Para começar, não informe regularmente os candidatos sobre como eles estão
progredindo, nem como são vistos pelos professores e pela instituição. Apenas os
informe sobre seus erros ou falhas, usando as formas indiretas já mencionadas. Que os
supervisores não sejam francos e explícitos com seus supervisandos, de modo que eles
tomem conhecimento indireto de como estão sendo avaliados – através de seu tutor, do
diretor do instituto ou através dos rumores e mexericos – pode contribuir
poderosamente para reforçar reações paranoides. É perfeitamente legítimo remeter todas
as perguntas dos candidatos ao manual oficial de instruções e evitar reuniões periódicas
para troca de informações. Em alguns institutos, o diretor se reúne com o grupo inteiro
de candidatos, o que tende a produzir uma atmosfera de descontração, autonomia e
potenciais desafios à autoridade, todas elas muito perigosas!

24 – O exemplo dado pelos líderes mais velhos da comunidade psicanalítica local é


extremamente importante. Francas e manifestas indicações de grande insegurança e
temor quanto a escrever por parte da maioria dos analistas didatas mais poderosos e
antigos podem alimentar uma saudável identificação com eles. Um exemplo ainda mais
eficaz pode ser representado pelo antiquado, mas felizmente ainda existente sistema de
“comboio”: um pequeno número de analistas didatas muito antigos são os analistas mais
procurados no seu grupo local e têm um número tal de candidatos em análise que não
lhes sobra energia para ir às reuniões científicas, muito menos para participar
ativamente no trabalho científico da sociedade. Para proteger a pureza da transferência,
eles nunca abrem a boca em público, e as mútuas amizades e alianças, bem como as
rivalidades entre aqueles candidatos que tiveram a sorte de estar em análise com um
destes grandes mestres alimentam uma idealização e uma passividade estabilizadoras.
Este modelo é altamente efetivo para inibir o pensamento crítico independente dos
candidatos.

25 – Tente manter a corporação de estudantes relativamente uniforme em termos de


suas aspirações profissionais. O verdadeiro analista deveria desejar praticar
exclusivamente a psicanálise, usufruir da liberdade de trabalhar em seu consultório com
pacientes em análise e deveria ter aversão em diluir o verdadeiro trabalho analítico
aplicando-o em outros ramos de suas atividades profissionais, tais como o
desenvolvimento de trabalho psicoterapêutico com pacientes gravemente regredidos,
crianças, psicóticos ou participantes de estudos acadêmicos fora do enquadre analítico,
bem como desenvolver pesquisas, assumir liderança institucional ou participar das artes.
Os maiores desafios à teoria e à técnica psicanalíticas ocorrem nas fronteiras de nosso
campo profissional e a evitação de investimento em tais lugares fronteiriços protege não
apenas a pureza do trabalho psicanalítico, mas também o aparecimento de questões
desafiadoras e potencialmente subversivas ligadas aos limites e às aplicações da
psicanálise. Evite aceitar e treinar o dissidente que deseja aprender psicanálise para
aplicá-la em outros campos profissionais, o filósofo interessado nas fronteiras entre a
compreensão filosófica e a psicanalítica, o pesquisador empírico desejoso de
complementar seu background neuropsicológico. Se a seleção cuidadosa de candidatos
for levada a cabo adequadamente, você pode então tolerar uns poucos alunos
“especiais” interessados nos aspectos intelectuais da psicanálise. Mas você deve mantê-
los claramente separados do grupo dos “verdadeiros” estudantes, deve limitar suas
presenças nos seminários clínicos e, para resumir, deixelhes claro que existe um fosso
entre a “verdadeira” formação analítica e os empreendimentos “secundários”. Não dê
“treinamento clínico parcial” para acadêmicos de outros campos, que deverão sempre
sentir sua desaprovação contra o trabalho clínico não autorizado e compreender a
impossibilidade de, em algum momento, ter pleno conhecimento da psicanálise desde
que não participam do programa de treinamento clínico integral.

26 – Da mesma maneira, toda pesquisa científica interdisciplinar deveria ser relegada


aos estágios mais avançados da formação, inserida no meio dos seminários opcionais no
último ano do curso, quando a identidade básica do candidato já está assegurada o
bastante para que tolere os efeitos diluidores e potencialmente corrosivos da abordagem
psicanalítica da arte, dos problemas sociais, da filosofia e da pesquisa em neurociências.
A abordagem oposta seria introduzir estudos de ciências periféricas no momento em que
a teoria psicanalítica estiver começando a ser explorada, por exemplo, quando a teoria
psicanalítica das pulsões precisar ser assimilada sem contaminação ou questionamentos
advindos de modelos alternativos ou de escolas de motivação humana. Ou, ainda, ao
relacionar a técnica psicanalítica com métodos psicoterapêuticos alternativos. Ou, por
exemplo, quando ensinar a teoria psicanalítica da depressão – a prematura introdução da
relação entre a psicodinâmica e os determinantes biológicos da depressão poderia
ameaçar uma autêntica convicção psicanalítica.

27 – Remeta “para o divã” todos os problemas envolvendo professores e estudantes,


seminários e supervisões, conflitos entre os candidatos e a instituição. Não esqueça que
as atuações da/na transferência são a maior complicação na formação analítica e que há
sempre elementos transferenciais em todas as insatisfações dos estudantes. A
inarticulada pressão do candidato no que diz respeito a questões desafiadoras, a
pensamento imaginativo ou a desenvolvimento de formulações alternativas usualmente
tem profundas raízes transferenciais e deveriam ser resolvidas na situação analítica
pessoal. Isso significa também que a instituição deve manter-se coesa; os professores
devem manter-se unidos ao serem confrontados com desafios individuais ou grupais de
estudantes. Um corpo unido de professores proporciona uma estrutura firme e estável
contra a qual as regressões transferenciais do grupo de estudantes podem ser
diagnosticadas e enviadas de volta à sua experiência psicanalítica individual.

28 – Todos os princípios e recomendações mencionados não serão suficientes se o


corpo de professores estiver, ele mesmo, imbuído com o espírito de criatividade. É uma
tarefa difícil, mas não impossível, a de inibir a criatividade dos professores. Professores
cuja criatividade está inibida serão a melhor garantia para reproduzir tal processo
inconscientemente na relação com os alunos. Este é seu maior desafio: o que você pode
fazer na sociedade de psicanálise para inibir a criatividade de seus membros? Por sorte,
uma longa experiência nos tem ensinado que a hierarquia presente no processo de
formação pode ser facilmente estendida para a estrutura social da instituição
psicanalítica e pode ser muito eficaz. Aqui, o que é particularmente útil é o
desenvolvimento de poderosas barreiras em cada passo da evolução do candidato – de
aluno do instituto a membro associado, membro efetivo, analista didata, participação no
comitê de ensino e coordenação dos seminários regulares. Deixe claro que é evidente
que a lealdade aos poderosos grupos políticos é mais importante para conseguir tais
desenvolvimentos do que as reais conquistas profissionais e científicas. Deixe patente
que as maneiras de progredir de um estágio para outro são incertas e indefinidas o
suficiente para manter um constante clima de insegurança e paranoia na sociedade.
Tenha frequentes votações secretas para determinar o progresso dos candidatos em
todos os níveis, deixando evidente para todos que tais votos são influenciados pelos
processos políticos em seu grupo.

29 – Acima de tudo, mantenha a discrição, sigilo e incerteza sobre o que é exigido para
que se chegue ao posto de analista didata; como, onde e por quem essas decisões são
feitas, que espécie de devolutiva ou mecanismos de recursos e apelos pode esperar
aquele que esteja temeroso das implicações traumáticas de ser avaliado e rejeitado como
analista didata. Quanto mais o grupo de analistas didatas se mantém à parte e coeso
como detentores da autoridade e do prestígio, mais os efeitos inibidores do processo de
seleção influenciarão todo o empreendimento da formação. Este é seu instrumento mais
confiável e eficaz para manter na linha não só os candidatos, mas o inteiro grupo de
professores e a própria sociedade.

30 – Não esqueça, quando na dúvida acerca de desenvolvimentos perigosos que podem


desafiar comprovados métodos para inibir a criatividade dos candidatos, que o objetivo
maior da formação psicanalítica não é ajudar os alunos a adquirir o que já é conhecido
com o objetivo de desenvolver novos conhecimentos, mas adquirir conhecimento bem
estabelecido, objetivando com isso que a psicanálise evite sua diluição, distorção,
deterioração e mau uso. Nunca esqueça: onde há uma fagulha pode se desenvolver um
incêndio, particularmente quando esta fagulha aparece no meio de madeira seca e
morta: apague-a antes que seja demasiado tarde!
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W    

ENCONTROS REFLEXIVOS SOBRE FORMAÇÃO1

Entrevistas com:
JACQUES ANDRÉ, RENÉ ROUSSILLON, OTTO KERNBERG E STEFANO BOLOGNINI

Formação em Psicanálise é um tema recorrente, não só devido a complexida-


de que lhe é inerente, mas também por estar sempre sendo atualizado com o ingresso
de novos membros filiados para formação. Estes, muitas vezes, chegam ao Instituto
de Psicanálise da SBPSP reconhecendo as qualidades da formação oferecida, mas sem
ter se dedicado a aprofundar os fundamentos que permeiam este caminho.
Com um propósito essencialmente reflexivo, mas também informativo, criou-
se um espaço para pensar as questões da formação: análise didática, supervisões,
seminários teoricoclínicos, relatórios dentro dos diversos modelos de formação ofe-
recidos, buscando com isso estimular nos membros filiados uma maior responsabili-
dade frente a algo que lhes diz respeito diretamente e que os acompanhará ao longo
de toda vida psicanalítica.
Com esse objetivo a Associação dos Membros Filiados da SBPSP, pela sua di-
retoria científica, proporcionou mensalmente os “Encontros reflexivos sobre forma-
ção”, para um maior diálogo com todos os membros filiados. Além disso, foram feitas
FOUSFWJTUBTDPNPTQTJDBOBMJTUBT+BDRVFT"OESÏ 'SBOÎB 3FOÏ3PVTTJMMPO 'SBOÎB 
0UUP,FSOCFSH &TUBEPT6OJEPT UPEPTBOBMJTUBTRVFFTUJWFSBNFN4ÍP1BVMPQBSUJ-
cipando de conferências e seminários clínicos na SBPSP e, ainda, Stefano Bolognini
*UÈMJB RVFGPJFOUSFWJTUBEPFN#PHPUÈEVSBOUFP$POHSFTTPEB'FQBMFN
Os entrevistados foram escolhidos por representarem diferentes sociedades
ligadas a IPA que trabalham com diferentes modelos de formação. Nas entrevistas fa-
laram de temas relativos a formação e psicanálise em geral e sobre os diversos mode-
los de formação psicanalítica existentes na IPA, considerando especialmente a análise
didática e as supervisões; a história de reflexão da IPATPCSFFTUFUFNBBSFMBÎÍPQP-
TJÎÍPFOUSFPTGVUVSPTBOBMJTUBT BUVBJTNFNCSPTĕMJBEPTPVDBOEJEBUPT FPTEFNBJT
membros do corpo societário da IPA e, principalmente, apresentaram suas reflexões
pessoais a respeito destes temas e do futuro da instituição IPA.
Pensar sobre diferentes modelos é extremamente enriquecedor, pois per-
mite ampliar o pensamento psicanalítico e a visão que cada um possa formar da

1 Projeto idealizado por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral e executado pela Associação
EPT.FNCSPT'JMJBEPT MF EP*OTUJUVUPEF1TJDBOÈMJTFEBSBPSP.
Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral é membro filiado do Instituto da SBPSP, diretora cien-
UÓĕDBEB"TTPDJBÎÍPEPT.FNCSPT'JMJBEPT AMF SFQSFTFOUBOUFEBAMF na Comissão de Ensino da
SBPSP.
 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

Instituição. Agradecemos a todos os entrevistados que gentilmente se dispuseram a


conversar conosco. Foram entrevistas muito agradáveis, com importantes informa-
ções sobre as múltiplas maneiras de ensinar e exercer psicanálise, com espaço para
que cada um apresentasse seu estilo: a clareza de Jacques André; o delicado reme-
morar de Roussillon; a determinação de Kernberg e a ampla visão de Bolognini, que
neste momento está concorrendo ao cargo de presidente da IPA.
As entrevistas serão apresentadas na ordem cronológica em que foram feitas.

Jacques André2

Associação MF – Gostaríamos de conversar sobre formação em psicanálise.


Nosso interesse é conhecer mais sobre o modelo da Association Psychoanalitique
Française APF ËRVBMQFSUFODF2VBJTTFSJBNBTEJGFSFOÎBTEPNPEFMPGSBODÐTDPNP
modelo Eintington, utilizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo?
Jacques André – A grande diferença entre esses modelos de formação é a
questão da análise didática. A APF funda-se na ruptura da fidelidade a Lacan, da sub-
missão a Lacan por pessoas que em sua maioria saem do divã de Lacan. Laplanche,
Pontalis, Widlöcher, Anzieu, todos vêm do divã de Lacan. O único desse grupo ini-
cial que não vem do divã do Lacan é o Granoff que vai desempenhar um papel de-
cisivo na ruptura com Lacan, porque é mais livre, não é paciente dele e é também
um pouco mais velho. A ruptura com Lacan não se faz em função da teoria, mas em
função da prática, de uma prática que diz respeito à análise didática. Lacan decide
diminuir o tempo das sessões, porque havia uma grande demanda por supervisão.
As duas coisas estão ligadas, ele diminui o tempo das sessões para poder cada vez
mais ter controle sobre as pessoas, supervisionando inclusive alguns pacientes. Essa
é uma prática muito difundida no meio lacaniano: o analista tornar-se supervisor do
seu paciente. Muitos lacanianos fazem isso, mas nem todos, pois para alguns isso é
inaceitável.
Lacan formula explicitamente que os únicos que são verdadeiros analistas são
os didatas e, a rigor, uma análise se transformará inevitavelmente em uma análise
2 Entrevista realizada em 28.8.2009, por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral, membro fi-
liado do Instituto da SBPSP, Michael Harald Achatz, membro filiado do Instituto da SBPSP e Eliana
Rache, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise e membro da diretoria científica da
SBPSP.
 +BDRVFT "OESÏ Ï QTJDBOBMJTUB  NFNCSP EB "TTPDJBÎÍP 1TJDBOBMÓUJDB EB 'SBOÎB APF  ĕMJBEB Ë
International Psychoanalytical Association IPA  1SPGFTTPS EF QTJDPQBUPMPHJB EB 6OJWFSTJEBEF EF
Paris 7 – Denis Diderot. Diretor do Centre d’Etudes em Psychopathologie CEPP 1VCMJDPVWÈSJPTMJ-
vros entre eles destacamos: As origens femininas da Sexualidade; 100 Mots de la psycanalyse DPMFÎÍP
Que sais-je? O esquecimento do pai, além de inúmeros artigos psicanalíticos.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 27

didática. Isso quer dizer que o paciente se tornará analista. Lacan generaliza dizendo
que todos os analisandos se transformarão em analistas. Mas essa é uma posição pes-
soal de Lacan, e não uma concepção da Instituição. Logo, o mais didata de todos é
Lacan. Havia um domínio considerável sobre o pensamento dos outros, sendo Lacan
o analista, o supervisor, além de receber pacientes em seus seminários. Isso gerou um
grande desgaste na instituição. Era preciso resguardar a continuidade das sessões,
o tempo das análises, a transferência, para manter-se uma prática psicanalítica e a
liberdade de pensamento. É essa a questão da APF em relação à formação – a integri-
dade da análise didática – que leva à ruptura com Lacan e funda a APFFN

Associação MF – Como tornar-se analista da APF ?


Jacques André – Esta é a questão fundamental! Para vir a ser psicanalista da
APF, primeiro deve-se contatar a APF por e-mail ou correio, enviar uma carta de mo-
tivação e depois ser recebido para entrevista por três psicanalistas que se reportarão
ao Comitê de Formação. Este, após um debate e estando todos de acordo, decidirá
se a pessoa será ou não aceita como candidata. Quase todos os que se candidatam
estão em análise quando entram para a formação, mas essa não é uma condição
imperativa.

Associação MF – Quais são os critérios para que se aceite um candidato ?


Jacques André – Evidentemente os critérios não são claramente enunciáveis,
mas fundamentalmente: examina-se o caráter analítico do entrevistado; ou seja, po-
de-se pensar que ele efetivamente fez análise? Qual foi a mudança psíquica? Como
o candidato pode falar de si mesmo de tal modo que se possa perceber que a análise
o mudou?
Um primeiro ponto é: Será que ele tem um pensamento analítico de sua pró-
pria análise ? Nós não pedimos que ele conte sua análise, ninguém pode fazer isso.
Mas queremos testemunhos das mudanças que a análise introduziu. Ter alguma
ideia do que se passou naquela análise. O que é verdadeiramente um acontecimento
da análise?
Um segundo pensamento é: No fundo consideramos que essa pessoa pode
tornar-se um analista? Percebemos que ele tem escuta? As duas questões são com
certeza inseparáveis. Mas não é porque alguém fez análise, fez verdadeiramente uma
análise, que imaginamos que ele poderá ser analista. Não é a mesma questão, mas
duas questões diferentes que são inseparáveis.
Em relação à análise tem-se como critério a possibilidade de ser aceito na APF
mesmo não tendo vindo de um divã da IPA ou da APF. É essa a diferença com a SPP
4PDJFUÏ1TZDIBOBMZUJRVFEF1BSJT – na SPP pode-se vir de um divã que não seja da

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


28 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

SPP,mas deverá ser da IPA. Pode ser um divã lacaniano, pode ser um desconhecido,
apesar de não ser frequente. Antes não era assim, mas hoje é.

Associação MF – Então, não é a análise que importa, mas sim o resultado da


análise.
Jacques André – Sim, o movimento da análise, poder perceber que a analise
deixou sua marca de movimento psíquico em alguém. Em relação à questão do nú-
mero de sessões, não existem critérios definidos. Entretanto, se existe alguém que fez
uma análise de duas sessões por semana, em sessões de quinze minutos, há pequena
possibilidade de ser aceita, porque a ideia é que a análise é uma questão de tempo.
Em relação às supervisões dos candidatos é necessário fazer dois controles indivi-
duais sucessivos de supervisão, com dois pacientes e dois supervisores diferentes,
com duração mínima de três anos cada um, com a frequência de três sessões sema-
nais. Após cada supervisão há um controle de validação. E há também os seminários.
É uma formação contínua que dura muito tempo, pelo menos dez anos, entre o mo-
mento de ingresso e aquele em que somos eleitos membros. Dez anos é um tempo
curto; isso ocorre mais frequentemente entre doze ou treze anos.

Associação MF – Existe um relatório de supervisões como aqui na SBPSP?


Jacques André – Não, a “monografia” ou mémoire é unicamente para tornar-
se membro. As avaliações de supervisões são validadas quando se puder testemunhar
os movimentos transferenciais e os aspectos contratransferenciais da análise, mos-
trando haver uma suficiente distância do analista para poder reconhecer os movi-
mentos da análise. A contratransferência é entendida como a possibilidade de ser
pego pelo seu próprio inconsciente. Minha primeira avaliação foi ao final de dois
anos com o primeiro paciente e de três anos com o segundo.

Associação MF – Como se dá a validação da supervisão ?


Jacques André – Na APF é inteiramente oral. O candidato é recebido por três
analistas titulares, fala da análise e são feitas algumas perguntas. É uma reunião de
mais ou menos uma hora e meia, depois, o supervisor é recebido pelo comitê de
formação por mais meia hora para dar sua opinião sobre essa análise. O comitê de
formação decidirá se haverá ou não a validação do controle. Tudo é oral, mesmo na
segunda avaliação.

Associação MF – Qual é o motivo de ser tudo oral?


Jacques André – Para que o momento da validação seja tão analítico quanto
possível, seja verdadeiramente um elemento de análise. Essa é a diferença com um

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


Entrevistas 29

relatório escrito, que evidentemente introduz outros tipos de comunicação. A APF é


diferente da SPP, por ser completamente oral.

Associação MF – Se a supervisão não for validada, haverá nova chance ? Deverá


a supervisão ser feita com outro paciente?
Jacques André – Depende, não é obrigatório. Às vezes, há uma decisão inter-
mediária, sugerimos que o analista reapresente o caso depois de um tempo para nova
avaliação e, sim, poderá ser com o mesmo supervisor e paciente.

Associação MF – O Sr. havia mencionado uma crítica em relação à análise


didática.
Jacques André – A ideia é simples e forte, é a ideia que se faz da análise.
Para que possa haver uma análise não pode haver représentations but, expressão de
Laplanche. Isso quer dizer que se a análise fixou um objetivo, ainda mais por um
terceiro institucional, como no caso da analise didática, existe algo que prejudica
a liberdade do empreendimento analítico, que é o não sabermos por que fazemos
análise. Com certeza, sempre temos motivos e razões, mas no fundo não sabemos
o verdadeiro motivo pelo qual procuramos a análise. A meta determina algo que
vai contra o desconhecido da análise, contra a abertura da análise e isso tem que ser
verdadeiro para qualquer análise.

Associação MF – E os candidatos que fazem análise, que querem ser analistas,


eles também tem uma représentation but. E se isso não fizer parte da análise?
Jacques André – Isso não é um problema, é um sintoma como qualquer ou-
tro, nesse momento isto não é inoportuno. Fui ver minha analista, que era Joyce
McDougall, e disse a ela que eu tinha problemas na minha vida, mas não tinha mais
a preocupação em vir a ser analista. Para mim isso era vivido como exterior à análise.
Ao mesmo tempo eu tinha esse pensamento, eu desejava virar analista! Este é um
problema tão analisável como todos os outros.

Associação MF – Mas no caso da análise didática ele não pode ser analisado
livremente.
Jacques André – Por definição isso faz parte de uma realidade periférica, en-
tão é alguma coisa que é colocada fora da própria análise, da qual ela não pode li-
vremente se apossar. Isso quer dizer que por estar em uma zona limite também do
analista, ele não poderá perguntar, mas a didática o faz pensar em que? É uma zona
evidentemente inconsciente, onde isso não poderá ser tocado. Não pode ser analisa-
do, é um ponto cego que funciona na verdade como um dado de realidade.

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


30 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

Associação MF – Um objetivo que é imposto.


Jacques André – A ideia é que podemos fazer só o que for possível sustentar
sob um ponto de vista psicanalítico. Eu não conheço nenhum só texto psicanalítico
que justifique analiticamente a didática. Se houver gostaria de lê-lo!

Associação MF – Como é o dialogo entre a APF e as outras sociedades da IPA?


Jacques André – É uma polêmica constante, permanente, para poder impor
nosso modelo de formação. Não para impô-lo aos outros, nós não temos esse desejo.
Os outros é que querem nos impor o modelo deles. Nós lutamos para não sermos
jogados para fora da IPA. Somos reconhecidos suficientemente. Há algo que é reco-
nhecido, sem ser reconhecido, é apenas tolerado. E isso mesmo sendo Widlöcher ex-
presidente da IPA e membro da APF! A APF tem uma existência significativa em fun-
ção da qualidade das pessoas que a representam, pessoas importantes como Pontalis,
Anzieu, Widlöcher. Não somos numerosos. Há um reconhecimento intelectual e
analítico, mas temos oponentes violentos com certeza. Podemos pensar, será que a
IPA pode determinar para você quais serão os vários modelos de formação?

Associação MF – Isso é interessante, porque nos Estados Unidos a IPA aceitou


pessoas que vêm de diferentes formações psicológicas.
Jacques André – Nos Estados Unidos também existe um problema complica-
do que é o problema judiciário e financeiro. Os Institutos de Psicanálise americanos
sempre tiveram medo que um processo caísse nas costas deles. Isso complica tudo.
Houve um processo que custou uma fortuna à IPA e que levou ao aumento de nossas
contribuições. A questão foi a seguinte: alguém que não era médico foi recusado,
processou a IPA e ganhou.

Associação MF – Uma curiosidade, qual é o valor pago pelos candidatos por


uma sessão de análise em Paris ?
Jacques André – Paga-se mais ou menos cinquenta ou sessenta euros por ses-
são. E aqui, quanto se paga ?

Associação MF – .VJUPNBJTy FQBSBBBOÈMJTFEPTNFNCSPTFNGPSNBÎÍP 


há a obrigatoriedade de quatro sessões por semana.
Jacques André – Muito, muito caro! E por quatro sessões semanais!!!

Associação MF – Gostaríamos de saber a respeito da transferência entre anali-


sandos, analistas e instituição.
Jacques André – Há um jogo de poderes. Certa vez alguém, que era mui-
to próximo de Granoff, disse que os candidatos da instituição têm necessidade de
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 31

transferência com a própria Instituição e que a análise didática seria a produtora


de uma transferência que unifica e reúne as pessoas. Não sei se ele mesmo estava
convencido dessa ideia. Isso me parece tão anti-analítico quanto possível. Esta é uma
argumentação inaceitável. De qualquer modo as supervisões são igualmente rela-
ções transferenciais. E há transferência sobre figuras que são importantes, fiz meu
controle de supervisão com o Pontalis que virou amigo meu. Bom, eu tenho uma
transferência com Pontalis é claro, mas isso não terá que me influenciar em nada,
mas poderá ser revivido como qualquer outra experiência de vida.

Associação MF – Existe subdivisões entre os membros?


Jacques André – Na APF existem duas subdivisões: membro associado e
membro efetivo. Todos podem dar seminários. Para ser associado é preciso ter feito
uma “mémoire”. Para se tornar membro efetivo deverá primeiro ser avaliado por
três membros efetivos e depois receber um voto positivo do Comitê de membros
efetivos.

Associação MF – Aqui somente os didatas podem fazer supervisão ou dar se-


minários clínicos.
Jacques André – Então é a didática da didática!

Associação MF – Os psicanalistas na França trabalham também fora dos con-


sultórios com a comunidade, em instituições ?
Jacques André – Sim, isso é escolha de cada analista e quase todos o fazem,
mas a APF não tem nenhum controle sobre isso.

René Roussillon3

Associação MF – Poderia nos falar sobre sua experiência pessoal, primeiro


como psicanalista em formação e depois na função de docente?
René Roussillon – Antes de começar, é necessário dizer que eu era muito jo-
vem quando iniciei minha formação de psicanalista. Tinha menos de trinta anos e
fiz uma formação muito curta, dois anos e meio. Não é uma experiência habitual,

3 Entrevista realizada em 28.10.2009 por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral e Michael Harald Achatz.
René Roussillon é analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP, presidente do Grupo de Analistas de
Lyon, docente da Universidade de Lyon 2. Recebeu o premio M. Bouvet por seu livro Paradoxes et situations
limites de la psychanalyse  5SBCBMIBOPEFTFOWPMWJNFOUPEFDPODFJUPTEF'SFVEBOUFSJPSFTB SFMB-
cionando-os às noções introduzidas em “Mais além do princípio do prazer”. Seus interlocutores ao trabalhar
as ideias de Winnicott na França são D. Anzieu, Pontalis e Green.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
32 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

comum, é uma experiência particular, pois eu já tinha um caminho percorrido, uma


tese de doutorado sobre as questões da psicanálise. Portanto, quando iniciei a for-
mação já tinha lido todos os grandes teóricos da psicanálise, além de Melanie Klein e
Winnicott que começava, mas ainda não era traduzido. Iniciei minha formação com
pessoas com muito conhecimento teórico. Eu já tinha a prática de cinco, seis anos
como psicoterapeuta, com um difícil trabalho em setor psiquiátrico de hospital dia.
Era um hospital dia na Cité, um centro de consultas e de tratamento de pa-
cientes borderline, psicóticos. Passei vinte anos neste centro, mas logo tive pacientes
que queriam fazer análise e assim comecei a formação. Naquela época, quando mo-
rávamos em Lyon era necessário fazer pelo menos uma supervisão em Paris. Eu fiz
com Jean Luc Donnais, durante um ano e meio aproximadamente. Fiz a supervisão
em Lyon e depois mais um ano e meio em Paris! Fiz muita supervisão, mas foi bom,
pois me fazia pensar muito, refletir bastante. Eu tinha que fazer assim, pois era jovem
FBQBJYPOBEPyBPTBOPTOÍPTFSJBBNFTNBDPJTB IBWFSJBNVJUPNBJTSFTJTUÐODJB 
e menos submissão!

Associação MF – A supervisão era de apenas um caso?


René Roussillon – Sim, somente um caso. Fiz a análise em Paris. Então,
toda essa formação não durou muito tempo. Neste momento havia na Sociedade
1TJDBOBMÓUJDBEF1BSJT SPP USÐTHSVQPTPTNFNCSPTĕMJBEPT PTNFNCSPTBTTPDJBEPT
e os membros efetivos. Isso não é mais assim.

Associação MF – Na época a divisão entre as sociedades psicanalíticas france-


sas já havia ocorrido? Qual o motivo de sua escolha pela SPP?
René Roussillon – 4JN BTFQBSBÎÍPBDPOUFDFVFNPV&VDIFHVFJ
em 1978. Em Lyon eu tinha um emprego na universidade onde havia um professor
que era psicanalista da SPP.4 Lá a SPP era a sociedade dominante, era vista como mais
organizada. Isso tudo foi importante para mim, pois sentia-me livre!

Associação MF – Com quem fez análise? A qual sociedade ele pertencia?


René Roussillon – Com Anzieu da APF, Associação Psicanalítica Francesa.

4 A SPP, Sociedade Psicanalítica de Paris, é a sociedade mais antiga da França, reconhecida pela IPA.
Uma cisão, em 1954, deu origem à Sociedade Francesa de Psicanálise, com a liderança de Lacan.
A cisão aconteceu em função de um poder exacerbado de Lacan,que atendia seus pacientes no
divã, mas também em supervisão, além de dar os seminários. Com isso, ditatorialmente impunha
seu pensamento a toda Sociedade. Uma nova cisão, dez anos depois, e surgiu a APF, Associação
Psicanalítica Francesa. Esta foi reconhecida pela IPA, com a condição de que a análise didática não
fosse feita por ex analisandos de Lacan.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 33

Associação MF – &OUÍPFMFFSBEFPVUSBTPDJFEBEFy
René Roussillon – Quando me inscrevi em Lyon, a SPP iniciava um Instituto
também em Lyon, e assim fui admitido em Paris e Lyon ao mesmo tempo. A análise
deveria ser feita com um membro que fosse da IPA. Este é o único critério para ser
aceito na SPP, análise com um membro ligado a sociedades da IPA.

Associação MF – O critério é estar fazendo ou já ter feito análise?


René Roussillon – É necessário ter avançado muito na análise. Nós podemos
já ter terminado, mas é necessário que haja um número bom e contínuo de anos de
análise.
Existia o grupo dos afiliados e depois o grupo dos associados, estes já inseridos
nos grupos de seminários, muito dinâmico. Os melhores se candidatavam para se-
rem formadores. Como eu já tinha escrito muito, me disseram que não valia a pena
solicitar para ser membro filiado, que seria tempo perdido, e sugeriram que eu já
QBTTBTTFBNFNCSPBTTPDJBEP"TTJNĕ[VNBGPSNBÎÍPNVJUPDVSUByWJSFJBTTPDJBEP
NVJUPSÈQJEP1VMFJVNBFUBQB&TTBÏBNJOIBUSBHÏEJBy

Associação MF – Quanto tempo durou sua análise? Ela acompanhou a formação?


René Roussillon – Foram seis, sete anos, antes e durante a formação. Quando
terminei a análise havia praticamente terminado a formação.

Associação MF – E com quem deveria ser feita a análise?


René Roussillon – Na época a análise deveria ser feita com um membro titular-
formador. Em Lyon havia poucos membros formadores, muitas pessoas iam a Paris
e com isso perdíamos muitos possíveis candidatos, porque era muito caro, tomava
UFNQP  FSB OFDFTTÈSJP QFHBS USFNy 7JWÓBNPT FN DJEBEFT QFRVFOBT EB Provence.
Muitos preferiam ir à busca de outros formadores. Esta circunstância levou a pensar
que seria necessário abolir essa regra, que de fato foi abolida.

Associação MF – O Sr. percebeu alguma vantagem em fazer análise com al-


guém fora da SPP?
René Roussillon – Eu não escolhi Anzieu por causa disso. Escolhi Anzieu
porque estava fazendo uma formação em psicodrama, em uma organização da qual
ele se ocupava. Nessa época meu pai ficou gravemente doente e depois veio a fa-
lecer. Elaborei sua morte no psicodrama sendo interpretado por Anzieu. Comecei
colocando-o no papel de meu pai ao desenvolver os jogos de cena do psicodrama. Eu
gostava do modo como ele trabalhava, não tinha motivos para não continuar com
ele. E assim comecei a análise. Depois percebi a vantagem de sentir-me livre. Isto foi

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


34 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

algo muito importante para mim. Estar livre, livre para pensar, livre para trabalhar
com os pacientes.
Vejo colegas que se preocupam muito se pertencem a essa ou aquela socieda-
de. Valorizam só a SPP. Para mim o importante é a psicanálise bem feita. Se outros
são lacanianos e podemos trabalhar bem juntos, que bom!

Associação MF – Como foi sua experiência trabalhando primeiro com psico-


terapia e depois com psicanálise, isso o ajudou na clínica?
René Roussillon – Isto faz parte da minha postura livre. Considero que a psi-
DBOÈMJTFÏVNBQTJDPUFSBQJBFRVFBPQPTJÎÍPQTJDBOÈMJTFQTJDPUFSBQJBOÍPÏVNBCPB
oposição. Para mim a boa posição é a da psicoterapia fundada na análise. Eu sem-
pre trabalhei seguindo um modelo de psicoterapia fundada na psicanálise. Quando
fiz minha análise e minha formação, eu evolui, mas permanecendo absolutamen-
te na mesma linha. Não fiz assim: faço psicoterapia, agora paro e faço psicanálise.
Continuei a fazer o que eu fazia, e tentei fazer sempre melhor, sabendo que eu viria a
ser um psicanalista oficialmente reconhecido como tal.

Associação MF – Então o Sr. não vê uma diferenciação entre a psicoterapia


psicanalítica e a psicanálise ?
René Roussillon – Talvez existam pessoas que as considerem muito dife-
rentes. Eu, na prática, trabalho de modo muito parecido. A ideia é que eu crie ou
proponha um dispositivo que me pareça o melhor para aquela pessoa, sempre num
trabalho psicanalítico. Se o divã traz intolerâncias, faço sem divã. Trabalho três vezes
por semana, quatro vezes por semana. Se o divã é melhor, posso ter pessoas deitadas
sobre o divã trabalhando uma ou duas vezes por semana. Para mim o que importa
é pensar qual será o melhor dispositivo para que este paciente faça seu trabalho in-
terior. Se é estar na minha frente, está bem; se é estar deitado, assim o fazemos. De
qualquer maneira, estou convencido que trabalhar com quatro sessões por semana
não é a mesma coisa que somente com uma sessão semanal. Isto deve-se ao fato de
que o paciente não se comprometerá da mesma maneira se o virmos todos os dias
ou uma vez por semana. Existem muitas diferenças no processo, mas não me parece
interessante falar dessas diferenças. Outro ponto importante, penso que isso seria
como enviar uma mensagem sem sentido à sociedade: dizer que a psicanálise não
é uma psicoterapia para tratamento. A psicanálise intelectual para os estudantes de
filosofia está diminuindo cada vez mais. Isto acabou. Não tem mais sentido! A pessoa
vem à análise porque nós as tratamos. É isso que temos a oferecer. Considero algo
a pensar que a psicanálise não é uma psicoterapia. Um vértice que repousa sobre
uma má compreensão de Freud. A melhor estratégia para tratar é seguir o mais ri-
gorosamente possível a atitude psicanalítica. Se fizermos algo diferente isso não será
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 35

psicoterapia – será fazer uma psicanálise ruim. Essa não é a posição majoritária na
França, mas é a minha posição.

Associação MF – O Sr. considera que sua postura quanto à psicanálise está


alicerçada na sua expereriência clínica com pacientes considerados difíceis?
René Roussillon – Com certeza. Quando estava no hospital dia tinha pacientes
psicóticos e vivi situações, por exemplo, quando precisei segurar uma paciente por-
que ela queria passar pela janela. Havia pacientes que não suportavam não estarem
escondidos debaixo da mesa! Eram pacientes psicóticos. A situação era a seguinte:
ou eu aplicava o que eu tinha aprendido na minha formação psicanalítica – e com
esses pacientes isso não funcionava – ou então tentava algo que achava que poderia
ser eficaz com essas pessoas. Nesses momentos, entretanto, sempre pensei que era
necessário manter o maior rigor possível, procurando sempre refletir: o que se pas-
sa? Por que isso acontece? O que penso é resultado dessa experiência de estar desde
o início engajado no território dos tratamentos da psicose, de pacientes borderline,
psicossomáticos, pacientes difíceis.
Outra experiência importante foi trabalhar em consultório público no hos-
pital, mas também em consultório particular, onde havia pacientes em análise três
vezes, quatro vezes por semana, deitados no divã. Meu trabalho em muitos momen-
tos foi com pessoas muito loucas. Era necessário tomar conta daquela loucura. Você
captou bem, o ponto de partida de toda minha reflexão foi: o que fazemos com o
que nós sabemos da psicanálise em situações nas quais um paciente está escondido
debaixo da mesa? O que eu faço? Eu o obrigo a deitar no divã? O que fazer? Todos
os livros que eu escrevi foram no sentido de compreender o que se passava nesses
diferentes casos, que teorias tínhamos necessidade de considerar para atender esses
pacientes. Posso dizer que há trinta anos continuo na busca.

Associação MF – O Sr. considera que a psicanálise deve se manter sempre


como um empreendimento individual?
René Roussillon – Com certeza, não. Ela é dupla. Tenho a experiência de uma
quinzena de anos com grupo de supervisão de analistas muito bem formados, mas
que estão trabalhando, face a face, com pacientes difíceis. A análise está sempre em
questão quando analistas falam dela.
&NBOPTMJEBNPTDPNUSBUBNFOUPT BQSPYJNBEBNFOUF$POTUBUFJOFT-
ses grupos de supervisão que eram todos bons analistas, mas quando estavam so-
zinhos, muitas vezes, não conseguiam fazer avançar a análise e vinham conversar,
refletir com o grupo de elaboração. Ao repensar as questões da transferência, era
possível desbloquear as situações que impediam o avanço desse tratamento.

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

Então será que se deve pensar que psicanálise é um paciente, um psicanalista e


só? Houve êxitos, alguns surpreendentes, muito bons em termos de trabalho. Todos
melhoraram suficientemente. Podemos dizer que ficaram satisfeitos com suas análises.

Associação MF – Com qual frequência de número de sessões o Sr. costuma


trabalhar?
René Roussillon – Trabalho na maior parte do tempo com quatro sessões se-
manais, mas atualmente há cada vez mais pacientes com três sessões semanais.
Trabalhei muito com a sociedade belga, suíça, com os gregos e também com
analistas de Quebec. São todos analistas que fazem pesquisa que buscam responder
a seguinte questão: Como podemos inventar outra maneira de trabalhar com este
determinado paciente, nesse tratamento?
Pode-se fazer psicanálise de grupo, não só psicanálise individual. Na França
existem muitos analistas que fazem terapia psicanalítica de família. Isso é difundido
no Brasil?

Associação MF – Aqui, na SBPSP, temos um grupo de Psicanálise de Família.


René Roussillon –Terapias de família, de grupo, psicodrama, fiz todo tipo de
formação em um determinado momento. Percebi que enriquecia minha prática de
análise individual, a prática de atendimento individual, o trabalho de grupo e de
família.
Minha posição é simples: o que caracteriza a psicanálise não é o dispositivo,
mas a escuta do analista. O fundamental é escutar as associações dos pacientes tendo
claro que se duas coisas se associam é porque, necessariamente, entre elas há um
vínculo. Se esse vínculo não aparece é porque está renegado, transferido, deslocado.
Meu trabalho será tentar restabelecer essa ligação. Isso pode ser feito em grupo, na
relação individual, em família.

Associação MF – Como o Sr. colocaria essa postura no plano da formação?


René Roussillon – Penso que isto começa antes da formação nos institutos
de psicanálise. Começa na universidade. Em Lyon a universidade que forma os psi-
cólogos tem um departamento de psicologia clínica dirigido por mim. No departa-
mento de psicologia, o conjunto de docentes é formado por psicanalistas que ensi-
nam psicologia clínica com orientação psicanalítica. Na universidade refiro-me aos
psicólogos, no Instituto de Psicanálise digo psicanalistas. Assim, na universidade,
mesmo quando se aplica o teste de Roschach, ou se faz um grupo de psicodrama com
pacientes, há uma escuta psicanalítica. Nossos estudantes não sabem pensar de outro
modo. Um grande número dentre eles está fazendo análise. Portanto, são formados
na utilização da escuta e do pensamento psicanalítico em diferentes dispositivos:
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 37

institucionais, grupais, individuais, de família, com crianças, com os sem teto, toxi-
cômanos etc. Entretanto, não é o que acontece em todas as universidades, mesmo na
França!
Depois, a questão passa a ser: quais são os conceitos necessários para trabalhar
psicanaliticamente e quais os dispositivos a serem articulados? A base da formação
já está lá. Essa não é uma posição majoritária na França, é uma posição particular
minha.
Isso também está ligado ao fato de eu ser Vice-Presidente do Sindicato dos
Professores de Psicologia Psicanalítica para a Europa. Tenho posições políticas na
defesa da psicanálise na universidade, na psicanálise no terreno de tratamento em
geral e não simplesmente na defesa da psicanálise nos consultórios particulares. Não
quero discorrer somente em termos de consultório particular, por uma razão muito
simples: na França, por exemplo, existem aproximadamente quatro mil psicanalistas
em consultório particular e quarenta mil psicólogos envolvidos no serviço público.
Também me ocupo dos quatro mil, mas acho que nós não podemos deixar os 40.000
sozinhos. Precisamos pensar e refletir com eles. Por isso assumi a posição política de
interesse pelos problemas da clínica psicanalítica como um todo, quer seja na socie-
dade ou fora dela.
Tenho responsabilidades na IPA e viajo pelo mundo visitando sociedades,
principalmente sociedades que estão começando. A psicanálise já está na Rússia,
Romênia, Grécia e finalmente na Turquia. As pessoas lá são jovens, diferentemente
do que se vê de um modo geral nos congressos da IPA, onde as pessoas são mais ve-
lhas. Aqui na América do Sul a população ligada à psicanálise é relativamente mais
jovem. Na França a média de idade dos analistas é de 45 anos. O início da forma-
ção se dá em geral aos 40 anos; mais oito, nove anos de formação e temos 49 anos.
Precisamos procurar candidatos mais jovens, porque temos nos dado conta de que
há muita potencialidade, criatividade que não está sendo valorizada. Na época dos
grandes psicanalistas criativos da França – Anzieu, Laplanche – éramos todos jovens.
Atualmente grandes criadores e pensadores existem cada vez menos. Onde eles es-
tão? Estão em outro lugar ou não foram recrutados suficientemente cedo para con-
servar sua potencialidade. É preciso evitar um sistema de “formatação”. Precisamos
dar menos orientação e não inibir a criatividade e espontaneidade. Devemos propor-
cionar maior liberdade e possibilidade de escolha. É importante não ter preconceito
em relação ao jovem. É paradoxal uma sociedade, centrada em tratamento, ter como
único modelo a psicanálise individual em consultórios particulares, sem observar
e refletir sobre a realidade; não levando em consideração todo o contexto social. A
experiência de prática clínica em outro contexto, que o estritamente analítico em
consultório particular é muito importante. É preciso que o analista tenha prática
em pelo menos duas situações diferentes. Por exemplo, um tratamento de adulto
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
38 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

e outro de criança. Acredito que existam coisas que só aparecem em análise quan-
do praticamos diversos procedimentos. É o que explica o fato de haverem diversos
dispositivos. Outro ponto importante é o trabalho com crianças. Percebo em meus
supervisionandos que aqueles que fizeram muita terapia com crianças são melhores
analistas.
Estes são fatores importantes de criatividade que, ou se perdem, ou se desen-
volvem fora da sociedade. No aniversário de 80 anos da Sociedade de Paris, organi-
zou-se um evento para o qual apenas 250 pessoas inscreveram-se. Três meses mais
tarde aconteceu o vigésimo aniversário do lançamento do livro O eu pele, de Anzieu,
quando organizamos um colóquio com lançamento de uma coletânea de artigos,
compareceram 1400 pessoas e tinham mais 400 na porta querendo entrar. O público
abrangia pessoas da SPP, APF, lacanianos de vários grupos. O que faz diferença não
é alguém pertencer a esta ou aquela sociedade, mas sim se o que essas pessoas têm a
dizer interessa aos outros. É a resposta à demanda, é o novo, a linguagem acessível,
o sob medida. O que proponho é que a resposta vai se fazer também sob medida em
função do paciente. Quando recebo uma pessoa pergunto: você tem um projeto?
Como acha que poderemos fazer? Pensou em quantas vezes viria por semana? Se
estiver frente a um psicótico que propõe um encontro a cada 15 dias, digo que assim
não vai funcionar. Mas nós conversamos. Eu explico, e o tratamento começa assim,
pela construção dos dispositivos.

Associação MF – Como podemos pensar esse trabalho “sob medida” que o Sr.
propõe?
René Roussillon – Primeiro saber que não é tão confortável como trabalhar
em um contexto preestabelecido, pois exige mais reflexão. Além disso a atitude in-
terna é importante, mas simples. É importante pensar: não sou eu quem sabe, é o
paciente que sabe. Ele não sabe que sabe e eu, escutando, posso tentar ajudá-lo a
formular o que ele sabe sem saber que sabe.

Associação MF – E o que pensa em relação à frequência nas sessões sema-


nais?
René Roussillon – É uma combinação de fatores múltiplos: a intensidade do
sofrimento; pacientes que percebemos que irão engajar-se apaixonadamente na aná-
lise que, se tiverem uma sessão depois da outra, isso poderá tornar-se uma tortura;
um paciente psicótico que poderá demandar cinco sessões de uma hora. Outro ele-
mento é a disponibilidade efetiva das pessoas. Por exemplo, tenho muitos médicos
em suas segundas, terceiras análises, que moram em Aix-en-Provence ou Genebra,
para quem a proposta será um grupo de sessões no mesmo dia, de manhã e à tarde.
Houve um que queria vir até da Turquia, mas eu disse não! Há também conciliações
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 39

financeiras, por exemplo, pacientes com preço igual àqueles que estão em formação.
São estes os critérios. Também circula a ideia de que se não houver número suficien-
te de sessões semanais algo não poderá ser abordado. Mas, mesmo com pacientes
que vêm às sessões com maior frequência, percebemos que existe algo que não é
abordável; e, se houverem mais sessões, isso poderia levar a tal dependência que mui-
tas defesas seriam mobilizadas, dificultando muito a análise para essa pessoa.

Associação MF – Para a formação na SPP quantas sessões por semana são exi-
gidas?
René Roussillon – Um mínimo de três sessões semanais. Depois de três anos
os candidatos são examinados por três analistas formadores, desconhecidos por ele,
que depois reúnem-se com mais pessoas em uma comissão para a avaliação final.

Associação MF – No que consiste essa avaliação?


René Roussillon – O primeiro critério é observar qual a relação que o sujeito
sustenta com sua análise: como a pessoa fala de sua própria análise, de seu psicana-
lista, se ainda existem idealizações ou, ao contrário, algo pejorativo que sentimos
estar escondido lá no fundo. Outro critério é a capacidade, fluidez associativa, se ele
chega já com algo formulado e, após uma fala nossa, reage como se não tivéssemos
dito nada, ou se faz uma associação. O terceiro critério é a qualidade da presença
emocional, a presença afetiva. Podemos ter pessoas que choram na entrevista, mas
isto não será um problema, desde que venha acompanhado de uma lembrança, por
exemplo, uma situação amorosa.

Otto Kernberg5

Associação MF – O que acontece com a transferência dos membros filiados


em um Instituto de ensino em relação aos analistas didatas e à própria instituição
psicanalítica?
Otto Kernberg – A análise didática tem sérios problemas. Acho que a finali-
dade da análise é resolver a transferência e, ao mesmo tempo, o propósito da análise

5 Entrevista realizada em 15.4.2010 por Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral, Silvia Puppo,
membros filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP e Leda Herrmann, membro efetivo da SBPSP.
Otto Kernberg é membro efetivo e analista didata da New York Psychoanalytic Society, foi presi-
dente da IPA de 1999 a 2003. Atualmente é diretor do Instituto de Transtornos da Personalidade do
)PTQJUBM1SFTCJUFSJBOPEF/PWB:PSL EJWJTÍP8FTUDIFTUFS 1SPGFTTPSEF1TJRVJBUSJBEB'BDVMEBEF
de Medicina Weill da Universidade de Cornell. Tem várias publicações relacionadas à pesquisa
psicanalítica, educação psicanalítica e sobre pacientes borderlines.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
40 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

dos candidatos é que estes possam identificar-se com seus analistas didatas. É uma
contradição fundamental, como François Gustav assinalou há muitos anos. Acho
que tal contradição impede uma análise da transferência e contribui para uma pseu-
doidentidade psicanalítica, porque cria a fantasia no candidato de aprender técnica
psicanalítica pelo aprendizado da técnica de seu próprio analista. E não se aprende
técnica com a técnica do próprio analista. Porque quando se está realmente em aná-
lise, está se explorando a si mesmo e não a técnica do analista. E se seu analista é o
ideal a que ele aspira, produz-se uma idealização que não pode ser resolvida. Isso é
“paranoicogênico”; e a paranoia move-se para a instituição, para outras instituições
ou outros métodos psicanalíticos. Isso é daninho.
A análise didática também é daninha para os analistas didatas, pois são bom-
bardeados por uma idealização permanente dos candidatos, ao mesmo tempo em
que se sentem constrangidos em sua liberdade, por sentirem-se observados por co-
legas e candidatos. Ficam impedidos de uma atitude natural, ficam na defensiva e
isso favorece ainda mais a idealização. Exercem um poder não-funcional, arbitrário;
porque os analistas didatas têm direito de fazer análise didática, de dar seminários,
tendo ou não talento para educadores, e de serem supervisores, tendo ou não ta-
lento para supervisão, e ainda serem diretores da instituição, tendo ou não talento
administrativo. Ou seja, há um exercício de funções que não correspondem à sua
capacidade. Há um acúmulo patológico de poder que os transforma em uma classe
autoritária, dominante, com seus próprios interesses de classe, que contribuem para
criar um sistema hierarquizado, rígido. É a militarização da psicanálise. O exército se
compõe dos pacientes, que são os soldados rasos e dos candidatos, que são os cabos;
dos graduados que são os tenentes; dos membros associados, que são os coronéis,
e dos membros efetivos, que são os generais; e dos analistas didatas que são os co-
mandantes na chefia. Tudo isso é um longo processo, cheio de exigências totalmente
irracionais, sem nenhum objetivo que não seja o de manter a hierarquia e o poder.
Acho que a análise dos candidatos deveria ser feita de forma totalmente separada
da instituição. Todos os analistas que se graduam têm a possibilidade de receber
uma certificação de especialista depois de certo número de anos, digamos uns cinco
anos. Todos têm essa possibilidade, há critérios objetivos, e é obrigatório para todos
os que querem trabalhar clinicamente em psicanálise, tal como a certificação das
especialidades na medicina: cirurgia, cardiologia, psiquiatria. A grande maioria dos
analistas graduados são certificados, e todos os certificados têm direito a analisar os
candidatos.

Associação MF – E quais seriam os critérios, os requisitos, para poder atender


aos membros filiados em análise didática?

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


Entrevistas 41

Otto Kernberg – Em meu sistema, ser certificado é ter graduado há cinco


anos, ter demonstrado interesse em psicanálise participando de estudos psicanalí-
ticos, publicando trabalhos e apresentando casos para discussão em uma comissão.
Penso que seria recomendável um teste escrito de conhecimentos de teoria e técnica.
Já temos teste de técnica psicanalítica empiricamente confirmado. Não são testes de
psicanálise, mas de técnica psicanalítica. Na Universidade de Columbia foi desenvol-
vido um teste objetivo que avalia o nível de experiência em psicoterapia psicanalítica.
Seria necessário desenvolver um teste desse tipo e também um teste de conheci-
mentos psicanalíticos. É razoável que um analista que seja certificado conheça certos
trabalhos psicanalíticos fundamentais e não apenas os de seu Instituto. É necessário
abolir a categoria de analista didata. Acho que o sistema é muito daninho para a
educação analítica e para o futuro da psicanálise.

Associação MF – E com quem se faria a supervisão oficial?


Otto Kernberg – A escolha do supervisor seria completamente separada. Seria
realizada mediante a oferta de supervisões de grupo. Os candidatos deveriam ter
supervisões individuais e de grupo, porque na supervisão de grupo aprende-se com
o trabalho dos colegas. Nesse processo já se pode identificar quem tem talento para
formular um pensamento que ajuda todo o grupo. É possível ver entre os candidatos
quais têm talento e assim oferecer a possibilidade de serem supervisores auxiliares.
Após um número de anos estes serão nomeados supervisores. Isto é, a prática nos
mostra quem tem dedos para o piano.

Associação MF – Esse sistema que o senhor propõe favorece a criatividade dos


candidatos, não?
Otto Kernberg – Com certeza! Quanto aos seminários, quem tem ideias
oferece seminários. E se são efetivos, entusiasmam as pessoas e são bons professo-
res; podemos dar a eles cada vez mais responsabilidades. E os seminários deveriam
ser, é claro, com experts em determinada matéria e não eternizar a mesma pessoa.
Deveríamos trocá-los periodicamente, tanto os coordenadores de seminários obri-
gatórios como os de seminários optativos, conforme os tempos mudam. E os se-
minários também deveriam conter conteúdos de ciências fronteiriças à psicanálise.
Poderíamos convidar professores, não psicanalistas, para falarem sobre aspectos de
psicologia social, neurobiologia, depressão, instinto. Além disso, seria necessário um
departamento de pesquisa que desenvolvesse pesquisas com base nas perguntas ge-
radas nos seminários, nas supervisões. O instituto psicanalítico não deveria somen-
te transmitir conhecimento, mas sim tratar de desenvolver novo conhecimento, ter
uma estrutura universitária. Não apenas transmitir, mas sim criar. E criar significa
fazer pesquisa, fazer perguntas e estudar coisas alternativas. A direção do instituto
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
42 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

deveria contar com representantes dos supervisores, dos líderes de seminários, dos
pesquisadores e dos candidatos.

Associação MF – O que o senhor acha que seria o básico? Quais são as discipli-
nas que deveriam ser ensinadas no instituto? Que conteúdos, que autores?
Otto Kernberg – Acho que é necessário ensinar teoria psicanalítica contem-
porânea. Sugiro começar com teoria psicanalítica contemporânea e colocar a história
no contexto da teoria psicanalítica contemporânea. Estudar Freud no contexto da
teoria psicanalítica geral: teoria do desenvolvimento; teoria da estrutura da perso-
nalidade; teoria da técnica; teoria de aplicações da psicanálise. Seriam esses os temas
básicos. E dentro de cada um desses temas haveria aspectos obrigatórios e optativos.
O currículo deveria ser um currículo ativo.

Associação MF – Como o Sr. vê a psicanálise contemporânea? Quais são as


perspectivas para a psicanálise?
Otto Kernberg – É certo que não temos, neste momento, nenhum tratado
de técnica psicanalítica. Existem tratados de história da técnica psicanalítica como
o de Etchegoyen. Tratado de história da técnica psicanalítica de Alain de Mijolla7;
Tratado de interpretação de um ponto de vista da psicologia. Aspectos básicos de
técnica kleiniana de Hanna Segal8 etc. Mas não há nenhum texto de técnica. De
modo que a primeira ação criativa seria tratar de desenvolver um texto que inte-
grasse as ideias sobre técnica. Isso precisa ser criado e cada instituto pode trabalhar
nessa tarefa. Claro que há escolas que têm diferentes abordagens, então precisamos
estudar interpretação. Há certos temas básicos: livre associação; defesas psíquicas;
interpretação; transferência; contratransferência. Tratar de ter uma concepção in-
tegrada, que pode ser diferente, segundo o momento, em cada instituto. Bion, por
exemplo, tem importantes contribuições técnicas, mas não tem um texto geral de
técnica. Bion está fundamentado muito em Melanie Klein, que também não tem um
texto geral. Klein baseia sua teoria em Freud, de modo que há coisas parciais. Entre
os lacanianos há um texto americano, o de Paul Fing. Não é muito bom, mas enfim,
é algo. Há controvérsias, mas penso que é importante ver qual seria a técnica básica
e suficientemente estabelecida para servir de base de ensino. Poderia ser diferente
em diversos institutos, mas é necessário pesquisar as diferenças. Isso deveria ser um
motivo para a pesquisa.

 &UDIFHPZFO 3)  Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed.


 .JKPMMB "  Dicionário Internacional da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.
 4FHBM )  Klein. London: Karnac.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 43

Associação MF – A sua sugestão é para um ensino temático e não um ensino


sobre autores?
Otto Kernberg – Claro, porque a psicanálise é uma teoria e uma técnica. Se
houvesse um autor que realmente tivesse integrado tudo, seria perfeito. Mas não o
temos. Freud, no seu tempo, tentou fazer essa integração, mas já não estamos nos
tempos do Freud. Acho que o estudo sistemático da obra de Freud é um convite ao
básico, para que cada um possa construir uma teoria contemporânea. O risco é ficar-
mos com uma leitura religiosa de sua teoria e não com um pensamento científico. O
mesmo ocorre com a leitura de Bion, a leitura de Meltzer, a leitura de Lacan. O que
acontece quando interpretamos o que o autor disse? Há uma espécie de formação de
ilhas isoladas, que cada um tem de unir de alguma forma. Do ponto de vista prático
há uma sensação de insegurança, porque cada um tem uma espécie de técnica, de
teoria, que ignora a correspondência com todas as demais teorias. Basta colocar dez
analistas juntos e as diferenças aparecem. Faz falta um real labor de integração. Por
isso penso que a formação temática contribue mais do que a formação com base nos
autores.

Associação MF – Quando falamos em formação podemos pensar como se dá


esta formação, mas também: “para que”, “para quem”? Qual é objetivo desta forma-
ção?
Otto Kernberg – É uma boa pergunta. Penso que a formação deveria ter como
objetivo produzir profissionais que poderiam tratar pacientes com psicanálise e com
outras técnicas derivadas: psicoterapia psicanalítica individual, psicoterapia psicana-
lítica de casal, psicoterapia psicanalítica de grupo, psicoterapia psicanalítica breve,
psicoterapia psicanalítica de patologias especiais, como aquela que desenvolvemos
para os pacientes borderlines. Esse é um objetivo. Um segundo objetivo seria desen-
volver homens de ciência, que sigam produzindo novos conhecimentos e assim fa-
çam avançar a ciência. A ciência, ou se adianta, ou morre. Não fica estável, à medida
que aumenta o conhecimento em todos os outros lugares. É absurdo pensar que o
pensamento psicanalítico não precisa mudar, como uma religião, sendo permanen-
te. Essa é uma ilusão, a transformação da psicanálise em uma religião. Não penso
que todos os psicanalistas deveriam ser pesquisadores, mas é necessário formar tam-
bém pesquisadores. Pessoas que aplicam a psicanálise em outros campos. Nem toda
pessoa graduada precisa dedicar-se à psicanálise. Eu acho que esse é o objetivo. Há
diversos ideais: ser acadêmico pode ser tão importante como ser um bom clínico,
assim como ser um bom pesquisador, ou um pensador dinâmico que estuda patolo-
gias sociais. Agora, com a formação da análise didática, o único ideal dos candidatos
é chegar a ser analista didata. Isso produz uma esterilização da ciência e da profis-
são. Afortunadamente, sempre há rebeliões. Pelo menos na teoria e no tocante à
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
44 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

técnica. Algumas boas, outras más. De modo que há algum movimento. Entretanto,
não conduz a um progresso real porque, como não há pesquisa científica, no fun-
do vence quem grita mais alto, ou quem é mais popular. Nos Estados Unidos, uma
cultura muito pragmática e otimista, os relacionistas estão surgindo, juntos com os
sullivianos e os intersubjetivistas, pensando a clínica por meio de uma boa relação
terapêutica. A tradição kleiniana, a meu ver, é a que melhor mantém o espírito psica-
nalítico fundamental. Até certo ponto, também a psicanálise francesa que surgiu da
lacaniana. Penso que a psicanálise lacaniana tornou-se anticientífíca e mistificadora.
Este é o problema constante da psicanálise: evitar que a psicanálise transforme-se em
uma religião.

Associação MF – Qual é sua sugestão para evitar esse risco?


Otto Kernberg – Expandir a psicanálise rumo à aplicação de um espectro
maior de tratamentos psicoterapêuticos analíticos. Acredito que existe uma grande
demanda de psicoterapia e de psicoterapia psicanalítica. Existe uma demanda menor
de análise tradicional, de quatro sessões semanais. Existe uma pressão enorme para
reduzir frequência, duração e custo de tratamento. Uma pressão social. Muitos pa-
cientes que antes iam à análise clássica, vão à psicoterapia psicanalítica. Isso está per-
feitamente bem, porque existem muitos casos que realmente têm indicação e podem
ser ajudados com psicoterapia psicanalítica; outros casos precisam de análise, e não
a têm. Seria interessante que existisse um acordo científico: aqueles que precisam de
análise, aqueles que poderiam usar a análise, mas não precisam dela e aqueles que
precisam de psicoterapia psicanalítica, e os institutos psicanalíticos formariam esses
profissionais. A psicanálise seria preservada como tratamento altamente especializa-
do, necessário, mas limitado em suas indicações e, ainda, ideal para a formação de
psicoterapeutas de todo o tipo. Assim, se produziria um equilíbrio correspondente às
necessidades sociais. O que está acontecendo, acredito, é que a demanda por psica-
nálise está diminuindo porque as escolas derivadas da psicanálise estão absorvendo
cada vez mais os pacientes potenciais para análise.

Associação MF – E quanto à análise tradicional?


Otto Kernberg – Quanto à psicanálise, a discussão é: quantas sessões por se-
mana são necessárias? Sobre isso também é necessário fazer pesquisa. Os franceses
dizem que são necessárias três. A verdade é que eu tenho visto muito bons resultados
psicanalíticos de colegas franceses. Os ingleses dizem que são necessárias cinco ses-
sões semanais. Os americanos dizem que são necessárias quatro sessões semanais.
Eu acho que de um ponto de vista prático, pela minha experiência, é necessária uma
frequência mínima de três sessões semanais, mas, em casos com estrutura narcisis-
ta, provavelmente quatro sessões semanais. O mesmo acontece com a psicoterapia
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 45

psicanalítica, precisa-se de pelo menos duas, quiçá três, mas não mais. A psicoterapia
de apoio pode se dar com uma sessão semanal, duas, ou três, ou uma sessão ao mês.
Acredito que isso tem de ser pesquisado e já temos algumas pesquisas. Na Suécia de-
monstraram que a psicanálise parece ser mais efetiva do que a psicoterapia psicana-
lítica; não imediatamente, mas no longo prazo. Isso é importante, é interessante, mas
evidentemente tem de ser replicado e não está claro quais pacientes se beneficiam
mais com qual tipo de atendimento. Observo que, no mundo, tem acontecido uma
diminuição de candidatos para a psicanálise. Entretanto isso parece estar se estabili-
zando. Os psiquiatras inteligentes querem ter formação psicoterapêutica. Institutos
começam a oferecê-la; isso interessa à psicanálise. Nos Estados Unidos produziu-se
um equilíbrio, mas acho perigoso que a psicanálise tenha perdido interesse nas esco-
las de medicina, nas escolas de psiquiatria, porque a psiquiatria liga isso com a neu-
robiologia, que é um campo básico de funcionamento da mente. É importante que
mantenhamos nosso contato com a neurobiologia, de um lado, e com a psicologia
social, do outro. A psicanálise não pode funcionar num isolamento científico total.
Dizer que a psicanálise descobre realidades profundas da subjetividade inconsciente,
que não são descobertas de nenhuma outra maneira, isso é um preconceito. A reali-
dade inconsciente do indivíduo não é uma criação autóctone, mas depende de raízes
na biologia e no social. Precisamos integrar isto na teoria psicanalítica em lugar de
vê-las como um campo inimigo.

Associação MF – Quando o senhor fala em clínica, fala em integrar a realidade,


em estar atento a amor, sexo, trabalho, vida social e criatividade. Como é isso para
o analista?
Otto Kernberg – Esperamos que a psicanálise pessoal permita que manejemos
essas situações suficientemente bem. Eu esperaria da análise pessoal que ajudasse o
analista a melhorar o funcionamento nesses planos. Isso não significa que os pro-
blemas que os analistas têm e que não tenham sido solucionados, não interfiram
na possibilidade de verem seus pacientes. Ou seja, que não queremos um analista
perfeito – isto é uma idealização – mas alguém cujos problemas pessoais não inter-
firam demais no seu trabalho analítico. Eu tenho pacientes que são analistas e que
têm graves problemas narcísicos que não foram resolvidos e que não funcionam bem
como analistas.
Temos de aceitar que existem profissionais que não funcionam e temos que
tratar de ver estes limites durante a formação. E, a propósito: seleção de candidatos.
Não temos nenhum critério bom para selecionar candidatos, não há. O único crité-
rio que temos é: se alguém quer ser candidato, se há interesse real em ser candida-
to, se demonstrou ao longo da vida que tem capacidade de trabalhar duramente ou
que quando quer algo o consegue, isso é tudo. Esta foi a conclusão de um Comitê
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

Internacional, o Comitê de Capelle, no ano de 1978, após vários anos de estudo. O


achado do Comitê foi tão escandaloso que foi suprimido. Depois, na prática, uma
vez que o candidato é aceito, continua até graduar-se. Então, ou é aceito, ou é dis-
pensado. Acho que é um erro grave. A seleção se faz passo a passo. A supervisão tem
de ser honrada e séria. De modo que não devemos surpreendermo-nos ao final se
nos disserem que não nos graduaremos após terem transcorrido sete anos. É uma
responsabilidade da instituição, a de ir passo a passo. Atualmente não nos interes-
samos muito em como são os supervisores, exceto no modelo francês, que aboliu a
análise didática. Os franceses deram um passo à frente. O resto do mundo ainda está
no século passado.

Associação MF – Gostaria de nos dizer algo além do que foi perguntado?


Otto Kernberg – Diria apenas uma coisa: como em todas as profissões, muito
depende do que se quer fazer. Cada candidato tem a possibilidade de obter o me-
lhor do Instituto, seja por onde for, e deve aprender onde puder, criticamente. Deve
se graduar, continuar se formando, mas sempre manter um critério independente.
Estudar e manter certa independência, uma atitude científica. Psicanálise não deve
ser uma religião.

Associação MF – Qual seria a condição essencial para um bom analista?


Otto Kernberg – Interesse, inteligência, intuição, honradez. Especialmente
um interesse autêntico em seres humanos e o desejo de ajudá-los.

Stefano Bolognini9

Associação MF – Durante os últimos dois anos, a Associação de Membros


Filiados da SBPSP esteve realizando uma série de entrevistas com os vários psicana-
listas estrangeiros que visitaram nossa instituição, e será um grande prazer realizar a
última entrevista de nossa gestão na Associação com o senhor.
Atualmente nossa sociedade – a SBPSP – vem discutindo intensamente sobre
TFVNPEFMPEFGPSNBÎÍP0DPSQPTPDJFUÈSJP JODMVJOEPUBNCÏNPTNFNCSPTĕMJBEPT

9 Entrevista realizada em 23.10.2010 por Ana Maria Vieira Rosenzvaig e Rita Andréa Alcântara de
Mello, membros filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP, durante o Congresso da FEPAL em
Bogotá.
 4UFGBOP #PMPHOJOJ Ï BOBMJTUB EJEBUB F BUVBM QSFTJEFOUF EB 4PDJFUÈ 1TJDPBOBMJUJDB *UBMJBOB SPI  GPJ
Diretor Científico Nacional da SPI, cofundador do Comitê Patologias Graves da SPI  FYQSFTJ-
dente do centro Analítico da Bologna. Na IPA foi Board Representative para a Europa, 2003-2007;
co-chair por Europa CAPSA Committee; chair IPA 100 Anniversary Committee.
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 47

– BOBMJTUBTFNGPSNBÎÍP UFNSFBMJ[BEP BUSBWÏTEF$POHSFTTPT*OUFSOPT WÈSJBTEJT-


cussões sobre este assunto, visando uma reflexão e possível revisão do modelo de
análise didática vigente na instituição. O que o senhor poderia nos falar sobre este
assunto?
Bolognini – Apresentar essa problemática específica da formação psicanalí-
tica a alguém que está concorrendo ao cargo de presidente da IPA *OUFSOBUJPOBM
1TZDIPBOMZUJD "TTPDJBUJPO  Ï DPNP DPMPDBS VNB EJOBNJUF FN TVBT NÍPT SJTPT 
Tudo o que eu apresentar pode ser colocado tanto contra, como a favor da minha
pessoa. Mas eu não temo, não pretendo me esquivar. Posso dizer o que penso pes-
soalmente e o que penso institucionalmente, não de uma maneira cindida – uma for-
ma pessoal e outra como figura institucional. Poderia ser dito que há uma dinâmica
histórica, portanto, temos que enquadrar essa problemática na situação histórica, na
evolução da psicanálise como instituição. Posso começar pelo o que ocorre na Itália.
O que temos é o modelo Eitington: os candidatos fazem suas análises na frequência
de quatro sessões semanais e, tradicionalmente, os dois casos de supervisão eram tra-
tados com frequência de quatro sessões semanais. Há nove anos, a Sociedade Italiana
decidiu fazer uma mudança: o primeiro caso de supervisão seria de um atendimento
de quatro sessões semanais, e o segundo caso com uma frequência de três sessões
semanais. As razões dessa experiência, que ocorreu por sete anos, foram, em parte,
razões externas: a dificuldade de buscar pacientes pelos candidatos e, o mais im-
portante, era que a prática clínica predominante dos analistas em formação ocorria
mais habitualmente com atendimentos de três sessões por semana. Então, parecia ser
irreal que não se pudesse refletir com um supervisor durante a formação sobre uma
situação de atendimento de três vezes por semana. Assim, as duas frequências de
atendimento – de quatro e três vezes semanais – foram exploradas adequadamente
com o supervisor.
Durante esses sete anos, um grupo amplo de analistas em formação viveu essa
experiência e proporcionou material para a pesquisa dessa situação. Portanto, uma
reflexão muito detalhada sobre os aspectos e efeitos das duas diferentes frequências
– 3 e 4 sessões semanais – pôde ocorrer. É importante mencionar que, após um lon-
HPUFNQPEFBDPNQBOIBNFOUPEPUSBCBMIPEFTFVTTVQFSWJTJPOBOEPTBOBMJTUBTFN
formação que viviam esta experiência, foi opinião da maioria dos supervisores que,
em ambas as frequências, o que ocorreu foi um processo analítico. Generalizando,
a diferença mais interessante era que na frequência de três sessões por semana, o
analista podia trabalhar bem, mas se percebia mais cansado com o atendimento.
Já na frequência de quatro vezes por semana, o que se observou, foi o analista mais
relaxado, menos cansado, pois era menos exigido. Vale lembrar que estamos falan-
do de situações de “casos tranquilos”. Nestes casos, foi constatado que o analista
que atendia quatro vezes por semana pode se “conectar” menos ativamente, pode se
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
48 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

permitir uma co-regressão associativa mais tranquila e confortável. Nas três sessões
trabalha-se bem, mas o trabalho do analista precisa ser mais intenso interiormente.
Isso é uma realidade e um dado interessante para se levar em consideração.
Na IPAIÈBBQSPWBÎÍPEPTUSÐTNPEFMPTPGSBODÐT PDMÈTTJDP &JUJOHUPO FP
uruguaio. O modelo Eitington constituía-se como um modelo ideal e a aprovação de
outros modelos era um problema. O modelo francês já existia há muito tempo, e es-
tava excluído do “psiquismo institucional”. Todos sabiam que ele existia há mais de
40 anos nas discussões entre analistas nos congressos, mas no Internacional Journal,
nos artigos sobre os modelos, a questão não aparecia. Não existia nas regras da IPA.
Isso era um sintoma; uma condição de cisão compartilhada institucionalmente, um
splitting no board da IPA, onde o modelo francês não estava. Quando a IPA assumiu
UPNBSDPOIFDJNFOUPEJTTP JOJDJPVTFVNBEJTDVTTÍPEPTEPJTNPEFMPT &JUJOHUPOF
PGSBODÐT FEFTDPCSJVTFBFYJTUÐODJBEFVNUFSDFJSPNPEFMPoPVSVHVBJP
O modelo francês era conhecido, e não mencioná-lo oficialmente constituía
uma enorme situação enganosa. Já o modelo uruguaio servia a uma realidade local
e, assim, sofria menos impacto de ataques extremos, pois a defesa institucional neste
caso se mostrava menos ativa. A aprovação institucional dos três modelos passou
pelo board com diferença de um ou dois votos. Isso pode demonstrar a complexida-
de da situação. Isso significa que uma grande instituição como a IPA tem suas defesas,
e a necessidade de muito tempo de elaboração e perlaboração para modificar algo,
para aceitar mudanças. Há uma dinâmica muito lenta nos seus processos internos.
Agora, o mundo exterior muda, e há fatores importantes como, por exemplo,
os socioeconômicos que tornam mais difíceis imprimir e manter a frequência clás-
sica. O mundo interior de nossas vidas também muda com uma complexidade que
temos que reconhecer. Porém, há fatores positivos que poderiam permitir repensar a
redução da frequência, como por exemplo: nos cem anos de psicanálise conhecemos
melhor os processos internos, temos uma variedade de instrumentos que facilitam
trabalhar. Isso seria um fator positivo na discussão em favor de possíveis mudanças.
Entretanto, há uma complexidade na situação que nós conhecemos muito bem: as
resistências que podem estar a serviço da redução da frequência. Há uma grande
complexidade na problemática. Há fixações à tradição histórica, um fator que não
é favorável à redução do número de sessões. Há fixação nas resistências e, por ou-
tro lado, há também um reconhecimento da realidade que sugere possível redução
da alta frequência. Temos dito que a rigidez nas regras pode prejudicar as relações
autênticas nas sociedades. Ao mesmo tempo, reconhecemos que há necessidade de
uma estrutura formalizada.
/BNJOIBQPTJÎÍPQFTTPBM FJTTPFVEJSFJOPNFVstatement à IPA PNBJTJN-
portante agora, nesse momento histórico da instituição, é proporcionar e desenvol-
ver uma intensiva discussão de intersigth (intercambio/movimento horizontal) entre
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
Entrevistas 49

as sociedades. A opinião de outros é mais importante do que desenvolver uma dis-


cussão de oversight (supervisão/movimento vertical), que seria uma posição supere-
goica, de regulamentação. É claro que, de uma forma ampla, um pouco de oversigth
é necessário, por que de outra forma a alternativa seria o caos total. A meu ver, a pre-
valência do intersigth permitiria à instituição, no seu interior, confrontar diferentes
realidades e elaborar uma maneira comum de possíveis trocas; como o que ocorreu
em relação aos três modelos.
Os três modelos são o fruto do reconhecimento da existência das diferenças,
das diferentes práticas e das resistências. Nesse ponto, um trabalho muito difícil e
EPMPSPTP OP JOUFSJPS EB JOTUJUVJÎÍP IPA  PDPSSFV 1PEFTF EJ[FS RVF B EJTQPTJÎÍP
da instituição em trabalhar as pressões entre o super-eu, o self e todas as partes da
instituição exigiu muito trabalho e muito sofrimento para se chegar a uma solução
institucional aceitável.
As propostas que estão em discussão na sua sociedade, são três possíveis hi-
póteses:
1. Manter as regras como estão no modelo Eitington – é a que está valendo
atualmente.
2. Garantir alta frequência; o que poderíamos equivaler ao modelo uruguaio.
O modelo uruguaio é considerado, e possibilita que a dupla analítica possa
decidir entre três ou quatro sessões para análise didática e para o trata-
mento dos pacientes para supervisão e relatórios.
3. A terceira hipótese de liberdade na definição da frequência pela dupla
analítica não poderia ser aceita, pois se trata quase do modelo lacaniano;
um setting livre.

Realisticamente, creio que, do ponto de vista político da instituição, a terceira


hipótese, no momento, é irreal; não poderia ser aceitável. Eu não digo que eu sou
DPOUSB NBTEPQPOUPEFWJTUBEBJOTUJUVJÎÍP IPA OÍPTFSJBBDFJUÈWFM"TFHVOEBIJ-
pótese é aceitável, pois é como funciona o modelo uruguaio.
Porém, uma questão a ser levantada quando se pensa em mudanças é o se-
guinte: se ocorrer a mudança na frequência de quatro para três sessões semanais,
o Instituto de São Paulo estaria assumindo parte do modelo uruguaio. O problema
é que a IPA aceita mudança do modelo, mas de todo o modelo. Não se pode tomar
apenas uma parte do modelo e inseri-lo num outro modelo. Esta é a posição atual da
IPA. São Paulo poderia trocar do modelo Eitington para o uruguaio, mas nesse ponto
teria que rever todo o sistema, incluindo uma revisão e reflexão sobre os seminários,
as supervisões etc.

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


50 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

Associação MF – Também acreditamos que é preciso refletir sobre o modelo


como um todo: os seminários, as supervisões, a análise didática; tudo estando ar-
ticulado. E, é mesmo desta forma, que os congressos internos, que discutem estes
assuntos na SBPSP, têm sido organizados.
Bolognini – Aqui eu posso dizer algo da minha visão pessoal sobre a IPA. A
IPA fez um grande trabalho, um grande esforço aceitando os três modelos, e agora
a IPA está exausta. Em minha opinião, uma proposta real de intersigth, seria abrir a
possibilidade de participação para todas as sociedades nas discussões sobre o que
ocorre em cada sociedade. Eu creio que uma tolerância às especificidades regionais,
nos próximos anos, pode ser aceita pelo corpo institucional, pela “mente institucio-
nal”. Seriam os primeiros passos para uma tolerância maior das diferenças. Tenho
que sublinhar que isso pode ser possível em uma condição de intersigth, de trocas
verdadeiras. Por exemplo: quando a Sociedade Italiana apresentou sua experiência
com os dois tipos de supervisões – a primeira com quatro sessões e a segunda com
frequência de três sessões semanais; a apresentação clara dessa experiência num tex-
to escrito sobre a análise de alta frequência, numa discussão teórica e clínica da ex-
periência, num regime de intersight na discussão dessas questões, isso produziu um
efeito espontâneo de respeito por parte de outras sociedades sobre essa experiência.
Essa experiência foi apresentada em um congresso da FEP 'FEFSBÎÍP&VSPQFJBEF
1TJDBOÈMJTF  F OÍP TVSHJV OFOIVNB SFBÎÍP EP UJQP TVQFSFHPJDB " JOUFOTJEBEF EP
intercâmbio institucional entre sociedades foi respeitada. Isso não é uma solução
universal, mas avaliza a possibilidade de passagem para um modo de funcionamento
que valorize os intercâmbios.

Associação MF – Quanto tempo a instituição italiana levou com essa reflexão?


Quanto tempo de discussão para a alteração de quatro para três sessões semanais nos
casos de supervisão?
Bolognini – A experiência demorou sete anos. A discussão, dois anos. Pode ser
que em outras sociedades esse processo possa ser mais rápido, tanto na experimenta-
ção como na mudança. Cada sociedade é um caso particular, tem a suas experiências,
suas expectativas, e tem que discutir suas considerações com a IPA e com as outras
nações ao redor, pois outras nações podem se sentir ameaçadas com as mudanças.
Como na política, há o comunismo, o fascismo, e as nações ao redor. Os vizinhos,
podem se incomodar quando as nações resolvem mudar os seus sistemas políticos.
1PTTPEBSVNFYFNQMPPOPTTPJOTUJUVUP JUBMJBOP QPEFQSPEV[JSTPNFOUFVNOPWP
movimento com esta proposta de mudança nos casos para supervisão, ou pode ser
que nossa nova geração de candidatos provoque um movimento de admiração para
os demais candidatos de outros institutos, e isso pode tornar-se um incomodo.

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


Entrevistas 51

Associação MF – O que senhor pensa sobre a sucessão da nova geração? Como


percebe a atuação da nova geração de analistas em formação no movimento psicana-
lítico institucional e científico?
Bolognini – Percebo um desenvolvimento. Tem havido um intercâmbio cres-
cente entre a IPA e a IPSO International Psychoanalytic Student Organization  "
IPSO permaneceu, por algum tempo, retirada, ou melhor, afastada das relações com
a IPA. Houve muitos conflitos, por parte da IPA, em relação a IPSO. Alguns dizem
que o intercâmbio tem excessos, enquanto outros são a favor de um intercâmbio
maior. Na presidência de Claudio Eizirik, que foi uma gestão democrática e muito
inovadora na relação entre IPA e IPSO, havia clareza quanto aos cargos e funções, e
assim o intercâmbio foi incentivado. Atualmente, há a organização por parte da IPSO
dos congressos, a presença e discurso de representantes da IPSO nas cerimônias de
BCFSUVSBEFTTFTDPOHSFTTPT0JOUFSDÉNCJPFOUSFFTUBTEVBTJOTUJUVJÎÜFT IPA e IPSO 
tem sido algo verdadeiramente único. Isso é também parte de uma troca e relaciona-
mento entre os institutos. No instituto de Montevidéu, por exemplo, há uma postura
avançada, mas em outros institutos há um clima, uma atmosfera completamente
diferente, que não é avançada.
O problema está no setting do candidato com seu instituto de formação. Isso
se refere ao real grau de identidade do candidato, ou melhor, analista em formação, e
sua possibilidade de pertencer e participar mais. No passado, por exemplo, nos insti-
tutos de psicanálise, os candidatos não podiam participar de conferências de analis-
tas convidados de outros institutos, ou seja, não podiam participar da vida científica
da instituição a qual pertenciam. No Instituto de Bologna, que é um dos quatro ins-
titutos de formação na Itália, havia regras como nos demais institutos: o candidato
não podia participar das atividades científicas até o término de sua análise pessoal.
Isso foi mudado. Atualmente, nas ocasiões especiais, quando há um congresso im-
QPSUBOUFPVDPOGFSÐODJBEFVNBOBMJTUBFTUSBOHFJSP PRVFÏVNBPDBTJÍPÞOJDB PT
analistas em formação podem participar. Hoje os candidatos podem participar de to-
das as atividades científicas, quando faltam seis meses para o término de sua análise
pessoal. Isso foi uma mudança, pois no passado somente podiam participar quando
se tornavam membros associados.

Associação MF – Em nosso instituto na SBPSP nós, analistas em formação, te-


mos uma participação muito intensa. Participamos e temos, inclusive, direito a voto
nas deliberações no board do instituto.
Bolognini – Isso é muito mais avançado! Há quantos anos isso acontece?

Associação MF – Isso já ocorre há cinco anos. Na SBPSP OØT DBOEJEBUPTPV


NFNCSPTĕMJBEPT UFNPTUJEPSB[PÈWFMQBSUJDJQBÎÍP FTQFDJBMNFOUFOFTTFNPWJNFOUP
+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   
52 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

de reflexão da nossa sociedade sobre a formação: as supervisões, a análise didática


etc., por exemplo, participando dos Congressos Internos, que têm sido promovidos
para discussão destes temas. Isso tem sido muito rico para nós!
Bolognini – Voltando ao ponto inicial, analiticamente falando, a ideia de re-
duzir a frequência na análise didática pode estar a serviço da resistência, enquanto a
ideia de não reduzir a frequência pode estar associada a outros movimentos. Então,
o que é necessário é uma larga reflexão sobre esse tema. A realidade externa pode ser
usada pelo paciente ou pelo analista defensivamente, o mesmo serve para a realidade
interior. É uma complexidade que requer uma maior reflexão.
Vou falar, como exemplo, de uma candidata que trouxe para supervisão um
possível paciente para análise, mas para o qual havia um problema financeiro. O
paciente não podia pagar o valor da sessão. Discutimos um pouco e resolvemos espe-
rar. Quando o paciente não tem o dinheiro suficiente, ele paga um valor muito baixo.
Como acontece agora na Itália, onde os candidatos cobram um preço baixo, porque
convêm a eles, pois querem evitar o risco de abandono do tratamento pelo paciente.
Para preservar o paciente, encontram uma solução “mais ou menos”. Isso é doloroso
para o candidato, porque ele paga supervisão, análise e tem um custo enorme com
sua formação. Finalmente, muitos candidatos precisam cobrar um valor baixo para
ter tranquilidade no caso clínico para sua supervisão.

Associação MF – Isso não altera e compromete a análise? Deixa de ser uma


análise autêntica. O trabalho não é o mesmo em relação a outros pacientes. Não exis-
tiriam outros componentes envolvidos no desenvolvimento desse processo, numa
situação como essa?
Bolognini – Isso é absolutamente verdadeiro. Essa é uma situação onde algo é
trocado. Não sei o que é. O progresso que se espera do jovem analista é que ele possa
levar dois casos para supervisão e possa cobrar o que acha correto. Podemos voltar
ao exemplo da candidata que acabo de mencionar. Ela havia dito que o paciente não
tinha dinheiro para pagar, mas numa supervisão comigo, a analista comentou que
“deixou a porta entreaberta” com o paciente. Pudemos depois acompanhar o que
ocorreu: duas semanas mais tarde a analista recebeu uma chamada telefônica desse
mesmo paciente, que ligou informando que havia arranjado uma maneira, um pe-
queno trabalho, que permitiria que ele pagasse um pouco mais. Nessa situação, po-
demos pensar que há um campo dinâmico onde novas situações podem se produzir.
Assim, não é fácil colocar regras fixas.

Associação MF – Gostaríamos de voltar ao tema da formação, e ouvir mais


sobre suas considerações a respeito do percurso de formação de um psicanalista.

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


Entrevistas 53

Bolognini – Lembrei que o Jornal de Psicanálise publicou um artigo meu so-


bre o mito da família institucional do analista. Neste artigo aponto que, exatamente
como ocorre nas famílias, os analistas vão se constituindo e construindo sua identi-
dade analítica. Temos institutos que são quase militares, mono-teóricos, e há tam-
bém aqueles com correntes mais liberais. O problema maior, na minha experiência,
é quando a pluralidade existe, mas não é aceita pelos analistas, ou seja, são “pais”
que não aceitam as diferenças e não querem conversar. É muito comum esse tipo de
família dentro das sociedades: se os “pais” estão de acordo, todos estão de acordo.
Nos nossos institutos onde não há conversa, o problema que aparece não é tanto no
seu interior, mas com o exterior. Em muitos congressos os mono-teóricos não parti-
cipam, pois o mundo é a sua casa, seu instituto. Eles constituem-se como uma célula
impermeável. No momento, o importante é o trabalho de reconhecimento de outras
ideias. Como “tios” que, por vezes, não são bem vistos pela família, por possuir ideias
diferentes, mas possuem ideias autênticas, múltiplas.

Associação MF – Nesse sentido é muito importante conhecer esses “tios”, ou


seja, ouvir outras vozes. Isso que o senhor está mencionando, faz-nos lembrar uma
expressão que usamos no Brasil: “samba de uma nota só”, também nome da música
do compositor brasileiro Tom Jobim. Pensamos que em uma análise o importante é
podermos construir uma música com o paciente, a partir de várias notas que pude-
mos ouvir durante nossa formação. Nesse sentido, é difícil imaginar um “samba de
uma nota só”.
Bolognini – Sim, há analistas “de uma nota só”, mas também podemos ver
esses analistas com virtuosismo. Na minha experiência, o problema do analista mo-
noteórico ou pluralista é menos importante, do que o problema do analista autên-
tico ou não autêntico. Os analistas podem ser monoteóricos e “imperialistas”, mas
autênticos. Podemos falar algo de bom deles, são verdadeiros. Há outros monoteó-
ricos, que não; podemos dizer que aí existe uma evidente identificação interior, que
definirei como identificação projetiva com o objeto incorporado ou interiorizado,
mas não introjetado. Nesse caso há um sintoma; é falso. O mesmo ocorre com os
pluralistas: há os verdadeiros, que realizaram introjeções autênticas e os outros que
nunca introjetaram o objeto, ouviram várias linhas de trabalho, mas não se tornaram
verdadeiros.

Associação MF – Durante nosso processo de formação, qual o cuidado que


devemos ter na construção dessa autenticidade?
Bolognini – Eu creio que, em termos teóricos, podemos definir esse proces-
so como um processo de identificação introjetiva, que não substitui a identidade, o
verdadeiro self do analista. Quando se termina uma analise didática, o candidato
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54 Associação dos Membros Filiados da SBPSP

se apega ao seu analista. Recorda seu analista, recorda sua estória com o analista.
O analista é um objeto interior, mas diferenciado, e deve ser possível sua substitui-
ção. Precisa haver um processo de separação para o candidato encontrar-se como
dono de seu modelo; de seu modo de ser como analista. É uma operação de “higiene
mental”. Eu me recordo que no inicio da minha vida como analista, por vezes, me
descobri dirigindo-me aos meus pacientes de maneira muito parecida com aquela
que meu analista fazia, e eu sabia que precisava encontrar a minha maneira de ser,
minha autenticidade.

Associação MF – Acreditamos que essa referência também faz parte do inicio


de um processo de formação. Dá segurança. Depois, com o passar do tempo, isso
vai se diluindo. É como aprender a andar: no início precisamos de um apoio, mas,
depois, quando temos certa segurança, arriscamos os primeiros passos.
Bolognini – Tem razão. No início também é imitação. Depois vamos apren-
dendo a jogar futebol, andar de bicicleta etc. Vamos, aos poucos, encontrando os
nossos próprios caminhos, mas é de grande importância essa sustentação inicial.

Associação MF – Pensamos que podemos encerrar por aqui. Gostaríamos de


lhe agradecer muito por esta conversa. Foi uma oportunidade maravilhosa ouvi-lo.

+PSOBMEF1TJDBOÈMJTFo4ÍP1BVMP W   


FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

CAPÍTULO UM
Identidade

Este livro pretende ser um manual de autodefesa para novos, geralmente,


jovens, analistas. Do que os novos analistas têm que se defender?

Para começar, acredito que os jovens analistas devam sustentar a oportunidade


de serem jovens. Há alguns dias, eu estava lendo sobre um colega italiano que, referindo-
se a um analista de sessenta e dois anos, afirmava que deveria respeitar melhor as opiniões
dos analistas mais velhos do que se envolver em polêmicas com eles. Assim, um analista
de sessenta e dois anos ainda é considerado um jovem analista.
Espero que os jovens analistas tenham, em pouco tempo, trinta ou trinta e cinco
anos. Ou seja, que a idade profissional dos membros das associações psicanalíticas possa
estar alinhada com a idade real, enquanto que agora há um tipo de “bônus” de vinte, trinta
anos, de modo que um jovem associado tem sessenta e dois anos de idade, um jovem
comum tem sessenta e cinco anos e assim por diante.

Este é um primeiro ponto relevante. Mas, aposto que há mais...

Segundo, acredito que eles devam se defender do excesso de ortodoxia que


impede o desenvolvimento de novas ideias e isso ainda está relacionado com a questão
da idade. Considere que um analista que ensina e tem mais ou menos cerca de sessenta a
sessenta e cinco anos, por mais que tente se manter atualizado, tem uma formação que
remota a trinta anos atrás; então, se ele ensina em 2016, ele ensina psicanálise dos anos
80; há sempre um atraso de trinta anos.
Além disso, eu diria que os analistas têm que se defender, acima de tudo, da
psicanálise “Kyrie eleison, Christe eleison”, ou seja, daquelas fórmulas ingênuas
completamente diferentes, que ainda precisam ser celebradas como um sinal de
pertencimento, e que continuamente tem que ser repropostas para serem aceitos e
reconhecidos como parte do grupo. Isso varia desde citar Freud no início de qualquer
trabalho, pelo menos em quase todos os países da Europa – não nos EUA – a todas as
coisas que consideramos completamente garantidas. Elas se tornam atos de fé, mantendo-
nos muito longe do que Bion diz nos Seminários de Tavistock (2005) – talvez, ao citá-lo
também eu esteja fazendo um pouco de ortodoxia, uma doença da qual terei de me curar
suficientemente – por exemplo, os conceitos de transferência e contratransferência foram
tão importantes e geraram tantos novos pensamentos e estruturas que agora poderíamos
facilmente passar sem eles.
Portanto, acredito que todos nós, e não apenas os novos analistas, temos que nos
defender do que já sabemos: tudo o que é conhecido não deveria nos interessar mais. Se
estamos convencidos de que há um inconsciente, ou algo que chamamos assim por
enquanto – espero que no futuro possa ser substituído por algum outro conceito – e se
pretendemos nos preocupar com isso, então significa que é o desconhecido que nos
preocupa. Tudo o que sei sobre um paciente, uma vez que eu saiba, não me interessa mais.
Meu olhar, minha atenção, meu ouvido deve ser direcionado para tudo que ainda não
conheço. O mesmo se aplica à teoria psicanalítica: em vez de consagrá-la ou torna-la um
objeto de investimento acrítico, devemos começar a coloca-la de lado. São passos já
percorridos: obviamente estamos no sétimo andar graças aos passos que vão do primeiro
para o segundo, do segundo para o terceiro, do terceiro para o quarto e assim por diante;
sentimo-nos gratos aos passos que nos trouxeram até aqui, mas estamos mais preocupados
com os passos que ainda temos de subir naquelas partes do edifício que ainda não
conhecemos ou que ainda estão para ser construídas.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Pense em quanto a ortodoxia obstrui nossa visão: “a transferência negativa deve


ser interpretada!” “a transferência negativa deve ser interpretada dessa maneira!” São
posições muito fortes sobre o que devemos fazer. Devemos descobrir a cada dia o que
seria mais útil fazer com aquele paciente, naquele momento, dependendo de como ele
está e como estamos.
Outra coisa da qual devemos nos defender é a “poluição luminosa” do que
sabemos, que nos impede de ver áreas ainda desconhecidas, como o que acontece nas
cidades, cheia de luzes noturnas. Basta pensar em quando vamos de avião para Nova
York, à noite, e vemos grandes manchas de luz, e sabemos que é isso que impede seus
cidadãos de verem o céu, as estrelas, a escuridão. Se entrarmos em uma área sem
iluminação excessiva, podemos ver um pouco mais da noite. Temos muitos conceitos aos
quais damos muita importância. Gostaria de mencionar o que dois jovens analistas em
formação pontuaram para mim, algo que eu pensava há muito tempo, mas que não havia
formulado tão claramente. Parece que Arthur Schnitzler, escrevendo sobre psicanálise,
afirmou que a importância atribuída ao complexo de Édipo pela psicanálise tornava
impossível ver um número esmagador de outros “complexos”, o que teria sido possível
se não fosse por essa “poluição luminosa” de Édipo, a qual faz o Édipo aparecer em toda
parte, impedindo que outras condenações sejam vistas, reconhecidas e entendidas. Em
outras palavras, assim como a “poluição” do que sabemos sobre um paciente é
catastrófica no trabalho clínico, é igualmente catastrófico na conceptualização, enquanto
teorias e modelos deveriam ser conhecidos e depois rapidamente esquecidos.

Isso me traz à mente outra questão. Se eu tiver que olhar o céu para ver as
estrelas, tenho que saber que o céu está acima, que preciso de óculos, por exemplo,
se eu sou míope ou astigmático, senão não vejo nada. Então, preciso de alguma
condição necessária, como a escuridão, sem a qual não posso fazer. Quais são as
condições que a psicanálise precisa para permanecer na psicanálise – supondo que
estamos preocupados com a psicanálise que permanece na psicanálise? Quais são as
coisas que não devemos esquecer?

Primeiro de tudo, que o céu está necessariamente acima continua a ser visto,
porque o céu também está em baixo. Lembro-me de como fiquei impressionado, a
primeira vez que fui ao hemisfério sul e vi que havia um céu completamente diferente:
estava procurando pela Estrela do Norte, mas ao invés disso, vi o Cruzeiro do Sul. Então,
se imaginarmos perfurar um buraco na Terra – felizmente podemos imaginar qualquer
coisa na psicanálise – e, através do buraco ser capaz de ver o outro lado, o céu cairia.
Além dessa esquisitice, o que quero dizer é que tudo depende da perspectiva que
adotamos.
Por enquanto, não posso prever como será a psicanálise em um determinado
período de tempo; hoje e no futuro próximo, acho que para termos uma análise precisamos
de dois indivíduos e um setting. Eu acho que o mínimo necessário é isto: que haja um
analista, um paciente e um setting. Estou convencido de que um analista pode ser definido
como tal quando na companhia de alguém que aceita a posição de paciente, em um setting
que faz sentido manter. Fora desse arranjo não há analista: não sou um “analista” das 20h
às 7h59 do dia seguinte, 24h por dia. Eu acredito que a identidade do analista é algo que
é adquirida apenas na presença do paciente e dentro de uma configuração. Em qualquer
coisa que façam fora disso, somos pessoas que estudaram, pessoas com uma certa
perspectiva sobre a vida. Podemos usar ferramentas analíticas, pensando que isso nos
ajuda a entender melhor um filme, um livro, mas parece-me que alguém que tenha
ferramentas antropológicas ou sociológicas vai entende-los melhor. Meu ponto de vista
muito pessoal é que muitas vezes somos ridículos quando tentamos a psicanálise aplicada.
2
FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Acho que a coisa em que não somos ridículos é ser psicanalistas: apenas nós, nosso
paciente e nosso setting. Então nos tornamos algo verdadeiramente importante: pessoas
que são capazes de lidar com o sofrimento mental de uma mente atormentada, para a qual
podemos certamente trazer alívio, ajuda e que podemos acelerar em direção a um
processo de cura. Obviamente, a cura é sempre relativa e sempre com letra minúscula,
mas esse é o nosso campo, essa é nossa especialidade.

Então, nós dois pertencemos a esse grupo de psicanalistas, e acho que são
uma maioria, que acreditam que a psicanálise é, sobretudo, cura. Como
dispensadores de cura, há mais de um século os psicanalistas têm questionado quais
são os fatores terapêuticos. Hoje, existem muitas outras ferramentas de cura
psicológica: terapias cognitivas comportamentais, construtivistas e sistêmicas. Eu
acho que é realmente importante, tanto para um novo analista em desenvolvimento
quanto para um analista que tem questionado por toda a sua vida, entender qual é
a função específica da psicanálise como ferramenta de cura. Qual é ajuda específica
que um analista pode dar àqueles que se voltam para ele?

Eu poderia dizer: inconsciente, inconsciente, inconsciente.


Não há psicanálise se não levarmos em conta a dimensão inconsciente.
Independentemente de entende-lo em suas versões freudianas mais tradicionais, como um
inconsciente existente já estruturado para decifrar – que são os primeiros, os modos mais
ingênuos de pensar o inconsciente – ou pensamos no inconsciente como uma estrutura
em perene formação e transformação, em desenvolvimento para que junto com o paciente
somos produtores do inconsciente funcional; eu acho que nosso campo é ser navegadores
sem bússola e criadores, junto com o paciente, do inconsciente.
Além disso, podemos considerar as ferramentas pelas quais esse processo é
conduzido hoje, e digo hoje, porque espero que, daqui a vinte, cinquenta, cem anos, as
coisas sejam diferentes. As ferramentas de hoje são tudo o que pertence ao sonho, ou seja:
a transformação que fazemos enquanto despertos do sensorial em imagens; os processos
e atividades de rêverie, nossa capacidade de sonhar as comunicações do paciente,
desconstruí-las e obter deles um significado comunicativo; e a construção, junto com o
paciente, de mundos que, antes disso, não eram pensáveis nem talvez existissem. Este kit
de ferramentas nos ajuda a transformar os bloqueios mentais em pensamentos pensáveis
e emoções passíveis de material não elaborado que se transformou em sintoma, tornando-
o pensável, tolerável e significativo. Um analista transforma as histórias que não podem
ser digeridas e tece novos significados sustentáveis da mente do paciente. Ele é um co-
narrador do inconsciente.
Como já disse em outro lugar, acho que, de todos os papéis que um analista é
chamado a desempenhar, ele é, sobretudo, um tipo de “mago” que usa a magia dos sons,
das imagens e das palavras. O analista transforma a realidade interna, exorciza demônios,
monta dragões: abre um espaço para a imaginação, a criatividade, o absurdo e o
impensado.
Tolstoi contou uma vez como, quando criança, ele havia construído um trem de
cadeiras com um amigo e estava se divertindo muito com esse jogo de faz de conta, até
que seu irmão mais velho entrou e quebrou o feitiço dizendo: “que jogo estúpido! Isto são
apenas cadeiras”!
Isto é o oposto do que um analista é chamado a fazer: devemos ser capazes de
ver um trem ou um castelo ou qualquer outra coisa onde só haja cadeiras; devemos dar
vida a histórias e personagens que ainda não existem. Somos sempre co-narradores e
nunca autores isolados, e devemos estar sempre conscientes que o que criamos juntos

3
FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

deve ser substituído em breve. Os mundos que continuamente se abrem fecham durante
a sessão são conhecidos apenas por nós e pelo paciente, que são seus co-narradores.

Você não sabia que magia e dragões eram minhas paixões antes da
psicanálise, então você está me dando a próxima pergunta de bandeja. Quando e
como a análise se torna mágica?

Se alguém chamasse os bombeiros para descrever um incêndio, seria um absurdo


se o corpo de bombeiros lhe dissesse que as chamas que ele vê são suas emoções
desenfreadas. Da mesma forma, se um amigo me dissesse que algumas de suas manchas
na pele [skin moles] parecem estrar crescendo, obviamente eu o encorajaria a consultar
um dermatologista. Como minha mente trabalharia, então, se alguém me dissesse, em
sessão, que veio a mim porque suas manchas [moles]1 estão crescendo? Por exemplo, eu
poderia imaginar um cobertor branco com buracos. Este cobertor branco poderia evocar
à minha mente uma ovelha com cortes em sua lã, através do qual se pode ver um negrume:
a ovelha está começando a se parecer com um leopardo. Mas se o paciente em questão
continua falando sobre seu medo do crescimento dessas manchas, então, talvez, eu
poderia pensar em uma manta com furos maiores e manchas maiores, revelando as
mentiras encobertas: talvez, ele seja uma pantera negra [black panther]2.
Então, a partir do ponto inicial de uma história sobre manchas de peles [moles],
o paciente pôde se encontrar em uma narrativa que envolve ovelhas, leopardos e panteras
negras!
Assim, na sala de análise, precisamos de um divã grande o suficiente para três
personagens: a ovelha, o leopardo e a pantera negra que flutuam entre si. Não há dragões,
mas eu diria que houve pelo menos um pouco de mágica.
Claro que não há correspondência direta entre toupeira [mole] e histórias
selvagens: cada par analítico cria narrativas novas e inesperadas, e é crucial que um dos
muitos diálogos que podem ser desenvolvidos forneça acesso a traços desconhecidos e
inconscientes do paciente bem como nossos.
Enquanto a escuta do bombeiro precisa ser realista, a escuta analítica, na sala de
análise, precisa de um processo de transformação implementado pelo filtro “mágico” da
capacidade do analista de brincar e sonhar na sessão.

Falando sobre a identidade dos analistas, há muitos colegas que, quando


sugerem os nomes de outros colegas para um referencial, nomeiam um homem ou
uma mulher, em vez de se ocuparem de outros aspectos. Estamos bem longe do
conceito do analista como uma função de interpretação. Na sua opinião, quanto o
gênero do analista, em oposição a outros aspectos, afeta as histórias que serão
ativadas na análise?

Muito, antes da análise começar. Nada, depois disso.


Adoro quando encontro uma resposta em dois segundos.
Estou dizendo que, nas primeiras fantasias, os pensamentos sobre um homem ou
uma mulher estão iluminados. Uma vez que começamos, não mais. O que importa é o
tipo de pessoa que ele ou ela é, de fato. Importa o tipo de pessoa que conheço, importa o

1
O termo inglês “moles” pode significar tanto “sinal”, “mancha de pele”, como “[pele de] toupeira”,
“calças de trabalho (feitas com tecido forte de algodão)”. O autor faz um jogo de palavras entre as
manchas que parecem pelo de toupeira (animal manso) ou ovelha, depois, se transformariam em um
leopardo e, por fim, em uma pantera negra.
2
O termo “Black Panther”, também pode significar um membro de uma associação de extremistas negros
norte-americanos que lutam, usando violência, pelos direitos dos negros.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

grau de saúde mental que ela tem, a qualidade do funcionamento mental com aquele
paciente.

Vamos começar com um dos primeiros problemas que cada um de nós se


depara imediatamente, e que, pela sua urgência, gostaria de lidar antes de falarmos
sobre teorias e tudo mais. Qual o segredo para evitar perder pacientes?

Diverte-me um pouco quando penso que afirmo não ser ortodoxo, pois certas
coisas que Bion concebeu continuam despertar em mim certa fascinação e a dar respostas
completas. Não vejo nenhum motivo para não usá-las. Em seus seminários, Bion diz que
em cada sessão sempre devemos dar ao paciente uma boa razão para voltar na próxima
vez. Em outras palavras, o paciente deve brincar, se divertir, aproveitar. É como as Mil e
Uma Noites, tem que haver uma função Scheherazade capaz de sempre contar novas
estórias, novos contos, novas metabolizações: um novo jogo. Deve ser um jogo, que às
vezes pode ser triste, às vezes feliz, às vezes engraçado, às vezes, trágico. Não estou
dizendo “jogo” para diminuir seu impacto emocional: um jogo pode ser algo realmente
sério. O paciente deve sempre receber de nós uma boa razão para vir no dia seguinte: é
assim que não se perde. Significa ativar sua curiosidade, o prazer da curiosidade.

CAPÍTULO DOIS

As regras do jogo
Já que estamos no assunto de jogos, a primeira coisa que você faz quando
começa a jogar é estabelecer algumas regras, sem as quais o jogo se torna outra
coisa. Comecemos fixando as regras que constituem nosso setting. Os britânicos
fazem cinco sessões por semana. Na Europa, geralmente, viajam “de carro”, em
quatro rodas. Na França, eles têm triciclos...

... ou o sidecar3.

Ou o sidecar. Novos analistas e muitos terapeutas têm, quando as coisas vão


bem, uma motoneta, quando as coisas dão errado com uma scooter. Sobre esse
assunto, alguns dizem que menos de três sessões por semana não é análise, porque o
método de associação livre perde seu significado em um relacionamento de baixa
frequência. Além disso, você mencionou entre as ferramentas do analista a
desconstrução do discurso real; até que ponto a realização desse tipo de
transformação permanece viável em uma análise de baixa frequência – que podemos
até chamar de psicoterapia psicanalítica? São situações em que a realidade externa
está batendo muito alto na porta.

Esta é uma questão muito complexa. Acho que a metáfora que você usou é
absolutamente relevante; de minha parte, o sidecar pode funcionar. Se possível, eu
evitaria empurrar a scooter porque isso me faz pensar que estamos em um desses
aparelhos de circo...

O monociclo?

O monociclo. Claro que é muito mais difícil manter o equilíbrio em uma bicicleta
ou monociclo. Eu não deixaria minha avó, que poderia quebrar um osso, sentar em uma

3
O sidecar é um dispositivo de uma única roda preso a um lado de uma motocicleta, resultando em um
veículo de três rodas.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
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cadeira de uma perna só. Uma cadeira com duas pernas me perturbaria também. Então,
uma cadeira começa a ficar estável com três pernas. Mais é melhor quando você pode.
Podemos nos perguntar se é absoluto, obrigatório. Eu acho que há coisas que
devemos renunciar. A água ferve a 100 graus Célsius. Podemos usar qualquer truque
possível: é claro, subindo a Cordilheira dos Andes ou em algum outro lugar, é possível
que a água ferva alguns graus antes com um artifício, mas você não pode reinventar a
física. A água ferve a uma certa temperatura e eu acho que a mesma coisa se aplica à
fissão nuclear, você precisa de uma certa massa crítica para desencadear uma reação em
cadeia. Acredito que, na análise, é necessário que haja certa frequência para desencadear
uma reação em cadeia. O que exatamente essa frequência é, ninguém pode dizer, eu acho.
Quanto à minha experiência, eu sempre senti que com três ou quatro sessões algo começa
a trabalhar de maneira diferente, mais viva, de uma maneira que realmente permita uma
gradual renúncia aos aspectos da realidade, que são os que realmente temos que deixar
para ser analistas.
Você poderia fazer um trabalho analítico com duas sessões ou com uma? Sim,
obviamente, mas eu diria exatamente isso: um trabalho analiticamente orientado. Uma
pessoa pode ser ajudada em seu sofrimento mental até mesmo ao encontra-lo uma vez a
cada quinze dias ou uma vez por semana. É um trabalho legítimo. No entanto, este não é
um trabalho em que haja uma análise, no sentido de ser capaz de entregar do paciente, ou
o paciente ser capaz de desenvolver, as ferramentas que não tinha antes e das quais ele se
torna o dono certo. Se estamos falando de algo que é profundamente transformador, eu
diria que o acelerador de partículas deve ser definido para três a quatro sessões. Aqui eu
diria sem restrições excessivas, também pode ser feito com duas sessões, na segunda e
sexta-feira, não importa muito. Hoje, uma certa frequência é necessária, eu não tenho
ideia de como será nosso trabalho em 100 anos. Embora você ainda possa fazer um
brilhante trabalho, o que ajuda as pessoas que sofrem, mesmo uma ou duas vezes por
semana. Sim, certamente. No entanto, devemos nos resignar ao fato de que, talvez, sem
uma alta frequência, não seja uma reforma completa, de todos os eletrodomésticos da
casa, de toda a tubulação.
Costumava haver uma distinção que eu ainda considero basicamente válida.
Pode ser que nisto eu esteja fora do meu tempo, mas acho que é útil distinguir entre
psicanálise e psicoterapia, que sempre jogou muito, para ser honesto, no número de
sessões. Então, obviamente, se você me perguntar se eu preferiria fazer uma análise de
cinco sessões com um analista incompetente ou uma análise de duas sessões com Meltzer,
não tenho dúvida de que preferiria fazer uma análise de duas sessões com Meltzer, e eu
chamaria de análise. Se você me perguntar se eu preferiria fazer uma sessão por semana
com Ogden ou cinco sessões com um colega proto-arcaico-fundamentalista, o que espera
que eu responda?
Mas aqui estamos levando as coisas ao extremo: se estamos falando de um
analista médio que funciona bem, a frequência é importante. A frequência é importante e
faz parte das constantes que devem ser tão fixas quanto possível, e que pertencem ao
conjunto. Então, temos a frequência, a duração da sessão, a duração da análise no tempo,
a relativa estabilidade – que é um componente-chave, o ritmo. O ritmo é extremamente
importante, especialmente para os núcleos mais arcaicos que estão presentes em cada um
de nós, o mais primitivo, isto é, os núcleos autísticos. Não podemos nos aproximar dos
núcleos mais arcaicos – Bleger (1967) mencionou o núcleo aglutinado – com palavras;
terapia acontece através do ritmo, que é um dos aspectos mais importantes, relacionado
ao não-verbal, com a identificação projetiva, com outras coisas bem antes da palavra.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Você mencionou relativa estabilidade, ritmo, falando do que eu tenho do


que eu tenho um segredo para divulgar. Você pode não estar ciente disso, porque
professores como você vivem no sótão do prédio analítico, mas no porão onde
moram jovens analistas de meio período, que veem, talvez, dois pacientes por dia ou
por semana, o pagamento de sessões ignoradas são um lugar repleto de brigas
sangrentas ou, pior ainda, fugas repentinas sem retorno. Desça ao porão e conte-nos
a sua opinião!

Eu diria que é bem simples, porque pertence ao capítulo “setting”. Uma coisa
muito importante, mas raramente discutida, no capítulo do “setting” é a constituição que
damos. Isso também se aplica a jogar um jogo de cartas, quando você diz: “estas são as
regras pelas quais jogamos na casa. Você quer jogar segundo essas regras ou não?”. O
outro é livre para aceitar ou recusar. Da mesma forma, acho que, quando encontro um
paciente, compartilho com ele nossa constituição, que, uma vez assinalada, se aplica a
nós dois. Não é uma constituição feita por mim para os pacientes: nossa constituição é
algo ao qual eu também estou submetido. Por essa razão, se estabelecemos nossas regras
no início da análise, elas não poderão ser desconsideradas. Se eu aceitar que um paciente
não vai me pagar as sessões que ele falta, como vou pagar a hipoteca da minha casa?
Como posso me comprometer a pagar a hipoteca de minha casa, o pagamento do
financiamento do carro e a mesada de meus filhos que vão para a universidade? Então,
por que eu espero pagamento pelas sessões que o paciente falta? Eu faço porque eu
preciso disso para viver, não há nenhum aspecto punitivo ou educacional do tipo “com
isso, você não vai faltar as sessões”!
Se o paciente falta com muita frequência, isso significa que ou ele é tolo ou a
análise é tola. Se um analista consegue realizar uma análise bastante animada, o paciente
deve chegar dez minutos mais cedo porque não pode esperar para começar. A análise é
boa, é isso que ninguém entende. Continuamos falando de dor, sofrimento; o sofrimento
do analista, o sofrimento do paciente. Esta liturgia do sofrimento é tão monótona que deve
haver alguma coisa, ao menos, para se divertir. Se alguém tiver experimentando um
acontecimento trágico, obviamente, nesse momento, ele não terá nada para rir, porque,
digamos, talvez sua avó tenha morrido. O que quero dizer é que, mesmo que a avó tenha
morrido, em algum momento esse fato pode se tornar uma história triste escrita por
Blixen. A transformação da narrativa, da história, de algo pensável, é um passo que nos
faz sentir melhor em comparação com o evento bruto em si, de qualquer maneira. Quando
podemos transformar qualquer realidade de evento bruto ou fonte de sensorialidade bruta
em um conto, talvez acabemos em Gadda’s Acquainted with Grief, mas isso ainda é
melhor do que sentir sua cabeça sendo martelada. Assim o prazer da análise significa
apenas isso: ser capaz de transformar estados mentais desorientados, desorganizados e
fragmentados em uma história que, sinceramente, espero que seja tão divertida e
aventureira quanto possível. É claro que, de vez em quando, encontramos Gadda também,
e depois também cruzamos a história de Gadda, mas repito, e isso é importante, o prazer
da análise deve ser exatamente o mesmo que você sente na sala de jogos ou de ler Mil e
Uma Noites. O objetivo também é se divertir. O que eu sou alérgico é toda a ênfase na
dor. Alguma quantidade de dor é necessária, ela precisa ser suportada; se eu estou
tomando antibióticos, eu tenho que tomar uma injeção também, mesmo que doa: não é o
fim do mundo. E se eu perceber que meus antibióticos funcionam, voltarei para obter uma
nova dose amanhã.

De Freud até os dias atuais, a duração da análise se tornou muito mais longa
– de alguns meses a vários anos – e alguns dizem que é demais. A análise deve ser
mais curta ou não?
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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Eu acho que uma análise deve durar o tempo suficiente. Não creio que haja
critérios objetivos de fim de análise. Percebo que estou fazendo um desvio, mas darei a
resposta de maneira indireta. Houve uma vez o famoso critério para terminar uma análise,
assim como havia critérios para tudo: havia, por exemplo, alguns critérios de
analisabilidade. Havia uma trilha bem sinalizada, com muitos sinais de trânsito.
Eu realmente não acho que haja critérios para terminar uma análise hoje; no
entanto, não tenho dúvidas de que em qualquer análise, em algum momento, muitas vezes,
de forma inesperada, sinaliza que está quase na hora de terminar. Portanto, acredito que
uma análise possa terminar após um dado momento, quando esses sinais apontam para
isso. Em ocasiões anteriores, descrevi quais poderiam ser esses sinais, mas me ocorre que
eles costumam ser a prova de que o paciente tem um kit de ferramentas bom o suficiente
para sobrevivência.

No entanto, talvez o problema relativo à duração de nossas terapias seja


sentido mais acentuadamente hoje do que no passado. Pacientes contemporâneos,
em parte por razões socioeconômicas, em parte por resistências internas, relutam
bastante em se submeter a relacionamentos de dependência a longo prazo. Stefano
Bolognini afirma que as crianças de hoje têm dificuldade em passar por um cuidado
constante e confiável em longo prazo. As famílias se destroem e são recompostas, os
cuidadores se alternam entre pais, avós, babás, treinadores esportivos e professores.
O resultado tende a ser uma tendência menor em confiar no outro.
Então, como podemos lidar com essa desconfiança em relação à
dependência, quando sugerimos um trabalho analítico que ocupa muito tempo
durante a semana e que pode durar muitos anos?

Para começar, estou absolutamente convencido de que devemos sempre ter em


mente a transitoriedade: não é um dado que a psicanálise durará para todo o sempre, ou
que as pessoas devam necessariamente fazer análises. Eu acho que a análise deve ser feita
por aqueles que querem fazê-lo e por aqueles que experimentam que essa análise faz com
que eles se sintam melhor no dia seguinte, na próxima semana, e assim por diante.
Imagino que em algum momento deva ser algum tipo de compromisso permanente, como
amigos que se veem às segundas, quartas e sextas-feiras para jogar um jogo de cartas. A
análise deve ser algo bom, a análise deve ser algo divertido. A análise deve ser algo que
se pareça com um jogo. Deve ser algo que você goste e para o qual você esteja disposto
a investir energia, tempo e dinheiro, como quando você vai ver uma partida esportiva. E
se você não quiser ir ver um jogo entre o Inter e o Milan, porque você não gosta de
futebol? Você é livre para não ir: deve ser um prazer, não algo obrigatório.
Talvez, você tenha que descobrir que, se você sofre de uma fobia, uma inibição,
ataques de pânico ou qualquer outro distúrbio, certamente, você pode consertar situações
de emergência ou particularmente graves com drogas ou outros meios, mas se você quiser
sair disso, de verdade, até agora a única maneira conhecida é, infelizmente, a psicanálise.
Essa nossa psicanálise sofre um destino estranho, porque há momentos em que parece
que ela pode curar tudo, e momentos em que áreas inteiras de sofrimento mental, que
supostamente não pertencem mais entre as coisas das quais ela pode cuidar, estão sendo
removidas. Está claro para dizer do que estamos falando4.

4
Esta questão foi levantada pela publicação das diretrizes do Instituto Nacional de Saúde da Itália sobre
o tratamento de crianças com autismo em 26 de janeiro de 2012, que promovem intervenções de
reabilitação em detrimento da psicoterapia. Como resultado, em vários países, incluindo a França e a
Itália, houve um acalorado debate sobre a relação entre psicanálise e autismo.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Você mencionou ir a um jogo de futebol: você sabe quanto custam os


ingressos do estádio hoje em dia? Vamos falar sobre dinheiro então, um dos tabus
que substituiu o sexo desde tempos mais puritanos. Alguns jovens terapeutas se
sentem constrangidos em receber o pagamento. Certamente há alguma dificuldade
em reconhecer o valor do trabalho de alguém, mas me parece que há também uma
ideia bastante difundida entre os novos analistas, segundo a qual a análise deve ser
um direito de todos, mas ainda em um período tão difícil quanto estamos passando.
A Argentina, onde foi dito que até os motoristas de táxi que o buscavam no
aeroporto haviam feito análise, vem à mente. Estou falando de uma espécie de
responsabilidade social do analista. E depois há a crise, e há o fato de que alguns
pacientes estão realmente lutando para sobreviver. Assim, gostaria de examinar com
mais profundidade a relação entre dinheiro, fantasias internas – tanto do paciente
quanto do analista – e da realidade externa.

Deixe-me contar algumas coisas. Em primeiro lugar, acho absolutamente falso


que o analista peça pagamento porque é simbolicamente importante, e assim por diante.
Se eu fosse rico, acho que não pediria pagamento pela análise porque me divirto, eu gosto,
me curo. Eu recebo tantas vantagens disso; eu realmente preciso de análise! Considere
que o analista depende da análise muito mais do que o paciente. O paciente está satisfeito
com três ou quatro sessões por semana. O analista precisa de trinta e duas por semana,
então ele é muito mais viciado. Paradoxalmente, ele precisa muito mais do que os outros.
Então, sinceramente, se eu fosse rico, acho que nem pediria um dólar simbólico em
pagamento: não existe necessidade deste simbolismo de restituição. O paciente vai me
dar algo de volta com seu sorriso caloroso, seu aperto de mão, sua gratidão, se e quando
ele vier.
Então, por que eu peço pagamento? Eu diria que peço pagamento, que o analista
em geral pede pagamento pelo trabalho que ele desiste para ser analista. Se eu não fosse
pago quando atuasse como analista, para me sustentar teria que trabalhar como
neurologista, esse era o trabalho que eu fazia antes, pelo menos por algumas horas por
dia; então eu peço pagamento por desistir do trabalho como neurologista. Ou seja, o
paciente não me paga pelo que acontece na sessão, ele me paga para que eu possa me
sustentar, para poder dar alguma coisa ao padeiro ou ao açougueiro. Não tenho dinheiro
próprio, não tendo um negócio, não tendo uma empresa, tenho que me preocupar em
ganhar dinheiro para dar ao açougueiro ou ao padeiro. Daí o dinheiro que tenho de cobrar
do paciente, porque a análise é um luxo que não podemos nos dar ao luxo de fazer de
graça.

Já que você gosta de Star Trek, vamos pegar nossa espaçonave e entrar em
uma dimensão onde há um alter ego do Dr. Ferro que vem de uma família rica.
Felizmente, não sou seu paciente nesse mundo, já que estou me perguntando que
tipo de sorrisos e apertos de mão eu teria para lhe dar para compensar um pouco do
que você me deu. Não é assim?

Pode-se até revelar o segredo de que, às vezes, o paciente também cura o analista.
Não estou dizendo que há uma análise mútua, mas tenho poucas dúvidas de que, do ponto
de vista mental, o analista se beneficia do número de horas de análise que faz.

Eu realmente tenho que arrancar segredos de você então: quão benéfica é a


análise para o analista?

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Bem, seria como perguntar, em um mundo cheio de bactérias, quão bom é o


antibiótico para o médico. Acredito que fazer muitas horas de análise é bom para a
manutenção e o desenvolvimento contínuo das ferramentas de raciocínio, que as mantém
na melhor forma, ao passo que, com o passar do tempo, pode haver mau funcionamento.
Assim, podemos nos perguntar: o que é bom para o analista manter sua vida
mental suficientemente viva? Eu diria algumas horas em que ele não está atuando como
analista, nas quais ele faz outra coisa, na qual ele vive. Considere um analista que vive
toda a sua vida em uma sala.
O analista tem que viver, tem que ser um ser humano que vive suas experiências;
ter um segundo emprego seria ideal, mas geralmente não há tempo para isso. Eu gostaria
de um analista que tivesse uma peixaria, um açougue ou um analista que trabalhasse como
dermatologista, um paleontólogo. Que faz outra coisa também, como os antigos analistas,
as gerações antigas faziam às vezes.
Além disso, é crucial ter algumas horas para não fazer nada, deixando a mente
em repouso por um tempo; não fazer nada é uma arte.
E então voltamos às horas de tratamento, porque cada paciente que tratamos é
sempre uma trama pouco conhecida para explorar: a análise feita a alguém é sempre uma
forma de autoanálise.
Finalmente, acho que o analista deve cultivar tudo o que ele gosta: ou ler, assistir
filme ou várias atividades artísticas, mas também viver, lidar com as coisas normais que
todo mundo faz, discutir com a namorada, fazer as pazes, ir ao cinema, viver.

Pode-se dizer que a doença mais comum dos analistas é a depressão, e que
muitos deles estão sendo curados por seus pacientes, ou não?

Por que não poderíamos dizer isso? É verdade, existem analistas que se sentem
doentes sem pacientes, que realmente têm um vício em pacientes, que se sentem bem
graças a pacientes. Eu acho que um analista deveria ter uma vida suficientemente
saudável para dizer: “eu ficaria bem, gostaria de ganhar três milhões de dólares na loteria
e não ter que trabalhar mais”. Não, não, não, eu não gosto disso, ter que depender de
pacientes, que precisa haver alguém que esteja doente para que ele esteja bem.
Segundo, creio que o analista deveria ter – dentro dos limites do humano e do
possível – uma vida suficientemente satisfatória. E se eu posso dizer isso, sexualmente
satisfatória também, porque, caso contrário, um problema está prestes a acontecer. Você
deve estar satisfeito com a sua vida, até mesmo de sair de férias e ficar feliz com isso. O
analista deve ficar contente se um paciente faltar uma sessão, feliz por poder fazer outra
coisa, tomar um sorvete ou comprar um livro. E ele não deve se sentir mal se não houver
pacientes, isso é inaceitável.

Você disse que a análise é o antibiótico que também é benéfico para o


analista: assim como toda droga, também tem seus efeitos colaterais, certo? Quais
seriam os principais?

O principal efeito colateral foi o que aconteceu comigo quando uma amiga me
disse que o marido dela na época tinha um baixo nível de ferro no plasma e eu pensei que
ela queria me dizer que já fazia muito tempo desde que eu lhe fizera uma visita, por isso
o seu “nível de ferro” era baixo. O risco é estar sempre fechado em um modo analítico:
se um amigo, enquanto janta conosco, nos diz que, na noite anterior, ele comeu em um
restaurante terrível, talvez, pensemos que ele está reclamando sobre como fizemos o
risoto. Eu acho que o maior risco é o excesso de interpretação, é que o analista em algum

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Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

momento possa vir a acreditar que ele pode interpretar o mundo, a realidade, o futuro,
enquanto ele só pode interpretar o que acontece na terapia psicanalítica.
Quando eu era candidato, uma vez testemunhei uma disputa entre dois analistas
em treinamento, de diferentes orientações, observando juntos a coxa branca do cavalo
pintada por Paolo Uccello. Um deles afirmou que a coxa do cavalo, o glúteo, não pode
ser mais que um seio: tão branco e redondo que só podia representar o seio; enquanto o
outro analista respondia: “não, olha, é tão musculoso que só pode se referir ao pênis!” Eu
estava ouvindo e fiquei bastante perplexo. Eu não gosto de psicanálise aplicada. Acredito
que a psicanálise possa ser aplicada ao paciente e nada mais, no máximo, sobre nós
mesmos ou ao par analítico. Eu não acredito que a psicanálise possa ser aplicada a
qualquer coisa fora da terapia. Além disso, vamos nos divertir, por que não? Se alguém
quiser aplica-la à trigonometria à interpretação de uma obra de arte, nada de errado com
isso, mas há aquela famosa piada sobre o sorriso de Mona Lisa que pode ser o sorriso de
uma mulher que soube que estava grávida ou o sorriso de uma mulher que descobriu que
não estava grávida.
Quero dizer que a psicanálise tem um campo específico: curar o sofrimento
mental. O objetivo do bisturi é cortar a barriga do paciente, mas podemos usar um bisturi
para cortar um pedaço de papel? Claro! Não é o uso para o qual foi feito, mas ninguém
está nos impedindo disso. Basta lembrar que usar o mesmo bisturi na barriga de um corpo
na rua é crime!

Onde há dinheiro, claro, aqui vêm os impostos. O que é um assunto


espinhoso, já que, em alguns países do mundo, os analistas também estão lutando
para pagar seus impostos. Eu só toquei neste assunto três vezes em público: a
primeira vez, recebi uma ovação de pé nas ligas colegiais; a segunda vez, disseram
que este assunto não deveria ser discutido; a terceira vez, a mais engraçada, um
colega influente respondeu que qualquer um pode pagar o máximo de impostos
necessários para satisfazer o superego. Cuidado ao dar sua opinião ou passemos
para a próxima pergunta imediatamente?

Eu acho que é algo absolutamente específico para cada pessoa como ser humano
de acordo com a realidade social em que ele vive. O mundo em que eu gostaria de viver
é um mundo onde todos pagassem seus impostos de acordo com o que ganham, sejam
eles analistas, barbeiros, açougueiros. Não vejo razão para que um analista tenha menos
obrigação do que um barbeiro ou mais obrigação. Se um barbeiro não paga seus impostos,
você não pode dizer que seus deveres são diferentes dos de um podólogo, embora um
cuide da cabeça enquanto outro cuida dos pés.
Ser analista é um trabalho como qualquer outro, como ser um pintor, então acho
que os analistas deveriam pagar seus impostos como todo mundo. Se alguém se encontrar
em circunstâncias em que o pagamento de todos os seus impostos o deixaria faminto, seu
bom senso dirá que evite os 20% que lhe permitiriam comer, mas se ele puder pagar a
todos, isso será melhor para todos. Isto é, isso não parece uma categoria para a qual existe
uma regra especial, de modo que o pagamento de impostos teria um significado
simbólico, especial e diferente para os analistas. Você paga impostos porque existem
agências de aplicação da lei, há um serviço de receita e espera-se que você, como cidadão
italiano ou tcheco, contribua para o funcionamento da comunidade também.
Eu, certamente, adoraria pagar impostos como eles pagam na Finlândia, onde
todos pagam caro e pagam todos eles, mas há uma análise gratuita, desde que você
precise, por anos a fio. Uma vez, fui convidado para jantar com cinco ou seis colegas
escandinavos, e assinei para cada um deles um pedaço de papel porque eles estavam

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dividindo os custos de meu jantar entre eles; minha assinatura era suficiente para garantir
que, de fato, um sexto de meu jantar fosse pago por cada um dos presentes.
Não, não me parece que os analistas sejam uma categoria que precisa ser
protegida, nem vilipendiada, e então eu não traria a imagem do superego quando se fala
sobre impostos; você paga seus impostos porque precisa.

CAPÍTULO TRÊS

COMEÇOS
E agora vamos deixar o contador para voltar ao escritório e encontrar nosso
paciente pela primeira vez. A primeira entrevista. No início da formação, ficou bem
claro para mim que as entrevistas de consulta eram a parte mais fácil do trabalho.
Na Itália, os psicólogos que não são psicoterapeutas especializados podem fazê-las
legalmente e, muitas vezes, os internos e os trainees fazem as entrevistas iniciais na
saúde pública. Mesmo na literatura analítica que estudei, os livros falam de uma
fase inicial, que deve ser curta o suficiente, que antecede a neurose de transferência.

Ainda acreditamos na neurose de transferência?

Só estou falando o que eu li: relata refero!5. E, aqui, eu pensei que essa seria
a parte fácil, enquanto a tempestuosa deveria vir depois. Por causa da perda de
pacientes, eu aprendi, em primeira mão, que a primeira entrevista é realmente
central. E eu acho que, em particular, a análise com adolescentes nos ajudou a deixar
para trás a ideia dessas duas, no máximo, três entrevistas, e a tomar o nosso tempo,
conseguindo finalmente no devido tempo a construção do cenário. Como
poderíamos repensar essas primeiras entrevistas? A parte que vem antes da
constituição, a construção da constituição.

Eu acho que é como quando há um primeiro encontro romântico: como isso


acontece?
Há amor à primeira vista e há casais que se veem e vão direto para o sofá, depois
há aqueles que levam dois anos apenas para se sentarem no mesmo banco. Eu não acho
que você possa fazer generalizações. Certamente, o primeiro encontro é extremamente
importante, porque, se evitarmos polui-lo com perguntas, se evitarmos perguntar sobre a
infância, se evitarmos perguntar coisas que realmente não nos interessam, poderemos
fornecer quadros suficientes nos quais o paciente possa ser capaz de encenar as coisas
sobre as quais ele quer falar e especialmente aquelas sobre as quais ele não quer falar,
essa é uma boa maneira de começar.

E quanto ao histórico do caso?

A história do caso não tem nada a ver com a psicanálise, porque se


considerarmos que toda a análise é baseada no que construímos juntos, pensar que há uma
história de caso significativa é em si uma loucura. Você pode fazer o seu próprio caso
clínico, não tem relevância psicanalítica, tem relevância psiquiátrica, ou pode interessar
a alguém que trabalha em um serviço psiquiátrico e precisa apresentar um histórico de
caso porque, se a polícia vier, o fato desse sujeito tentar matar sua irmã tem que estar nos
jornais. No entanto, se você é um analista, em seu escritório, para que precisa de um
histórico de caso? A história é uma maneira de amordaçar um paciente, é uma maneira
de garantir que aquelas coisas que o fazem se sentir mal que não saiam. Ogden afirmou
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Em latim: “eu conto o que me foi dito” (Heródoto)

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brilhantemente que temos que ser capazes de sonhar com o paciente aquelas coisas que,
sem sonhar, se tornam sintomas. Precisamos ter lido Freud para entender isso? Pode ser
que, antes de alcançar essa simplicidade elementar, o pobre Ogden tivesse que ler Freud
ou talvez o analista de Ogden tivesse de ler Freud, e então, talvez, Ogden tivesse que ler
Winnicott. No entanto, quando Ogden nos diz isso, precisamos começar de novo a partir
do caso do Homem dos Ratos ou podemos começar a partir dessa situação que Ogden nos
diz e seguir daí? Por que devemos perder nosso tempo? É tão elementar, temos que
transformar em sonho aquilo que, não transformado o suficiente, se torna sintoma, é
preciso transformar o sintoma em sonho.

Assim, a análise é o lugar dedicado ao sonho, e o divã foi escolhido desde o


início como um lugar entre o despertar e o sono, entre o sonho e a realidade. Falando
nisso, deixe-me contar uma pequena anedota: um paciente meu, que é estudante de
uma escola de psicoterapia, disse a seu professor que escolheu realizar sua terapia
com um analista e que ele estava deitado no divã e a resposta do professor petrifica-
o: “mas o divã está fora de moda”! A primeira pergunta que faço é quase retórica:
o divã está realmente fora de moda? A segunda pergunta, que talvez seja menos
retórica, diz respeito aos colegas que costumam usar o “monociclo”. Quando eu
estava em formação, eles diziam que usar o divã para terapias de uma ou duas vezes
por semana pode ser perigoso, porque o paciente tende a regredir e contê-lo pode
ser difícil. O que você acha?

Eu diria: vamos tentar ver!


Seu eu tivesse dado uma sugestão ao meu neto, diria a ele que a análise não
depende de onde se deitar, a análise depende de como duas pessoas trabalham juntas
mentalmente. Então, assim como estar no divã não dá o status de análise, da mesma
forma, não estar no divã não tira o status de análise. Tive pacientes nos lugares mais
estranhos: acho que nunca escrevi, mas contei sobre um paciente que não queria deitar-
se no divã e com quem tivemos um longo período de análise. Nós nos encontrávamos
quatro sessões por semana, face a face, porque ele estava muito assombrado pela ideia de
não ser capaz de controlar a situação, minhas reações, as emoções que eu poderia ter.
depois de algum tempo, eu disse a ele: “olha, eu me canso de ficar assim, olhando um
para o outro por cinquenta minutos seguidos, se você não se importa eu vou me virar”. E
então eu me virei na cadeira do meu escritório – uma cadeira giratória com rodinhas –
para que o paciente entrasse, sentasse e eu me virasse. Continuamos por mais seis meses
de análise comigo virando as costas e me sentindo um pouco relaxado. Depois do que o
paciente começou a falar sobre o fato de que precisava fazer um movimento, era hora de
fazer esse movimento e queria uma casa confortável. Parecia claro que o paciente estava
dizendo que deveria haver um movimento em nossa análise. Quando o dia em que
havíamos concordado para o “movimento” veio, obviamente, eu estava esperando o
paciente se mover para o divã para que eu pudesse voltar para a minha poltrona, em vez
disso, o paciente entrou e sentou-se na minha poltrona, eu poderia fazer mil coisas
diferentes lá, dá sete mil interpretações de todos os tipos; sem um momento de hesitação,
fui me deitar no divã e, então, fizemos cerca de seis meses de análise com o paciente atrás
de mim na minha poltrona e eu deitado no divã. Adverti, repetidamente, ao paciente de
que ele não sabia o que estava perdendo, porque deitar no divã era muito mais confortável,
e depois de seis meses o paciente teve um sonho em que sua secretária ocupava
arbitrariamente um lugar ao qual ele tinha direito. Em poucas semanas falou de outro
movimento e, finalmente, este foi o final. Eu, finalmente, voltei para a minha poltrona e
o paciente se deitou no divã. Levou, pelo menos, três anos para fazer este movimento,

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mas foi uma análise em todos os aspectos, uma análise muito normal. O que importa é
saber jogar.
Por esse motivo, gostaria de formalizar – embora nem todos concordem e, por
isso, não sei se isso acontecerá – que não há diferenças entre a análise de adultos, crianças
e adolescentes. De fato, podemos aprender a ver nas crianças os aspectos infantis que
estão dentro de nós e dentro dos pacientes. Dos adultos, podemos aprender a ver os
aspectos mais estruturados. Claramente, um analista infantil estará muito menos
preocupado com uma possível infração do setting pelo paciente, porque ele não o
perceberá como um ataque, mas sim como um modo de comunicação e, acima de tudo,
como um jogo. Juntos, podemos brincar com qualquer coisa, não há uma coisa com a qual
não possamos brincar.
O analista terá que se perguntar por que isso acontece e o que isso significa:
obviamente, o analista deve possuir uma mente capaz de pensar e questionar o que está
acontecendo e tentar produzir um significado que possa ser expresso ou não; o que fazer
então do que se realizou depende de inúmeras variáveis.

Parece que Freud escolheu sentar-se atrás do divã do paciente porque não
suportava um dia inteiro de olhares. Então, talvez, o divã seja conveniente para o
analista, não é?

Não tenho dúvidas, acredito que ter o paciente no divã é o que funciona melhor,
bem como a situação mais conveniente para o analista! De fato, Freud teve a ideia do divã
porque não suportava ser olhado pelos pacientes o dia todo. O divã, graças ao qual não
há interação face a face, permite ao paciente deixar sua mente vagar, de modo que os
pensamentos e fantasias possam flutuar. O mesmo vale para o analista, que pode deixar
de lado a realidade e acessar mais facilmente um mundo de fantasia, de associação, de
caminhos mentais, de narrativas, livre do impacto com a realidade.
Em suma, não creio que o uso do divã seja crucial na análise, que acho que pode
ser realizado em muitas posições diferentes. Obviamente, é sempre importante perguntar
por que um paciente prefere estar em uma posição e não em outra. Por exemplo, é muito
difícil para os pacientes com sofrimento mental grave deitarem no divã, porque, ao fazê-
lo, sua mente vagueia um pouco longe demais da realidade em mundos que, geralmente,
são persecutórios. Lembro-me de um paciente que uma vez me disse que tinha um sonho
em que havia um leão atrás dele, pronto para ataca-lo a qualquer momento.
Outro paciente, depois de finalmente concordar em deitar no divã, sonhou que
estava em um berço feito de lâminas afiadas que o cortava e o fazia sangrar. Então, eu
não acho que deitar no divã e começar uma jornada como Star Trek para universos
desconhecidos seja fácil para todos. Há pacientes que precisam começar sua jornada no
divã e não abordo da Enterprise, visitando os arredores de sua cidade antes de explorar
outras cidades, ou talvez visitando outros mundos ou galáxias. Então, como eu disse, é
comum encontrar pacientes que não querem se deitar no divã, e é possível trabalhar com
eles face a face em uma variedade de situações.

Há um certo ritual da sessão: geralmente, o paciente tem o direito de iniciar


a sessão e, como disse Luciana Nissim (2001), ele recebe a honra da última palavra.
Não é assim?

Bem, basicamente eu diria que sim, geralmente, deixaria o paciente começar a


menos que ele ficasse quieto por mais de cinco minutos. Não é uma questão de respeitar
o setting ou de uma ideia, não há ideia de que, depois de cinco minutos, o paciente vai se

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sentir sozinho, não! É só que eu fico entediado, ou seja, para poder funcionar e brincar,
para trabalhar e sonhar, depois de um tempo preciso de algum contato.
Portanto, há uma ideia subjacente, a ideia de que, após cinco minutos, o par
se separa.
Sim.
Porque a função analítica do par, na pessoa do analista Ferro, precisa de
contato.
Em um dia quente, você pode deitar na cama com sua namorada, mas, depois de
dez minutos na cama, eu vou procurá-la! Mas, se ela estiver dormindo, vou deixa-la
dormir.
Existe uma função de contato, na minha opinião, ou seja, é preciso manter
contato para fazer as coisas. Então, geralmente, eu espero pelo paciente começar a sessão,
depois do quinto ou quarto minuto – o que deveria ser ainda mais cedo – o terceiro minuto
em que digo “então?” ou “o que há hoje?”, “por que tão quieto?”
Eu não sei sobre a última palavra, nunca considerei a questão de quem tinha
direito à última palavra. No entanto, eu costumo dizer a ele: “até a próxima”. Sim, deixei
que ele terminasse com o discurso dele.

O que quero dizer é que talvez não seja apropriado fazer uma interpretação
ou comentário ao encerrar a sessão.

Não, não, eu não o deixaria atordoado antes de partir, pobrezinho, não. Eu


sempre deixo algum tempo para ver como ele reage. Algo que ainda é importante para
mim no campo é o que acontece depois que entro em cena.

Estamos falando de quadros internos e externos, então eu faço uma


pergunta aparentemente trivial. Na época de minha formação, a regra era que o
analista tinha que ter um telefone de mesa e uma secretária eletrônica. Aqueles que,
como eu, são “nômades”, nem pensam mais nisso, além de os textos estarem
substituindo as chamadas de voz, um pouco de facilidade de uso, um pouco porque
eles se sentem menos intrusivos, talvez. Mais ainda, um número considerável de
pacientes procura terapeutas na internet e até recorrem a e-mail para
apresentações: “querido Doutor, tenho ansiedade. Podemos nos encontrar?”
Podemos falar de uma fratura do campo ou de um pré-campo e da transição
de um balanço “estou aqui/ não estou aqui” para um mais digital. “estou aqui um
pouco/ estou começando estar aqui” que dilui a dicotomia entre presença e ausência?

Se você, como alguns amigos meus, tem um filho morando na Suécia, ou como
alguns outros em Cingapura, então é normal vê-lo várias vezes por semana via Skype.
Não vejo por que deveria ser diferente para o analista. Uma vez lá estava o telefone e era
isso, mas agora muitas comunicações acontecem via mensagem de texto. Acredito que há
uma parte imutável do setting, certas estruturas básicas e, depois, uma parte culturalmente
variável. Se daqui a cem anos tivermos hologramas de nós mesmos que poderemos enviar,
faremos análise via hologramas; onde está o problema?
Se um paciente me enviar uma mensagem dizendo que ele chegará quinze
minutos atrasado, eu respondo “ok”. Certamente, não mantenho longas discussões via
texto, não faço interpretações por telefone, mas posso responde-lo “ok” ou se alguém me
contatar pela primeira vez por e-mail, eu respondo: “caro senhor, você poderia me ligar

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

depois das 21h de segunda a quinta?” Isso não é pecado, se você usa lógica e inocência.
Eu não seria um analista excessivamente preocupado, que vê tudo como um pecado.
“Omnia munda mundis!” O padre Cristoforo diria: tudo é puro para o puro.

Falando em pecados, eu tenho outro para submeter à sua atenção. Há algum


tempo venho fazendo muitos discursos em público, então sou visto com mais
frequência do que antes, até mesmo por alguns pacientes. Além disso, em uma cidade
pequena como Modena ou Pavia depois de um tempo todo mundo se familiariza com
todo mundo, então, eu tenho pensado nisso: se o analista não é mais um espelho, mas
um co-construtor de histórias, podemos pensar que a absoluta necessidade de
confidencialidade no que diz respeito a familiarizar-se ou associar-se fora da análise
torna-se menos premente? Não estou falando em anular qualquer privacidade, mas
será que conhecer um pouco promove algumas histórias em vez de outras, sem
interromper o trabalho? Ou há mais?

Vamos ver o que queremos dizer com familiaridade. Obviamente, eu


desencorajaria um colega a dançar no fim de semana, pelo menos não na cidade onde ele
mora. Em relação a encontrar alguém na praça da cidade ou sentado no mesmo café
enquanto toma uma bebida ou encontrar um paciente na livraria e trocar um “olá” ou “boa
noite”, eu não vejo isso como contatos pecaminosos, esses são encontros aleatórios em
uma cidade pequena. Depende de que tipo de conhecimento estamos falando. Se você
pertence ao mesmo clube de tênis, onde há dez mil membros, qual é o problema? Ou se
você se encontrar na praça da cidade ou enquanto estiver tomando café. Naturalmente,
relações mais frequentes, acima de um certo limite, podem restringir as histórias que
podem ser criadas, elas promovem histórias excessivamente reais; assim, poluem o
campo, impedindo a narrativa inicial. Se andássemos por Pavia a cavalo, tocando uma
trombeta, ele ficaria ou louco ou ele viria a ser identificado como o cavaleiro do
trompetista, e então ele seria muito distinto. É claro que, quando se trata de ocupar cargos
públicos – se for um analista e, ao mesmo tempo o comandante da polícia local – um fará
o que puder. Cum grano salis6. O senso comum e a honestidade são as pedras de toque: é
melhor não assumir que por trás de cada coisa nova ou estranha há um pecado ou uma
infração do setting ou quem sabe o que mais, mas ao mesmo tempo é melhor reter alguma
discrição, no sentido de permitir o desenvolvimento de tantas histórias quanto possível.

Continuemos falando sobre pecados. Eu tenho que perguntar a você sobre


uma das fundações que sustentam a psicanálise: na análise, um fala e não age. E
quem age, normalmente, é ambivalente sobre isso.
Então, o relacionamento interpessoal entrou na mistura e então Thomas
Ogden veio e fez uma bagunça com suas ações interpretativas (1994) e outros ainda,
como a interpretação de Bolognini (2008). Agora alguém está falando sobre
definição de variáveis, ação adequada para “aquele” paciente, e agora eu acho Ferro
fazendo análise enquanto estava deitado no divã...

Apenas uma vez na vida!

... uma vez na vida. Assim, a discrição dos analistas, obviamente, assume
um papel muito diferente. Agora estou lhe perguntando: até que ponto você pode
agir em uma análise e quais são os limites a ter em mente?

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Latim: “com o grão de sal, com um pouco de bom senso e ceticismo”.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Eu diria: máxima liberdade de ação para o paciente, mínima liberdade de ação


para o analista. O paciente pode agir como deseja: felizmente o paciente não sabe que
pode trazer alguns brinquedos de casa e sentar no chão brincando com eles; um paciente
adulto, geralmente, não faz isso, mas ele pode. Eu não vejo o que um analista de paciente
adulto poderia ter que objetar se um paciente trouxesse soldados de brinquedo consigo e
quisesse brincar com eles: é seu direito fazê-lo. Nós não lhe diríamos: “não, você não
pode brincar!” Esse é o seu jogo, seu sonho, seu modo de comunicação. Ou o paciente
pode encontrar algumas folhas de papel limpas tirar algumas fotos legais e se comunicar
com elas. Certamente, sim.
No entanto, felizmente, o paciente não sabe que pode deitar na poltrona sem o
paciente olhar para nós, é muito mais confortável para nós do que ter que sentar no chão
ou na mesa olhando seus desenhos. Seria muito mais cansativo. Então, um paciente tem
a liberdade de se expressar, dentro de limites razoáveis, é claro. Eu dou máxima liberdade
de ação a um paciente, se ele quiser ter uma sessão embaixo da mesa, talvez eu diga a ele
“lobo” porque ele está agindo como um cachorro em um canil, ou no dia seguinte
fingiríamos estar no canil. Casa dos Sete Anões. Não faço ideia, depende do que surge.
Então, eu acredito que o analista não tem essa liberdade, eu acredito que a liberdade de
ação do analista deve ser absolutamente controlada, evitando excessos. A ação
interpretativa é diferente de outros tipos de atos que alguém pode fazer, mas não posso
deixar de me perguntar por quê. Eu tomaria muito cuidado para não ser um atalho. Eu
manteria o analista firmemente sentado em sua cadeira, com um mínimo de ação, de
acordo com o senso comum. Eu me lembro de um dos poucos casos em que eu e Eugenio
Gaburri demitimos um candidato durante o exame final da formação. O caso começou
com a história de uma paciente grávida que, entrando na sala de análise, tropeçou e caiu
no chão e o candidato escreveu: “é claro que fiquei imóvel e não toquei na paciente”.
Ah, não, uma mulher grávida, ou não grávida para essa matéria, cai diante de
seus olhos, e você não a ajuda? Quero dizer que isso é um absurdo, não é uma questão de
neutralidade analítica. O analista deve ser contido, e se perguntar por que ele está fazendo
um ato, ou uma ação, e se é seguro fazê-lo. Mas se um paciente está se jogando pela
janela, você o pega pelos pés, é claro, ou se uma paciente tropeça, você a ajuda, ou se um
paciente tem sinais de alerta de um ataque cardíaco, você desliga o setting e chama uma
ambulância.

Essa ideia de desligar e ligar o setting parece-me muito interessante: ajude-


nos a distinguir entre estes dois modos diferentes de operação analítica. Se
deixarmos de lado a realidade externa, poderemos levar a sério quando precisamos.

Sim, mas quando levamos a realidade a sério, pouco antes disso, desligamos o
setting. A realidade pode entrar quando a configuração está desativada. Se houvesse um
terremoto, seria tolice ficar ali parado e tentar interpretar o choque que a criança sentiu
quando se afastou do mamilo da mãe – seria absurdo, em qualquer caso, dizer tal coisa
mesmo sem o terremoto – mas vamos imaginar que haja um terremoto: o que dizemos ao
paciente, o que fazemos? Esperamos e, se houver um segundo tremor, saímos. Nessa
ocasião, embora desliguemos o setting, não somos mais analistas e pacientes, somos dois
indivíduos assustados que precisam sair da sala com segurança.

É verdade, no entanto, que muitas vezes os pacientes lembram, como uma


parte importante da terapia, aqueles raros casos em que o analista cuidava deles de
alguma outra maneira, mais tangível. Obviamente, não é algo que você possa fazer
rotineiramente, digamos que seja um dispositivo incomum.

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FERRO, Antonino & NICOLI, Luca. The New Analyst's Guide to the Galaxy: Questions about
Contemporary Psycoanalysis. New York: Karnac Books, 2017.

Se um paciente entra com uma hemorragia nasal, o que fazemos, não lhe
entregamos um lenço, uma toalha?

Um pouco como dizer, vamos desligar a configuração, mas não vamos nos
desligar!

Sim, não devemos desligar o paciente. Você negar uma toalha a um paciente que
vem completamente encharcado no inverno? Essas coisas são coisas que têm a ver com
bom senso; eu nunca deixaria o senso comum e as boas maneiras fora da sala de análise.

Um paciente me diz que ele está com frio. Eu interpreto a distância que ele
sente entre nós ou eu ligo o aquecedor?

Se eu tiver um, ligo o aquecedor, sem dúvidas. O que eu estou pensando é uma
questão diferente, é claro, as coisas não param por aí. Se estamos na sala de análise, por
que não devo ligar o aquecedor, se o tenho e o uso? Claro, eu me pergunto por que o
paciente me disse que quer o aquecedor hoje às duas e meia, mas não ontem, do que ele
está falando, se está me dizendo que está cansado, se está me dizendo que está se sentindo
doente, se ele está me dizendo que ele está se sentindo com frio. Eu não diria todas essas
coisas a ele, coitadinho, tentaria entender: o que ele quer me dizer com esse pedido?
Um paciente me diz: “estou morrendo de sede!” Imagine se eu respondesse:
“você está me dizendo que desde que não nos vimos por vários dias, a sessão seria como
um oásis, e você atravessou o longo deserto do fim de semana, então você está
desidratado?”, eu poderia dar a ele um copo de água sem barulho, e depois com o tempo
e reflexão, vamos entender por que isso aconteceu.
Há uma linguagem de gíria siciliana, que pode ser inadequada para um livro.
Traduzido, seria “tocar o seu fundo com sua camisa”. Se Maria está tocando seu fundo
com sua camisa, significa que ela não pode tocá-la com as mãos, que precisa fazer tudo
com luvas brancas, que não consegue entrar em intimidade, que sempre precisa de
distância. Não creio que o analista deva “tocar seu fundo com a camisa”, que ele deveria
ter uma fobia de contado. Ele não deveria ter uma fobia de contato emocional nem uma
fobia de contato físico. Se um paciente no final da análise lhe der um beijo na bochecha,
você apenas o recebe e sorri; eu, definitivamente, evitaria aspectos fóbicos.

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