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O que o transplante do Faustão nos ensina sobre fato e opinião

 31/08/2023
*Mariana Mandelli é coordenadora de comunicação e Jonas Santana é
analista de comunicação do Instituto Palavra Aberta
“Passou na frente de muita gente que espera por um transplante”. “Gosto
muito do Faustão, mas o meu pai também deveria ter prioridade”. “Muita
gente na fila e do nada ele quem ganha um coração”. “Quem tem dinheiro
não precisa ficar na fila do SUS”. No último domingo, após o anúncio de
que o apresentador Fausto Silva havia realizado um transplante de
coração em São Paulo (SP), o teor dos comentários nas redes sociais era
mais ou menos esse, repletos de desconfiança, desinformação e teorias
conspiratórias.
Quem acessasse o X/Twitter ou o Instagram poderia imaginar que as
plataformas haviam sido tomadas por especialistas no funcionamento do
Sistema Único de Saúde ou em procedimentos médicos complexos e
cardiopatias graves, tamanha a certeza com que algumas afirmações eram
feitas.
A histeria especulativa foi tanta que o Ministério da Saúde e o governo
paulista emitiram notas explicando os critérios técnicos para a realização
de transplantes, com dados que rebatem, com fatos e números, a
enxurrada de opiniões sem fundamentos que varreram as timelines.
“A lista de espera por um órgão funciona baseada em critérios
técnicos, em que tipagem sanguínea, compatibilidade de peso e
altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade distintos
para cada órgão determinam a ordem de pacientes a serem
transplantados. Quando os critérios técnicos são semelhantes, a
ordem cronológica de cadastro, ou seja, a ordem de chegada,
funciona como critério de desempate. Pacientes em estado crítico
são atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica”,
afirmou o Ministério da Saúde em comunicado.
Afinal, por que é mais fácil descredibilizar o SUS do que acreditar na
celeridade do sistema? Não existe apenas uma resposta para essa
pergunta, já que vivemos em um país onde não faltam denúncias de
corrupção e de favorecimento de elites e pessoas influentes. Também não
há como negar que, no Brasil, a crença nas instituições públicas é baixa.
Dados como os do Edelman Trust Barometer 2023 ajudam a entender o
cenário: de acordo com o estudo, 40% dos brasileiros desconfiam do
governo e 46% da mídia — ambos são vistos como fontes de
desinformação. O relatório, que envolveu uma amostra de 32 mil pessoas
de 28 países, ainda mostra que, por aqui, líderes institucionais não têm
confiabilidade e que “forças divisoras”, como ricos e autoridades
governamentais, são vistos por grandes parcelas da população como
grupos que intensificam desigualdades (62% e 49%, respectivamente).
Índices como esses devem ser entendidos no contexto de hiperconexão e
infodemia em que estamos, sem esquecer do cenário de polarização
política vivenciado com mais ênfase nos últimos cinco anos. A
disseminação de conteúdos conspiracionistas, negacionistas e
antidemocráticos encontra sentido, sabemos, nas crenças e opiniões de
grande parte da população.
O chamado viés de confirmação, tendência humana a validar e a acreditar
apenas naquilo que referenda nossos valores e preconceitos, buscando
sempre respaldo para eles, também ajuda a explicar por que para tanta
gente pode ser mais fácil crer em falcatruas do que em dados e estatísticas
positivos de fontes oficiais.
Isso pode ocorrer também em situações corriqueiras, que envolvam
anônimos. Um exemplo recente é o de um vídeo que viralizou há algumas
semanas, em que um cachorro corria atrás de um carro em Nova Iguaçu
(RJ). As imagens foram rapidamente interpretadas, sem provas, como mais
um caso de abandono de animal, e a tutora sofreu diversos ataques nas
redes sociais. O problema é que não se tratava disso: o cão havia fugido de
casa.
Furar a fila de transplante ou abandonar um animal são atos reprováveis
socialmente e que estão enraizados nas ideias pré-concebidas que temos
de nós mesmos como sociedade. No Brasil, passou a ser comum discutir os
privilégios de poucos sob a falta de acesso a direito de muitos.
No entanto, ter consciência de injustiças sociais não deve ser justificativa
para validar pontos de vista que não sejam baseados em evidências,
distorcer fatos e, consequentemente, compartilhar desinformação que
fere a reputação alheia. Mesmo porque tais atos podem ser enquadrados
como difamação, calúnia e injúria e, assim, punidos como tais de acordo
com o Código Penal Brasileiro.
A internet está cheia de armadilhas para que situações como essas se
repitam, mas cabe a cada usuário uma conduta responsável e
ética. “Informem-se antes de julgar”, disse João Silva, filho de Faustão, ao
rebater as acusações contra o pai e o SUS. Se buscássemos informações
antes de postarmos nossas opiniões e apontarmos dedos, talvez fôssemos
capazes de valorizar o que funciona no Brasil.

https://youtu.be/34E0K3j7GO8

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