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Antonio Engelke
Apostila 1o trimestre – 1o Ano
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Nossa visão de mundo, a maneira como percebemos e explicamos a
realidade, é em larga medida construída sobre uma série de impressões que
quase nunca nos damos ao trabalho de examinar. Tais impressões são feitas
a partir um estoque de ideias e concepções amplamente compartilhadas, que
chamaremos aqui de “senso comum”.
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1. O SENSO COMUM NÃO ENXERGA
ALÉM DO INDIVÍDUO
Alguém por acaso já viu essa tal de sociedade? Já esbarrou com ela na
esquina? Quando você sofre um assalto, quem está na sua frente, apontando
uma arma, é um bandido ou a sociedade? Quando você precisa de
tratamento num hospital, quem te atende é uma médica ou a sociedade?
Portanto, parece evidente que assaltos ocorrem porque existem indivíduos
dispostos a cometê-los, ou que vidas são salvas pelas mãos de especialistas
em medicina. Seja em que situação for, o que temos diante dos nossos olhos
são sempre mulheres e homens que agem, nunca “a sociedade”.
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É por isso que nos acostumamos a enxergar o mundo desde uma
perspectiva que explica a realidade a partir da ação voluntária dos indivíduos.
Segundo essa perspectiva, as coisas acontecem porque os indivíduos as
fazem acontecer. Sendo assim, faria todo o sentido dizer que a “sociedade”
simplesmente não existe.
Trata-se de uma certeza tão óbvia, tão evidente, que sequer nos damos o
trabalho de pensar sobre ela. Nós não precisamos fazer força para
compreender e explicar o mundo dessa maneira; simplesmente nos parece
natural. Mais ainda, a explicação que ela nos fornece é parcialmente
verdadeira. Afinal, é razoável supor que, se o indivíduo não tivesse escolhido
o caminho do crime, você não teria sido assaltado, e que se a médica não
fosse competente, você não teria recebido o tratamento adequado.
Tudo isso é verdade. Mas não toda a verdade. Essa perspectiva, que
compreende e explica o mundo a partir da ação dos indivíduos, é bastante
parcial, incompleta. Como vimos em sala de aula, é impossível explicar por
que certos tipos de crimes ocorrem com regularidade em determinados
lugares, se observarmos somente a ação dos indivíduos que cometem tais
crimes. Isso quer dizer que a ação individual é um componente necessário,
mas não suficiente, para explicar os fatos que compõem a realidade. É
preciso olhar para a sociedade, o contexto dentro do qual os indivíduos
agem.
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2. O SENSO COMUM CONFUNDE
CAUSALIDADE COM CORRELAÇÃO
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Vale atentar para o risco das chamadas correlações espúrias, falsas. Na
verdade, trata-se da tentativa de estabelecer uma relação em que existe
apenas uma coincidência. Por exemplo: o número de pessoas que se afogam
em piscinas é maior nos anos em que o ator Nicholas Cage aparece em
filmes (sim, isso é verdade...). Mas, evidentemente, não há uma correlação
entre ambos os fatos. Não passa de mera coincidência.
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3. O SENSO COMUM É DOGMÁTICO
Dogma é uma suposta verdade aceita sem discussão – você acredita nela ou
não, e ponto final. Crenças religiosas são bons exemplos disso. Ou você
acredita que Jesus ressuscitou ao final do terceiro dia, ou não acredita. Não há
provas concretas disso (o que não significa que crenças religiosas sejam “ruins”;
ao contrário, cumprem função importante na vida das sociedades). Do mesmo
modo, ou você acredita que a posição dos planetas no dia e hora em que você
nasceu terão alguma influência no desenvolvimento de certos traços da sua
personalidade, ou não acredita. É impossível obter alguma evidência de que
isso seja verdade.
Uma pessoa dogmática é alguém que esbanja certezas sobre tudo. Está tão
convencida de que a sua visão de mundo é a mais correta, a “Verdade com V
maiúsculo”, que o mero questionamento basta para despertar a sua
impaciência (no melhor dos casos) ou ira (no pior).
O contrário do dogmatismo é o falibilismo, a atitude intelectual baseada na
dúvida. O sujeito falibilista sempre se pergunta se a própria crença é
justificada, se não haveria outras crenças melhores ou mais precisas do que
a sua. O falibilista duvida de si, de sua própria capacidade de perceber e
enxergar a realidade. Sabe que sua visão de mundo está sempre em
processo de revisão, de refino, de melhoramento.
Contudo, essa dúvida não o paralisa, não o leva a dizer “já que eu não posso
ter certeza de nada, não tenho bases para formar uma opinião”. Porque o
falibilista sabe que, apesar do processo de construção do conhecimento ser
infindável, é possível distinguir entre boas e más razões para sustentar uma
determinada crença. Por exemplo: estamos longe de decifrar completamente
o funcionamento das células cancerígenas, mas anos de pesquisas nos
permitiram acumular suficientes razões para acreditar que, se você tem
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câncer, deve se tratar com quimioterapia, não com homeopatia. Em suma,
não sabemos tudo sobre o câncer. Mas o que sabemos nos dá segurança
suficiente para preferirmos um tipo de tratamento, e não outro.
Há uma diferença entre “opinião” e “opinião informada”, mas o dogmatismo do
senso comum contribui para embaralhá-las. É claro que todos possuem o direito
a ter opinião, e a expressá-la livremente (vivemos numa democracia, afinal).
Mas ter um direito é uma coisa; fazer o uso apropriado desse direito, outra. Seria
absurdo partir do princípio de que a opinião de um pediatra sobre a taxa de juros
é tão informada quanto a de um economista que se dedica a estudar este tema,
ou que a opinião de um sociólogo sobre como construir uma ponte é tão
informada quanto a de um engenheiro.
Quando se trata de temas sociais e políticos, a distinção entre “opinião” e
“opinião informada” parece ir por água abaixo. O senso comum frequentemente
se mostra convencido de que a sua opinião, que em geral se mostra pouco
ou nada informada, é uma verdade óbvia, um fato incontestável – um dogma.
Em matéria de política e sociedade, o senso comum quase sempre ignora o
conhecimento científico produzido, ao mesmo tempo em que reivindica para
as suas crenças o status de verdade objetiva.
Nada é mais ideologicamente ilusório do que a suposta obviedade. Quem
tem certeza de tudo, quem crê que as respostas para os nossos problemas
políticos e sociais são óbvias, parte do princípio de que as informações
necessárias à compreensão desses problemas estão a disposição de todos,
de que os “fatos” são bem conhecidos e irrefutáveis, e que somente uma
perversão moral explicaria a falha em reconhecê-los. Mas este nem de longe
é o caso. O sujeito que tem certeza de tudo não se dá conta de que as
informações disponíveis são partes de um quebra-cabeça cuja imagem
completa não pode ser deduzida, somente inventada, e que os fatos
frequentemente admitem interpretações variadas.
Como é que o dogmatismo se exprime na prática, isto é, no dia a dia das
pessoas? Antes de mais nada, há o chamado viés de confirmação
(“confirmation bias”), que é a tendência ou disposição de acreditar somente
nas informações que se encaixam às crenças que você já possuía
anteriormente. Digamos que você esteja lendo um jornal, conversando com
amigos, ou vendo um documentário. Se você toma contato com algum
argumento que contraria a sua visão de mundo, a tendência é que você
acabe descartando esse argumento, não acreditando nele, ou pelo menos
tendo sérias dúvidas a respeito. Se, por outro lado, o argumento reforça
crenças que você já possuía anteriormente, então você tende a acreditar
instantaneamente nele – mesmo que o argumento seja falso.
Ou seja, de modo geral, as pessoas acreditam somente naquilo que elas já
estavam dispostas a acreditar. O que, aliás, ajuda a entender por que é tão
difícil convencer alguém que pensa diferente de você.
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“Fatos objetivos” “O que você vê” “O que confirma suas crenças”
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O senso comum adora dizer, um tanto dogmaticamente, que “contra fatos
não há argumentos”. Mas, no dia a dia, frequentemente nos deparamos com
o contrário disso: na verdade, contra argumentos é que não há fatos.
Como disse certa vez o astrônomo Carl Sagan: “Não é possível convencer
um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em
evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar”.
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4. O SENSO COMUM É UTILITARISTA
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Qualquer ação ou proposta que incide sobre questões de natureza pública –
isto é, questões que dizem respeito à sociedade como um todo – pode ser
debatida e avaliada em dois campos distintos: o da aplicação e o da
justificação. O campo da aplicação diz respeito a preocupações de ordem
prática. Quando se está argumentando no campo da aplicação, a pergunta
que se faz é: “Como essa ação ou proposta irá contribuir para resolver o
problema?”. Já o campo da justificação refere-se à legitimidade intrínseca da
ação ou proposta em questão. Quando se está argumentando no campo da
justificação, a pergunta que se faz é: “Essa ação ou proposta é justa em si
mesma?”.
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5. O SENSO COMUM É ETNOCÊNTRICO
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* Nossa terra abençoada x a espelunca bárbara deles
Nosso líder glorioso x o déspota maluco deles
Nossa grande religião x a superstição primitiva deles
Nosso povo nobre x os selvagens atrasados deles
Nossos heroicos aventureiros x os invasores brutais deles
Nas ciências sociais, chamamos isso de “relativismo”. Dado que não há como
julgar todas as perspectivas segundo um padrão que se supõe neutro, o
melhor que podemos fazer é partir do princípio que cada perspectiva possui a
sua lógica interna – e tentar compreendê-la. Isso significa que é impossível
definir um critério ou um padrão que nos diga, de uma vez por todas, qual
perspectiva é a mais correta. São apenas diferentes, e o relativismo é
justamente a atitude intelectual que promove a abertura necessária à
compreensão dessas diferenças.
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Isso não significa, por exemplo, que brasileiros tenham que achar baseball o
máximo. Podemos continuar considerando esse esporte algo monótono, e
até achar graça no fato de que os jogadores parecem estar vestindo pijamas.
O que não deveríamos é concluir que as nossas preferências esportivas
tenham algo de intrinsecamente superior em relação às preferências dos
norte-americanos. Deveríamos, em vez disso, estar cientes de que, se o
futebol nos parece mais emocionante do que o baseball, não é porque ele de
fato o seja, mas sim porque fomos socializados numa cultura que nos
ensinou a achá-lo emocionante.
Mas o problema mais grave, que mais gera polêmica, é o de ordem moral.
Se, como dizem os relativistas, não existem culturas melhores ou piores do
que outras, apenas culturas com lógicas diferentes, então não ficamos sem
uma base sólida para criticar culturas ou sociedades que praticam atos que
consideramos bárbaros? E se encontrarmos alguém que diga que “na minha
cultura, discriminar negros e violentar mulheres é uma coisa boa”? Somos
obrigados a aceitar passivamente, porque afinal de contas não existem
verdades universais, mas apenas “perspectivas particulares diferentes”?
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Parece, enfim, que chegamos a um impasse. Se nos deixarmos levar pelo
fechamento etnocêntrico, nos tornamos preconceituosos e intolerantes. Se,
por outro lado, nos deixarmos seduzir pela abertura relativista, ficamos sem
base para defender alguns dos valores que consideramos indispensáveis ou
fundamentais à vida civilizada. E agora?
O senso comum crê que o pensamento tem as mesmas dimensões dos seus
julgamentos. O cientista social, ao contrário, sabe que o ato de julgar impede
o florescimento da capacidade de pensar em toda a sua potência.
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6. O SENSO COMUM GENERALIZA,
EM VEZ DE ABSTRAIR
Digamos que eu veja um triângulo. Eu sei que o que faz um triângulo ser um
triângulo é o fato de que ele possui três lados, e de que a soma de seus
ângulos internos é 180 graus. Sei também que há diferentes tipos de
triângulos (equilátero, isósceles e escaleno). Logo, se eu me deparar com um
triângulo vermelho e outro azul, serei capaz de perceber que, mesmo que
eles tenham cores diferentes, ambos são triângulos. Ou seja, eu observei
duas coisas diferentes (triângulo vermelho e azul), e me perguntei o que elas
têm em comum. Notem que em nenhum momento estabeleci uma hierarquia
entre os triângulos. Não disse que o vermelho é mais bonito ou perfeito que o
azul, ou vice-versa. Apenas identifiquei a semelhança, aquilo que ambas as
figuras tinham em comum: o fato de serem triângulos.
Observar as diferenças, para a partir daí buscar algo que lhes é comum, é
uma operação de abstração. Escolher uma diferença dentre muitas, e fazer
dela uma regra, ou um modelo, é uma operação de generalização.
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Reparem que a generalização supõe sempre uma idealização. Parte-se de
um determinado princípio (“triângulos vermelhos são normais”), que rechaça
a diferença em nome de um suposto padrão, uma ideia de que algo deve ser
de uma determinada maneira, e não de outra. Já a abstração supõe o exame
cuidadoso das diferenças, com o objetivo de compreender as possíveis
semelhanças entre elas.
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CONTRA O SENSO COMUM, AS CIÊNCIAS SOCIAIS
5. O senso comum acha feio tudo aquilo que não é espelho? As ciências
sociais ensinam que a abertura à diferença é tão moralmente importante
quanto intelectualmente enriquecedor.
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