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Sociologia | prof.

Antonio Engelke
Apostila 1o trimestre – 1o Ano

SOBRE O SENSO COMUM

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Nossa visão de mundo, a maneira como percebemos e explicamos a
realidade, é em larga medida construída sobre uma série de impressões que
quase nunca nos damos ao trabalho de examinar. Tais impressões são feitas
a partir um estoque de ideias e concepções amplamente compartilhadas, que
chamaremos aqui de “senso comum”.

O senso comum tem dois aspectos. Por um lado, é um conjunto de


conhecimentos e hábitos compartilhados. Por exemplo, todos nós sabemos
que, se colocarmos o dedo numa tomada, corremos risco de levar um
choque; sabemos também que não se deve ficar “encarando” as pessoas
dentro de um elevador lotado. Por outro lado, além desses conhecimentos e
hábitos básicos, que devemos conhecer para “funcionar” adequadamente
dentro da nossa sociedade, o senso comum é também uma maneira de
perceber e explicar a realidade. Ou seja, o senso comum é uma forma de
construir explicações acerca dos fatos que compõem a realidade. É esse
aspecto cognitivo do senso comum que nos interessa examinar aqui.

Mas como é que essa maneira de perceber e explicar a realidade se forma?


Quais as suas principais características? E quais os efeitos ou
consequências que ela gera na nossa maneira de enxergar o mundo?

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1. O SENSO COMUM NÃO ENXERGA
ALÉM DO INDIVÍDUO

Margareth Thatcher, primeira-ministra da Inglaterra entre 1979 e 1990, certa


vez declarou: “Não existe essa coisa de sociedade. O que existe são homens
e mulheres, indivíduos e famílias”. Há um bom motivo para essa frase ter
ficado famosa: é que ela enuncia, da forma mais clara possível, um
argumento que parece perfeito. Afinal, o que encontramos todos os dias nas
ruas, quando saímos de casa? Homens e mulheres, indivíduos e famílias.

Alguém por acaso já viu essa tal de sociedade? Já esbarrou com ela na
esquina? Quando você sofre um assalto, quem está na sua frente, apontando
uma arma, é um bandido ou a sociedade? Quando você precisa de
tratamento num hospital, quem te atende é uma médica ou a sociedade?
Portanto, parece evidente que assaltos ocorrem porque existem indivíduos
dispostos a cometê-los, ou que vidas são salvas pelas mãos de especialistas
em medicina. Seja em que situação for, o que temos diante dos nossos olhos
são sempre mulheres e homens que agem, nunca “a sociedade”.

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É por isso que nos acostumamos a enxergar o mundo desde uma
perspectiva que explica a realidade a partir da ação voluntária dos indivíduos.
Segundo essa perspectiva, as coisas acontecem porque os indivíduos as
fazem acontecer. Sendo assim, faria todo o sentido dizer que a “sociedade”
simplesmente não existe.

Trata-se de uma certeza tão óbvia, tão evidente, que sequer nos damos o
trabalho de pensar sobre ela. Nós não precisamos fazer força para
compreender e explicar o mundo dessa maneira; simplesmente nos parece
natural. Mais ainda, a explicação que ela nos fornece é parcialmente
verdadeira. Afinal, é razoável supor que, se o indivíduo não tivesse escolhido
o caminho do crime, você não teria sido assaltado, e que se a médica não
fosse competente, você não teria recebido o tratamento adequado.

Tudo isso é verdade. Mas não toda a verdade. Essa perspectiva, que
compreende e explica o mundo a partir da ação dos indivíduos, é bastante
parcial, incompleta. Como vimos em sala de aula, é impossível explicar por
que certos tipos de crimes ocorrem com regularidade em determinados
lugares, se observarmos somente a ação dos indivíduos que cometem tais
crimes. Isso quer dizer que a ação individual é um componente necessário,
mas não suficiente, para explicar os fatos que compõem a realidade. É
preciso olhar para a sociedade, o contexto dentro do qual os indivíduos
agem.

O desafio é que isto a que chamamos de “sociedade” é como a parte


submersa de um iceberg: não se oferece diretamente aos nossos olhos. É
preciso mergulhar fundo para poder enxergá-la. Mas apesar de não possuir
materialidade – no sentido de algo que você pode ver com os olhos ou tocar
com as mãos –, a sociedade existe concretamente enquanto instância que
molda e impacta a vida de todos os indivíduos que a compõem. Tais moldes
e impactos podem ser objetivamente analisados, e também interpretados. É
exatamente esse o trabalho de cientistas sociais, que nos ajudam a
ultrapassar as limitações da perspectiva individualista do senso comum.

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2. O SENSO COMUM CONFUNDE
CAUSALIDADE COM CORRELAÇÃO

A diferença entre causalidade e correlação é básica na metodologia


científica. O problema é que, de modo geral, o senso comum desconhece os
pressupostos que informam o raciocínio científico.

Causalidade é a relação direta entre um evento A (causa) e um segundo


evento B (efeito), de modo que B seja uma consequência direta de A. Por
exemplo, se você fumar diariamente três maços de cigarros durante décadas,
você irá desenvolver alguma forma de câncer. Portanto, há uma relação
causal entre o fumo e o surgimento de variados tipos de câncer.

Por outro lado, há correlação quando duas ou mais variáveis apresentam


uma relação entre si, de modo que elas sejam eventualmente necessárias,
mas não suficientes, para explicar a ocorrência de um efeito X. Por exemplo,
há uma correlação entre o consumo excessivo de açúcar e doenças como
diabetes. Mas – e esse é o ponto importante – correlação não implica em
causalidade. Pessoas tornam-se diabéticas por vários fatores (genética,
estresse etc.), que podem ou não incluir o consumo de açúcar. Ou seja, o
hábito de ingerir açúcar está associado a diabetes, é um “fator de risco”, mas
não se pode dizer que causa diretamente a doença. Do contrário, toda
pessoa que ingerisse açúcar ficaria diabética, o que não acontece.

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Vale atentar para o risco das chamadas correlações espúrias, falsas. Na
verdade, trata-se da tentativa de estabelecer uma relação em que existe
apenas uma coincidência. Por exemplo: o número de pessoas que se afogam
em piscinas é maior nos anos em que o ator Nicholas Cage aparece em
filmes (sim, isso é verdade...). Mas, evidentemente, não há uma correlação
entre ambos os fatos. Não passa de mera coincidência.

Em questões que dizem respeito à vida social, distinguir entre causalidade e


correlação é algo bastante complexo. Mas o senso comum não gosta de
complexidade. Prefere “explicações” simplórias, e não raro acaba
confundindo entre correlação e causalidade.

Por exemplo: a pobreza é causa da violência, ou ambas estão apenas


correlacionadas? O desvio ético (de caráter) é causa da corrupção, ou é
apenas uma das variáveis associadas ao problema? Não vamos responder
tais perguntas agora. O objetivo aqui é somente chamar a atenção para o
fato de que a falha em distinguir entre causalidade e correlação é fonte de
argumentos falaciosos, isto é, argumentos logicamente inconsistentes, sem
validade.

Ao enxergar causalidade onde geralmente existe correlação, o senso comum


simplifica erroneamente questões que, na verdade, são bastante complexas.

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3. O SENSO COMUM É DOGMÁTICO

Dogma é uma suposta verdade aceita sem discussão – você acredita nela ou
não, e ponto final. Crenças religiosas são bons exemplos disso. Ou você
acredita que Jesus ressuscitou ao final do terceiro dia, ou não acredita. Não há
provas concretas disso (o que não significa que crenças religiosas sejam “ruins”;
ao contrário, cumprem função importante na vida das sociedades). Do mesmo
modo, ou você acredita que a posição dos planetas no dia e hora em que você
nasceu terão alguma influência no desenvolvimento de certos traços da sua
personalidade, ou não acredita. É impossível obter alguma evidência de que
isso seja verdade.
Uma pessoa dogmática é alguém que esbanja certezas sobre tudo. Está tão
convencida de que a sua visão de mundo é a mais correta, a “Verdade com V
maiúsculo”, que o mero questionamento basta para despertar a sua
impaciência (no melhor dos casos) ou ira (no pior).
O contrário do dogmatismo é o falibilismo, a atitude intelectual baseada na
dúvida. O sujeito falibilista sempre se pergunta se a própria crença é
justificada, se não haveria outras crenças melhores ou mais precisas do que
a sua. O falibilista duvida de si, de sua própria capacidade de perceber e
enxergar a realidade. Sabe que sua visão de mundo está sempre em
processo de revisão, de refino, de melhoramento.
Contudo, essa dúvida não o paralisa, não o leva a dizer “já que eu não posso
ter certeza de nada, não tenho bases para formar uma opinião”. Porque o
falibilista sabe que, apesar do processo de construção do conhecimento ser
infindável, é possível distinguir entre boas e más razões para sustentar uma
determinada crença. Por exemplo: estamos longe de decifrar completamente
o funcionamento das células cancerígenas, mas anos de pesquisas nos
permitiram acumular suficientes razões para acreditar que, se você tem

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câncer, deve se tratar com quimioterapia, não com homeopatia. Em suma,
não sabemos tudo sobre o câncer. Mas o que sabemos nos dá segurança
suficiente para preferirmos um tipo de tratamento, e não outro.
Há uma diferença entre “opinião” e “opinião informada”, mas o dogmatismo do
senso comum contribui para embaralhá-las. É claro que todos possuem o direito
a ter opinião, e a expressá-la livremente (vivemos numa democracia, afinal).
Mas ter um direito é uma coisa; fazer o uso apropriado desse direito, outra. Seria
absurdo partir do princípio de que a opinião de um pediatra sobre a taxa de juros
é tão informada quanto a de um economista que se dedica a estudar este tema,
ou que a opinião de um sociólogo sobre como construir uma ponte é tão
informada quanto a de um engenheiro.
Quando se trata de temas sociais e políticos, a distinção entre “opinião” e
“opinião informada” parece ir por água abaixo. O senso comum frequentemente
se mostra convencido de que a sua opinião, que em geral se mostra pouco
ou nada informada, é uma verdade óbvia, um fato incontestável – um dogma.
Em matéria de política e sociedade, o senso comum quase sempre ignora o
conhecimento científico produzido, ao mesmo tempo em que reivindica para
as suas crenças o status de verdade objetiva.
Nada é mais ideologicamente ilusório do que a suposta obviedade. Quem
tem certeza de tudo, quem crê que as respostas para os nossos problemas
políticos e sociais são óbvias, parte do princípio de que as informações
necessárias à compreensão desses problemas estão a disposição de todos,
de que os “fatos” são bem conhecidos e irrefutáveis, e que somente uma
perversão moral explicaria a falha em reconhecê-los. Mas este nem de longe
é o caso. O sujeito que tem certeza de tudo não se dá conta de que as
informações disponíveis são partes de um quebra-cabeça cuja imagem
completa não pode ser deduzida, somente inventada, e que os fatos
frequentemente admitem interpretações variadas.
Como é que o dogmatismo se exprime na prática, isto é, no dia a dia das
pessoas? Antes de mais nada, há o chamado viés de confirmação
(“confirmation bias”), que é a tendência ou disposição de acreditar somente
nas informações que se encaixam às crenças que você já possuía
anteriormente. Digamos que você esteja lendo um jornal, conversando com
amigos, ou vendo um documentário. Se você toma contato com algum
argumento que contraria a sua visão de mundo, a tendência é que você
acabe descartando esse argumento, não acreditando nele, ou pelo menos
tendo sérias dúvidas a respeito. Se, por outro lado, o argumento reforça
crenças que você já possuía anteriormente, então você tende a acreditar
instantaneamente nele – mesmo que o argumento seja falso.
Ou seja, de modo geral, as pessoas acreditam somente naquilo que elas já
estavam dispostas a acreditar. O que, aliás, ajuda a entender por que é tão
difícil convencer alguém que pensa diferente de você.

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“Fatos objetivos” “O que você vê” “O que confirma suas crenças”

Além do viés de confirmação, há também o efeito Dunning-Kruger, que tem


esse nome porque foi descoberto pelos psicólogos sociais David Dunning e
Justin Kruger. Através de inúmeros testes, eles descobriram que pessoas
com pouco conhecimento sobre algum assunto sempre acreditam que sabem
muito mais do que na verdade sabem. Ou seja, essas pessoas não são
capazes de perceber a própria ignorância. Ao contrário, elas têm a ilusão de
que são muito mais capazes do que realmente são. Em outras palavras, o
ignorante ignora sobretudo a extensão da própria ignorância. Percebam que
eu escrevi “ignorante”, e não “burro”. O que está em questão aqui não é o QI
da pessoa, o quanto ela é inteligente, e sim o quanto ela sabe sobre algum
determinado assunto.

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O senso comum adora dizer, um tanto dogmaticamente, que “contra fatos
não há argumentos”. Mas, no dia a dia, frequentemente nos deparamos com
o contrário disso: na verdade, contra argumentos é que não há fatos.

Como disse certa vez o astrônomo Carl Sagan: “Não é possível convencer
um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em
evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar”.

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4. O SENSO COMUM É UTILITARISTA

Utilitarismo é uma vertente de pensamento filosófico, cuja orientação principal


é maximizar o bem-estar do maior número possível de pessoas, não
importando os meios empregados. Um raciocínio utilitarista é aquele que,
partindo do cálculo dos custos e benefícios de uma ação, declara que a ação
será justificada se ela fizer o bem para a maioria das pessoas. Para um
utilitarista, os fins justificam os meios, desde que os fins aumentem o bem-
estar da maioria. Somente os resultados importam; as ações podem ser
eticamente questionáveis, ou mesmo repugnantes, mas serão justificadas se
resultarem na promoção do bem-estar geral.

Apesar de possuir um apelo intuitivo bastante forte, o utilitarismo é


problemático, por vários motivos. Em resumo, é o seguinte: ao se preocupar
com a maximização do bem-estar da maioria, o utilitarismo falha em respeitar
os direitos individuais, e também das minorias, direitos esses considerados
inalienáveis no mundo moderno e democrático. Se for preciso atropelar uma
minoria para fazer o bem da maioria, o utilitarista atropela – afinal, segundo o
utilitarismo, os fins justificam os meios.

O utilitarismo do senso comum prejudica o debate sobre questões de


natureza pública. Prejudica, portanto, nossa compreensão acerca de tais
questões. Mas por quê? E de que forma?

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Qualquer ação ou proposta que incide sobre questões de natureza pública –
isto é, questões que dizem respeito à sociedade como um todo – pode ser
debatida e avaliada em dois campos distintos: o da aplicação e o da
justificação. O campo da aplicação diz respeito a preocupações de ordem
prática. Quando se está argumentando no campo da aplicação, a pergunta
que se faz é: “Como essa ação ou proposta irá contribuir para resolver o
problema?”. Já o campo da justificação refere-se à legitimidade intrínseca da
ação ou proposta em questão. Quando se está argumentando no campo da
justificação, a pergunta que se faz é: “Essa ação ou proposta é justa em si
mesma?”.

Considere o debate sobre cotas para acesso a universidades. Você pode


colocar argumentos do tipo prático (campo da aplicação), como por exemplo
“os cotistas atrapalham o desempenho da turma?”, ou “será que podemos
confiar em engenheiros ou médicos cotistas?”. Por outro lado, você pode
colocar argumentos que questionam a justiça da própria ideia de cotas
universitárias: “Mas as cotas não seriam injustas com os brancos pobres?”,
ou então “as cotas não negam o princípio da meritocracia?”. Perceba que são
dois tipos de perguntas totalmente distintas. O primeiro tipo de pergunta, do
campo da aplicação, nos leva a debater se as cotas são eficientes ou não,
isto é, se resolvem problemas ou os criam. O segundo tipo, do campo da
justificação, nos leva a debater se a política de cotas é, em si mesma, justa
ou injusta.

O mesmo vale para quaisquer outras questões públicas – aborto, casamento


entre homossexuais, criminalização do uso de drogas, medidas de
redistribuição de renda, redução da maioridade penal, modelo de segurança
pública... E por aí vai. Todas essas questões podem ser debatidas tanto no
campo da aplicação, no qual discutimos resultados práticos, quanto no da
justificação, no qual discutimos princípios éticos.

O problema é que o senso comum não costuma dar muita importância a


princípios. Está mais preocupado com resultados – o que, convenhamos, é
até compreensível. Mas compreensível não quer dizer elogiável. Ao manter o
debate público girando em torno de questões práticas (aplicação), ao mesmo
tempo em que despreza os princípios éticos subjacentes (justificação), o
senso comum já está fazendo política de um determinado modo, sem se dar
conta disso.

Desse modo, preocupações éticas são descartadas como meras frescuras,


que atrapalhariam a obrigação de fazer o que for preciso para “resolver o
problema”. Mas então nós deveríamos nos perguntar se a qualidade do
debate público não fica seriamente comprometida em função disso. E, mais
ainda, deveríamos perguntar que tipo de sociedade é essa, que cada vez
mais perde o hábito de pensar sobre a justiça das propostas que dizem
respeito à vida de todos.

O senso comum, como vimos anteriormente, não gosta de ciência. Podemos


agora acrescentar: não gosta de filosofia também. O senso comum é
refratário à profundidade de pensamento.

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5. O SENSO COMUM É ETNOCÊNTRICO

“Etnocentrismo”, escreve o antropólogo Everardo Rocha, “é uma visão de


mundo com a qual tomamos nosso próprio grupo como centro de tudo, e os
demais grupos são pensados e sentidos pelos nossos valores, nossos
modelos, nossas definições do que é a existência”.

Em outras palavras, etnocentrismo é a disposição de colocar a si próprio no


centro do mundo, e julgar a diferença em relação aos seus próprios padrões.
Ou seja, nós tomamos o nosso modo de vida – nossas definições do que é
certo ou errado, belo ou feio, justo ou injusto, desejável ou reprovável, e
assim por diante –, como sendo o “normal”, a régua a partir do qual iremos
julgar todos aqueles que são diferentes, que não pertencem ao nosso grupo.

De certa forma, o etnocentrismo é inevitável. Não há etnia ou grupo social


que não seja em alguma medida etnocêntrico. O problema está no tipo de
postura que uma mentalidade excessivamente etnocêntrica pode gerar. Se
formos etnocêntricos demais – se acharmos que apenas a nossa maneira de
ver o mundo é a correta, e que todas as outras são erradas, bizarras ou
inferiores –, seremos levados a adotar uma postura arrogante,
preconceituosa e, no limite, agressiva. Ficaremos fechados em nosso próprio
mundinho, surdos e cegos a tudo aquilo que for diferente de nós. Isso, por si
só, já seria um equívoco. Num mundo cada vez mais globalizado, é um
problema enorme.

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* Nossa terra abençoada x a espelunca bárbara deles
Nosso líder glorioso x o déspota maluco deles
Nossa grande religião x a superstição primitiva deles
Nosso povo nobre x os selvagens atrasados deles
Nossos heroicos aventureiros x os invasores brutais deles

O senso comum é bastante etnocêntrico. De modo geral, as pessoas não se


dão conta de que aquilo que elas acham “normal” ou “natural” é apenas um
conjunto de convenções socialmente construídas e historicamente
localizadas. Não há nada de “natural” em preferir samba e futebol do que hot
dog e baseball. Nós, brasileiros, fomos socializados de modo a gostar de um
conjunto específico de estilos musicais e esportes (dentre outras coisas,
claro). Mas isso não significa que os nossos gostos sejam necessariamente
melhores, ou mais corretos e desejáveis, do que os gostos ou preferências
de outros povos.

Como se vê, o primeiro passo para superar o etnocentrismo é ter consciência


de que os nossos valores, costumes e crenças são apenas uma perspectiva.
Mas o mundo é vasto; há muitas outras perspectivas, e nada nos garante (em
princípio) que a nossa seja melhor. Portanto, se não quisermos ser
etnocêntricos, temos que tentar compreender essas outras perspectivas a
partir da lógica delas, e não da nossa.

Nas ciências sociais, chamamos isso de “relativismo”. Dado que não há como
julgar todas as perspectivas segundo um padrão que se supõe neutro, o
melhor que podemos fazer é partir do princípio que cada perspectiva possui a
sua lógica interna – e tentar compreendê-la. Isso significa que é impossível
definir um critério ou um padrão que nos diga, de uma vez por todas, qual
perspectiva é a mais correta. São apenas diferentes, e o relativismo é
justamente a atitude intelectual que promove a abertura necessária à
compreensão dessas diferenças.

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Isso não significa, por exemplo, que brasileiros tenham que achar baseball o
máximo. Podemos continuar considerando esse esporte algo monótono, e
até achar graça no fato de que os jogadores parecem estar vestindo pijamas.
O que não deveríamos é concluir que as nossas preferências esportivas
tenham algo de intrinsecamente superior em relação às preferências dos
norte-americanos. Deveríamos, em vez disso, estar cientes de que, se o
futebol nos parece mais emocionante do que o baseball, não é porque ele de
fato o seja, mas sim porque fomos socializados numa cultura que nos
ensinou a achá-lo emocionante.

Entretanto, o relativismo também tem os seus problemas. Na verdade, dois


problemas principais: um de ordem lógica, outro de ordem moral. O problema
lógico consiste no fato de que o relativismo, como forma de pensamento,
refuta a si mesmo. Portanto, é logicamente inconsistente. Vejamos o que isso
significa.

Acabamos de dizer que “é impossível definir um critério ou um padrão que


nos diga, de uma vez por todas, qual perspectiva é a mais correta”. Ou seja,
o relativismo afirma a impossibilidade de chegarmos a uma Verdade com V
maiúsculo, uma verdade universal. De acordo com a postura relativista, o que
existe são apenas diferentes perspectivas, cada uma com a sua própria
verdade particular.

Contudo, se afirmarmos que “não existe verdade” – essa afirmação é ela


mesma verdadeira ou falsa? Se for verdadeira, então concluímos que “é
verdade que não existe verdade”. Logo, estamos atestando a existência de
uma verdade, o que contradiz a afirmação relativista inicial. Mas se essa
afirmação (“não existe verdade”) for falsa, então segue-se que “não é
verdade que não existe verdade”. Ou seja, a dupla negação produz a
afirmação de que sim, existe verdade. De qualquer modo, resta evidente que
a afirmação “não existe verdade” é logicamente inconsistente, pois refuta a si
própria.

Os filósofos gregos já apontavam essa impossibilidade lógica do relativismo.


No entanto, o relativismo atravessou os séculos e chegou até os dias atuais,
permanecendo influente na filosofia, na antropologia e até (segundo algumas
interpretações) na física quântica. Se uma forma de pensamento resistiu
tanto tempo, apesar de sua evidente fragilidade lógica, é porque deve dizer
algo de relevante sobre a condição humana.

Mas o problema mais grave, que mais gera polêmica, é o de ordem moral.
Se, como dizem os relativistas, não existem culturas melhores ou piores do
que outras, apenas culturas com lógicas diferentes, então não ficamos sem
uma base sólida para criticar culturas ou sociedades que praticam atos que
consideramos bárbaros? E se encontrarmos alguém que diga que “na minha
cultura, discriminar negros e violentar mulheres é uma coisa boa”? Somos
obrigados a aceitar passivamente, porque afinal de contas não existem
verdades universais, mas apenas “perspectivas particulares diferentes”?

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Parece, enfim, que chegamos a um impasse. Se nos deixarmos levar pelo
fechamento etnocêntrico, nos tornamos preconceituosos e intolerantes. Se,
por outro lado, nos deixarmos seduzir pela abertura relativista, ficamos sem
base para defender alguns dos valores que consideramos indispensáveis ou
fundamentais à vida civilizada. E agora?

Na verdade, o impasse é apenas aparente. Para contorná-lo, basta que


consideremos o relativismo como uma ferramenta cognitiva, não como uma
obrigação moral. Isso significa compreender o relativismo somente enquanto
método de apreensão e análise da realidade: durante o encontro com uma
perspectiva diferente da nossa, temos que fazer o esforço sincero de
suspender temporariamente nossos valores e crenças, a fim de tentar
compreender como essa perspectiva está estruturada, e por que motivos ela
oferece um ponto de vista distinto do nosso. Mas isso não quer dizer que
estamos moralmente obrigados a acolher ou acatar sem reservas esse ponto
de vista.

Vejamos logo o exemplo mais extremo dessa controvérsia – o nazismo. O


senso comum pode se limitar a criticar ou julgar, da forma mais severa
possível, as ideias e práticas nazistas. Tais críticas e julgamentos podem ser
reconfortantes para nós, que prezamos a democracia e os direitos humanos.
Mas manifestar nosso horror pelo nazismo não nos aproxima um milímetro
sequer da compreensão dos motivos que levaram uma sociedade tão culta e
educada quanto a alemã a abraçar uma ideologia tão bárbara. Não nos ajuda
a compreender a dinâmica interna da visão de mundo nazista, nem como ela
conseguiu (e ainda consegue...) seduzir tanta gente.

Em resumo, compreender não implica automaticamente em concordar ou


perdoar. Podemos ser relativistas na hora de entender a diferença, e ainda
assim manter nosso apego a tudo aquilo que acreditamos ser moralmente
bom, correto ou justo.

O senso comum crê que o pensamento tem as mesmas dimensões dos seus
julgamentos. O cientista social, ao contrário, sabe que o ato de julgar impede
o florescimento da capacidade de pensar em toda a sua potência.

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6. O SENSO COMUM GENERALIZA,
EM VEZ DE ABSTRAIR

O mundo é feito de semelhanças e diferenças. O desafio é como entendê-las.

Resumindo bastante, podemos afirmar que há basicamente duas maneiras


de estabelecer uma relação entre o que é comum (a semelhança) e o que é
específico (a diferença): a abstração e a generalização.

Digamos que eu veja um triângulo. Eu sei que o que faz um triângulo ser um
triângulo é o fato de que ele possui três lados, e de que a soma de seus
ângulos internos é 180 graus. Sei também que há diferentes tipos de
triângulos (equilátero, isósceles e escaleno). Logo, se eu me deparar com um
triângulo vermelho e outro azul, serei capaz de perceber que, mesmo que
eles tenham cores diferentes, ambos são triângulos. Ou seja, eu observei
duas coisas diferentes (triângulo vermelho e azul), e me perguntei o que elas
têm em comum. Notem que em nenhum momento estabeleci uma hierarquia
entre os triângulos. Não disse que o vermelho é mais bonito ou perfeito que o
azul, ou vice-versa. Apenas identifiquei a semelhança, aquilo que ambas as
figuras tinham em comum: o fato de serem triângulos.

Mas imaginemos que, em vez de me perguntar o que ambas as figuras têm


em comum, eu decidisse privilegiar uma delas. Vamos supor que, diante
desses dois triângulos, eu diga que o vermelho é o “normal”. Se é assim,
então todos os triângulos não vermelhos serão “diferentes”. No instante em
que faço isso, estou criando uma generalização, isto é, elegendo uma
possibilidade (o triângulo vermelho) como o padrão. A partir de então, todas
as outras possibilidades (triângulos de outras cores) deverão ser medidas
contra esse padrão.

Observar as diferenças, para a partir daí buscar algo que lhes é comum, é
uma operação de abstração. Escolher uma diferença dentre muitas, e fazer
dela uma regra, ou um modelo, é uma operação de generalização.

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Reparem que a generalização supõe sempre uma idealização. Parte-se de
um determinado princípio (“triângulos vermelhos são normais”), que rechaça
a diferença em nome de um suposto padrão, uma ideia de que algo deve ser
de uma determinada maneira, e não de outra. Já a abstração supõe o exame
cuidadoso das diferenças, com o objetivo de compreender as possíveis
semelhanças entre elas.

Contudo, esses dois procedimentos, abstração e generalização, podem


acabar se misturando. Por exemplo, uma pessoa se depara com triângulos
de várias cores; ela se pergunta o que todos eles têm em comum, e então
abstrai a ideia de triângulo. Mas, logo em seguida, a pessoa dá um passo
além, e diz que a única forma geométrica correta é o triângulo. Quadrados,
hexágonos, retângulos, enfim, todas as outras formas geométricas seriam
“erradas” ou “diferentes”, porque não triangulares. Eis a generalização.

Infelizmente, a eleição de uma característica ou aspecto da realidade como


modelo ou padrão (a generalização), é algo bastante corriqueiro. Estereótipos
são bons exemplos de generalização. Mas não é apenas o senso comum que
faz isso. As ciências, os saberes especializados, também. No século XIX, por
exemplo, havia a frenologia, a ciência que estudava crânios. Os cientistas da
época tomaram o crânio de pessoas brancas como modelo de normalidade, e
a partir daí generalizaram: todos os crânios não brancos sinalizavam alguma
deficiência. A frenologia foi um produto do racismo de seu tempo, e também
um de seus suportes institucionais – afinal, era a “ciência” chancelando a
ideia de que os brancos eram naturalmente superiores aos negros.

A tarefa das ciências sociais – ou de qualquer forma de pensamento crítico –


é dupla. Por um lado, deve investigar o que os fenômenos têm em comum,
para melhor compreender suas semelhanças: se algo se repete em contextos
diferentes, é porque é relevante. Por outro, deve cuidar das diferenças, isto é,
desconstruir as generalizações existentes, a fim de tornar visíveis os
mecanismos que produzem os padrões e modelos de supostas
“normalidades”.

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CONTRA O SENSO COMUM, AS CIÊNCIAS SOCIAIS

1. O senso comum só é capaz de enxergar ação de indivíduos? As ciências


sociais ensinam a observar como as estruturas econômicas, culturais e
políticas influenciam as ações individuais.

2. O senso comum afirma causalidades inexistentes, simplificando questões


complexas? As ciências sociais buscam estabelecer as correlações (e
causalidades também, quando for o caso) que nos permitem compreender as
questões de maneira mais plural e precisa.

3. O senso comum esbanja certezas, e só está disposto a acolher


informações que reforcem essas certezas? As ciências sociais estimulam a
duvidar de maneira inteligente e produtiva, pois o exame de argumentos
contrários é indispensável ao desenvolvimento da perspectiva pessoal de
cada um.

4. O senso comum só se preocupa com a prática, sendo incapaz de pensar


sobre o significado ético mais amplo das ideias que defende? As ciências
sociais mostram que os princípios importam – inclusive para a obtenção de
bons resultados práticos.

5. O senso comum acha feio tudo aquilo que não é espelho? As ciências
sociais ensinam que a abertura à diferença é tão moralmente importante
quanto intelectualmente enriquecedor.

6. O senso comum produz (e celebra) generalizações e estereótipos? As


ciências sociais tratam de desconstruí-las, ajudando assim a cuidar das
diferenças.

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