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Sérgio Franco e Anderson Paz

CASAMENTO,
IMORALIDADE SEXUAL
& DIVÓRCIO

2a edição
Sérgio Franco e Anderson Paz
2ª edição / 2017

PROJETO GRÁFICO
Tita Pereira

REVISÃO DE TEXTOS
Bianca Garofani Paz

COLABORADOR
Luiz Roberto Cascaldi

ILUSTRAÇÕES
Tita Pereira e Freepik

DISTRIBUIÇÃO
Apê Criativo
INTRODUÇÃO
Há muitos anos este tema tem nos confrontado. Com certeza é um dos
mais polêmicos e delicados a ser tratado entre aqueles que desejam levar a
sério os mandamentos do Senhor Jesus. Lamentavelmente, alguns líderes não
consideram este tema importante e não estão atentos aos problemas de
divórcios no meio da igreja e nem à forma como Jesus tratou isto, dando
máxima importância.
O fato é que aqueles que zelam pelas ovelhas do Senhor Jesus buscam
compreender claramente este ensino, considerando que um erro pode custar a
alma de alguém, levando-se em conta que “os adúlteros não herdarão o Reino
de Deus” e também que entre a destruição de uma família e a perda de uma
alma, o bom senso escolhe a vida eterna ao lado do Senhor Jesus Cristo.
A 1ª edição deste livro surgiu a partir das aulas ministradas em um
treinamento para líderes da Igreja em Curitiba, chamado de CTL. Iniciamos as
nossas aulas falando sobre a obra de fazer discípulos e, quando começamos a
estudar o “sermão do monte”, foi inevitável tocar no tema divórcio e novo
casamento.
Havia chegado a hora de abordar os versículos 31 e 32 de Mateus 5. O
conteúdo dessas aulas1 foi transcrito, editado e organizado. Além disso,
também foi acrescentado conteúdo novo, aprofundando alguns temas e
abordando assuntos que não foram suficientemente esclarecidos durante as
aulas.
Após sua publicação, a 1ª edição desta obra foi submetida a um encontro
de pastores, promovido na cidade de Cabo Frio/RJ, em novembro de 2016.
Ali colhemos opiniões e recebemos sugestões. Então, iniciou-se um novo
trabalho que resultou na nova edição ora apresentada.
A 2ª edição do livro “Casamento, Imoralidade Sexual e Divórcio” foi
orientada a partir da necessidade de agregar conteúdo novo, reorganizar a
forma como o livro estava apresentado e retirar alguns pontos que eram pouco
pertinentes à temática da obra.
Por isso, nos dedicamos a uma revisão geral, na qual concentramos por
capítulo alguns temas que se encontravam dispersos ao longo da primeira
edição do livro, e assim evitamos repetir conteúdos que tornavam a leitura do
texto mais difícil. Portanto, você está diante de um livro novo, diferente em
muitos aspectos da 1ª edição.
Este livro não existiria sem a experiência pastoral do presbitério da
Igreja na Zona Oeste do Rio de Janeiro, sem a coautoria do meu querido
Anderson Paz e sem o empenho da Mesa Pastoral em Curitiba.
Esperamos que este material possa cooperar de alguma forma com a sua
compreensão. Com muito temor e tremor, arriscamos dizer que não julgamos
possuir luz plena sobre o assunto.

Que o Senhor ilumine os olhos dos nossos corações.

Boa leitura!
Sérgio Franco
Capítulo I
O QUE É O CASAMENTO?
Quando questionado sobre o tema do divórcio, o Senhor Jesus falou
sobre o casamento na Criação (Mateus 19:3-9; Marcos 10:2-9). Isso nos
revela que não devemos falar sobre o tema divórcio sem compreender de fato
o que é casamento. De forma simples e clara, Jesus falou da instituição do
casamento na sua origem: “desde o princípio da criação, Deus os fez homem
e mulher” (Marcos 10:6).
A primeira coisa que precisa estar clara é que o casamento foi uma
iniciativa de Deus Pai. Ele mesmo idealizou, criou e abençoou o matrimônio
desde o Éden. Foi Deus quem percebeu que não era bom que o homem
estivesse só, e por isso lhe fez uma auxiliadora idônea (Gênesis 2:18). A
mulher foi formada a partir do homem por uma iniciativa única do Criador,
sem nenhuma cooperação do homem, nem sequer um simples pedido de
oração. Mesmo Adão não tendo pedido uma esposa para Deus, quando a viu,
não teve dúvidas de que ela havia saído dele (Gênesis 2:23). A mulher não era
como uma das fêmeas dos animais aos quais Adão dava nome.
As Escrituras deixam claro que o casamento é uma instituição divina
pela qual um homem e uma mulher se unem por vontade própria numa
comunhão social e legal com o propósito de estabelecerem uma família2
(Gênesis 1.27-28; 2.18-24). Nos planos de Deus, o matrimônio é a união mais
íntima e profunda que pode ser estabelecida entre duas pessoas. O elemento
central de sua constituição é a aliança, o pacto entre os cônjuges (Provérbios
2:16,17; Malaquias 2:14; Ezequiel 16:83). É um vínculo permanente e só pode
ser dissolvido pela morte (Romanos 7.2-3; I Coríntios 7:39) ou,
excepcionalmente, pelo divórcio (Mateus 5:31-32 e 19.3-9).
Logo no primeiro casamento da história são declaradas as condições
para todos os outros casamentos que se seguiriam. Vejamos:

“Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este
adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a
costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher
e lhe trouxe. E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da
minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. Por isso,
deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só
carne” (Gênesis 2:21-24).

À luz de Gênesis 2:21-24 vemos as seguintes condições para o


casamento:

a) os indivíduos têm que estar livres para se unirem: esta é a primeira


condição para que o casamento seja reconhecido e aprovado diante de Deus;

b) ser homem e mulher: o casamento é uma aliança heterossexual e


exclusiva entre um homem e uma mulher, ordenada e selada por Deus, pois do
contrário, não se pode cumprir o propósito de gerar filhos e filhas para Deus.
Portanto, no plano original para o casamento, não há lugar para a bigamia,
poligamia, poliandria4 ou troca de parceiros, nem para qualquer outra forma
de “união marital”, tais como união estável, concubinato ou ter um cônjuge e
um amante. Nós só encontramos essas formas deformadas após o pecado do
homem. No entanto, ao trazer a verdade e a graça5, Jesus nos remete ao
modelo original do casamento e, por consequência, da família;

c) deixar pai e mãe: a palavra hebraica traduzida pelo verbo “deixar” é


azab, que significa “abandonar, deixar para trás, soltar, afastar-se”. Deixar os
laços paternos – deixar no sentido de desprender-se, de iniciar uma nova
unidade ou de estabelecer uma nova autoridade;

d) unir-se um ao outro: a palavra hebraica usada é dâbaq, que significa


“grudar-se, colar, permanecer junto, unir-se, ligar-se um ao outro”. O
casamento, na prática, nos dá uma ideia de “ligação contínua”, um constante
apegar-se. Não se trata, portanto, de um encontro fortuito, uma relação fugaz
ou algo em que se predetermina o tempo de duração, mas de uma aliança
permanente feita para perdurar enquanto viverem os cônjuges. Esta aliança é
declarada num pacto mútuo que o casal faz diante de Deus e dos homens. É o
próprio Deus quem afirma ser testemunha da aliança entre um homem e a
mulher da sua mocidade (Malaquias 2:14). Esse pacto é assumido verbalmente
um para com o outro no momento do matrimônio. O que popularmente é
conhecido como “lua de mel” (uma só carne) é apenas o selo ou a confirmação
do que foi declarado no pacto. A aliança também destaca uma dimensão
pública do casamento, que não deve ser realizado ou mantido de forma oculta,
como um segredo de conhecimento apenas dos noivos. Homem e mulher
devem assumir-se mutuamente na condição de cônjuges perante a sociedade;

e) tornar-se uma só carne: O casamento envolve a união sexual, que


tem um papel fundamental, mas é muito maior do que esta. A relação sexual
sela a união do casamento, mas as duas coisas não se confundem, pois o
casamento é uma união de vida. À luz das Escrituras, podemos dizer que o
sexo foi criado para três propósitos: selar a união do casamento, procriar e
proporcionar prazer ao casal. Após a queda, o sexo também protege o cônjuge
da impureza sexual (I Coríntios 7:2-5). Marido e mulher devem ter e manter
relações sexuais. Através do sexo conhecemos a nós mesmos e o nosso
cônjuge mais profundamente. Toda impureza sexual cometida dentro ou fora do
casamento será julgada por Deus (I Coríntios 6:9, I Tessalonicenses 4:6;
Hebreus 13:4 e Apocalipse 21:8). Sabemos que o homem que se une a uma
prostituta se torna com ela uma só carne, porém não estão casados, pois isso
só pode ocorrer quando o sexo é posterior ao pacto mútuo de “deixar” e “se
unir”. Isso demonstra claramente que a união sexual por si só não estabelece
um casamento. “Ou não sabeis que o homem que se une à prostituta forma
um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne” (I
Coríntios 6:16). O sexo fora do casamento estabelece, de modo temporário e
superficial, um relacionamento de “uma só carne” sem as devidas intenções e
compromissos que devem acompanhá-lo6, sem a aliança matrimonial.

Algumas pessoas, ao procurarem motivos para se divorciarem, alegam


que seu casamento não foi unido por Deus. Entretanto, a Bíblia descreve o
casamento como uma sequência de atos humanos que, por preencherem certas
condições (“deixar…”, “unir-se…”, “tornar-se…” - Gênesis 2:24), são
respaldados por Deus, que confere àquela união o vínculo conjugal. Portanto,
o casamento é válido até mesmo quando realizado entre pessoas totalmente
incrédulas e ignorantes quanto à Palavra de Deus. Por isso, se uma pessoa
casada se converte, e seu cônjuge permanece descrente, a Bíblia a orienta a
permanecer no casamento e a exercer uma influência abençoadora sobre a vida
do seu cônjuge (I Pedro 3:1,2; I Coríntios 7:12-15)7.
A razão e a base do casamento são relatadas em Gênesis 2 (“Por isso,
deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só
carne”), em Mateus 19:4,5 (“Não tendes lido que o Criador, desde o
princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o
homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só
carne?”) e Marcos 10:6-8 (“...porém, desde o princípio da criação, Deus os
fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe [e unir-se-á
a sua mulher], e, com sua mulher, serão os dois uma só carne”).
Também lemos em Efésios 5:28-32:“Assim também os maridos devem
amar a sua mulher como ao próprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo
se ama. Porque ninguém jamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e
dela cuida, como também Cristo o faz com a igreja; porque somos membros
do seu corpo. Eis por que deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá
à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne. Grande é este mistério,
mas eu me refiro a Cristo e à igreja”.
Devemos considerar que toda vez que se fala sobre casamento, fala-se
de uma volta, de um retorno da mulher para o homem (I Coríntios 11:8,9), pois
ela foi criada a partir de uma costela retirada dele. O casamento tem essa
revelação: Adão dormiu, Deus retirou uma parte dele e depois a trouxe de
volta na forma de uma mulher, de uma esposa. Encontramos a mesma figura em
Jesus na cruz do calvário. Ele dorme na sua morte, o soldado o fere em seu
lado (costelas), fazendo jorrar sangue e água e, com aquele sangue, ele compra
a sua noiva chamada Igreja.
Deus criou homem e mulher para um propósito, tirando a mulher do
próprio homem e devolvendo-lhe depois. Portanto, o casamento é um projeto
que nasceu no coração do Pai.

“O que acha uma esposa acha o bem e alcançou a benevolência do


SENHOR” (Provérbios 18:22).

Por que somente o casamento, da forma como é revelado nas Escrituras,


é válido diante de Deus?

a) porque homem e mulher foram criados por Deus e feitos um para o


outro exclusivamente numa relação heterossexual;
b) porque a mulher foi tirada do homem; portanto, quando se une ao
marido ela retorna ao homem (I Coríntios 11:8,9). Ambos formam uma
unidade perfeita;
c) porque o princípio de retornar à unidade revela Jesus e a igreja
(Efésios 5:22-33). No casamento, é como se o homem recebesse de volta
algo que era seu (a mulher). Por isso, Paulo diz que o casamento é um
mistério, pois também se refere a Cristo e a Igreja (Efésios 5:32).

Uma verdade que precisamos entender sobre o casamento é que ele não
foi estabelecido por uma lei humana e nem inventado por alguma civilização.
Ele antecede a toda cultura, tradição, povo ou nação. Ele é anterior à queda do
homem. É uma instituição divina. Portanto, devemos ter cuidado ao falar de
algo que Deus criou. É uma afronta ao Senhor desenhar o casamento do jeito
que cada um imagina, pois ele não é criação humana, mas divina. O
matrimônio deve ser digno de honra entre todos (Hebreus 13:4) e a família é
um projeto de Deus!
Embora popularmente se diga “amigado com fé, casado é” (uma
expressão que descarta a necessidade de casamento), sabemos que
“amigados” que não passam pela porta chamada casamento não estão casados
diante de Deus. Para a sociedade atual isso é lícito, mas no Reino de Deus,
não. Para o Senhor, casamento é quando o homem deixa pai e mãe, se une em
um aliança voluntária com uma mulher e entram em um pacto conjugal e sexual
tornando-se ambos uma só carne. Podem ter filhos ou não, o que não é um
impedimento para que sejam uma família.
Assim, se existe na igreja casais que moram juntos (amigados), todavia
não são casados, deve haver uma ação pastoral no sentido de corrigir essa
situação, pois eles estão em pecado. Se ambos forem solteiros, estão em
fornicação8; se um deles for casado com outra pessoa, estão em adultério. São
pessoas que não passarão pela porta estreita que conduz ao Reino dos céus (I
Coríntios 6:9,10). Deus não muda. São eles quem precisam mudar e ajustar-se.
Aqueles que acreditam que o casamento é constituído pela mera união
sexual, ou por um relacionamento baseado no amor sentimental (sem o
compromisso da aliança), deveriam pensar seriamente nos reflexos desse
posicionamento sobre outros ensinos bíblicos. Os conceitos de divórcio e de
adultério só podem ser estabelecidos a partir de um conceito sobre casamento.
Se dissermos que um casal de namorados já está casado só por terem relações
sexuais, teríamos também que dizer que na dissolução desse “casamento”, os
cônjuges estariam debaixo das seguintes palavras:

“Ora, aos casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se
separe do marido (se, porém, ela vier a separar-se, que não se case ou que
se reconcilie com seu marido); e que o marido não se aparte de sua mulher”
(I Coríntios 7:10,11).

“A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o


marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor” (I
Coríntios 7:39).

“Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa
de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério e o que
casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 19:9).

Entretanto, dificilmente aqueles que adotam o conceito de casamento


como mera união sexual estão dispostos a aceitar a indissolubilidade desse
suposto “casamento”. Não podemos chamar de casamento o que a Palavra de
Deus chama de pecado. Sexo entre pessoas não casadas é pecado. A única
alternativa bíblica para experimentar a intimidade sexual é na aliança do
casamento:

“Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou; no


entanto, cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um
modo; outro, de outro. E aos solteiros e viúvos digo que lhes seria bom se
permanecessem no estado em que também eu vivo. Caso, porém, não se
dominem, que se casem; porque é melhor casar do que viver abrasado” (I
Coríntios 7:7-9).

No texto acima, Paulo não concebe o sexo sem compromisso como uma
alternativa para aqueles que não se dominam. O único contexto lícito e santo
para o sexo é no casamento.
O casamento não pode ser fundamentado no sexo e nem no amor
sentimental, mas sim na aliança. Portanto, a partir da Palavra de Deus, o
casamento pode ser definido como “uma aliança heterossexual exclusiva entre
um homem e uma mulher, ordenada e selada por Deus, precedida do ato
público de deixar os pais, consumada pela união sexual, resultando numa
parceria permanente de apoio mútuo, geralmente (nem sempre) coroada pela
dádiva de filhos”9.
Ninguém além de Deus tem autoridade para determinar o que é um
casamento ou quando ele acaba. Isso não é determinado pelo Estado e nem
mesmo pelos cônjuges, pois o casamento não é uma sociedade entre duas
partes na qual cada uma coloca as suas condições. Deus é quem estabelece as
condições. Quem se casa deve aceitar as condições estabelecidas por Deus em
Sua Palavra e não há nada o que temer, pois Ele é Amor e possui todo poder e
sabedoria.
Capítulo 2
“OUVISTES QUE FOI DITO AOS ANTIGOS"
DIVÓRCIO E REPÚDIO NA LEI DE
MOISÉS
A relação entre a lei de Moisés e a mensagem de Jesus no sermão do
monte

“Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir,
mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo
seja cumprido” (Mateus 5:17,19).

“Porque a lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram
por Jesus Cristo” (João 1:17).

João, no início do seu Evangelho, afirma que há uma distinção entre o


legado deixado por Moisés (a lei) e a mensagem de Jesus (a graça e a
verdade). Entretanto, esta distinção não constitui uma oposição de um em
relação ao outro. Muitas vezes constatamos que a mensagem de Jesus
estabelece um aprofundamento em relação à lei de Moisés, e não uma
oposição10. Ou seja, a graça e a verdade exigem mais do que a lei, pois tocam
na postura do coração, e não nas condutas exteriores. Para entendermos a
relação entre a lei, a graça e a verdade, precisamos partir de alguns pontos
essenciais.
Primeiramente, o próprio Moisés deixou claro que viria ainda outro
profeta depois dele, a quem o povo deveria ouvir (Deuteronômio 18:15-19).
Sendo assim, Moisés confirma que a revelação trazida por ele não tinha
caráter completo e definitivo para todos os séculos. Ainda havia muito a ser
revelado acerca de Deus e Sua vontade.
No monte da transfiguração, apareceram Moisés e Elias juntamente com
Jesus. Ali, Deus Pai deu o seguinte testemunho acerca de Jesus: “Este é o meu
filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi” (Mateus 17:5).
Imediatamente Moisés e Elias desapareceram, e apenas Jesus foi visto pelos
discípulos. Na vida de um cristão, é Jesus quem tem que ser ouvido11. Ele não
é apenas o profeta maior que Moisés. Ele é o Filho de Deus, o Verbo Eterno.
Ele é o Caminho que nos leva ao Pai, a imagem do Deus invisível e Sua exata
expressão. Jesus é a revelação completa e final de Deus.

Por isso, o autor da carta aos Hebreus afirma:

“Havendo Deus falado aos pais, de muitos modos pelos profetas, nos
últimos dias nos falou pelo Filho” (Hebreus 1:1).

Partindo do princípio de que Jesus é a revelação completa de Deus,


vemos que Sua mensagem não está em oposição à lei de Moisés, mas, com
profundidade e clareza, mostra o que cada mandamento realmente queria
alcançar, corrigindo assim as interpretações equivocadas sobre a lei.

“Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir,
mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo
seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por
menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no
Reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado
grande no Reino dos céus. Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não
exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos
céus” (Mateus 5:17-20).

No sermão do monte, Jesus começa a citar alguns mandamentos para


fazer uma comparação entre sua mensagem (a graça e a verdade) e a forma
como os judeus interpretavam a lei de Moisés. Com seu ensino, Jesus
aprofunda o que antes era exigido pela lei. Em outras palavras, enquanto a lei
enfocava ações pecaminosas externas (“não matarás”, “não adulterarás”,
“não jurarás falso” etc.), Jesus vai mais profundo, atacando não apenas as
condutas externas, mas alcançando o coração de onde partem todos os
pecados.
A lei dizia “não matarás” (Êxodo 20:13; Deuteronômio 5:17), porém
Jesus explica que o fundamento do homicídio é o coração, pois tudo começa
quando alimentamos a ira, o ódio, a inveja, o medo e a amargura. A raiz do
problema está no coração do homem e não em um simples ato exterior.
Enquanto a lei de Moisés tratava das ações e dos fatos decorrentes delas, a
graça e a verdade tratam das nossas intenções e atitudes. Por isso, Jesus
condenou o coração irado – ou seja, matar é a consequência da ira hospedada
no interior. Do coração é que procedem os maus desígnios (Mateus 15:19).
A lei também dizia “não adulterarás” (Êxodo 20:14; Deuteronômio
22:22). Jesus, porém, leva a questão novamente para o coração humano e suas
intenções. O olhar com intenção impura para uma mulher já é adultério no
coração. Quando enxergamos que o mal procede do nosso interior, chegamos
ao entendimento que só “um coração novo” poderá nos transformar numa nova
criatura.

Jesus fala sobre o repúdio e o divórcio no sermão do monte

Em Mateus 5:21-30, nas duas vezes em que declara “ouvistes que foi
dito”, Jesus faz referência a mandamentos claramente expressos na lei de
Moisés, apresentados inclusive entre os Dez Mandamentos: “não matarás” e
“não adulterarás”. A partir daí, Ele começa a abordar outro tema: o repúdio.

“Também foi dito: Quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio.
Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de
relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar
com a repudiada comete adultério” (Mateus 5:31,32).

A primeira coisa que precisamos observar é que Jesus afirmou que o


mandamento “quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio” havia
sido dito aos antigos, tal como os mandamentos “não matarás” e “não
adulterarás”.
A palavra grega traduzida como “repudiar” é apoluo12, cujo significado
inclui libertar, deixar ir, despedir, mandar embora, deixar livre. A palavra
grega traduzida como “divórcio” é apostasion13, que traz a ideia de separação,
afastamento ou abandono. Trata-se de duas palavras distintas, e saber disso é
fundamental para compreendermos o que a lei de Moisés realmente dizia
sobre o divórcio e o repúdio.
Ao nos depararmos com o que Jesus disse em Mateus 5:31, surge a
pergunta: Existia algum mandamento na lei determinando que o homem, ao
repudiar sua esposa, deveria entregar a ela uma carta de divórcio? Se
procurarmos em todo Antigo Testamento, não encontraremos um mandamento
que apareça exatamente com as mesmas palavras de Mateus 5:31. Apesar
disso, Jesus declarou que tais palavras haviam sido ditas aos antigos.
Entretanto, quando e onde foram ditas? Podemos encontrar a resposta para
essa pergunta em Deuteronômio 24:1-4, pois esse é o único texto da lei de
Moisés que apresenta uma regulamentação sobre o marido dar carta de
divórcio a sua mulher e, em seguida, despedi-la (repudiá-la).

“Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for
agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela, e se ele
lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir [no
hebraico, shalach] de casa; e se ela, saindo da sua casa, for e se casar com
outro homem; e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de divórcio, e lho der
na mão, e a despedir [shalach] da sua casa ou se este último homem, que a
tomou para si por mulher, vier a morrer, então, seu primeiro marido, que a
despediu [shalach], não poderá tornar a desposá-la para que seja sua
mulher, depois que foi contaminada, pois é abominação perante o SENHOR;
assim, não farás pecar a terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança”
(Deuteronômio 24:1-4, ARA - grifo nosso).

O verbo grego apoluo é equivalente à palavra hebraica shalach


(despedir), que é usada, por exemplo, para dizer que Adão e Eva foram
lançados fora do Éden (Gênesis 3:22,23), que Abraão despediu Agar (Gênesis
21:14), e também em textos como Deuteronômio 21:14 (caso em que o marido
deveria despedir sua esposa); Deuteronômio 22:19 e 29 (casos em que o
homem ficaria proibido de despedir sua esposa); Malaquias 2:16 (onde é dito
que Deus odeia o repúdio); Isaías 50:1-2 e Jeremias 3:1 e 8, textos onde o
Senhor usa como ilustração a regulamentação de Deuteronômio 24:1-4 para
falar de Sua relação com Israel.
Já a palavra hebraica para divórcio é kerithuth, que expressa a ideia de
corte, incisão, amputação. Esse é exatamente o conceito de divórcio, um corte
naquilo que antes era uma união. Por isso, o divórcio trazia consigo a
possibilidade de um novo casamento, tal como está descrito em Deuteronômio
24:1-4. Todas as culturas da antiguidade entendiam que o divórcio abria a
possibilidade para um novo casamento14.
A tradição judaica havia resumido a regulamentação de Deuteronômio
24:1-4 na frase “quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio”, como
se Moisés tivesse apenas determinado um procedimento para o repúdio. Em
outras palavras, compreendia-se que o homem que repudiasse (despedisse)
sua esposa, não poderia fazer isso de qualquer maneira, mas tinha que
observar uma ordem15: 1) deveria emitir carta de divórcio; 2) entregá-la a sua
mulher; 3) para só então repudiá-la (despedi-la). O repúdio era a ação final, o
último passo de um procedimento que rompia o vínculo conjugal.
Quando uma mulher era repudiada ou ficava viúva de um segundo
casamento estaria proibida de casar novamente com o primeiro marido.
Após mencionar o que havia sido dito aos antigos sobre o repúdio e o
divórcio, Jesus declara “Eu, porém, vos digo…” (Mateus 5:32) nos dando seu
ensino sobre o assunto. Contudo, neste capítulo ainda nos ocuparemos em
analisar o que a lei dizia acerca desse tema. Isso nos dará uma visão ampla
sobre como o repúdio foi tratado ao longo do tempo e nos permitirá
compreender o contexto em que Jesus deixou seu ensino. Além disso, como
veremos mais adiante, há certas correntes de interpretação que ainda recorrem
à lei de Moisés para determinar suas visões sobre divórcio e repúdio16.
Portanto, para refutar tais interpretações, precisamos conhecer a lei.
Neste capítulo apresentaremos um panorama geral sobre a legislação
mosaica acerca do divórcio e do repúdio. Buscaremos responder perguntas
como:

- Moisés deu algum mandamento sobre a carta de divórcio ou isso era


uma interpretação distorcida da lei?
- Se havia um mandamento, por que o repúdio foi regulamentado pela
lei?
- Qual era o procedimento para o repúdio?
- Qual era a causa para o repúdio?
- Achar “coisa indecente” era descobrir falta de virgindade da mulher?
- Quais eram os efeitos ou consequências do repúdio sobre cada
cônjuge?
Portanto, a partir daqui passaremos a buscar respostas para cada uma
das perguntas acima, à luz da lei de Moisés.

Moisés realmente deu algum mandamento sobre a carta de divórcio


ou isso era uma interpretação distorcida da lei?

Alguns estudiosos afirmam que Moisés não deu nenhum mandamento


sobre dar carta de divórcio. Estes não conseguem ver na lei nenhuma
exigência quanto a dar carta de divórcio para a mulher repudiada, mas apenas
a proibição de que essa mulher, depois de ser repudiada ou ficar viúva de um
segundo casamento, seja novamente tomada pelo seu primeiro marido17.
Assim, Moisés teria somente descrito que o divórcio ocorria em Israel, sem
apresentar qualquer juízo de valor, sem dizer se era bom ou mau, certo ou
errado.
A referida interpretação parte da compreensão de que os três primeiros
versículos de Deuteronômio 24 estariam tão somente descrevendo uma
condição, uma situação hipotética, que uma vez ocorrida implicaria o fato
principal descrito no versículo quatro: a proibição de que a mulher retorne ao
primeiro marido. Em outros termos, Deuteronômio 24:1-3 teria conteúdo
meramente descritivo, enquanto o versículo 4 teria conteúdo proibitivo.
Em termos gramaticais, a condição é chamada prótase e a consequência,
apódose. O texto de Deuteronômio 24:1-4 traria, portanto, uma construção
“Se... então”: Se ocorrer o que foi descrito nos versículos 1 ao 3, então
ocorrerá o determinado pelo versículo 4.
Sob essa ótica, leiamos novamente o texto na tradução Almeida Revista
e Atualizada (ARA):

Condição ou Prótase (Deuteronômio 24:1-3): “Se um homem tomar uma


mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter
ele achado coisa indecente nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e
lho der na mão, e a despedir de casa; e se ela, saindo da sua casa, for e se
casar com outro homem; e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de
divórcio, e lho der na mão, e a despedir da sua casa ou se este último
homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer”.
Fato principal ou Apódose (Deuteronômio 24:4): “então, seu primeiro
marido, que a despediu, não poderá tornar a desposá-la para que seja sua
mulher, depois que foi contaminada, pois é abominação perante o SENHOR;
assim, não farás pecar a terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por
herança”.

Pela leitura de Deuteronômio 24:1-4 na tradução Almeida Revista e


Atualizada (ARA) poderíamos chegar à mesma conclusão desses estudiosos
de que o único mandamento presente no texto seria a proibição da mulher
repudiada retornar ao primeiro marido. Contudo, há certas diferenças entre
traduções desse texto. Em outras versões, o ato de “dar carta de divórcio” não
aparece como descrição de uma situação hipotética, mas como algo a ser feito
pelo homem que repudiasse sua esposa, utilizando expressões como “far-lhe-
á uma carta de divórcio”, “dará certidão de divórcio”, “escreverá um
certificado de divórcio e o dará a ela”.

Vejamos o primeiro versículo de Deuteronômio 24 em outras versões:

Almeida Revista e Corrigida (ARC): “Quando um homem tomar uma


mulher e se casar com ela, então, será que, se não achar graça em seus
olhos, por nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito de repúdio, e lho dará
na sua mão, e a despedirá da sua casa”.

Almeida Corrigida Fiel (ACF): “Quando um homem tomar uma mulher


e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por
nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará
na sua mão, e a despedirá da sua casa”.

Almeida Edição Contemporânea (AEC): “Se um homem tomar uma


mulher, casar-se com ela, e esta depois de deixar de lhe agradar por ter
achado nela qualquer coisa indecente, escrever-lhe-á uma carta de divórcio,
e lha dará na mão, e a despedirá de sua casa”.

Nova Versão Internacional (NVI): “Se um homem casar-se com uma


mulher e depois não a quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova,
dará certidão de divórcio à mulher e a mandará embora”.
Nova Versão Transformadora (NVT): “Se um homem se casar e a
esposa não for do seu agrado porque ele descobriu alguma coisa
vergonhosa da parte dela, ele escreverá um certificado de divórcio e o dará
a ela, mandando-a embora de sua casa”.

Apesar das diferenças entre as traduções, não há motivos para dúvidas


sobre o texto de Deuteronômio 24:1-4, pois o maior dos Mestres já o
interpretou e declarou que existia um mandamento na lei que determinava a
emissão da carta de divórcio para a mulher repudiada. Não temos que
reinterpretar o que Jesus já interpretou de forma clara. Ele mesmo mencionou
a frase “aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio” e disse
que isso foi ensinado aos antigos (Mateus 5:31). Além disso, quando os
fariseus fazem a mesma declaração, o Senhor afirma que existia um
mandamento sobre dar carta de divórcio. Vemos isso especialmente no texto
de Marcos 10:2-5, no qual vemos Jesus afirmando que Moisés mandou dar
carta de divórcio. Enquanto os fariseus declaram que Moisés permitiu lavrar
carta de divórcio e repudiar, Jesus afirma que Moisés deu esse mandamento
em função da dureza dos corações.

“E, aproximando-se alguns fariseus, o experimentaram, perguntando-


lhe: É lícito ao marido repudiar sua mulher? Ele lhes respondeu: Que vos
ordenou [no grego, entellomai] Moisés? Tornaram eles: Moisés permitiu
[epitrepo] lavrar carta de divórcio e repudiar. Mas Jesus lhes disse: Por
causa da dureza do vosso coração, ele vos deixou escrito esse mandamento
[entole]” (Marcos 10:2-5 - grifo nosso).

Já no relato de Mateus, as falas são ligeiramente diferentes. Enquanto os


fariseus falam do mandamento, Jesus fala da permissão.

“Replicaram-lhe: Por que mandou [entellomai], então, Moisés dar


carta de divórcio e repudiar? Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do
vosso coração é que Moisés vos permitiu [epitrepo] repudiar vossa mulher;
entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mateus 19:7,8 - grifo nosso).

Apesar das diferenças entre as narrativas dos Evangelhos, não há


contradição alguma entre as declarações, pois Moisés permitiu repudiar e
mandou que fosse dada a carta de divórcio. O repúdio foi uma permissão que,
para ser exercida, deveria observar o mandamento de dar carta de divórcio.
Nas declarações dos fariseus, vemos que eles mencionam a carta de
divórcio antes do repúdio. Isso acontece porque a lavratura da carta de
divórcio deveria anteceder o repúdio, o despedir, o mandar embora.

“Por que mandou, então, Moisés dar carta de divórcio e repudiar?”


(Mateus 19:7).

“Moisés permitiu lavrar carta de divórcio e repudiar” (Marcos 10:4).

Ainda abordaremos a questão da dureza de coração, mas desde já é


importante destacar que Moisés não ordenou aos homens que despedissem
suas esposas. Porém, permitiu, uma vez que não proibiu e até mesmo deu
mandamentos sobre o procedimento para o repúdio, que já era uma prática em
Israel e em muitos povos antigos, não sendo inventado por Moisés. Permitir
uma prática não é o mesmo que originá-la ou institui-la18. Moisés
regulamentou o repúdio para evitar abusos.

Por que o repúdio foi regulamentado pela lei?

Para compreendermos o propósito da regulamentação de Deuteronômio


24:1-4, precisamos entender a condição da mulher naquele contexto. Para isso,
é necessário responder a uma pergunta: Onde encontramos um texto no Antigo
Testamento que menciona a possibilidade da mulher repudiar seu marido? Em
lugar algum. Não há qualquer menção a essa possibilidade na lei. Moisés, em
Deuteronômio 24:1-4, regulamentou uma prática dos homens19.
As relações sociais eram regidas por um código familiar definido por
três pares de relacionamentos: marido e mulher, pai e filho, senhor e escravo.
Ninguém ficava de fora disso, pois a sociedade era extremamente patriarcal e
somente uma pessoa tinha a autoridade absoluta: o pai, o marido e o senhor.
Assim, naquela época, o marido seria literalmente o dono de sua esposa.
É nesse contexto de domínio do homem sobre a mulher que surgem o
concubinato e a poligamia, o que tornava a situação da mulher ainda mais
difícil. A condição da mulher naquela época não condizia com o retrato do
casamento descrito no Gênesis. Ali vemos tanto o homem quanto a mulher
sendo criados à imagem de Deus, uma única mulher feita para um único
homem a fim de ser sua auxiliadora idônea, e ambos se tornando uma só carne.
O padrão descrito na Criação é o da monogamia. Entretanto, o pecado
distorceu essa realidade. O primeiro homem, de que se tem registro, a tomar
duas esposas foi Lameque, descendente de Caim (Gênesis 4:19). Parece não
ter havido limite para o número de esposas ou concubinas que um homem
poderia ter, exceto sua capacidade de mantê-las e seus filhos. De fato, apenas
homens de riqueza, chefes ou reis tinham muitas esposas20. No antigo Oriente
Médio, a poligamia era uma forma de ostentar poder21.
Apesar da poligamia não corresponder ao desenho original do
casamento, vemos essa situação sendo regulamentada pela lei, como em Êxodo
21:7-11, Levítico 18:18 e Deuteronômio 21:15-17. Essas regulamentações
protegiam a mulher casada com um homem polígamo. A lei do levirato
determinava que a viúva sem filhos deveria ser tomada por seu cunhado, mas
não dizia que este deveria ser solteiro (Deuteronômio 25:5-10). Entretanto,
não vemos na lei de Moisés qualquer tipo de estímulo ou incentivo ao homem
para que tenha mais de uma esposa. Apesar dos reis terem mais condições do
que qualquer outro homem de sustentarem muitas mulheres, receberam uma
advertência para que não multiplicassem esposas para si (Deuteronômio
17:15-17)22.
O repúdio surge nessas circunstâncias histórico-sociais. Não podemos
situar com exatidão o momento em que essa prática surge na história23. Só
sabemos que, ao regulamentar tal prática, Moisés não estava tratando de algo
desconhecido dos homens israelitas, pois não apresentou qualquer explicação
sobre o que era o repúdio ou a carta de divórcio.
Mesmo rejeitada por seu marido, enquanto não recebesse a carta de
divórcio, a mulher continuava sendo propriedade dele. E essa situação
poderia ser agravada pelo fato do homem poder casar com outra mulher sem
liberar a primeira. Sem a possibilidade do repúdio, uma mulher desprezada
corria o risco de ser reduzida à condição de mera escrava, ou ainda ser
completamente abandonada sem a possibilidade de um novo casamento.

“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu


próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu
jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Êxodo 20:17).
“Não cobiçarás a mulher do teu próximo; não desejarás a casa do teu
próximo; nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi,
nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Deuteronômio 5:21).

Os textos acima mencionam a mulher no mesmo contexto em que estava o


servo, o boi, o jumento e a casa, ou seja, ela era propriedade do homem. Não
havia nenhum mandamento dizendo que ela não deveria cobiçar o marido de
outra, justamente porque uma mulher não era dona de nada. Ela, então, fazia
parte do patrimônio do homem.
Segundo a Toseftá rabínica, que pode refletir a tradição do século I, um
homem judeu fazia diariamente três orações de gratidão a Deus, inclusive uma
que agradecia por não ter nascido mulher24.
É possível que aqui surja uma pergunta: A lei dizia “não adulterarás”,
entretanto, se o homem poderia ter várias esposas, quando é que ele
adulterava? Ele estava isento de cumprir esse mandamento? Certamente não.
Porém, o adultério era definido a partir da situação da mulher envolvida, se
era casada ou solteira. No Antigo Testamento, esse pecado é descrito como
possuir uma mulher já casada, a mulher do próximo. Portanto, o adultério de
um homem era sempre um pecado contra o próximo, e não contra sua própria
esposa. Já o adultério de uma mulher era um pecado contra o seu próprio
marido. Por isso, se um homem já casado tivesse relações sexuais com uma
mulher solteira, com escravas, com concubinas ou se até mesmo tivesse outras
esposas, ainda assim não seria tido por adúltero, pois tais mulheres não
pertenciam a outro homem, e os filhos nascidos dessas relações eram
considerados legítimos. Entretanto, uma mulher seria adúltera se tivesse
relações com qualquer outro homem que não fosse seu marido, e os filhos
dessa relação eram bastardos (mamzerim)25.

“Nem te deitarás com a mulher de teu próximo, para te contaminares


com ela” (Levítico 18:20).

“O homem que adulterar com a mulher de outro, sim, aquele que


adulterar com a mulher do seu próximo, certamente será morto, tanto o
adúltero, como a adúltera” (Levítico 20:10).
“Se um homem for encontrado deitado com mulher que tenha marido,
morrerão ambos, o homem que se tiver deitado com a mulher, e a mulher.
Assim exterminarás o mal de Israel” (Deuteronômio 22:22).

“Assim será com o que se chegar à mulher do seu próximo; não ficará
sem castigo todo aquele que a tocar” (Provérbios 6:29).

“… porquanto fizeram loucuras em Israel, cometeram adultérios com


as mulheres de seus companheiros e anunciaram falsamente em meu nome
palavras que não lhes mandei dizer; eu o sei e sou testemunha disso, diz o
SENHOR” (Jeremias 29:23).

É interessante observar como Números 5:11-31 descreve o possível


pecado da mulher suspeita de adultério:

“Esta é a lei para o caso de ciúmes, quando a mulher, sob o domínio


de seu marido, se desviar e for contaminada; ou quando sobre o homem vier
o espírito de ciúmes, e tiver ciúmes de sua mulher, apresente a mulher
perante o SENHOR, e o sacerdote nela execute toda esta lei” (Números
5:29,30).

O adultério era determinado pelo fato da mulher envolvida estar sob o


domínio de um marido. Tal concepção aparece claramente na história de Davi.
Seu pecado de adultério foi devido ao fato de Bate-Seba ser esposa de Urias.
Se ela fosse uma mulher solteira, Davi poderia casar com ela e assim teria
mais uma esposa (II Samuel 12:1-15).
Abraão se deitou com uma escrava e não foi tido por adúltero (Gênesis
16:1-4). Jacó teve duas esposas e duas concubinas e ainda assim não foi tido
por adúltero (Gênesis 29:20-30; 30:1-9). Salomão teve setecentas esposas e
trezentas concubinas, e não foi considerado adúltero (I Reis 11:3). Gideão,
por ter muitas mulheres, teve setenta filhos, mas não foi considerado adúltero
(Júizes 8:30,31). Elcana tinha duas esposas, e não foi adúltero (I Samuel
1:1,2). Em I Crônicas 7:4 nos é dito que os homens da tribo de Issacar tinham
muitas mulheres e filhos. E sabemos que Davi adulterou não por ter muitas
esposas e concubinas (II Samuel 5:13), mas por ter possuído a mulher de outro
homem (II Samuel 12:7-10). Na compreensão da época, o casamento
estabelecia um compromisso de exclusividade da mulher para com o seu
marido, e não necessariamente o contrário.
Possuir a mulher do próximo era considerado um pecado grave antes
mesmo da promulgação da lei de Moisés. Isso aparece desde o Gênesis,
quando Abraão disse a Faraó que Sara era sua irmã, temendo ser morto para
que o rei pudesse ficar com ela (Gênesis 12). O mesmo aconteceu com Isaque
em relação à Rebeca. Ele mentiu ao rei, e este, ao vê-lo tocando em Rebeca,
temeu a Deus por um possível castigo se a tomasse (Gênesis 26). Na verdade,
era mais simples matar um homem do que adulterar – esse foi o temor de
Abraão, que pensou que o matariam para ficar com sua mulher.
Jó descreveu o adultério como uma infâmia, um crime merecedor de
julgamento (Jó 31:9-11).
Uma vez desposada, a mulher já era considerada propriedade do marido,
antes mesmo da consumação do casamento. Os noivos já eram tidos por
casados. A infidelidade de uma virgem desposada era tratada da mesma forma
que o adultério: a morte (Deuteronômio 22:23,24). O homem que se deitou
com uma virgem desposada deveria ser apedrejado por haver “humilhado a
mulher do seu próximo”. Antes da lei, uma mulher viúva (Tamar) e prometida
ao cunhado por conta do “levirato” foi considerada adúltera, e seria
condenada a morrer queimada por engravidar enquanto esperava pelo filho
remanescente de Judá (Gênesis 38:24).
É nesse contexto de domínio do homem sobre a mulher que surge a
necessidade de regulamentar o repúdio. A lei não instituiu o repúdio, mas
apenas reconheceu sua existência e o regulamentou, resultando em uma
proteção à mulher em face de certos abusos ou crueldade por parte do marido.
A lei de Deuteronômio 24:1-4 revelava um cuidado para com a mulher
desprezada, abandonada e rejeitada por seu marido.
O homem que mandasse sua mulher embora deveria lhe dar o documento
que oficializava o desfazimento do vínculo conjugal, ou seja, deveria lavrar a
carta de divórcio e libertá-la. Assim, a mulher repudiada estaria livre para se
casar novamente. Se essa mulher passasse por um segundo casamento e nova
carta de divórcio, ou ficasse viúva, poderia casar outra vez desde que não
fosse com o marido anterior.
O repúdio também poderia envolver despesas financeiras para o marido,
pois este, conforme a tradição judaica, deveria devolver à esposa o dote
trazido por ela da casa de seu pai, além de pagar uma quantia pré-determinada
no contrato de casamento (conhecido como ketubah26) para o caso de
divórcio. Tais despesas constituíam um fator que inibia a prática do
divórcio27.
É importante destacar que, em Deuteronômio 24:1-4, o marido não era
obrigado nem incentivado a repudiar sua mulher. O repúdio não era
compulsório. O marido poderia optar por não repudiar sua esposa, ainda que
encontrasse “coisa indecente” nela. No entanto, uma vez determinado a
repudiá-la, ele deveria escrever uma carta de divórcio, e isso não era uma
opção, mas sim um mandamento. “Mas Jesus lhes disse: Por causa da dureza
do vosso coração, ele vos deixou escrito esse mandamento” (Marcos 10:5,
RA).
Não é possível resumir toda a regulamentação de Deuteronômio 24:1-4
apenas à questão da carta de divórcio. Quando lemos o texto com atenção,
vemos que há uma intenção de evitar divórcios irrefletidos e frívolos. Isso
pode ser percebido tanto pelo procedimento estabelecido, como pelos efeitos
do repúdio sobre os cônjuges.

Qual era o procedimento para o repúdio na lei de Moisés?

Segundo Deuteronômio 24:1-4, o procedimento para o repúdio se dava


em três passos:

a) a emissão de uma carta de divórcio (sepher kerithuth)28: Já dissemos


que a palavra hebraica para divórcio (kerithuth) significa literalmente corte,
incisão, e era exatamente esse o propósito dessa carta: documentar o corte do
vínculo conjugal. A produção de uma carta de divórcio exigia no mínimo uma
decisão deliberada, e não uma declaração precipitada dita em um momento de
raiva ou mal entendido. O divórcio em Israel não poderia ser verbal como
ocorria em outras culturas, onde bastava que o homem dissesse três vezes para
a mulher “Eu me divorcio de você” para que o divórcio fosse efetivado29-30. A
emissão de um documento, juntamente com a proibição de retomar a antiga
esposa se esta fosse repudiada ou ficasse viúva de outro homem, poderia
conter o marido de um divórcio impensado. A carta de divórcio era uma prova
para a mulher de sua liberdade das obrigações conjugais e de que o marido a
havia mandado embora. Este documento seria um instrumento de proteção para
a reputação da mulher.
Não temos um modelo de carta de divórcio da época de Moisés. Há
quem acredite que as palavras de Oséias 2:2 [2:4 na Septuaginta] foram
retiradas de uma carta de divórcio: “ela não é minha mulher, e eu não sou
seu marido”31. A Mishná, uma das principais obras do judaísmo rabínico, diz
que o o corpo essencial da declaração de divórcio é: “Você tem permissão
para se casar com qualquer um”32.
O texto de Deuteronômio 24:1-4 não estabelece formalidades sobre a
redação da carta de divórcio. Contudo, a tradição rabínica estabeleceu certas
exigências, como a necessidade de testemunhas e a assistência de um escriba,
entre outras determinações.
Modelos de períodos posteriores à Bíblia nos ajudam a compreender a
concepção que os judeus tinham acerca da carta de divórcio. Esses modelos
mostram que a carta era assinada por testemunhas e deixava clara a liberação
da mulher para ter um novo casamento. Vejamos a seguir um modelo desse
documento33:
No dia ____ da semana ____ do mês ____, ano de ____ desde o início da criação do
mundo, de acordo com o regulamento normal da província de _________, eu,
__________, filho de ______________, qualquer que seja o nome pelo qual sou
conhecido, da cidade de ___________, estando em pleno gozo das faculdades mentais, e
sem compulsão, imposição de espécie alguma, DIVORCIO, DISPENSO E REPUDIO a
você, _________________, filha de _________________, qualquer que seja o nome pelo
qual você seja conhecida, da cidade de ______________, você, que foi minha esposa até
aqui.

Mas agora está repudiada, você _____________________, filha de _________________,


qualquer que seja o nome pelo qual você é chamada, da cidade de ______________, para
que esteja livre e aos seus próprios cuidados, para que segundo a sua livre vontade se case
com quem lhe agradar, sem impedimento algum da parte de ninguém, de hoje em diante e
sempre.

Você está livre, portanto, para qualquer pessoa que queira se casar com você. Seja esta a sua
carta de divórcio escrita por mim, uma carta de separação e expulsão, de acordo com a lei
de Moisés e Israel.

________________________________________
O Marido

Testemunha: _______________________,
filho de ___________________________

Testemunha: _______________________,
filho de ___________________________
b) a carta deveria ser entregue à mulher: A mulher repudiada deveria
levar consigo o documento que atestava sua condição de não casada, a fim de
protegê-la de falsas acusações e mal-entendidos. Se fosse despedida sem a
carta de divórcio, ela estaria sujeita a qualquer mudança de opinião do seu
marido, e ainda ficaria sob o poder do mesmo. Sem esse documento, ao casar-
se com outro homem ou aparecer grávida, a mulher seria acusada de adultério
e os eventuais filhos dessa relação seriam considerados bastardos. Enquanto
não tivesse a carta, não era livre para casar com outro homem.
Um historiador judeu do século I, Flávio Josefo (37-100 d.C), escreveu
o seguinte34:

“Aquele que por qualquer motivo quiser separar-se da mulher, como


acontece frequentemente, prometer-lhe-á por escrito que jamais a tornará a
pedir de volta, a fim de que ela tenha a liberdade de tornar a casar-se – e
não se permitirá o divórcio sem essa condição. E se, depois de haver casado
com outro, esse segundo marido a tratar mal ou vier a morrer e o primeiro a
quiser receber de novo, não lhe será permitido voltar para junto dele”.

c) a mulher deveria ser despedida (shalach), mandada embora de casa:


O rompimento do vínculo deveria ser real e efetivo, e não mera formalidade.
E era a mulher que saia de casa, e nunca o homem35. A mulher não estava mais
obrigada a cumprir qualquer dever conjugal para com seu antigo marido.
É importante destacar que, segundo a lei, o repúdio era permitido
exclusivamente aos homens, e não às mulheres36. Não era exigida nenhuma
anuência ou concordância da mulher para ser repudiada, e seu papel era
limitado a apenas receber a carta de divórcio. O repúdio não se dava por
consenso entre as partes, mas por iniciativa unilateral do marido.
A possibilidade do divórcio apenas por ato unilateral do marido ainda
está presente no judaísmo até os dias de hoje. Uma mulher abandonada sem
carta de divórcio, ou que o marido tenha desaparecido, é conhecida como
agunah (no plural, agunot, “acorrentadas”). Não tendo nenhuma prova da
morte de seu marido, ou sem uma carta de divórcio dele, essa mulher
permanece “acorrentada” ao mesmo. Seu status como esposa permanece
inalterado, e não poderá casar-se com outro homem. Os casos de agunot
constituem um problema social e se tornaram especialmente preocupantes em
situações como o Holocausto, no qual houve o desaparecimento de muitos
homens judeus.
Atualmente, no Estado de Israel, há casos de mulheres que estão há
décadas separadas informalmente, mas continuam formalmente casadas com
homens que estão presos, moram no exterior ou em outras cidades com outras
famílias37. Há homens que se recusam a dar o divórcio por vingança, para
extorquir suas mulheres ou para estabelecer condições mais favoráveis para si
mesmos. Em Israel, a recusa em entregar a carta de divórcio tem sido
penalizada com prisão38.
Na comunidade judaica fora do Estado de Israel, alguns casais se
divorciam no âmbito civil, mas o marido nega o divórcio religioso à mulher,
impedindo-a de ter um novo casamento judaico. Caso essa agunah tenha um
novo casamento civil, sem o divórcio religioso, será considerada adúltera
pela comunidade judaica. O segundo casamento do homem que se nega a dar o
divórcio para sua primeira mulher não é considerado adultério, ainda que tal
situação possa ser considerada como injusta39. Fora do estado de Israel, a
recusa do marido em dar a carta de divórcio pode ser punida com um processo
de ostracismo social, no qual o homem é banido da sinagoga e a comunidade é
chamada a limitar suas relações sociais e econômicas com ele, entre outras
sanções.

Qual era a causa para o repúdio na lei de Moisés?

Em Deuteronômio 24, vemos que a causa para o repúdio era o marido se


desagradar da mulher por achar nela “coisa indecente”. No hebraico, a
expressão coisa indecente é erwath dabar, que não tem um significado muito
preciso e já foi traduzida como “coisa vergonhosa”, “coisa feia”, “algo
infame” ou “alguma indecência”. Essa expressão é composta por duas
palavras. A primeira palavra é erwath, que originalmente significa “nudez” e
em diversos textos bíblicos aparece associada à exposição ou vergonha40. A
segunda palavra é dabar, que geralmente é traduzido como “coisa”, mas que
também significa palavra, fala, ato ou algo.
A imprecisão do significado de erwath dabar fica evidenciada pelo fato
de que essas duas palavras juntas só aparecem em dois textos bíblicos. Ambos
estão no livro de Deuteronômio e muito próximos um do outro. Além de
Deuteronômio 24:1, erwath dabar só aparece em Deuteronômio 23:12-14,
onde Moisés determina regras sobre a limpeza do acampamento, ordenando
que o homem que defecasse deveria fazê-lo fora do acampamento e cobrir
seus excrementos, para que o Senhor não visse coisa indecente (erwath dabar)
no meio do povo. Portanto, vemos essa expressão sendo usada sem qualquer
conotação sexual ou de nudez, mas apenas para se referir a algo impróprio,
vergonhoso ou indecente.

“Porquanto o Senhor, teu Deus, anda no meio do teu acampamento


para te livrar e para entregar-te aos teus inimigos; portanto, o teu
acampamento será santo, para que ele não veja coisa indecente [ewarth
dabar] e se aparte de ti” (Deuteronômio 23:14 - grifo nosso).

Na época de Jesus (cerca de 1.500 anos depois da promulgação da lei de


Moisés) havia escolas rabínicas que debatiam acerca da causa para o
repúdio41. A escola do rabino Hilel, com uma interpretação mais liberal,
defendia que um homem poderia repudiar sua mulher por qualquer razão: se
ela cozinhasse mal, queimasse o jantar, falasse alto demais, ou simplesmente
se o marido perdesse o interesse pela esposa. Já a escola do rabino Shammai,
com uma visão mais restritiva, defendia que o divórcio só poderia ocorrer em
caso de algo propriamente indecente, que seria a falta de castidade ou
adultério. Se naquela época não havia um consenso sobre o significado de
erwath dabar, dificilmente nós, na atualidade, conseguiríamos definir com
toda certeza.

Achar “coisa indecente” era descobrir falta de virgindade da


mulher?

Alguns estudiosos defendem que “achar coisa indecente” significava


descobrir que a mulher não era mais virgem. Partindo dessa conclusão,
consideram que Deuteronômio 24:1-4 estabelece que, se a fornicação pré-
marital da mulher fosse descoberta ou confessada ao seu marido, este poderia
repudiá-la como uma alternativa à pena de morte, como se fosse um ato de
misericórdia42. Há quem defenda, inclusive, que o repudio só poderia ocorrer
durante o noivado (esponsais) e até as núpcias, e não depois do casamento43.
Entre os judeus, o processo do casamento ocorria em duas fases
distintas44, entre as quais poderia haver um intervalo de até um ano45: o
kiddushin46 (comumente traduzido como noivado) e o nissuin (o casamento
consumado, de pleno direito). A concepção contemporânea de noivado (um
compromisso que não vincula as partes e não exige um divórcio para ser
desfeito) era desconhecida dos judeus na Antiguidade47. A partir do momento
em que o contrato de casamento (ketubah) era celebrado, os noivos já eram
tidos como marido e mulher em todos os aspectos legais e religiosos, exceto
no que dizia respeito à coabitação. Durante a fase do kiddushin, os noivos já
eram legalmente casados, e esse relacionamento só poderia ser dissolvido
pela morte ou divórcio. A mulher já estava sujeita às restrições de uma mulher
casada, e se fosse infiel seria punida da mesma forma que a mulher adúltera
(Deuteronômio 22:23,24). O kiddushin, portanto, era muito mais vinculativo
do que o noivado moderno. Nessa fase, a esposa seguia vivendo com seus
pais, preparando suas roupas e joias, enquanto o marido preparava o novo lar.
Na segunda fase, o nissuin, o casamento era consumado e o casal passava a
viver junto.
Devido à existência desse casamento em duas fases é que alguns
estudiosos defendem que Deuteronômio 24:1-4 seria uma provisão legal para
o marido que descobrisse a falta de virgindade da mulher durante o período do
kiddushin até às núpcias. Depois disso o marido não teria direito algum de
repudiar a sua esposa pelo resto da vida.
Entretanto, para nos aproximarmos do que seria o significado da
expressão “coisa indecente”, precisamos analisá-la dentro do seu contexto no
livro de Deuteronômio. Isso também nos ajudará a conferir se Deuteronômio
24:1-4 refere-se ao repúdio durante o kiddushin ou durante um casamento já
consumado. Ao analisarmos o texto vemos que há pelo menos cinco razões
pelas quais não podemos entender que “coisa indecente” seria a falta de
virgindade da mulher.

Primeira razão: A lei já trazia prescrições caso o marido descobrisse


que sua mulher já havia perdido a virgindade com outro homem. Nessa
situação, a punição para a mulher era a morte, e não o divórcio. O capítulo 22
de Deuteronômio trata desse tema com clareza, abordando diversas situações
relacionadas às virgens: se um homem, ao casar, descobrisse que sua mulher
não era mais virgem, esta seria apedrejada (vs. 20,21); se um homem, ao casar
com uma mulher, afirmasse falsamente que ela não era mais virgem,
difamando-a com isso, seria punido com açoites, pagamento de multa, e estaria
proibido de repudiá-la durante toda sua vida, “porquanto divulgou má fama
sobre uma virgem de Israel” (vs.13-19); se uma virgem desposada (noiva) se
deitasse com um homem sem oferecer-lhe resistência, ambos seriam
apedrejados (vs. 23,24)48; se e a virgem desposada resistiu e não houve quem
a socorresse, apenas o homem seria morto, pois ela não tinha culpa (vs. 25-
27)49; se um homem tomasse uma moça virgem ainda não desposada, este
ficaria obrigado a casar com ela e nunca poderia repudiá-la (vs. 28,29).
Portanto, Deuteronômio 22 trata das questões relacionadas à falta de
virgindade da mulher. Em virtude disso, não é razoável supor que em
Deuteronômio 24:1-4 Moisés estaria falando sobre o mesmo assunto já tratado
no capítulo 22. A punição para falta de virgindade era a morte50. O texto não
apresenta qualquer diferença de tratamento caso tal pecado fosse confessado
pela mulher ou descoberto pelo marido. Nada é dito sobre confissão ou
arrependimento.

Segunda razão: A expressão “coisa indecente” (erwath dabar) é vaga e


imprecisa. Comparando novamente com Deuteronômio 22, no caso de
difamação injusta da mulher, vemos que ali também foi usada uma expressão
imprecisa (“ato vergonhoso”, no hebraico ‘aliyla dabar), no entanto tal
expressão é esclarecida no próprio texto. Moisés explica que atribuir ato
vergonhoso à mulher era dizer que ela não era virgem quando casou51.
Contudo, em Deuteronômio 24:1-4, Moisés menciona “coisa indecente” sem
maiores explicações. Se a lei permitia o repúdio única e exclusivamente no
caso tão restrito de falta de virgindade da mulher, não faria sentido usar uma
expressão imprecisa sem agregar explicação alguma.
Também já vimos que a expressão erwath dabar só aparece outra vez no
Antigo Testamento em Deuteronômio 23:12-14, sem qualquer conotação
sexual, para se referir à falta de limpeza ou condições de higiene no
acampamento. Portanto, erwath dabar era uma expressão genérica que poderia
ter mais de um significado, mas trazia em si o conceito de algo indecente,
impróprio ou vergonhoso.

Terceira razão: O texto de Deuteronômio 24:1-4 descreve a situação de


um casamento já consumado, sem mencionar quanto tempo após o casamento o
marido poderia repudiar sua esposa. Quando o texto diz “Se um homem tomar
uma mulher”, a palavra hebraica traduzida pelo verbo “tomar” é laqach, que
é usada muitas vezes no Antigo Testamento em um sentido amplo, sem
conotação sexual. Entretanto, na maioria das vezes em que é usada com
relação ao casamento, laqach refere-se à relação sexual.
Deuteronômio 20:5-7 fala sobre o homem que havia desposado uma
mulher, mais que ainda não a havia recebido (laqach):

“Os oficiais falarão ao povo, dizendo: Qual o homem que edificou


casa nova e ainda não a consagrou? Vá, torne-se para casa, para que não
morra na peleja, e outrem a consagre. Qual o homem que plantou uma vinha
e ainda não a desfrutou? Vá, torne-se para casa, para que não morra na
peleja, e outrem a desfrute. Qual o homem que está desposado com alguma
mulher e ainda não a recebeu [laqach]? Vá, torne-se para casa, para que
não morra na peleja, e outro homem a receba [laqach]“ (Deuteronômio
20:5-7 - grifo nosso).

Deuteronômio 24:5 fala sobre o homem que havia casado recentemente:

"Homem recém-casado [laqach] não sairá à guerra, nem se lhe imporá


qualquer encargo; por um ano ficará livre em casa e promoverá felicidade à
mulher que tomou [laqach]” (Deuteronômio 24:5 - grifo nosso).

A mesma palavra aparece na história de Ló, para fazer referência aos


seus genros que ainda estavam por casar (laqach) com suas filhas.

“Então, saiu Ló e falou a seus genros, aos que estavam para casar
[laqach] com suas filhas e disse: Levantai-vos, saí deste lugar, porque o
SENHOR há de destruir a cidade. Acharam, porém, que ele gracejava com
eles” (Gênesis 19:14 - grifo nosso).
Constata-se que Deuteronômio 24:1-4 regulamenta o repúdio em um
casamento já consumado, e não durante o noivado. O marido efetivamente
havia tomado (laqach) sua mulher. Isso é reforçado pelo fato de que a mulher,
ao ser repudiada, saía de casa (“…se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e
lho der na mão, e a despedir de casa; e se ela, saindo da sua casa…”). Se a
mulher saía da casa de seu marido, logo não era mais noiva, pois a noiva
ainda vivia na casa dos pais.
Se o repúdio só fosse permitido no caso de falta de virgindade da
mulher, o texto deveria deixar claro quanto o tempo o marido teria para
repudiá-la após a descoberta. Porém, o texto não traz qualquer menção sobre
esse prazo, deixando esse tema em aberto.

Quarta razão: A afirmação de que a única possibilidade de repúdio era


por falta de virgindade impõe um sério problema para entendermos o segundo
casamento da mulher repudiada em Deuteronômio 24:1-4, pois esse texto nos
mostra que essa mulher, levando sua carta de divórcio, poderia se casar com
outro homem e ser repudiada novamente.
Já vimos que o texto de Deuteronômio 24:1-4 trata de um repúdio
ocorrido em um casamento já consumado e, portanto, ninguém poderia
considerar que a mulher depois de repudiada ainda era virgem. Mas ainda
assim, o texto não estabeleceu restrições para que essa mulher casasse com
outro homem e fosse repudiada novamente. E ela ainda poderia passar por um
terceiro casamento, desde que não fosse com seu primeiro marido.
Se o primeiro repúdio fosse pelo fato de não ser mais virgem, qual seria
o motivo para o segundo repúdio? Certamente não poderia ser por falta de
virgindade, pois ela já vinha de um primeiro casamento. O texto apenas diz
que o segundo marido a aborreceu, lhe deu carta de divórcio e a despediu.
A possibilidade de um novo casamento da mulher repudiada também fica
evidente quando vemos a proibição feita aos sacerdotes em Levítico 21:13,14:
“Ele tomará por mulher uma virgem. Viúva, ou repudiada, ou desonrada, ou
prostituta, estas não tomará, mas virgem do seu povo tomará por mulher”.
Apesar da repudiada não estar na mesma categoria que uma mulher virgem,
apenas os sacerdotes estavam proibidos de casar com ela; tal proibição não se
estendia aos demais homens israelitas.
Na tentativa de sustentar a tese de que erwath dabar era falta de
virgindade, há quem defenda que o segundo marido mencionado em
Deuteronômio 24:1-4 só poderia repudiar sua esposa por ter sido enganado
quanto à condição da mesma, ou seja, porque havia pensado que ela ainda era
virgem52. Contudo, isso não passa de especulação, pois a lei era clara em
mostrar que a mulher repudiada poderia casar de novo sem ter que esconder
sua condição.

Quinta razão: Se Moisés tivesse permitido o repúdio apenas em caso


de falta de virgindade, teríamos dificuldades de entender outras legislações
que também tratam do repúdio, especialmente as duas situações em que o
repúdio era definitivamente proibido: o caso de difamação injusta da mulher
(Deuteronômio 22:13-19) e o caso de defloramento de virgem não desposada
(Deuteronômio 22:28,29). Nesses textos, a proibição definitiva ao repúdio
tem claramente caráter punitivo. Ou seja, se não fossem os erros cometidos
pelos homens mencionados nessas situações, entende-se que eles não estariam
sujeitos à tal proibição.
Se entendêssemos que a lei só autorizava o repúdio em caso de falta de
virgindade da mulher, não haveria necessidade alguma de proibi-lo em caso
de difamação injusta, pois se a mulher era virgem no momento das núpcias, o
repúdio já seria automaticamente proibido.
Além disso, a lei tratava de duas situações em que o marido tinha o
dever de repudiar sua mulher (Êxodo 21:7-11; Deuteronômio 21:10-14), e em
tais casos não vemos qualquer menção a existência de “coisa indecente” .
Diante de tudo o que vimos até aqui, podemos constatar que Moisés usou
uma expressão ampla para a causa do repúdio. A expressão “coisa indecente”
não deve ter sido compreendida originalmente como “qualquer motivo” ou
“qualquer coisa”, mas ainda assim era uma expressão ampla. Talvez por esta
razão as escolas rabínicas discutiam e discordavam sobre os motivos para
repudiar as esposas.
É surpreendente ver pessoas nos dias de hoje (cerca de 3.500 anos
depois da promulgação da lei de Moisés) tentando explicar o que é “coisa
indecente” quando nem mesmo os mestres daquelas escolas, conhecedores do
idioma e da cultura, chegaram a uma unanimidade sobre o assunto. Se os
fariseus nos dias de Jesus não sabiam o seu real significado, como alguém
chegou a esta conclusão? Nem mesmo o Mestre dos mestres explicou do que
se tratava53. O debate entre as escolas rabínicas só evidencia a
impossibilidade de redescobrimos o significado exato de “coisa indecente”,
se é que essa expressão tinha um significado muito restrito. Qualquer
afirmação absoluta sobre essa expressão é mera especulação.
O fato de “coisa indecente” não significar falta de virgindade ou
adultério não impedia o uso do expediente do divórcio para despedir uma
mulher adúltera evitando que ela recebesse a punição prevista na lei (a morte).
Como a relação de Deus com Israel por vezes é descrita como um casamento,
o próprio Senhor usa a figura da carta de divórcio para dizer que repudiou
Israel por causa dos seus adultérios ou prostituições (Jeremias 3:8). Além
disso, na medida em que a pena de morte deixou de ser praticada entre os
judeus54, a tradição judaica passou a tornar obrigatório o divórcio em caso de
adultério55. Entretanto, o uso do divórcio para os casos de adultério foi um
entendimento posterior à lei.
Precisamos considerar também que, embora Deuteronômio 24:1-4
descreva a situação de um casamento já consumado, isso não impedia que esse
mesmo regulamento fosse estendido ao caso de repúdio durante o kiddushin,
posto que nessa fase os noivos já eram considerados marido e mulher. De fato,
a tradição judaica exigia o divórcio para a dissolução do casamento na fase do
kiddushin. Precisamos lembrar que entre os judeus não existia o noivado tal
como conhecemos hoje.
Apesar de não existir uma definição precisa sobre a causa do repúdio na
lei de Moisés, não precisamos ficar desorientados sobre como a igreja deve
encarar esse tema. Jesus veio nos trazer um padrão superior à lei, pois seu
ensino se fundamenta no plano original de Deus para o casamento.

Quais eram os efeitos ou consequências do repúdio sobre cada


cônjuge?

O texto de Deuteronômio 24:1-4 mostra quais seriam os efeitos de um


repúdio lícito, ou seja, aquele em que a mulher foi despedida levando uma
carta de divórcio.
Uma vez oficializado o repúdio, seu primeiro efeito era desfazer o
vínculo conjugal. Já vimos que a palavra hebraica para divórcio (kerithuth)
significa literalmente cortar, amputar. O divórcio é exatamente isso, um corte,
uma amputação que separa os cônjuges e desfaz a unidade do casamento. É
uma dissolução do vínculo conjugal. Deuteronômio 24 não deixa dúvidas
disso, pois no texto não pesa sobre a mulher repudiada o dever de ficar
sozinha ou de se reconciliar com seu primeiro marido. Dessa forma, caso ela
se casasse com outro homem não estaria incorrendo em adultério56. O texto é
claro: se ela é esposa de outro, não é mais esposa do primeiro marido. Não
existia repúdio lícito que não deixasse a mulher livre para casar de novo.
Precisamos observar a condição da mulher repudiada quando fazia votos
ao Senhor (Números 30). A validade do voto de uma mulher solteira dependia
do consentimento do seu pai. A validade do voto de uma mulher casada
dependia do consentimento de seu marido. Já o voto da repudiada e da viúva
não dependia do consentimento de ninguém, posto que elas não estavam sob o
poder de homem algum.

“No tocante ao voto de uma viúva ou de uma repudiada, tudo com que
se obrigar ser-lhe-á válido” (Números 30:9).

Uma mulher repudiada poderia voltar à casa de seu pai. Moisés ensina
que, se um sacerdote receber de volta uma filha que fora repudiada, esta terá
direito de comer das ofertas.

“Se a filha de um sacerdote se casar com um estranho, ela não comerá


da oferta alçada das coisas sagradas. Mas quando a filha do sacerdote for
viúva ou repudiada, e não tiver filhos, e houver tornado para a casa de seu
pai, como na sua mocidade, do pão de seu pai comerá; mas nenhum
estranho comerá dele” (Levítico 22:12,13).

É interessante ver a forma como Jesus tratou a mulher samaritana57 ao


dizer que ela havia tido cinco maridos. A menos que ela tenha ficado viúva
cinco vezes (o que é pouco provável), podemos supor que essa mulher tenha
passado por alguns divórcios. E Jesus não negou a validade de nenhum dos
cinco casamentos, mas apenas a do último relacionamento em que aquela
mulher estava envolvida: “cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens
não é teu marido” (João 4:18). Além disso, para considerar que aquela
mulher estava em adultério, o seu último marido precisaria estar vivo e não tê-
la repudiado. Pois qualquer homem, conforme a lei de Moisés, que recebesse
uma viúva, exceto o sacerdote, poderia casar legalmente com ela.
Até o momento analisamos os efeitos do repúdio sobre a mulher. Sobre o
homem que repudiava só pesava um efeito: a proibição de recasar com sua ex-
esposa, caso esta fosse repudiada por outro marido ou ficado viúva do mesmo.
Essa proibição ainda reforçava que o divórcio, sob a lei de Moisés, não
poderia ser uma decisão irrefletida, pois trazia consequências irreparáveis.
Precisamos destacar que as discussões sobre os motivos para o repúdio
não tocavam na liberdade do homem para casar-se novamente. O homem não
precisava de carta de divórcio emitida pela esposa. O tema do repúdio dizia
respeito à liberdade da mulher, e não do homem58. Um repúdio inválido
poderia tornar ilícito o segundo casamento da mulher e fazer com que os filhos
dessa relação fossem considerados bastardos, mas não tornava ilícito o
segundo casamento do homem. Até mesmo a escola de Shammai, apesar de
mais rigorosa, acreditava que era vergonhoso para um homem permanecer
descasado, e defendia o novo casamento inclusive para aquele que repudiou
sua esposa por motivo trivial59.
Sabemos que o mandamento exposto em Deuteronômio 24:1-4 visava
resguardar as mulheres e evitar repúdios irrefletidos. Na lei de Moisés, o
próprio Deus as protegeu por meio de mandamentos que as amparava em caso
de repúdio. Por esse motivo, observamos que a lei trazia situações em que o
repúdio era devido, e outras em que o repúdio era proibido.

Os repúdios devidos segundo a lei

A lei tratava de duas situações nas quais o marido deveria repudiar sua
esposa:

a) O repúdio da mulher escrava de guerra: A mulher não era


emancipada em nenhum momento. Ela sempre tinha sobre si um senhor (pai,
marido ou alguém que a tivesse comprado ou recebido como escrava). Então,
se além de ser mulher ainda tivesse sido trazida como espólio de uma guerra,
sua situação ficaria terrível.

“Quando saíres à peleja contra os teus inimigos, e o Senhor teu Deus


os entregar nas tuas mãos, e tu deles levares prisioneiros, e tu entre os
presos vires uma mulher formosa à vista, e a cobiçares, e a tomares por
mulher, então a trarás para a tua casa; e ela rapará a cabeça e cortará as
suas unhas. E despirá o vestido do seu cativeiro, e se assentará na tua casa,
e chorará a seu pai e a sua mãe um mês inteiro; e depois chegarás a ela, e tu
serás seu marido e ela tua mulher. E será que, se te não contentares dela, a
deixarás ir [shalach] à sua vontade; mas de modo algum a venderás por
dinheiro, nem a tratarás como escrava, pois a tens humilhado”
(Deuteronômio 21:10-14 - grifo nosso).

Na situação acima, o marido tinha o dever de deixar a mulher à vontade


para ir embora, caso não tenha se contentado com ela. Não é dito nada sobre o
motivo desse descontentamento, não é feita nenhuma referência a achar “coisa
indecente”. O texto apenas diz que, se o marido não a quisesse mais, ele
deveria deixá-la ir embora. O motivo para o homem tomar aquela prisioneira
de guerra como esposa era tão somente ter visto sua beleza. E o motivo para
despedi-la era tão somente o não se agradar dela. Neste caso, o marido não
poderia vendê-la e nem mantê-la como escrava. Não poderia lucrar com isso.
Aquela mulher já havia sido humilhada por ele, e por isso ele deveria deixa-la
ir à sua própria vontade. Então vemos que o próprio Deus, através da lei,
estava protegendo a mulher que veio como espólio de guerra.

b) O repúdio da mulher que fora vendida por seu pai como escrava:
Esse é outro exemplo de proteção à mulher. Um pai, quando endividado,
poderia vender ou entregar seus próprios filhos para quitar a dívida. No texto
abaixo, vemos como Deus resguarda a mulher vendida como escrava por seu
próprio pai.

“Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá
como saem os escravos. Se ela não agradar ao seu senhor, que se
comprometeu a desposá-la, ele terá de permitir-lhe o resgate; não poderá
vendê-la a um povo estranho, pois será isso deslealdade para com ela. Mas,
se a casar com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao
filho outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus
vestidos, nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas,
ela sairá sem retribuição, nem pagamento em dinheiro” (Êxodo 21:7-11 -
grifo nosso).

A primeira coisa a ser observada é que se a filha vendida não agradasse


o seu senhor, ela poderia ser resgatada pelo seu pai. Não há qualquer menção
sobre achar algo indecente. Se esse senhor a desse ao seu filho, deveria tratá-
la como uma filha. E se esse filho ganhasse outra mulher de seu pai, deveria
conceder à primeira mulher os mesmos direitos da segunda, caso contrário, ela
poderia sair de casa sem que o marido recebesse pagamento algum.
Em Êxodo 21:11, o termo hebraico traduzido como “sairá” é yatsa’, e
não shalach, como em Deuteronômio 24:1. Porém, yatsa’ é a palavra que
aparece em Deuteronômio 24:2 ao dizer que a mulher saiu de casa e casou-se
com outro homem: “e se ela, saindo [yatsa’] da sua casa…” (Deuteronômio
24:2). Esse termo traz a mesma ideia de “fazer sair”, “libertar”, “ser trazido
para fora”60.
A regulamentação de Êxodo 21:7-11 é devida ao fato de que, sendo a
mulher propriedade do homem, poderia ser interessante para ele obter algum
lucro ao se livrar dela, até vendendo-a como escrava. Assim, Deus zelava
pela condição dessa mulher.

Os repúdios proibidos segundo a lei

Já mencionamos que havia dois casos em que Deus proibiu o repúdio no


meio do povo de Israel: em caso de difamação injusta da mulher e em caso de
defloramento de virgem não desposada, ambos tratados no capítulo 22 de
Deuteronômio.

“Se um homem casar com uma mulher, e, depois de coabitar com ela, a
aborrecer, e lhe atribuir atos vergonhosos, e contra ela divulgar má fama,
dizendo: Casei com esta mulher e me cheguei a ela, porém não a achei
virgem, então, o pai da moça e sua mãe tomarão as provas da virgindade da
moça e as levarão aos anciãos da cidade, à porta. O pai da moça dirá aos
anciãos: Dei minha filha por mulher a este homem; porém ele a aborreceu;
e eis que lhe atribuiu atos vergonhosos, dizendo: Não achei virgem a tua
filha; todavia, eis aqui as provas da virgindade de minha filha. E estenderão
a roupa dela diante dos anciãos da cidade, os quais tomarão o homem, e o
açoitarão, e o condenarão a cem siclos de prata, e o darão ao pai da moça,
porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. Ela ficará sendo
sua mulher, e ele não poderá mandá-la embora [shalach] durante a sua
vida” (Deuteronômio 22:13-19 - grifo nosso).

“Se um homem achar moça virgem, que não está desposada, e a pegar
e se deitar com ela, e forem apanhados, então o homem que se deitou com
ela dará ao pai da moça cinquenta siclos de prata; e, uma vez que a
humilhou, lhe será por mulher; não poderá mandá-la embora [shalach]
durante a sua vida” (Deuteronômio 22:28,29 - grifo nosso).

Deus odeia o repúdio


Apesar de Moisés ter regulamentado o repúdio, séculos mais tarde o
profeta Malaquias dirigiu aos homens de Israel uma severa repreensão que
alguns poderiam considerar surpreendente:

“Ainda fazeis isto: cobris o altar do SENHOR de lágrimas, de choro e


de gemidos, de sorte que ele já não olha para a oferta, nem a aceita com prazer
da vossa mão. E perguntais: Por quê? Porque o SENHOR foi testemunha da
aliança entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo
ela a tua companheira e a mulher da tua aliança. Não fez o SENHOR um,
mesmo que havendo nele um pouco de espírito? E por que somente um? Ele
buscava a descendência que prometera. Portanto, cuidai de vós mesmos, e
ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade. Porque o SENHOR,
Deus de Israel, diz que odeia o repúdio e também aquele que cobre de
violência as suas vestes, diz o SENHOR dos Exércitos; portanto, cuidai de
vós mesmos e não sejais infiéis” (Malaquias 2:13-16).

Se a lei regulamentava o repúdio, como agora o Senhor estava dizendo


que odiava isso? O fato é que Malaquias já nos permite ver um pouco do
coração de Deus sobre esse assunto, que será plenamente revelado em Jesus.
No livro do profeta Malaquias vemos homens desleais fazendo uso do
expediente do repúdio. No texto hebraico, a palavra traduzida como infiel (ou
desleal em algumas versões) é bagad, que significa “agir traiçoeiramente” ou
“agir enganosamente”.
Curiosamente, antes de repreender aqueles homens sobre o repúdio de
suas esposas, Malaquias os condena por terem casado com “adoradora de
deus estranho”. É importante observar o contraste entre essa mulher e a mulher
da aliança que Deus testemunhou:

“Judá tem sido desleal, e abominação se tem cometido em Israel e em


Jerusalém; porque Judá profanou o santuário do SENHOR, o qual ele ama, e
se casou com adoradora de deus estranho” (Malaquias 2:11 - grifo nosso).

“... o SENHOR foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua


mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a
mulher da tua aliança” (Malaquias 2:14 - grifo nosso).
Enquanto o casamento com a adoradora de deus estranho foi descrito
como uma deslealdade e uma abominação, o casamento com a mulher da
mocidade foi testemunhado por Deus. Parece que o profeta está denunciando
uma prática em Israel: os homens estavam se casando com mulheres pagãs e
repudiando suas esposas israelitas. Por questões econômicas e sociais, muitos
homens não podiam manter a poligamia, e por isso repudiavam suas mulheres
a fim de casar com outras. A deslealdade desses homens não passaria impune
aos olhos de Deus. Vemos, portanto, que o texto de Malaquias não está falando
sobre homens que encontraram coisa indecente em suas esposas.
O casamento com estrangeiras foi denunciado também em Neemias
(13:23-29) e Esdras (9 e 10), livros escritos em um período próximo ao de
Malaquias. Em Esdras vemos um momento de arrependimento, em que homens
israelitas entram em aliança com Deus e decidem despedir as mulheres
estrangeiras juntamente com os filhos que tinham com elas. Aqueles homens
acreditavam que, ao despedirem suas esposas estrangeiras, estavam
cumprindo uma exigência da Lei.

“Agora, pois, façamos aliança com o nosso Deus, de que despediremos


todas as mulheres e os seus filhos, segundo o conselho do Senhor e o dos
que temem ao mandado do nosso Deus; e faça-se segundo a Lei” (Esdras
10:3).

A deslealdade denunciada em Malaquias já apontava para o que Jesus


ensinaria séculos mais tarde. Algo ainda estava para ser revelado sobre como
Deus enxerga o repúdio. Veremos isso com total clareza no ensino de Jesus.
Nossa atenção no próximo capítulo estará voltada para o que o Novo
Testamento nos revela sobre o casamento, a duração do mesmo, a relação
entre divórcio e repúdio nos ensinos de Jesus e quais são as implicações da
existência de uma cláusula de exceção para o divórcio.
Capítulo 3
“EU, PORÉM, VOS DIGO”
JESUS E O DIVÓRCIO
Depois de termos estudado o que a lei de Moisés dizia sobre o divórcio
e o repúdio, é necessário que voltemos nossa atenção ao que Jesus ensinou
sobre o tema. Afinal, Ele é o Verbo de Deus, a Palavra. Quando Ele diz “Eu,
porém, vos digo”, tudo o que vem depois deve determinar nossa prática.
Nos Evangelhos, a questão do divórcio é mencionada quatro vezes:
Mateus 5:31-32; Mateus 19:3-12; Marcos 10:2-12 e Lucas 16:18.
Na primeira ocasião em que esse tema é registrado, no sermão do monte
(Mateus 5:31-32), Jesus não estava sendo questionado por ninguém, mas
estava ensinando espontaneamente, doutrinando seus discípulos. Vejamos o
que o Mestre ensinou:

“Também foi dito: Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de
divórcio. Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em
caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que
casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 5:31,32).

Geralmente esse texto é usado para demonstrar que Jesus teria permitido
uma exceção para o divórcio, que seria apenas em caso de porneia, termo
grego que geralmente é traduzido como relações sexuais ilícitas ou
imoralidade sexual. Em língua portuguesa, esse termo deu origem à palavra
“pornografia”. Em quase todas os idiomas ocidentais há palavras
correspondentes a esse termo que derivam da mesma raiz grega61. No próximo
capítulo analisaremos de forma mais detalhada o significado da palavra
porneia, bem como os pecados que essa expressão abrange. Mas, por
enquanto, partiremos do pressuposto de que porneia é uma referência às
relações sexuais ilícitas.
No estudo de Mateus 5:31 e 32 precisamos destacar que,
independentemente do significado de porneia, o foco de Jesus não é ensinar
sobre os motivos do repúdio. Naquele momento, Ele não estava sendo
questionado sobre isso. Se Jesus se limitasse a falar sobre os motivos do
repúdio, estaria apenas alimentando as discussões entre as escolas rabínicas
de Hilel e Shammai.
O tema tratado por Jesus em Mateus 5: 31 e 32 é a responsabilidade do
homem que repudia sua mulher. Muitas vezes esse texto é interpretado como se
Jesus tivesse dito: “o homem não pode repudiar a sua mulher, exceto em
caso de relações sexuais ilícitas”. Entretanto, a abrangência do ensino de
Jesus é muito maior, pois Ele fala do adultério a que a mulher repudiada fica
exposta: “qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações
sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a
repudiada comete adultério”.
Com essa declaração, Jesus revela algo surpreendente: se a mulher fica
exposta ao adultério é porque, mesmo com a carta de divórcio e o repúdio, seu
vínculo conjugal com o primeiro marido não foi rompido. O adultério é um
pecado que sempre envolve uma pessoa casada.
O homem só não seria responsabilizado pelo eventual adultério (segundo
casamento) da mulher repudiada se esta já estivesse cometendo porneia. Uma
tradução livre de Mateus 5:32 seria assim: “Se você rejeitar a sua esposa,
será responsável por torná-la adúltera (a não ser que ela já o seja por ter se
tornado promíscua)”62. Se o homem, ao repudiar sua esposa, se torna
responsável por torná-la adúltera, a cláusula de exceção é inteligente e tem
todo o sentido, pois ele não pode ser responsabilizado se a mulher já comete
adultério, se ela já é promiscua. Da mesma forma, o cuidado do Senhor em
amparar a mulher repudiada perde o sentido uma vez que esta escolheu
deliberadamente tornar-se adúltera.
É importante destacar que Jesus fala tanto da responsabilidade do
homem que repudia, como do adultério de quem casa com a repudiada. Porém,
em Mateus 5:31 e 32 nada é mencionado ou insinuado sobre o novo casamento
do homem que repudiou a sua esposa.
De forma isolada, o texto de Mateus 5:31 e 32 não nos permite concluir
nada sobre o novo casamento do homem que repudia sua mulher, mas faz com
que surjam perguntas sobre isso, além de questionamentos sobre a dissolução
do casamento nos casos de repúdio por porneia.
Se o repúdio por causa de porneia não tivesse o efeito de dissolver o
vínculo conjugal, estaríamos diante de uma situação, no mínimo, estranha. O
homem poderia repudiar sua esposa que cometeu porneia, mas, uma vez que o
casamento não foi desfeito, ela continuaria exposta a cometer adultério ao se
casar com outro homem (diferente do homem com quem havia adulterado
anteriormente63). Qual seria, portanto, o sentido da cláusula de exceção em
Mateus 5:32, uma vez que qualquer que fosse o motivo do repúdio a mulher
sempre estaria exposta ao adultério?
A situação do homem que casa com outra mulher após repudiar sua
primeira esposa só é abordada mais adiante, em Mateus 19:3-10; Marcos
10:2-12 e Lucas 16:16-18.
Vejamos o relato de Mateus 19:3-12:

“Vieram a ele alguns fariseus e o experimentavam, perguntando: É


lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo? Então,
respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez
homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se
unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne? De modo que já não
são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o
separe o homem. Replicaram-lhe: Por que mandou, então, Moisés dar carta
de divórcio e repudiar? Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do
vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto,
não foi assim desde o princípio. Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua
mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra
comete adultério e o que casar com a repudiada comete adultério.
Disseram-lhe os discípulos: Se essa é a condição do homem relativamente à
sua mulher, não convém casar. Jesus, porém, lhes respondeu: Nem todos são
aptos para receber este conceito, mas apenas aqueles a quem é dado.
Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os homens fizeram tais; e
há outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por causa do reino dos céus.
Quem é apto para o admitir admita” (Grifo nosso).

Os fariseus questionaram a Jesus a fim de testá-lo, provavelmente para


colocá-lo no meio do debate rabínico sobre os motivos para o repúdio. Talvez
eles já soubessem algo sobre a posição de Jesus acerca do tema. O ensino do
Senhor no sermão do monte poderia já ter chegado aos ouvidos daqueles
homens. Portanto, o questionamento tentava colocar Jesus contra a opinião
popular64 e em contradição com a lei de Moisés.
O texto de Mateus 19 por vezes é lido com lentes contemporâneas, e por
isso não é bem compreendido. Alguns leem a pergunta dos fariseus como se
eles dissessem: “É lícito se divorciar por qualquer motivo?” Entretanto, a
pergunta foi outra: “É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer
motivo?”. Precisamos lembrar que apenas os homens podiam repudiar suas
esposas, e não o contrário. Outra coisa que precisamos enxergar é que a
pergunta foi sobre os motivos do repúdio e não sobre o novo casamento do
homem, pois isso até então não estava em questão. Diferentemente da nossa
sociedade atual, na qual existe uma proibição legal da bigamia, e que se um
homem já casado quiser casar com outra mulher deverá se divorciar da
primeira, naqueles dias o novo casamento de um homem não estava
condicionado ao desfazimento da primeira união. Muitos homens, ao
desejarem casar com outra mulher, se divorciavam de suas esposas por não
terem condições financeiras de manter duas mulheres, mas não havia um
impedimento legal para que tivesse as duas. Embora a prática da poligamia
tenha diminuído no período após o exílio, ela ainda não havia sido erradicada
entre os judeus65. Portanto, o debate rabínico sobre os motivos do repúdio não
colocava em questão a liberdade do homem de casar-se com outra mulher.
Jesus, ao responder à primeira pergunta dos fariseus, não entra no debate
sobre o motivo do repúdio e tampouco cita a lei. Começar sua resposta
dizendo “não tendes lido...”, e assim confirma a autoridade das Escrituras.
Ele não recorre a Deuteronômio 24, mas ao livro de Gênesis, ao princípio, a
algo anterior e superior à lei, que mostrava o propósito do casamento.
O plano de Deus para o casamento é o de uma união entre um homem e
uma mulher por toda a vida. Em sua resposta, Jesus volta ao Éden e mostra-
lhes o padrão de Deus: “o que Deus ajuntou não o separe o homem”. A
vontade clara e inquestionável do Senhor é que o homem tenha apenas uma
esposa, que a esposa tenha apenas um marido e que o casal viva junto até o
final de suas vidas.
No entanto, aqueles fariseus não se contentaram com a resposta de Jesus.
É exatamente neste momento que eles tentam colocá-lo em contradição com
Moisés, fazendo uma segunda pergunta: Por que mandou, então, Moisés dar
carta de divórcio e repudiar?
Percebe-se que os fariseus não estavam perguntando sobre um repúdio
qualquer, um mero abandono ou simples separação. Eles questionaram Jesus
sobre o repúdio segundo a regulamentação de Deuteronômio 24:1-4, com a
emissão da carta de divórcio. Portanto, a resposta de Jesus sobre o tema foi
levando em conta o repúdio de acordo com a lei.
Jesus, pleno em sabedoria e discernimento, responde, sem maiores
observações, que o que Moisés regulamentou em Deuteronômio 24:1-4 não
correspondia ao plano de Deus para o casamento, entretanto tal prática foi
permitida em função da dureza do coração dos homens. Se não fosse essa
dureza, simplesmente Moisés não teria dado essa concessão. Com isso, Jesus
não declarou que os fariseus haviam distorcido as palavras de Moisés sobre o
repúdio. Isso não significa que não tenha ocorrido distorções, mas que estas
não foram denunciadas em Mateus 19:3-12.
Jesus desagradou aos fariseus, pois mostrou com profundidade o
verdadeiro problema: “Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso
coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não
foi assim desde o princípio” (Mateus 19:8). É importante observar que Jesus
não estava censurando Moisés e nem mesmo a lei, mas os destinatários da
mesma. Independentemente de qual fosse o significado a expressão “coisa
indecente”, o que Moisés regulamentou foi em função dos corações
endurecidos.
Portanto, Jesus mostra que a lei não alcançava o padrão estabelecido por
Deus na criação, de um casamento monogâmico e indissolúvel. Nesse tema, a
lei tinha claramente um caráter transitório. A resposta de Jesus nos faz lembrar
o que Paulo escreve em Romanos 8:3 e 4, dizendo que havia coisas
impossíveis à lei, visto que estava enferma pela carne66. Lembramos também
da carta aos Hebreus, que nos fala o seguinte sobre a Antiga e a Nova Aliança:

"Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de


maneira alguma estaria sendo buscado lugar para uma segunda. E, de fato,
repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança
com a casa de Israel e com a casa de Judá... Quando ele diz Nova, torna
antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido está
prestes a desaparecer” (Hebreus 8:7-13).

Deus instituiu o casamento, e o homem, infelizmente, criou o repúdio.


Moisés regulamentou essa situação para evitar abusos, mas Jesus veio
restaurar o plano original de Deus para o casamento.
Nesse diálogo com os fariseus, Jesus expõe seu ensino sobre casamento,
repúdio e novo casamento. A partir do momento em que Ele declarou: “Eu,
porém, vos digo”, nenhum de seus discípulos deveria recorrer a
Deuteronômio 24 para justificar um divórcio, pois é Jesus quem tem a palavra
final sobre esse assunto.

“Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa
de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério e o que
casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 19:9).

Enquanto os fariseus perguntaram sobre os motivos para o homem


repudiar sua mulher, Jesus vai além e toca no tema do segundo casamento. Ele
fala sobre o homem que contrai novas núpcias depois de repudiar sua mulher,
e declara que esse homem está em adultério, excetuando quem repudiou por
causa de porneia. Isso foi algo chocante. O debate entre escolas rabínicas
colocava em questão a licitude do motivo do repúdio, o que afetaria a
liberdade da mulher para casar de novo. Porém, a licitude do repúdio não
afetava a questão do novo casamento do homem. Entretanto, o ensino de Jesus
toca na liberdade e na responsabilidade do homem, e diz que o casamento
vincula o homem a sua mulher, tanto quanto vincula a mulher ao seu marido.
Isso surpreendeu até mesmo os discípulos de Jesus, que disseram:

“Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não


convém casar” (Mateus 19:10 - grifo nosso).

Os discípulos, acostumados com a posição de domínio do homem, se


assustaram com o que Jesus disse. A surpresa deles foi quanto à condição do
homem relativamente à sua mulher, e não quanto à condição da mulher em
relação ao homem.
Portanto, segundo Jesus, o adultério não é configurado apenas quando o
homem toca na “propriedade” do próximo, mas também é um pecado cometido
diretamente contra a própria esposa. Quando um homem casado se relaciona
sexualmente com outra mulher, seja esta casada ou solteira, ele adultera contra
sua própria esposa67. A fala de Jesus não se enquadrava em nenhuma das
correntes que discutiam os motivos para o repúdio68, pois equiparou a situação
entre homens e mulheres no que diz respeito à fidelidade conjugal.
Aqui cabe destacar uma diferença entre os textos de Mateus 5:32 e
Mateus 19:9. Enquanto Mateus 5:32 menciona apenas os adultérios da mulher
repudiada e do homem que casa com ela (“... e aquele que casar com a
repudiada comete adultério”), Mateus 19:9 menciona também o adultério do
homem que repudia sua mulher, exceto por causa de porneia, e casa com outra.
Portanto, o repúdio tem um grande alcance destrutivo, pois pode colocar pelo
menos quatro pessoas em adultério: o marido que repudiou sua mulher, a
segunda mulher desse homem, a mulher repudiada e o segundo marido dessa
mulher. Uma verdadeira tragédia!
Jesus mudou totalmente a condição da mulher e também do marido. O
homem casado adultera quando se relaciona sexualmente com qualquer mulher
que não seja sua esposa. Mais tarde, Paulo chega a dizer que o homem não
tinha poder sobre seu próprio corpo, e sim a mulher.

“O marido conceda à esposa o que lhe é devido, e também,


semelhantemente, a esposa, ao seu marido. A mulher não tem poder sobre o
seu próprio corpo, e sim o marido; e também, semelhantemente, o marido
não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim a mulher” (I Coríntios
7:3,4).

Deus trouxe de volta aquilo que Ele criou em Gênesis. No princípio era
homem e mulher, ou seja, Ele criou uma única mulher para o homem. Nunca foi
plano dEle que o homem tivesse muitas esposas. O desejo do Senhor sempre
foi que cada marido tivesse sua própria esposa e vice-versa.
Quando o Evangelho de Mateus trata do repúdio, apenas uma única
exceção é mencionada: a porneia. Há quem defenda que essa exceção foi
agregada para fazer referência ao motivo do repúdio em Deteronômio 24:1-4,
a fim de não colocar Jesus em oposição à lei. Sendo assim, a cláusula de
exceção apenas explicaria como expressão “coisa indecente” deveria ser
compreendida. Existiria uma correspondência entre a expressão hebraica
erwath dabar e a palavra grega porneia. Entretanto, tal conclusão é
equivocada. Qualquer que seja o significado de erwath dabar, não pode ser o
mesmo de porneia. Jesus asseverou que a regulamentação do repúdio na lei
foi dada por causa da dureza dos corações. E logo em seguida, declarou “Eu,
porém, vos digo…”. Se Jesus tivesse mantido a mesma permissão dada pela
lei, repetindo o que já havia sido dito aos antigos, sua fala ficaria sem sentido.
Se admitíssemos a equivalência entre e erwath dabar e porneia, faríamos o
discurso de Jesus rodar em círculos.
A cláusula de exceção não é registrada em nenhum outro lugar do Novo
Testamento além do Evangelho de Mateus. Vejamos abaixo o texto do
Evangelho de Marcos sobre o repúdio:

“E, aproximando-se alguns fariseus, o experimentaram, perguntando-


lhe: É lícito ao marido repudiar sua mulher? Ele lhes respondeu: Que vos
ordenou Moisés? Tornaram eles: Moisés permitiu lavrar carta de divórcio e
repudiar. Mas Jesus lhes disse: Por causa da dureza do vosso coração, ele
vos deixou escrito esse mandamento; porém, desde o princípio da criação,
Deus os fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe [e
unir-se-á a sua mulher], e, com sua mulher, serão os dois uma só carne. De
modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou
não separe o homem. Em casa, voltaram os discípulos a interrogá-lo sobre
este assunto. E ele lhes disse: Quem repudiar sua mulher e casar com outra
comete adultério contra aquela. E, se ela repudiar seu marido e casar com
outro, comete adultério” (Marcos 10:1-12 - grifo nosso).

Em Marcos 10, tal como em Mateus 19, Jesus está sendo arguido pelos
fariseus sobre o tema do divórcio. Porém, as perguntas em cada um desses
Evangelhos são ligeiramente diferentes. Enquanto em Mateus a pergunta é
sobre os motivos para o repúdio, em Marcos a pergunta é se o repúdio é
lícito. Mateus registra um detalhe que não é mencionado por Marcos: a reação
dos discípulos diante do ensino de Jesus. E Marcos, por sua vez, fala sobre a
mulher que repudia seu marido, situação que não era contemplada pela lei. A
lei não falava nada sobre maridos repudiados. Porém, essa menção em Marcos
pode ter sido determinada pelo fato desse Evangelho ter sido escrito aos
gentios.
Já Lucas 16:16-18 apresenta um contexto distinto e trata do tema
divórcio de forma ainda mais resumida:

“A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo, vem sendo
anunciado o evangelho do Reino de Deus, e todo homem se esforça por
entrar nele. E é mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til sequer
da Lei. Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério; e
aquele que casa com a mulher repudiada pelo marido também comete
adultério” (Lucas 16:16-18 - grifo nosso).
Para estudarmos o divórcio à luz do Novo Testamento, também devemos
passar pelos textos em que o apóstolo Paulo trata desse tema. Geralmente,
qualquer abordagem sobre o divórcio passa por dois textos. O primeiro é
Romanos 7:1-4:

“Porventura, ignorais, irmãos (pois falo aos que conhecem a lei), que
a lei tem domínio sobre o homem toda a sua vida? Ora, a mulher casada
está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer,
desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera
se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o
marido, estará livre da lei e não será adúltera se contrair novas núpcias.
Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do
corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, aquele que ressuscitou
dentre os mortos, a fim de que frutifiquemos para Deus” (Romanos 7:1-4).

Por vezes, o texto acima é usado para mostrar que o casamento só pode
ser dissolvido pela morte. Porém, nesse texto em particular, é importante saber
que Paulo está usando como ilustração não a indissolubilidade do casamento,
mas sim a condição da mulher frente ao seu marido. Segundo a lei, a mulher
não tinha nada que pudesse fazer para sair debaixo do poder do marido. Paulo
fala que ela só seria livre pela morte do mesmo, assim como nós só saímos
debaixo do poder da lei pela morte. Porém, o apóstolo conhecia muito bem a
lei de Moisés, e escreveu para pessoas que também a conheciam (“falo aos
que conhecem a lei”), e a lei trazia a permissão para o repúdio e novo
casamento. Contudo, o repúdio era uma prerrogativa do marido. Ou seja, a
mesma lei que ligava a mulher ao marido era a que dizia que o marido poderia
repudiá-la. Mas a mulher, por si só, não tinha condição de libertar-se do
marido senão pela morte. Portanto, Paulo menciona a condição da mulher
casada, a mulher que tem marido, e não fala sobre a mulher repudiada, pois
esta não tinha mais marido. Para o argumento que o apóstolo desenvolve em
Romanos 7, não fazia sentido usar a ilustração da mulher repudiada, já que
ela, caso não se casasse com outro homem, ainda poderia retornar ao seu
marido. Mas a morte rompia definitivamente o vínculo conjugal, sem
possibilidade alguma de retorno. A viúva estava definitivamente livre do
marido.
O segundo texto de Paulo que precisamos ler para estudarmos o divórcio
é o capítulo 7 de I Coríntios, onde o apóstolo responde perguntas que haviam
lhe sido feitas anteriormente. Paulo inicia o capítulo dizendo “quanto ao que
me escrevestes…”, e partir daí começa a tratar de temas como a sexualidade,
o casamento, a separação, o celibato, a virgindade e a viuvez. Não temos as
perguntas que originalmente foram feitas a Paulo, mas a partir de suas resposta
podemos inferi-las.
Ao falar sobre a separação, Paulo não menciona a exceção por causa de
porneia. Entretanto, ele faz abordagens específicas para cada tipo de casal,
distinguindo duas situações: os casamentos em que ambos os cônjuges são
cristãos e os casamentos em que um dos cônjuges é incrédulo. Vejamos o
texto:

“Ora, aos casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se
separe do marido (se, porém, ela vier a separar-se, que não se case ou que
se reconcilie com seu marido); e que o marido não se aparte de sua mulher.
Aos mais digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem mulher incrédula, e
esta consente em morar com ele, não a abandone; e a mulher que tem
marido incrédulo, e este consente em viver com ela, não deixe o marido.
Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da esposa, e a esposa
incrédula é santificada no convívio do marido crente. Doutra sorte, os
vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos. Mas, se o descrente
quiser apartar-se, que se aparte; em tais casos, não fica sujeito à servidão
nem o irmão, nem a irmã; Deus vos tem chamado à paz” (I Coríntios 7:10-
15).

Neste livro, dedicaremos o capítulo 7 para o estudo das situações em


que um dos cônjuges é incrédulo. Até lá, tudo o que abordarmos diz respeito
ao casamento em que marido e mulher são cristãos.
Ainda em I Coríntios 7, ao tratar da liberdade que a viúva tem de casar
de novo, Paulo escreve:

“A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o


marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor” (I
Coríntios 7:39).
Por fim, é importante mencionar o texto de Hebreus 13:4, onde é
ressaltada a dignidade do casamento:

“Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem
mácula; porque Deus julgará os impuros e os adúlteros” (Hebreus 13:4).

Até quando dura o casamento?

As afirmações que o Novo Testamento faz sobre o casamento são


suficientemente claras para responder de forma definitiva a qualquer pergunta
sobre a duração do casamento.
Como já foi dito anteriormente, o casamento não é um contrato ou um
acordo onde as partes podem negociar cláusulas sobre duração, rescisão,
exclusividade etc. A verdade é que nem mesmo os papéis dos cônjuges são
estabelecidos por acordo ou negociação, pois o casamento é instituído por
Deus. Quando homem e mulher entram em aliança, eles aderem a uma
instituição cujo funcionamento foi determinado pelo Senhor.
Quando Deus criou o casamento também deu uma duração para o mesmo.
Foi Ele quem uniu o casal e, portanto, o casamento deveria durar enquanto
viverem os cônjuges. Como Jesus declarou: “o que Deus ajuntou não o
separe o homem” (Mateus 19:6). Não há dúvida alguma de que, com a morte
de um dos cônjuges, o outro se torna livre para contrair novas núpcias
(Romanos 7:2,3; I Coríntios 7:39; I Timóteo 5:14). Jesus deixou claro que o
casamento é uma instituição que existirá apenas durante a presente era, pois
“na ressurreição, nem casam, nem se dão em casamento” (Mateus 22:30).
Sendo assim, haveria pouco a se discutir sobre o divórcio, pois só
restaria um único ponto a ser estudado: a cláusula de exceção (Mateus 5:32 e
19:9). Poderíamos apenas discorrer sobre o significado de porneia, pois tudo
o que não se enquadrasse nessa exceção não poderia ser usado para dar base a
um divórcio.
Entretanto, apesar da clareza do ensino bíblico, ainda nos deparamos
com uma corrente muito disseminada no meio cristão que defende a ideia de
que, desde que o casal se divorcie legalmente, os ex-cônjuges estariam
livres para casar com quem quiserem. E isso poderia se repetir várias vezes,
sempre que houvesse um divorcio legalizado. Esse pensamento está bem
disseminado em várias igrejas evangélicas, novas ou antigas, pentecostais ou
não pentecostais. Não é raro encontrarmos pessoas que estão no terceiro ou
quarto casamento achando isso muito normal, pois, para eles, o pecado é não
se divorciar legalmente e passar a morar junto com alguém sem estar casado.
É possível que haja dúvidas sinceras sobre a abrangência da palavra
porneia na cláusula de exceção. Alguém pode ter dúvidas sobre que tipos de
pecados sexuais estariam inclusos nessa expressão, como estudaremos nos
próximos capítulos. Porém, é uma agressão frontal e direta à Palavra de Deus
supor que o divórcio seja permitido por alguma razão que não seja porneia.
Se o divórcio fosse lícito por qualquer motivo, Jesus teria respondido
afirmativamente à pergunta dos fariseus em Mateus 19:3. Mas não foi isso que
o Mestre fez. Pelo contrário, o Senhor afirmou categoricamente: “o que Deus
ajuntou não o separe o homem” (Mateus 19:6).
Os textos bíblicos que mencionamos neste capítulo nos mostram
claramente que:

1. o vínculo matrimonial é realizado pelo próprio Deus: “O que Deus


ajuntou”;

2. o vínculo matrimonial é também uma unidade física: “Uma só


carne” – é por isso que alguém que tem relações sexuais com um corpo
que não lhe pertence está adulterando;

3. o vínculo matrimonial não pode ser desfeito pelo homem: “Não


separe o homem” – as leis humanas podem ser contrárias, mas quem define
tudo sobre o casamento é Deus e a justiça do Reino. Portanto, o casamento
só poderia ser desfeito a partir do que o próprio Deus diz em Sua Palavra;

4. a vontade de Deus é que o vínculo dure enquanto os dois cônjuges


estão vivos: “A mulher está ligada ao marido enquanto ele viver” – só a
morte deveria separá-los;

5. a vontade de Deus é que os cônjuges não se separem: “Que a mulher


não se separe do marido... e que o marido não se aparte da sua mulher”.

Então, se Deus não quer que a pessoa se aparte, quanto mais que se
divorcie, pois Ele não quer “oficializar o repúdio”. A separação não está de
acordo com a vontade de Deus.
Ao adotarmos certa posição sobre um tema bíblico, precisamos refletir
sobre o impacto dessa posição sobre os textos que tratam do assunto. Se o
casamento pudesse ser dissolvido por qualquer motivo, como entenderíamos o
mandamento dados aos maridos para que estes amem suas esposas como
Cristo amou a igreja e deu sua vida por ela? (Efésios 5:25). Isso só pode ser
compreendido à luz da verdade de que a união conjugal foi planejada por
Deus para ser duradoura, sendo dissolvida, em regra, apenas pela morte de um
dos cônjuges.
Os mandamentos para os cônjuges não se resumem à fidelidade e a não
se divorciarem. Os maridos devem amar suas esposas como Cristo amou a
igreja, não devem tratá-las com amargura (Colossenses 3:19), e devem honrá-
las como vaso mais frágil que são (I Pedro 3:7). As esposas devem amar,
respeitar e se submeter a seus próprios maridos (Efésios 5:22-24, Colossenses
3:18, I Pedro 3:1-6; Tito 2:3-5).
À luz desses mandamentos podemos dizer que não basta não se
divorciar. O repúdio é algo que começa no coração. A pessoa rejeita em seu
interior, divorcia e repudia no exterior. Antes de expulsar alguém da sua casa
a pessoa o expulsa do seu coração. Em nossa sociedade, muitos homens estão
casados há 30, 40 anos, mas em seu coração já repudiaram suas esposas há
muito tempo. Se o pecado se resumisse ao divórcio, então esses homens
estariam bem diante de Deus. Porém, como mandamento é amar, eles estão
muito mal, pois mesmo casados, seguem sem amor com suas esposas.
Defender o divórcio por qualquer razão é pecar contra o Senhor e dar
sustentação para muitos adultérios. Um casamento não pode ser desfeito sob
desculpas como a incompatibilidade de gênios ou porque “o amor acabou”.
Jesus só menciona uma única exceção para o divórcio. Infelizmente, em nome
de doutrinas humanas, muitos pecados têm sido alimentados em meio à igreja.
Que o nosso coração se encha de temor a Deus e de fidelidade à Sua Palavra.

A relação entre repúdio (apoluo) e divórcio (apostasion) nas palavras


de Jesus

No capítulo anterior verificamos que o divórcio consistia na


oficialização do repúdio e dissolvia o vínculo conjugal, permitindo à mulher
um novo casamento sem ser considerada adúltera. Sem a carta de divórcio,
uma mulher repudiada não poderia contrair novas núpcias.
Já vimos que, no idioma grego, repúdio (apoluo) e divórcio
(apostasion) são palavras distintas. Enquanto apoluo significa despedir ou
mandar embora, tendo um sentido abrangente, apostasion é uma referência
mais restrita ao rompimento do casamento.
Ao analisarmos especificamente os versículos de Mateus 5:32, Mateus
19:9, Marcos 10:11; Lucas 16:18, vemos um pequeno detalhe: Jesus fala sobre
o homem que repudia sua mulher, e não menciona o verbo divorciar.

“Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher...” (Mateus
5:32).

“Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher...” (Mateus 19:9).

“E ele lhes disse: Quem repudiar sua mulher…” (Marcos 10:11).

“Quem repudiar sua mulher...” (Lucas 16:18).

O simples fato de Jesus falar sobre repúdio, sem mencionar o divórcio,


serve como base para duas teorias que chegam a conclusões diametralmente
opostas uma da outra: uma entende que o divórcio é permitido, e outra entende
que é totalmente proibido.
Para a primeira teoria69, uma vez que a palavra divórcio não é
mencionada, o divórcio seria permitido. Jesus teria condenado apenas o
repúdio sem dar carta de divórcio, pois assim a mulher repudiada não seria
liberta, ficaria presa ao seu marido e não poderia casar com outra pessoa.
Curiosamente, a segunda teoria70 parte do mesmo fato (o não uso da
palavra divórcio), mas chega à outra conclusão: o divórcio seria totalmente
proibido, uma vez que não é mencionado. O repúdio também seria proibido,
mas em caso de porneia a parte inocente poderia repudiar seu cônjuge,
todavia sem se divorciar dele. Em outras palavras, qualquer divórcio seria
proibido, e o repúdio só seria permitido em caso de porneia, mas sem
desfazer o casamento. Na prática, o repúdio seria uma separação de corpos
sem qualquer incidência sobre o vínculo conjugal.
Ambas as teorias fazem um jogo de palavras para tentar justificar pontos
de vista previamente estabelecidos e acabam por atrapalhar a leitura simples e
direta dos textos envolvidos.Há pelo menos seis razões que evidenciam o erro
da primeira teoria:

1. Na conversa entre Jesus e os fariseus, o tema é o repúdio com carta


divórcio. Os fariseus perguntaram “Por que mandou, então, Moisés, dar
carta de divórcio (apostasion) e repudiar (apoluo)?” (Mateus
19:7). “Tornaram eles: Moisés permitiu lavrar carta de divórcio e
repudiar” (Marcos 10:4). Tal pergunta deixa claro que o tema envolvia
o divórcio, e não a repúdio sem o divórcio. Se Jesus estivesse
respondendo sobre o repúdio sem divórcio, isso deveria estar claro no
texto.

2. Uma vez que Jesus declarou “Eu, porém, vos digo...”, não faria
sentido Ele repetir o mesmo conteúdo da lei e da tradição judaica. A lei já
determinava que o repúdio só poderia ocorrer com carta de divórcio
(Deuteronômio 24:1-4), e os judeus sabiam o que havia sido dito aos
antigos: “Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio”
(Mateus 5:31).

3. Jesus disse: “... o que casar com a repudiada comete


adultério” (Mateus 5:32 e 19:9; Lucas 16:18). Ao falar sobre o segundo
casamento da repudiada, certamente Jesus está se referindo a uma mulher
repudiada com carta de divórcio. Do contrário, ela não casaria com outro
homem naquele contexto cultural. A carta de divórcio era o que permitia à
mulher contrair novas núpcias.

4. Se Jesus estivesse apenas reprovando o homem que repudia sua


esposa sem dar carta de divórcio, a reação dos discípulos ficaria
totalmente sem sentido:

“Disseram-lhe os discípulos: Se essa é a condição do homem


relativamente à sua mulher, não convém casar” (Mateus 19:10). Os
discípulos se surpreenderam com o ensino de Jesus sobre a condição do
homem. Se Jesus estivesse apenas reprovando o repúdio sem divórcio, os
discípulos não ficariam surpresos, pois isso já era previsto na lei. As
escolas rabínicas não discutiam o procedimento para o repúdio, mas a
licitude dos motivos.

5. Se entendêssemos que Jesus condenou apenas o repúdio sem carta


de divórcio, a cláusula de exceção ficaria totalmente sem sentido. Vejamos
as consequências dessa interpretação sobre o texto de Mateus 19:9: “Quem
repudiar [sem carta de divórcio] sua mulher, não sendo por causa de
relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério”. Sob essa
ótica, ao mencionar a cláusula de exceção, Jesus teria permitido que o
homem traído por sua mulher a repudiasse sem se divorciar, e ele ainda
poderia casar com outra sem incorrer em adultério. Em outros termos, a
mulher que caiu em imoralidade sexual poderia ser repudiada, mas, uma
vez que não houve divórcio, ela ficaria presa ao marido, enquanto este
ficaria livre para um novo casamento. Isso é um verdadeiro absurdo! Ao
adotar certa interpretação precisamos pensar em todas as suas
consequências e reflexos sobre o ensino bíblico.

6. Entender que Jesus reprovou apenas o repúdio sem divórcio é se


opor frontalmente a todo o ensino do Novo Testamento sobre o tema. Jesus
é claro em dizer que o que Deus uniu não deve ser separado pelo homem.
O divórcio é um corte do vínculo conjugal e seu efeito é a separação. Não
faria sentido algum Jesus reprovar a separação, para depois dizer que um
homem pode repudiar sua esposa desde que a libere pelo divórcio. Em
regra, o repúdio, seja escrito ou falado, com ou sem carta de divórcio, é
reprovado por Jesus.

Quanto à segundo teoria, pela qual o divórcio seria sempre proibido e o


repúdio permitido em caso de porneia, a refutamos por duas razões muito
simples:

1. Essa teoria repete o mesmo erro da anterior, pois não considera o


contexto da fala de Jesus no diálogo com os fariseus. Ali, o tema tratado é
o repúdio com carta de divórcio. Por isso, se Jesus contemplou uma
exceção para o repúdio, necessariamente o divórcio estaria incluído nela.
Pela lei, o repúdio era o último passo de um procedimento, e deveria ser
precedido pela emissão de carta de divórcio e entrega da mesma à mulher.
Só então ela poderia ser despedida (repudiada).

2. O outro motivo pelo qual refutamos a segunda teoria é que, se Jesus


tivesse permitido o repúdio sem divórcio em caso de porneia, então a
leitura da cláusula de exceção ficaria assim: “Eu, porém, vos digo: quem
repudiar [sem carta de divórcio] sua mulher, não sendo por causa de
relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério” (Mateus
19:9a). Ora, se existe uma exceção para o repúdio em caso de porneia, e
se esta não inclui o divórcio, então o homem poderia repudiar sua mulher,
casar com outra, e ainda assim não seria adúltero. Estaríamos diante de
uma situação de bigamia, já que o vínculo do primeiro casamento não foi
rompido. Por esta razão, é irresponsável determinar um significado para
repúdio e não conferir todas as consequências disso. Para nós é
inconcebível pensar que Jesus permitiu o repúdio em caso de porneia sem
que isso implicasse divórcio.

É evidente que todas as vezes que são registradas as palavras de Jesus


sobre o repúdio, ele também estava se referindo ao divórcio. Não se deve
separar aquilo que Deus uniu, nem pelo mero repúdio e nem pela dissolução
do casamento.
Se contássemos apenas com as narrativas dos Evangelhos de Marcos e
de Lucas e com os escritos de Paulo, constataríamos a indissolubilidade total
do casamento, sem exceção alguma. Entretanto, o Evangelho Mateus registra
uma única exceção, e o faz em duas ocasiões: no sermão do monte e no
diálogo com os fariseus.
O simples fato de que a exceção é mencionada apenas em Mateus nos
mostra que, independentemente do significado de porneia, o divórcio teria um
caráter excepcionalíssimo. O ensino geral e abundante do Novo Testamento é:
o que Deus uniu não deve ser separado pelo homem. Isso deveria dirigir todo
o relacionamento entre marido e mulher. Entretanto, ainda ficam algumas
perguntas: como lidar com a existência da cláusula de exceção? Ela permitiria
o divórcio e o novo casamento para a parte inocente, que não cometeu
porneia? E como ficaria a parte culpada de porneia?
No próximo capítulo nos ocuparemos de estudar o significado da palavra
porneia e também trataremos da ausência dessa exceção nos outros textos
bíblicos. Entretanto, agora nos dedicaremos a analisar as implicações dessa
existência da cláusula de exceção em Mateus 5:32 e 19:9.

Implicações da existência de uma cláusula de exceção

O fato da cláusula de exceção ser mencionada somente no Evangelho de


Mateus não é razão para que ela seja esquecida. Não podemos ignorá-la ou
fingir que ela não existe. Precisamos ter cuidado e atenção quanto a este fato, e
refletirmos, conduzidos pelo Espírito Santo, sobre quais são as implicações da
existência dessa cláusula de exceção. Vejamos, mais uma vez, o ensino de
Jesus sobre o repúdio sem mencionar a cláusula de exceção, como a aparece
em Marcos e Lucas:

“Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra
aquela. E, se ela repudiar seu marido e casar com outro, comete adultério”
(Marcos 10:11,12 - grifo nosso).

“Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério; e


aquele que casa com a mulher repudiada pelo marido também comete
adultério” (Lucas 16:18 - grifo nosso).

A primeira coisa a ser destacada é que os versículos acima não tratam


apenas do repúdio, mas do repúdio e novo casamento em conjunto. Esses
textos falam sobre dois homens adúlteros: o que repudiou sua mulher e casou-
se com outra e o que casou com a repudiada. Entretanto, o adultério do
segundo só é possível porque o primeiro repudiou sua mulher, expondo-a a
tornar-se adúltera (Mateus 5:32)
É importante observar que na oração “quem repudiar sua mulher e
casar com outra comete adultério”, o verbo principal é moichatai [comete
adultério]. Sem esse verbo, o texto ficaria completamente sem sentido71.
“Comete adultério” é a principal ação descrita no texto. E quem é o sujeito
dessa ação, ou seja, quem comete adultério? É o homem que se enquadra em
duas condições: 1 – Repudiou sua esposa; 2 – casou-se com outra mulher. A
conjunção “e” (gr. kai) está unindo dois elementos que descrevem o sujeito da
ação. Para cometer adultério, esse homem teria que estar nessas duas
condições, que não podem estar separadas uma da outra.
Não podemos considerar que está em adultério o homem que apenas
repudia sua esposa. Embora seja responsável por expô-la ao adultério, ele
mesmo não estará em adultério se optar por não casar com outra mulher.
Também não podemos analisar em separado a condição do homem que se casa
pela segunda vez, pois neste caso nem mesmo os viúvos poderiam casar de
novo. Para que seja configurado um adultério tem que haver duas condições,
que colocadas numa equação ficariam assim:

Repúdio + Novo Casamento = Adultério


Porém, Mateus menciona uma exceção, que exclui do conceito de
adúltero aquele que repudia sua mulher por causa de porneia e casa com
outra. Se a exceção não produzisse esse efeito, ela não teria sentido algum,
pois em qualquer circunstância, por causa de porneia ou não, o homem que
repudia sua mulher e casa com outra sempre cometeria adultério.
Preferimos analisar as implicações da cláusula de exceção antes de
analisarmos o significado de porneia por uma razão muito simples: qualquer
que seja a sua abrangência, as implicações da exceção serão as mesmas72. Um
segundo casamento depois do repúdio por causa de porneia não seria
adultério. Portanto, só nos restaria entender o significado do termo porneia, o
que faremos no próximo capítulo. Se colocássemos a exceção em uma
equação, teríamos isso:

Repúdio (não sendo por causa de porneia) + Novo


Casamento = Adultério

Repúdio (por causa de porneia) + Novo Casamento


≠ Adultério
Se o repúdio por causa de porneia seguido de novo casamento não é
adultério, logo é porque houve a dissolução do vínculo conjugal.

A exceção para o divórcio permite um novo casamento?

Alguns estudiosos admitem a possibilidade do divórcio em caso de


porneia, mas não admitem a possibilidade de um novo casamento73. A cláusula
de exceção teria relevância apenas para determinar a licitude de um divórcio,
mas não para autorizar um segundo casamento, seja para a parte inocente, seja
para a parte culpada de porneia. O divórcio, lícito ou ilícito, nunca
dissolveria o vínculo conjugal74.

Esse posicionamento pode ser refutado pelas seguintes razões:

1. Já vimos que duas situações precisam ocorrer para a configuração do


adultério descrito em Mateus 19:9: “repudiar sua mulher” e “casar-se com
outra”. Ao mencionar uma exceção à primeira situação, Jesus excluiu do
conceito de adúltero todos os que se enquadram na referida exceção. Ainda
que cumpra a segunda a situação (casar-se com outra), não cometerá
adultério aquele que foi excluído da primeira. Isso só é possível porque o
primeiro casamento do homem que repudiou por causa de porneia está
desfeito.

2. Alguns afirmam que se a cláusula de exceção permitisse o novo


casamento, ela deveria aparecer depois da cláusula do segundo casamento
(“e casar com outra...”). Entretanto, em qualquer lugar que fosse
mencionada, a cláusula de exceção sempre estaria excluindo alguém da
condição de adúltero75. Vejamos como a exceção ficaria se colocada em
outro lugar da frase:

“[...] não sendo por causa de porneia, quem repudiar sua mulher e casar
com outra comete adultério [...]”.

“[...] quem repudiar sua mulher e casar com outra, não sendo por causa de
porneia, comete adultério [...]”.

“[...] quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério, não
sendo por causa de porneia [...]”.

As situações abrangidas pela cláusula de exceção não podem ser


consideradas adultério. Em Mateus 19:9, a cláusula foi colocada na melhor
posição, pois porneia se refere ao motivo do repúdio. Se a exceção fosse
mencionada em outro lugar da frase, poderia dar impressão de que, para
que não fosse configurado um adultério, tanto o repúdio como o novo
casamento teriam que ser por causa de porneia. Mas um casamento por
causa de porneia não seria pecaminoso? Não faria muito sentido se o texto
falasse de alguém que casou com outra mulher por causa de porneia, mas
sim daquele que repudiou por causa disso. O que deve ser considerado é o
motivo do repúdio e não o do novo casamento. Se o repúdio é ilícito, esse
fato por si só já condenaria o segundo casamento. Uma vez que o repúdio
não foi por causa de porneia, o segundo casamento será um adultério,
qualquer que seja a sua razão.

3. Sabemos que em Mateus 19:9 Jesus está falando do homem que


repudia sua mulher com carta de divórcio. Todo o contexto nos mostra isso.
Sob a lei, o divórcio cortava o vínculo conjugal, e não há nada nas
palavras de Jesus que nos permita deduzir que Ele teria mudado a natureza,
os efeitos ou o significado das palavras “repúdio” e “divórcio”. Apesar de
ter restringido os motivos, Jesus não mudou o conceito do divórcio. Os
judeus, a quem Jesus falava, entendiam naturalmente que um repúdio
legítimo implicava dissolução do casamento e a possibilidade de contrair
novas núpcias. Já vimos que, entre os judeus, o que era essencial na carta
de divórcio era a declaração de que a mulher era livre para casar com
qualquer um76. O mundo judeu não conhecia uma separação legal que não
permitisse um novo casamento.

Por essas razões, não temos porque pensarmos que Jesus teria permitido o
repúdio em caso de imoralidade sexual, sem permitir com isso o segundo
casamento.
Entretanto, fica uma pergunta: Depois de receber o divórcio da parte
inocente, a parte culpada de porneia poderá casar-se novamente? Ora, se o
vínculo conjugal foi dissolvido, o foi para ambos os cônjuges. Não há como
um estar livre e outro permanecer casado. Além disso, se o novo casamento da
mulher repudiada por causa de porneia fosse adultério, então qual seria o
efeito da cláusula de exceção para o marido? Essa cláusula não teria efeito
prático algum, pois o marido sempre poderia ser acusado de fazer sua mulher
adulterar, já que, qualquer que fosse o motivo do divórcio, ela sempre se
cometeria adultério ao se casar novamente77. Isso retiraria todo o sentido da
cláusula de exceção.
Para algumas pessoas, ao admitir um novo casamento para a parte
culpada, a igreja estaria rebaixando seu padrão moral, “alargando a porta
estreita” e premiando o pecado. Como uma pessoa que se entregou à
imoralidade, sendo infiel ao seu cônjuge, ainda teria a possibilidade de casar-
se novamente? Esse questionamento surge pela confusão que é feita entre novo
casamento e perdão de pecados. As duas coisas não têm relação alguma. O
fato de poder casar de novo não implica perdão automático da imoralidade
anteriormente cometida. Afinal, o perdão de pecados envolve arrependimento
e confissão (I João 1:7-9).
Isso pode ser entendido quando comparamos com a situação de um casal
de solteiros que vivem em fornicação, mas decidem casar por que desejam ter
uma festa. Apesar das relações sexuais após o casamento serem lícitas, isso
não significa que estão perdoados da fornicação anteriormente cometida, pois
é preciso arrependimento. Da mesma forma, o cônjuge que cai em adultério e
decide permanecer casado, mas ocultando seu pecado, não é perdoado
automaticamente por isso. Nem a permanência no casamento, nem o novo
casamento implicam perdão do adultério cometido.
Sobre o perdão, podemos nos lembrar da situação envolvendo Davi e
Bate-Seba. Depois da morte de Urias, o casamento entre Davi e Bate-Seba era
lícito. Contudo, a licitude desse casamento não isentou Davi de ser duramente
repreendido e corrigido pelo seu adultério e por ter promovido a morte de
Urias. Davi teve que admitir: “Pequei contra o SENHOR” (II Samuel 12:13).
Por vezes, aqueles que não admitem qualquer possibilidade de novo
casamento pós-divórcio argumentam que o conjunto dos escritos cristãos dos
cinco primeiros séculos (as obras dos chamados Pais da Igreja e outros
autores) seriam unânimes em condenar qualquer novo casamento após o
divorcio, mesmo que este tivesse ocorrido por causa de porneia. A única
exceção a esse pensamento seria de Ambrosiaster78.
Entretanto, há algumas coisas que precisamos considerar. Até mesmo
pesquisadores que defendem essa unanimidade nos primeiros séculos da era
cristã admitem que existem alguns escritos duvidosos ou obscuros79. Há textos
que não são conclusivos quanto à condenação do segundo casamento80.
Portanto, o máximo que poderíamos concluir é que havia um pensamento
majoritário quanto à condenação do novo casamento, mas não necessariamente
unânime. E há ainda, em certos casos, evidente tolerância com o segundo
casamento após o divórcio, como acontece em textos de Epifânio de
Salamina81, Basílio de Cesareia82 e outros.
Outro ponto que precisamos considerar é que, mesmo entre os escritores
que condenaram o segundo casamento, não há uma concordância sobre todas
as questões que envolvem esse assunto. Por exemplo, Hermas afirma que o
marido que vivesse com uma mulher adúltera tinha a obrigação de repudiá-la
para não se tornar cúmplice do seu pecado, e deveria ficar sozinho
aguardando o arrependimento da esposa83. Já para Agostinho, o repúdio em
caso de adultério seria uma permissão, e não uma obrigação84. Havia, nos
primeiros séculos, quem condenasse o segundo casamento de viúvos.
Por fim, o fato das obras dos pais da igreja estarem cronologicamente
mais próximas dos apóstolos, não significa que eram mais fiéis ao ensino
deles. Vemos entre os pais da igreja uma crescente influência do ascetismo,
afetando suas visões sobre o casamento. Muito da discussão patrística dizia
respeito à superioridade do celibato, da virgindade e da viuvez em relação ao
casamento85, e havia até mesmo quem ensinasse a abstinência de relações
sexuais dentro do próprio casamento, contrariamente ao que Paulo ensinou em
I Coríntios 7:1-6. Portanto, devemos ter cuidado para não confiar demais em
suas conclusões.
À luz das Escrituras, uma vez que se apresenta uma exceção para o
divórcio não há razão para supormos que não haveria possiblidade de novo
casamento em tal caso. Entretanto, o mais importante é que, seja qual for o
significado da cláusula de exceção, ela não recebe ênfase nos textos de Mateus
5:32 e 19:9. Não se deve permitir que a preocupação com uma exceção
obscureça o fato de o repúdio ser reprovado por qualquer outra razão.
A verdade é que o ensino de Jesus veio para colocar o esclarecimento
final sobre o tema do divórcio. Porém, até hoje, os homens encontram muitas
formas de tentar mudar o ensino do Senhor para alargar as possibilidades de
divórcio. Entretanto, há certas correntes, por zelo para proteger a instituição
do casamento, ignoram ou descartam a existência da cláusula de exceção. Para
isso, buscam dar um significado extremamente restrito ao termo porneia,
tornando a exceção praticamente inexistente. Por isso, no próximo capítulo
analisaremos o significado dessa expressão grega.
Capítulo 4
A EXCEÇÃO PARA O DIVÓRCIO E O
NOVO CASAMENTO
Vimos no capítulo anterior que, entre os religiosos da época de Jesus,
havia um debate sobre os motivos para o repúdio. Esse debate girava em torno
do significado da expressão “coisa indecente” (erwath dabar, no hebraico),
registrada em Deuteronômio 24. Porém, independentemente do significado
dessa expressão, Jesus trouxe uma resposta definitiva sobre o assunto quando,
ao introduzir seu ensino sobre o tema, declarou: “Eu, porém, vos digo...”
(Mateus 5:32; 19:9). O ensino de Jesus sobre o repúdio deveria estar claro
para todos nós.
Entretanto, passados 2.000 anos desde a declaração do Mestre, os
cristãos ainda se encontram em debates sobre esse tema. A discussão agora
não é apenas sobre o significado de “coisa indecente”, mas também sobre a
cláusula de exceção mencionada duas vezes no Evangelho de Mateus: “exceto
em caso de porneia”, “não sendo por causa de porneia”. Enquanto os judeus
debatiam o significado de uma expressão hebraica, os cristãos, infelizmente,
continuam debatendo, mudando apenas o idioma: agora a discussão é sobre
uma palavra grega.
Não cremos que Jesus ensinou algo para perpetuar os debates sobre os
motivos para o divórcio. Qualquer que seja o significado da palavra porneia,
não podemos crer que ela tenha sido usada no Evangelho de Mateus de forma
que deixasse seus leitores originais em dúvida sobre a abrangência da
cláusula de exceção para o divórcio.
Já vimos que, segundo Mateus 19:9, o primeiro homem mencionado
comete adultério quando se enquadra em duas condições: “repudiou sua
mulher” e “casou-se com outra”. Porém, ao mencionar a exceção, Jesus retira
da primeira condição os que repudiam por causa de porneia. Estes, por serem
excluídos da primeira condição, não podem ser tidos por adúlteros ao se
casarem novamente. O Senhor cita um único motivo pelo qual pode ocorrer a
dissolução do vínculo conjugal.
Se o ensino sobre divórcio e novo casamento se fundamentasse
exclusivamente nos Evangelhos Marcos e de Lucas, ou ainda nas declarações
de Paulo, veríamos a indissolubilidade total do casamento, sem menção a
qualquer cláusula de exceção para o divórcio entre um casal de discípulos de
Jesus86. Porém, os textos de Mateus criam um problema para os que acreditam
que nunca pode haver um novo casamento de uma pessoa divorciada. Quem
adota tal pensamento precisa fazer todo um esforço interpretativo na tentativa
de reduzir ao máximo o significado da cláusula de exceção, a ponto desta se
tornar uma “exceção aparente”.
Quem entende que não há nenhuma hipótese de novo casamento acaba
por atribuir um significado tão restrito à exceção, que ela fica esvaziada de
importância87. Há quem defenda, por exemplo, que a exceção caberia apenas
para casamentos inválidos ou que só valeria para casamentos ainda não
consumados, ou seja, em caso de sexo pré-marital.
Por isso, neste capítulo é necessário que nos aprofundemos no
significado da palavra porneia.

A cláusula de exceção para o divórcio: o significado de porneia

Sabemos que os discursos de Jesus provavelmente foram proferidos em


aramaico, idioma popular na Palestina naqueles tempos. Entretanto,
independentemente de qual tenha sido a palavra aramaica utilizada por Jesus
na cláusula de exceção em Mateus 5:32 e 19:9, ela foi traduzida para o idioma
grego como porneia, e assim chegou aos nossos dias. Poderíamos ler o texto
de Mateus 19:9 assim:

“Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa
de porneia, e casar com outra comete adultério e o que casar com a
repudiada comete adultério”

Já houve quem defendesse que a cláusula de exceção não era autêntica,


sendo um acréscimo aos textos originais. Porém, tal posição já foi amplamente
abandonada88. Não há nenhum manuscrito grego conhecido que não apresente a
cláusula de exceção89 em Mateus 5:32 e 19:9. Na impossibilidade de
eliminação dessa cláusula, alguns optaram por traduções forçadas a fim de
sustentar certos pontos de vista90.
Qual é a tradução adequada para porneia? Vejamos abaixo como o texto
de Mateus 19:9 é apresentado nas mais conhecidas versões em língua
portuguesa, e como a palavra porneia é traduzida nos trechos sublinhados:

- Almeida Revista e Atualizada (ARA): “Eu, porém, vos digo: quem


repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e
casar com outra comete adultério e o que casar com a repudiada comete
adultério”.

- Almeida Revista e Corrigida (ARC): “Eu vos digo, porém, que


qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e
casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também
comete adultério”.

- Almeida Corrigida Fiel (ACF): “Eu vos digo, porém, que qualquer
que repudiar sua mulher, não sendo por causa de fornicação, e casar com
outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete
adultério”.

- Nova Versão Internacional (NVI): “Eu lhes digo que todo aquele que
se divorciar de sua mulher, exceto por imoralidade sexual, e se casar com
outra mulher, estará cometendo adultério”.

- Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “Portanto, eu afirmo


a vocês o seguinte: o homem que mandar a sua esposa embora, a não ser
em caso de adultério, se tornará adúltero se casar com outra mulher”.

- Nova Versão Transformadora (NVT) “E eu lhes digo o seguinte:


quem se divorciar de sua esposa, o que só poderá fazer em caso de
imoralidade, e se casar com outra, cometerá adultério”.

Vimos seis traduções para a palavra porneia: relações sexuais ilícitas,


prostituição, fornicação, imoralidade sexual, adultério e imoralidade. Qual é a
melhor tradução? Encontramos a resposta para essa pergunta ao constatarmos
que essa palavra não aparece apenas em Mateus 5:32 e 19:9, mas em muitos
outros textos do Novo Testamento, sendo sempre usada para fazer referência a
uma série de pecados sexuais, e não a um único pecado especificamente.
Não existe um só tipo de relação sexual ilícita: a relação entre duas
pessoas não casadas comumente é chamada de fornicação (embora
originalmente esse palavra tenha um significado mais amplo, referindo-se à
imoralidade sexual)91; se uma dessas pessoas for casada, o pecado é adultério;
se essas pessoas forem parentes próximos, ocorre o incesto; se são pessoas do
mesmo sexo, homossexualismo; se a relação se dá entre um ser humano e um
animal, o pecado é a bestialidade.

A palavra porneia no Novo Testamento

O substantivo porneia, o verbo porneuo e suas derivações92 são usados


no Novo Testamento para se referir a qualquer pecado sexual93. Uma análise
exaustiva do uso dessa palavra nas Escrituras nos ajudará a compreender a
cláusula de exceção para o divórcio.

1. Em Atos 15:19, 20 e 21:25 é mencionada uma carta escrita aos


cristãos gentios, orientando-os a se absterem das coisas sacrificadas a
ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e da porneia. Essas
orientações estão listadas na mesma ordem que aparecem as proibições94
de Levítico 17 e 18, entre as quais estão relações sexuais ilícitas como o
incesto (Lv. 18:6-17), o adultério (Lv. 18:20), o homossexualismo (Lv.
18:22) e a bestialidade (Lv. 18:23). A carta escrita em Atos 15 foi enviada
às igrejas gentílicas, compostas por pessoas de todos os estados civis. Por
isso, não se pode acreditar que o dever de abster-se de porneia dizia
respeito apenas ao adultério ou à fornicação, mas sim à qualquer
imoralidade sexual. Além disso, sabemos que Paulo participou da
elaboração dessa carta, e o ensino posterior do apóstolo só confirma que
porneia é uma referência às relações sexuais ilícitas

2. Em I Coríntios 5:1, Paulo usa a palavra porneia para se referir à


relação incestuosa entre um homem e sua madrasta. Na verdade, o apóstolo
enquadra essa relação incestuosa como um tipo de porneia, e por isso
sabemos que essa palavra abarca mais do que o incesto: “Geralmente, se
ouve que há entre vós imoralidade (porneia) e imoralidade (porneia) tal,
como nem mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a
mulher de seu próprio pai”.

3. Em I Coríntios 6:13-17, porneia descreve envolvimento sexual entre


um homem e uma prostituta (porne). Se esse homem for casado, sabemos
que ele comete adultério contra sua esposa95. Porém, Paulo usa a palavra
porneia, pois ela se aplica a qualquer relação sexual ilícita, inclusive o
adultério.

4. Como vimos nos dois pontos anteriores, Paulo usa a mesma palavra
(porneia) para descrever pecados sexuais distintos: a relação incestuosa e
o sexo por pagamento. Isso só é possível porque, para o apóstolo, porneia
é qualquer pecado sexual, que ele chama de “pecado contra o corpo”.
Podemos conferir isso com clareza em I Coríntios 6:18 – “Fugi da
impureza (porneia). Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora
do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade (porneuo) peca contra o
próprio corpo” (grifo nosso).

5. Logo após falar que a porneia é o pecado contra o corpo, Paulo


ensina sobre o cuidado que o cristão deve ter para não cair nesse pecado:
“Quanto ao que me escrevestes, é bom que o homem não toque em mulher;
mas, por causa da impureza (porneia), cada um tenha a sua própria esposa,
e cada uma, o seu próprio marido” (I Coríntios 7:1,2). Uma leitura isolada
desses versículos, não considerando os contextos anteriores (capítulos 5 e
6) e posteriores (versículos seguintes), pode levar o leitor a concluir que
Paulo usou o termo porneia para se referir apenas à fornicação (sexo pré-
marital). Dessa forma, uma vez casado, o cristão estaria guardado da
porneia. Porém, tal conclusão é equivocada, pois nos versículos seguintes
o apóstolo ensina que marido e mulher devem zelar pela vida sexual no
casamento “para que Satanás não vos tente por causa da incontinência” (vs.
3 ao 5). À luz desse contexto, a que pecado um casado estaria tentado por
não manter a vida sexual no casamento? Certamente é a porneia, pois esse
é o pecado que Paulo está tratando no contexto. A simples condição de
casado não evita que uma pessoa cometa a porneia, mas é necessário
cuidar da vida sexual no casamento, pois esse pecado pode atingir tanto
solteiros como casados.

6. Em I Coríntios 10:8, Paulo descreve como porneia o pecado dos


israelitas mencionado em Números 25, no qual eles se prostituíram com as
mulheres moabitas. Esse episódio da historia de Israel é usado para
advertir os cristãos coríntios: “E não pratiquemos a imoralidade
(porneuo), como alguns deles o fizeram, e caíram, num só dia vinte e três
mil”. No contexto, Paulo orientava a igreja em Corinto, para que aqueles
irmãos se guardassem de diversos pecados nos quais todos estavam
sujeitos a cair (cobiça, idolatria, murmuração etc). Sendo assim, não faria
sentido algum o apóstolo mencionar a palavra porneia para falar
unicamente de sexo pré-marital. Da mesma forma, no exemplo da história
de Israel citado anteriormente fica evidente a amplitude da palavra
porneia, uma vez que, entre aqueles homens (23 mil) que se prostituíram
com as moabitas, é muito provável que estivessem tanto homens solteiros
como casados, e portanto mais de um tipo de relação sexual ilícita.

7. Em II Coríntios 12:21, Paulo diz: “Receio que, indo outra vez, o meu
Deus me humilhe no meio de vós, e eu venha a chorar por muitos que,
outrora, pecaram e não se arrependeram da impureza, prostituição
(porneia) e lascívia que cometeram” (grifo nosso). Considerando tudo o
que Paulo escreveu sobre porneia na primeira carta aos Coríntios, não
temos porque pensar que na segunda carta essa palavra ganharia um
significado diferente, uma vez que tratava-se de um pecado presente
naquela comunidade, e que Paulo já os tinha advertido sobre seus riscos.
Mais uma vez vemos que porneia é mencionada como referência à
imoralidade sexual.

8. Em I Tessalonicenses 4:3, Paulo escreve sobre o dever que temos de


nos abster da porneia. Esse mandamento que está associado à santificação
e à vontade de Deus: “Pois esta é a vontade de Deus: a vossa
santificação, que vos abstenhais da prostituição (porneia)”. Essa
orientação foi dada para toda uma igreja, e por isso não podemos supor
que Paulo estava falando exclusivamente sobre a abstenção do sexo pré-
marital. O mandamento diz respeito à abstenção das relações sexuais
ilícitas em geral.

9. Ainda nos escritos de Paulo, a porneia é uma das obras da carne


(Gálatas 5:19), algo que devemos fazer morrer (Colossenses 3:5) e que
nem mesmo deve ser nomeada entre nós, como convém a santos (Efésios
5:3, onde é traduzida como impudicícia - ARA). Não podemos pensar que,
nesses textos, o autor está mencionando um pecado sexual específico em
detrimento de todos os outros, pois porneia se refere à imoralidade sexual.

10. Em Judas 7, uma derivação do verbo porneuo (ekporneuo, que dá a


ideia de entregar-se à prostituição ou imoralidade) é usada para falar do
pecado de Sodoma e Gomorra, que sabemos que foi o homossexualismo.

11. O pecado dos israelitas em Números 25 também é mencionado no


livro de Apocalipse como porneia, quando Jesus fala sobre a doutrina de
Balaão: “o qual ensinava a Balaque a armar ciladas diante dos filhos de
Israel para comerem coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a
prostituição (porneuo)” (Apocalipse 2:14 - grifo nosso).

12. Em Apocalipse 2:20, Jesus declara que uma falsa profetisa chamada
Jezabel seduzia os servos de Deus a praticarem a porneia: “Tenho, porém,
contra ti o tolerares que essa mulher, Jezabel, que a si mesma se declara
profetisa, não somente ensine, mas ainda seduza os meus servos a
praticarem a prostituição (porneuo) e a comerem coisas sacrificadas aos
ídolos”. Nos versículos seguintes (21 e 22), o Senhor declara que deu
tempo àquela mulher para que se arrependesse da sua prostituição e que,
por fim, Ele a prostrava de cama e em grande tribulação os que com ela
adulteram (aqui aparece o verbo moicheuo), caso não se arrependessem
das obras que ela incitava: “Dei-lhe tempo para que se arrependesse de
sua prostituição (porneia). Eis que a prostro de cama, bem como em
grande tribulação os que com ela adulteram (moicheuo), caso não se
arrependam das obras que ela incita”. Ao mesmo tempo em que Jesus diz
que Jezabel incitava os servos de Deus à porneia, também diz que os que
foram seduzidos por ela cometeram moicheia. Essa troca de expressões
(porneia por moicheia) ocorre porque a primeira se se refere
genericamente à imoralidade sexual, enquanto que a segunda é o pecado
especifico de adultério.

13. Em João 8:38-45, num diálogo com alguns judeus, Jesus questiona a
paternidade dos mesmos ao dizer que, apesar de serem descendentes de
Abraão, não faziam a obra daquele a quem chamavam de pai (vs. 39, 40).
Jesus declarou que eles tinham outro pai (v. 41), que era o diabo (v. 44).
Para se defenderem, aqueles judeus declararam: “Nós não somos
bastardos (nascidos de porneia); temos um pai, que é Deus” (v. 41). Há
quem afirme que essa declaração foi feita para, indiretamente, acusar Jesus
de ter nascido de uma relação pré-marital, da suposta fornicação de Maria
com outro homem que não era José, pois não criam no nascimento virginal.
Entretanto, atribuir essa intenção à fala dos judeus não passa de uma
especulação. O contexto apenas mostra que eles estavam se defendendo da
afirmação de Jesus. Além disso, não podemos afirmar que eles tinham
alguma informação sobre o nascimento virginal. Só podemos constatar que
a expressão “não somos nascidos de porneia” aparece em contraste com a
declaração “temos um pai”. Portanto, o máximo que podemos concluir à
luz desse texto é que “nascidos de porneia” são filhos de pais
desconhecidos ou “filhos ilegítimos”, que podem ser fruto de qualquer
relação sexual ilícita, e não apenas de relações pré-maritais96.

14. Em Mateus 15:19 e Marcos 7:21, tanto porneia como moicheia são
mencionadas entre os males que procedem do coração. Em função das duas
palavras aparecerem juntas, há que afirme que necessariamente moicheia
(adultério) estaria excluída do conceito de porneia, que por sua vez teria
um significado mais restrito, não abrangendo a generalidade das relações
sexuais ilícita. Entretanto, como demonstraremos mais adiante ao
respondermos algumas objeções, o simples fato das palavras aparecerem
juntas não determina que o conceito de porneia seja tão restrito a ponto de
não abranger o adultério.

Se retornarmos ao texto de I Coríntios 6:18, veremos com nitidez e


clareza o conceito de porneia. Qualquer pecado é cometido fora corpo, mas a
porneia é contra o corpo. Por isso, se afirmássemos que porneia se resume a
um específico pecado sexual, forçosamente teríamos que dizer que qualquer
outro pecado sexual seria cometido fora do corpo.

“... o corpo não é para a impureza [porneia], mas, para o Senhor, e o


Senhor, para o corpo... Fugi da impureza [porneia]. Qualquer outro
pecado que uma pessoa cometer é fora do corpo; mas aquele que
pratica a imoralidade [porneuo] peca contra o próprio corpo. Acaso,
não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está
em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?
Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no
vosso corpo” (I Coríntios 6:13,18-20 - grifo nosso).

Ou seja, se porneia estivesse restrita apenas sexo pré-marital, teríamos


que dizer que o adultério, o incesto, o homossexualismo e a bestialidade são
pecados cometidos fora do corpo. Mas isso seria um grande equívoco. Todos
esses pecados são contra o corpo, são porneia, e ofendem o santuário do
Espírito Santo, que somos nós.

O uso da palavra porneia no Antigo Testamento (Septuaginta)

Quando o Antigo Testamento foi traduzido do hebraico para o grego na


versão conhecida como Septuaginta ou LXX (elaborada entre os séculos III a I
a.C), a palavra hebraica que traz o conceito de imoralidade ou prostituição
(zanah) foi traduzida como porneia e outras palavras da mesma família, como
porneuo, ekporneuo etc. Em todos esses textos são feitas menções a diversas
condutas sexuais ilícitas, por exemplo: a) a fornicação de uma mulher solteira
(Deuteronômio 22:21); b) a infidelidade de uma mulher prometida ao seu
cunhado em função do levirato (como Tamar foi julgada em Gênesis 38:24); c)
a prostituição associada ao culto aos ídolos (Êxodo 34:16); d) o envolvimento
sexual entre homens israelitas e mulheres moabitas (Números 25); e) a
prostituição de uma mulher casada (Oséias 2:2, 3:3; Amós 7:17).
Em um sentido simbólico, porneia também se refere à infidelidade
espiritual de Israel, especialmente em textos onde a relação entre Deus e Israel
é descrita como casamento (Números 14:33; Deuteronômio 31:16; II Crônicas
21:13; Salmo 106:39; Jeremias 3:1-10; Ezequiel 16 e 23).
Vamos analisar com mais detalhes alguns usos dessa palavra na
Septuaginta:

1. A infidelidade de Gômer, esposa do profeta Oséias, é descrita como


porneia (Oséias 2:2,5; 3:3). Se ela foi repreendida por praticar a porneia,
logo, para os tradutores da LXX, essa palavra não poderia abranger apenas
o sexo pré-marital. Em Oséias 2:2 [2:4], os pecados de Gômer são
simultaneamente descritos como porneia e moicheia: “Repreendei vossa
mãe, repreendei-a, porque ela não é minha mulher, e eu não sou seu marido,
para que ela afaste as suas prostituições [porneian] de sua presença e os
seus adultérios [moicheian] de entre os seus seios” (grifo nosso).
Cometendo prostituição, uma mulher casada também estaria cometendo
adultério97. A infidelidade de Israel para com Deus também são descritas
como porneia (Oséias 4:12; 5:3,4; 6:10; 9:1).

2. Em Amós 7:17, vemos o profeta declarando uma palavra de juízo


sobre Amazias, dizendo que a esposa desse homem se prostituiria. Na
LXX, a palavra usada para “prostituir” em Amós 7:17 é uma variante da
palavra porneia. Desse modo, vemos aí mais um texto em que porneia não
pode ser sexo pré-marital: “Portanto assim diz o SENHOR: Tua mulher se
prostituirá na cidade, e teus filhos e tuas filhas cairão à espada, e a tua
terra será repartida a cordel, e tu morrerás na terra imunda, e Israel
certamente será levado cativo para fora da sua terra” (Amós 7:17).

3. Em Números 14:33, a expressão que se refere às infidelidades de


Israel também foi traduzida como porneia: “Vossos filhos serão pastores
neste deserto quarenta anos e levarão sobre si as vossas infidelidades
[porneia], até que o vosso cadáver se consuma neste deserto” (Números
14:33 - grifo nosso).

4. Em Jeremias 3, Deus usa a figura do casamento para falar de sua


relação com Israel e com Judá, cujas infidelidades são descritas tanto
como prostituição (porneia) quanto como adultério (moicheia). Ambas as
expressões são intercambiáveis no texto. Vejamos as ocasiões em que
aparecem derivações de porneia e de moicheia em Jeremias 3, conforme a
LXX: “Se um homem repudiar sua mulher, e ela o deixar e tomar outro
marido, porventura, aquele tornará a ela? Não se poluiria com isso de todo
aquela terra? Ora, tu te prostituíste [porneia] com muitos amantes; mas,
ainda assim, torna para mim, diz o SENHOR. Levanta os olhos aos altos
desnudos e vê; onde não te prostituíste? Nos caminhos te assentavas à
espera deles como o arábio no deserto; assim, poluíste a terra com as
tuas devassidões [porneia] e com a tua malícia. [...] Disse mais o
SENHOR nos dias do rei Josias: Viste o que fez a pérfida Israel? Foi a
todo monte alto e debaixo de toda árvore frondosa e se deu ali a
toda prostituição [porneia]. E, depois de ela ter feito tudo isso, eu pensei
que ela voltaria para mim, mas não voltou. A sua pérfida irmã Judá viu
isto. Quando, por causa de tudo isto, por ter cometido adultério [moicheia],
eu despedi a pérfida Israel e lhe dei carta de divórcio, vi que a falsa Judá,
sua irmã, não temeu; mas ela mesma se foi e se deu à prostituição
[porneia]. Sucedeu que, pelo ruidoso da sua prostituição [porneia], poluiu
ela a terra; porque adulterou [moicheia], adorando pedras e
árvores. Apesar de tudo isso, não voltou de todo o coração para mim a sua
falsa irmã Judá, mas fingidamente, diz o SENHOR” (Jeremias 3:1-2;7-10 -
grifo nosso).

5. Em Ezequiel 16, palavras relacionadas ao termo porneia aparecem


cerca de 17 vezes para falar sobre a infidelidade de Jerusalém, que
comportou-se como a mulher adúltera: “Edificando tu o teu prostíbulo de
culto à entrada de cada rua e os teus elevados altares em cada praça, não
foste sequer como a meretriz, pois desprezaste a paga; foste como a mulher
adúltera, que, em lugar de seu marido, recebe os estranhos. A todas as
meretrizes se dá a paga, mas tu dás presentes a todos os teus amantes; e o
fazes para que venham a ti de todas as partes adulterar contigo” (Ezequiel
16:31-33 - grifo nosso).

6. Em Ezequiel 23, termos relacionado à porneia aparecem cerca de 15


vezes. Nesse capítulo, Samaria e Jerusalém são retratadas como duas
esposas de Deus, Oolá e Oolibá. Nos versículos 37, 43 e 45, a porneia de
Oolá e Oolibá é descrita como adultério: “Porque adulteraram, e nas suas
mãos há culpa de sangue; com seus ídolos adulteraram, e até os seus filhos,
que me geraram, ofereceram a eles para serem consumidos pelo fogo”
(Ezequiel 23:37); “Então, disse eu da envelhecida em adultérios:
continuará ela em suas prostituições?” (Ezequiel 23:43); “... de maneira
que homens justos as julgarão como se julgam as adúlteras e as
sanguinárias; porque são adúlteras, e, nas suas mãos, há culpa de sangue”
(Ezequiel 23:45 - grifo nosso).

O uso da palavra porneia em textos não-canônicos do judaísmo


tardio

Embora todos os textos mencionados até aqui já demonstrem, de modo


exaustivo, a forma como a palavra porneia foi usada na Bíblia, é interessante
observarmos o uso dessa expressão em obras do judaísmo tardio. Isso é uma
evidência que também reforça a compreensão de que os judeus faziam uso
dessa expressão grega para se referir à imoralidade sexual.
Um texto muito interessante a ser analisado é do livro de Eclesiástico (c.
190 a.C), que é considerado canônico por católico, mas apócrifo pelos
protestantes. Em Eclesiástico 23:23 (23:33 em algumas versões), ao falar de
uma mulher em adultério, é dito que esta cometeu porneia. Na Septuaginta, o
texto aparece assim:

prwton men gar en nomw uyistou hpeiqhsen kai deuteron eiV andra
authV eplhmmelhsen kai to triton en porneia emoiceuqh kai ex allotriou
androV tekna paresthsen (Eclesiastico 23:23 - Septuaginta transliterada).

Na tradução da CNBB:

“Primeiro, ela foi infiel à lei do Altíssimo; segundo, pecou contra seu
marido; terceiro, prostituiu-se no adultério e teve filhos de outro marido”
(Eclesiástico 23:33 - grifo nosso).

Essa citação apenas evidencia o fato de que, na língua grega, o termo


porneia abarca a generalidade das relações sexuais ilícitas. Uma pessoa pode
se prostituir (cometer porneia) no adultério, na fornicação, no
homossexualismo etc. Portanto, é equivocada a afirmação de que a diferença
entre porneia e moicheia (adultério) estaria no estado civil das pessoas
envolvidas, como se um fosse pecado de solteiros e outro, de casados.
No livro Sabedoria (c. 100 a.C) 14:12 é dito que a invenção dos ídolos
é a origem da porneia, e a partir da idolatria surgem muitos males (v. 22 ao
31).
No livro de Tobias (c. 200 a.C) vemos que a palavra porneia é
mencionada em duas ocasiões. Na primeira, o pai de Tobias declara “Abstém-
te, meu filho, de toda devassidão (porneia)” (grifo nosso), orientando-o a
não se casar com estrangeira (Tobias 4:12ss). Na segunda ocasião, antes de
deitar-se pela primeira vez com sua esposa, Tobias ora a Deus declarando:
“Agora, não é por luxúria (porneia) que me caso com esta minha irmã, mas
com reta intenção” (Tobias 8:7 - grifo nosso).
O escrito pseudoepígrafo conhecido como O Testamento dos 12
Patriarcas apresenta várias advertências contra a porneia, referindo-se à
imoralidade sexual. Segundo essa obra, o espírito da porneia é o primeiro dos
sete espíritos do erro (T. de Rúben 3:3). A porneia destrói a alma e separa o
homem de Deus (T. de Rúben 4:6), nela não há qualquer entendimento ou
piedade (T. de Rúben 6:4), e acima de tudo deve-se estar atento contra ela (T.
de Simeão 5:3). A embriaguez produz pensamentos que conduzem à porneia
(T. de Judá 14:2,3). Entre os pecados descritos como porneia estão o
homossexualismo em Sodoma (T. de Benjamim 9:1); a relação de Rubem com
a concubina de seu pai (T. de Rúben 1:6) e o pecado a que José foi tentado
pela mulher de Potifar (T. de José 3:8).
À luz do que estudamos até aqui, qualquer judeu que conhecesse a língua
grega e que tivesse acesso ao Evangelho de Mateus, poderia entender que
porneia consiste em qualquer relação sexual ilícita. Se analisarmos os textos
de Mateus 5:32 e 19:9 apenas sob o ponto de vista linguístico, seria
impossível atribuir um significado mais restrito a essa expressão, a não ser se
isso fosse claramente indicado no contexto.
Uma vez que já está claramente estabelecida a abrangência do
termo porneia, pesam pelo menos dois ônus sobre os que restringem seu
significado.
O primeiro ônus é o de expor as razões pelas quais o termo porneia, nos
textos de Mateus 5 e 19, não poderia ser compreendido no seu significado
comum e generalizado. Para afastar o significado comum dessa palavra, é
preciso apresentar argumentos consistentes. Não se pode limitar ou mudar, de
forma arbitrária, o significado de certa palavra simplesmente porque ela não
se encaixa numa interpretação doutrinária previamente estabelecida.
O segundo ônus é o de, uma vez que se atribui à porneia um significado
diferente do comum, sustentar as razões pelas quais a palavra teria
necessariamente esse significado distinto. Por exemplo, quem sustenta que o
termo significa apenas sexo pré-marital, precisa apresentar argumentos
consistentes tanto para dizer a razão pela qual porneia, nos textos de Mateus
5:32 e 19:9, não pode significar imoralidade sexual em geral, como também
precisa explicar o motivo por que essa expressão significaria apenas sexo pré-
marital e não algum outro pecado de ordem sexual.
Sem atender esses dois ônus, qualquer teoria sobre o significado de
porneia não passará de mera arbitrariedade e especulação. O que temos visto
entre aqueles que restringem o significado de porneia é o uso de argumentos
pouco consistentes e que não desobrigam seus defensores de nenhum dos ônus
que mencionamos.
A seguir responderemos algumas objeções levantadas pelos que
restringem o significado de porneia. No próximo capítulo analisaremos as
teorias que atribuem significados específicos, diferentes do uso amplo desse
termo.

Respondendo a algumas objeções

1. Se admitirmos que porneia significa relações sexuais ilícitas, o


Evangelho de Mateus não estaria em contradição com os Evangelhos de
Marcos e de Lucas e com as cartas de Paulo, pois estes não mencionam a
exceção em caso de porneia?

Provavelmente essa seja a maior objeção à compreensão de porneia


como imoralidade sexual nos textos de Mateus 5:31 e 19:9. Se
desconsiderássemos a exceção mencionada em Mateus, não haveria qualquer
margem de dúvidas quanto à impossibilidade total de um segundo casamento
após o divórcio, qualquer que fosse o motivo. Entretanto, se propuséssemos
um exercício no sentido inverso, ou seja, se contássemos apenas com os textos
de Mateus sobre o divórcio, será que eles por si só permitiriam a
compreensão de que o segundo casamento seria proibido até mesmo em caso
de divórcio por causa de porneia? Eles trariam elementos para chegar a essa
conclusão? Certamente não. Os textos de Mateus não nos permitiriam atribuir
um caráter adulterino ao segundo casamento depois de um divórcio por causa
de porneia.
Portanto, a principal questão é como conciliar a exceção mencionada em
Mateus com as declarações de Marcos, de Lucas e de Paulo? Há duas formas
de lidar com isso.
A primeira forma é entender que Mateus complementa o ensino geral do
Novo Testamento sobre o repúdio, tornando explícita uma exceção que os
demais autores não mencionaram. Não podemos “montar” uma doutrina sem
considerar tudo o que a Bíblia diz sobre ela.
A segunda forma de lidar com a cláusula de exceção é tentar reduzir ao
máximo o significado dela. Entretanto, as teorias que tentam fazer isso
precisam recorrer a muitas especulações e conjecturas que acabam por agredir
a clareza do texto do Evangelho de Mateus. Para essas teorias, o problema não
é a complexidade do texto de Mateus, mas justamente a sua clareza, que elas
se esforçam para obscurecer.
Quando uma regra geral possui exceções, há algo que precisamos
considerar: nem sempre que a regra geral é mencionada ela precisa ser
acompanhada de suas exceções. Vejamos um exemplo do Antigo Testamento. O
mandamento “não matarás” aparece em Êxodo 20:13 e Deuteronômio 5:17
sem nenhuma exceção. Dessa forma foi registrado nas tábuas da lei. Porém,
apesar de aparecer em termos absolutos, sabemos que a lei trazia a
possibilidade da execução da pena capital. Apesar disso, nenhum de nós
pensaria que a lei estava em contradição. O fato de Êxodo 20:13 e
Deuteronômio 5:17 registrarem “não matarás” não nos faz supor que esses
versículos esgotem tudo o que lei de Moisés abordava sobre a morte.
Precisamos também considerar que há textos que trazem consigo
exceções implícitas, e essas exceções se baseiam no ensino completo da
Bíblia sobre um tema. Por exemplo, ao falar aos filhos, Paulo não apenas diz
que estes devem obedecer a seus pais, mas sim que devem obedecê-los em
tudo (Filipenses 3:20). Apesar de Paulo usar uma expressão absoluta
(“obedecer em tudo”), nós tranquilamente entendemos que o filho não tem que
obedecer a seu pai no que é pecado, pois ao analisarmos esse ensino à luz dos
relatos da Bíblia sobre obediência, veremos que o termo “tudo” traz uma
exceção implícita, pois importa mais obedecer a Deus do que aos homens
(Atos 5:29). O mesmo podemos dizer sobre o mandamento para a mulher ser
submissa em tudo a seu marido (Efésios 5:24). Todos nós entendemos que a
mulher não deve consentir com seu marido no pecado. Vemos que Safira, por
ter sido cúmplice de seu marido na mentira, foi responsabilizada juntamente
com ele (Atos 5:1-11). Poderíamos ainda mencionar os servos, que devem
obedecer em tudo aos seus senhores (Colossenses 3:22), sem que sejam
obrigados a pecar a mando destes.
Romanos 7:1-4 é outro texto em que vemos uma regra geral sendo
mencionada sem a exceção. O tema que Paulo aborda em Romanos 7:1-4 não é
o casamento, mas a nossa relação com a lei de Moisés. Mas para discorrer
sobre isso, o apóstolo faz uma alusão ao casamento.

“Porventura, ignorais, irmãos (pois falo aos que conhecem a lei), que
a lei tem domínio sobre o homem toda a sua vida? Ora, a mulher casada
está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer,
desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera
se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o
marido, estará livre da lei e não será adúltera se contrair novas núpcias.
Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do
corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, aquele que ressuscitou
dentre os mortos, a fim de que frutifiquemos para Deus.” (Romanos 7:1-4).

O que Paulo está dizendo é que, assim como a mulher está ligada, pela
lei, ao marido até que ele morra, assim também estávamos ligados à lei, mas
agora morremos para ela (v. 4). Paulo está apenas usando o casamento como
ilustração, e não tratando do tema em si, utilizando uma figura conhecida dos
cristãos romanos. Porém, ao utilizar a figura do casamento, ele diz que a
mulher está ligada ao marido pela lei. Mas que lei é essa? Se for pela lei de
Moisés, havia possibilidade de divórcio e novo casamento. Se fosse pelo
Direito Romano, também havia essa possibilidade. Então é claro que Paulo
sabia dessas coisas, mas não menciona, porque está citando aquilo que é a
regra geral para o casamento, e por isso não se ocupou com a exceção. Não
faria sentido algum mencionar o que a lei dizia sobre o divórcio, pois isso não
agregaria nada ao que Paulo queria ensinar no texto.
Se, por vezes, termos absolutos podem conter exceções implícitas
(sempre à luz do ensino total das Escrituras, e não baseadas em opiniões
pessoais), é plenamente possível compreender que Mateus mencionou uma
exceção que os demais autores podem ter considerado implícita.
Outro ponto que precisamos considerar é que, ao narrar um mesmo fato,
um evangelho pode trazer informações omitidas por outro sem que haja
contradições98. No Evangelho de Marcos há indícios de que sua narrativa da
conversa entre Jesus e os fariseus sobre o repúdio pode ter sido resumida.
Marcos registra que a pergunta dos fariseus foi “É lícito ao marido repudiar
sua mulher?”, sem fazer qualquer menção aos motivos do repúdio (Marcos
10:2). Entretanto, é no mínimo inusitado que uma pergunta nestes termos tenha
sido feita pelos fariseus, considerando que todos os grupos judeus daquela
época acreditavam que o repúdio era lícito, e até mesmo obrigatório, em caso
de adultério. A divergência que existia era sobre os motivos do repúdio, e não
se este era lícito ou não. Portanto, é possível que Marcos tenha se referido ao
repúdio por qualquer motivo, partindo do pressuposto que seus leitores
compreenderiam isso.
Podemos comparar esse tipo de apresentação resumida com uma
situação compreensível em nosso contexto cultural: se alguém perguntar “é
lícito vender bebidas a menores de 18 anos?”, todos entenderão que a pergunta
é sobre a venda de bebidas alcoólicas, e não sobre todas as bebidas. Ninguém
se negaria a vender uma garrafa de água a um menor de 18 anos. O nosso
contexto cultural nos permite concluir isso imediatamente. Provavelmente essa
tenha sido a razão para Marcos tratar o tema do divórcio de uma forma que
parece condenar todo e qualquer divórcio, enquanto Mateus delimita o
assunto, tratando dos motivos do divórcio.
Dentre os Evangelhos, Mateus é o que trata a questão do divórcio de
forma mais extensa e com mais detalhes. Tanto no Evangelho de Marcos como
no de Lucas, o tema do divórcio é tratado de forma mais resumida. Lucas
chega a abordá-lo em apenas 1 versículo. Em Mateus a questão do divórcio é
tratada duas vezes, e só nesse Evangelho a pergunta dos fariseus envolve a
questão do motivo para o divórcio, e não a ilicitude do divórcio em si.
Declarar que a tradução de porneia como relações sexuais ilícitas
colocaria Mateus em contradição com os outros Evangelhos é uma opção do
intérprete, um a priori estabelecido por ele ante a leitura dos textos, e não uma
conclusão imposta pelos próprios textos.
Alguém pode objetar: Se existe uma exceção para o divórcio, e isso é
algo tão importante, como Marcos e Lucas teriam deixado de mencioná-la?
Ora, muito mais importante do que a exceção é a regra de que o casamento
deve ser mantido, e nisso todos os Evangelhos concordam.
Por essas razões, cremos que devemos aceitar a validade da cláusula de
exceção, abrangendo as relações sexuais ilícitas sem arrependimento da parte
ofensora. Não há motivos para entendermos que ela significa menos que isso.
Para concluirmos o contrário, teríamos que recorrer a suposições e
especulações. Portanto, devemos lidar com essa questão crendo que os demais
textos omitiram uma cláusula que os autores consideraram implícita.

2. Por que na cláusula de exceção é usada a palavra porneia e não


moicheia?

Há quem entenda que, se a exceção diz respeito ao adultério, a palavra


usada seria moicheia (adultério) e não porneia. Portanto, na cláusula de
exceção, porneia teria que significar outra coisa que não incluísse o adultério.
Embora essa objeção já tenha sido respondida ao longo do que já foi
escrito neste livro, reforçamos o fato de que o adultério não é o único pecado
sexual de uma pessoa casada. Porneia é um termo amplo, que abarca vários
pecados sexuais.
Vimos também que, à luz do uso do termo porneia na literatura judaica
anterior ao Novo Testamento, uma pessoa pode prostituir-se (cometer
porneia) no adultério99. Portanto, o termo porneia não implica uma exclusão
do adultério, mas sim o inclui.
Uma coisa que precisamos considerar é que, na primeira ocasião em que
Jesus menciona a cláusula de exceção (Mateus 5:31-32), Ele o faz logo depois
de condenar o olhar impuro como adultério (moicheia) no coração.

“Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo:
qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já
adulterou com ela” (Mateus 5:27,28 - grifo nosso).

Se a palavra moicheia fosse mencionada na cláusula de exceção, abriria


margem para que hoje discutíssemos se o olhar impuro já seria um motivo
para o divórcio. Porém, a palavra porneia descreve uma relação ilícita
propriamente dita, pois, à luz do ensino de Paulo, a porneia é um pecado
contra o próprio corpo. Como o apóstolo advertiu: “... o corpo não é para a
impureza [porneia], mas, para o Senhor, e o Senhor, para o corpo” (I
Coríntios 6:13). Quando Paulo escreve sobre o dever de nos abster da
porneia, esse pecado é contrastado com a postura de possuir o próprio corpo
em santificação e honra:

“Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santificação, que vos


abstenhais da prostituição [porneia]; que cada um de vós saiba possuir o
próprio corpo em santificação e honra, não com o desejo de lascívia, como
os gentios que não conhecem a Deus” (I Tessalonicenses 4:3-5).
Portanto, faz todo sentido Jesus usar a palavra porneia na cláusula de
exceção, pois, por vezes o adultério pode ser menos do que uma relação
sexual fora do casamento, ocorrendo apenas na mente, como é o caso do olhar
com intenção impura. Porneia diz respeito a algo que se faz contra o próprio
corpo, enquanto moicheia diz respeito a algo que se faz contra alguém, uma
infidelidade para com o cônjuge. Contudo, moicheia não deixa de ser porneia.
O adultério não deixa de ser imoral.

3. Se adultério é um pecado que está incluído no conceito de porneia,


por que em Mateus 15:19 os dois pecados são citados um ao lado do outro?
Isso não excluiria o adultério do conceito de porneia?

Vejamos o texto:

“Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios,


prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mateus 15:19 - grifo
nosso).

O Evangelho de Marcos também menciona porneia e moicheia em uma


mesma lista:

“Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus


desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios” (Marcos
7:21 - grifo nosso).

Os versículos acima, por vezes, são lidos como se estivessem


distinguindo estritamente um pecado de outro. Entretanto, se acreditarmos que
o simples fato das palavras serem mencionadas juntas já excluiria moicheia
do conceito de porneia, teríamos sérios problemas para entender outros textos
bíblicos. Vejamos I Coríntios 6:9,10:

“Ou não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não
vos enganeis: nem impuros [pornos], nem idólatras, nem adúlteros
[moichos], nem efeminados [malakos], nem sodomitas [arsenokoites], nem
ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores
herdarão o Reino de Deus” (I Coríntios 6:9,10 - grifo nosso).

No texto acima, numa mesma lista, aparecem os impuros (pornos),


adúlteros (moichos), efeminados (malakos) e sodomitas (arsenokoites). Se o
fato de aparecerem na mesma lista faz com que adúlteros e homossexuais não
possam ser incluídos na condição de impuros (pornos), então teríamos
dificuldades para entendermos o versículo que aparece pouco depois (I
Coríntios 6:18), no qual Paulo define porneia como pecado contra o corpo,
enquanto qualquer outro pecado é fora do corpo. Por essa perspectiva, o
adultério e o homossexualismo não seriam pecados contra o corpo. Mas isso
não faz sentido algum, pois claramente, tanto adultério como homossexualismo
são praticados contra o corpo e portanto estão incluídos no conceito de
porneia.
No texto de I Timóteo 1:10, as palavras “impuros” (pornos) e
“sodomitas” (arsenokoites) também aparecem uma ao lado da outra. Será que
por isso teríamos que dizer que quem pratica a sodomia não está pecando
contra o próprio corpo? Chegar a essa conclusão seria um absurdo.
O fato de Paulo mencionar tais pecados numa mesma lista não significa
que esses conceitos se excluam mutuamente. O apóstolo tão somente
mencionou a imoralidade sexual juntamente com algumas formas em que esta
pode se manifestar. Todos esses pecados representam sexo ilícito, porém cada
um carrega características específicas. O adultério é marcado pela
infidelidade contra o cônjuge. O homossexualismo é caracterizado por ser
contrário à natureza.
Podemos chegar a conclusões errôneas ao partirmos do pressuposto de
que quando duas coisas são mencionadas uma ao lado da outra, elas teriam
que ser absolutamente distintas entre si. Muitos versículos dizem que Jesus
andava com “publicanos e pecadores” (Mateus 9:10,11; 11:19; Marcos
2:15,16; Lucas 5:30; 7:34; 15:1), e isso não nos permite dizer que os
publicanos não são pecadores. Jesus disse que “todo pecado e blasfêmia
serão perdoados aos homens…” (Mateus 12:31; cf. Marcos 3:28,29), mas
isso não significa que a blasfêmia não esteja incluída no conceito de pecado.

Vejamos ainda o texto de I Timóteo 1:9,10:

“tendo em vista que não se promulga lei para quem é justo, mas para
transgressores e rebeldes, irreverentes e pecadores, ímpios e profanos,
parricidas e matricidas, homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens,
mentirosos, perjuros e para tudo quanto se opõe à sã doutrina” (I Timóteo
1:9,10 - grifo nosso).

Os “pecadores” são mencionados ao lado dos “irreverentes”, mas é


claro que estes também são pecadores. “Parricidas”, “matricidas” e
“homicidas” são mencionados um ao lado do outro. Entretanto, não podemos
concluir que os parricidas não são também homicidas.
O fato de gênero e espécie serem mencionados juntos não significa,
necessariamente, que um exclui o outro100. Por isso, no texto de Mateus 15:19
e Marcos 7:21 não há elementos que determinem que moicheia esteja excluída
do conceito de porneia.
Como Jesus ensinou que o segundo casamento pode ser adultério
(quando o divórcio não foi por causa de imoralidade), é possível que algumas
pessoas sejam adúlteras e ignorem sua condição101. Além disso, o olhar com
intenção impura já é adultério, ainda que só ocorra no coração. Talvez por
isso os termos porneia e moicheia apareçam separados em Mateus 15:19,
pois entre os pecados ali mencionados estão tanto a imoralidade dos que
vivem deliberadamente nesse pecado, como também a dos que vivem uma
relação ilícita sem plena consciência disso, e ainda a daqueles que deixam
seus olhares serem conduzidos pela intenção impura.

4. Se porneia é uma referência às relações sexuais ilícitas, Jesus não


teria se colocado no mesmo lado da escola do rabino Shammai?

Sabemos que, na época de Jesus, duas escolas rabínicas debatiam a


interpretação de Deuteronômio 24:1-4. Pela escola de Hilel, o marido poderia
repudiar sua mulher por qualquer motivo, e pela escola de Shammai isso só
deveria ocorrer em caso de alguma falta de castidade ou adultério.
Antes de respondermos essa objeção, precisamos lembrar de alguns
fatos sobre a pessoa do Senhor Jesus. Alguns imaginam o Mestre como alguém
que se posicionava contra qualquer ensino que já circulava antes de seu
ministério. Mas Jesus não se colocava contra tudo. Ele é pela Verdade, sendo
a própria Verdade. Se suas palavras coincidissem com algum outro ensino já
propagado em sua época, não era Jesus quem estaria concordando com o que
já havia, e sim esse ensino que estaria concordando com Ele.
Vejamos o exemplo da doutrina da ressurreição dos mortos. Esse tema
dividia duas facções do judaísmo. De um lado estavam os fariseus, que criam
na ressurreição, e de outro estavam os saduceus, que a negavam. Entretanto, a
existência desse debate não impediu Jesus de se posicionar pela ressurreição,
e nem por isso Ele estava tomando partido dos fariseus.
Também podemos lembrar da resposta de Jesus aos fariseus e aos
herodianos sobre o pagamento de impostos. O fato de ter dito “Dai a César o
que é de César” não significa que Jesus estava tomando partido de um dos
lados da polêmica. A verdade é que Ele trouxe para o centro do assunto uma
perspectiva por muitas vezes ignorada pelos homens: “Dai a Deus o que é de
Deus”.
Entendendo a forma como Jesus se posicionava, podemos responder à
objeção acima: Jesus teria se colocado ao lado da escola de Shammai? A
resposta é um categórico não. Se Ele tivesse concordado com Shammai, não
teríamos problemas em admitir isso. Porém, Jesus não disse a mesma coisa
que Shammai, pois trouxe para o centro da discussão um tema muitas vezes
ignorado: a condição do homem em relação a sua mulher.
O debate das escolas rabínicas sobre a licitude do divórcio dizia
respeito à condição da mulher e sua liberdade para casar de novo após um
repúdio. A condição do homem não estava em questão. Um divórcio válido
dava liberdade à mulher para contrair novas núpcias, mas o mesmo não era
exigido do homem que quisesse casar de novo. Precisamos também lembrar
que a poligamia ainda podia ser praticada entre os judeus. A escola de
Shammai, apesar de seu ensino mais restritivo quanto aos motivos para o
repúdio, permitia o segundo casamento de um homem que repudiou
ilicitamente sua esposa102. Porém, Jesus denunciou o adultério do homem que
repudia sua mulher e se casa com outra.
5. A reação dos discípulos à fala de Jesus (“Se essa é a condição do
homem relativamente a sua mulher, não convém casar”), não demonstra
que eles entenderam que não havia qualquer exceção para o divórcio?

Essa objeção se relaciona com a anterior. Alguns autores consideram


que a reação dos discípulos ao ensino de Jesus só é compreendida se houvesse
uma proibição total ao divórcio e ao novo casamento, sem qualquer exceção.
Entretanto, tal argumentação não se sustenta por razões já expostas
anteriormente. Enquanto o debate sobre o divórcio girava em torno dos
motivos para marido repudiar sua mulher, Jesus mostrou que o casamento
exige fidelidade e exclusividade de ambos os cônjuges.
Por isso os discípulos reagiram: “Se essa é a condição do homem
relativamente à sua mulher, não convém casar” (Mateus 19:10). Os ensinos
de Hilel e de Shammai não causariam essa reação, pois aqueles discípulos
estavam acostumados com a ideia de que o repúdio poderia ocorrer por
qualquer motivo e ainda assim o homem estaria livre para casar novamente.
Devido a condição do homem em relação a sua mulher é que eles se
surpreenderam com a fala de Jesus.

6. Uma vez que Jesus declarou “o que Deus uniu não o separe o
homem”, porque a porneia seria uma exceção?

É compreensível que algumas pessoas defendam que o divórcio em caso


de porneia seria uma tentativa humana de separar o que Deus uniu. Afinal,
quando um homem e uma mulher são unidos por Deus não há poder humano
que tenha autoridade para dissolver esse casamento: nem marido, nem a
esposa, nem um juiz ou governante, nem mesmo uma autoridade eclesiástica. O
que Deus ajuntou, só Ele pode separar. Entretanto, resta uma pergunta: Como
Deus separa o que havia sido unido por Ele?
Sabemos que um casal é separado pela morte, mas também pode ser
separado da mesma forma que foi unido por Deus: pela Palavra. Homem e
mulher são casados quando preenchem as condições estabelecidas na Palavra
de Deus. E também podem ser separados nas condições estabelecidas pela
Palavra. Assim como o casamento envolve uma ação humana (“deixará o
homem...”) respaldada por Deus, que confere àquela união o vínculo conjugal,
o divórcio por causa de imoralidade sexual é permitido por Deus, que
reconhece a dissolução do vínculo. Uma vez que Jesus concedeu a cláusula de
exceção, então já não é o homem que está separando, mas Deus.
Só podemos considerar que um divórcio é legítimo à luz da Palavra de
Deus, pois seremos julgados por ela no último dia (João 8:47,48). Qualquer
outra separação é o homem tentando dividir aquilo que Deus uniu. A
ocorrência de um divórcio baseado em mero entendimento humano é uma
afronta à declaração de Jesus.
Quando Jesus falou que o que Deus ajuntou, não separe o homem, não
significa que Deus não separa. Deus separa pela morte, pela exceção
contemplada por Jesus e pela instrução de Paulo em I Coríntios 7 (que
estudaremos mais adiante).

A maldade do coração que se entrega à imoralidade sexual

É interessante observar a semelhança que existe entre a cláusula de


exceção e a declaração feita pelo próprio Deus em Jeremias 3:8-9 (grifo
nosso), na qual Ele se divorcia de Israel por causa do adultério ou prostituição
espiritual daquele povo.

“Quando, por causa de tudo isto, por ter cometido adultério, eu


despedi a pérfida Israel e lhe dei carta de divórcio, vi que a falsa Judá, sua
irmã, não temeu; mas ela mesma se foi e se deu à prostituição. Sucedeu que,
pelo ruidoso da sua prostituição, poluiu ela a terra; porque adulterou,
adorando pedras e árvores”.

No texto de Jeremias 3:1-8, vemos que as expressões “adultério” e


“prostituição” se alternam e são usadas para descrever a razão pela qual o
Senhor repudiou Israel: “por causa de tudo isso, por ter cometido adultério,
eu despedi...”103.
Quando lemos Jeremias 3, percebemos o quanto o Senhor é diferente dos
maridos mencionados no texto de Deuteronômio 24:1-4, no qual vemos que o
primeiro marido despede sua mulher simplesmente por ter achado nela coisa
indecente; e o segundo porque se aborrece dela. Homens de coração
endurecido, mas o Senhor é diferente. Em Jeremias 3, Deus é o marido
amoroso, compassivo e misericordioso que esperou com paciência o
arrependimento de sua esposa, Israel, que vivia entregue à prostituição
(porneia), adulterando contra o Senhor com falsos deuses.
Deus teve que tratar do pecado de Israel, e por causa da dureza do
coração da esposa impenitente e obstinada no seu pecado, teve que lhe dar
carta de divórcio e despedi-la para o exílio.
A lei de Moisés dava uma permissão ao marido de coração endurecido.
Porém, em Jeremias 3, o marido teve que lidar com a dureza de coração da
esposa adúltera. O coração endurecido de Israel é um tema recorrente no livro
do profeta Jeremias (3:17; 7:24; 11:18; 13:10; 16:12; 18:12; 23:17).
Isaías 50:1 (grifo nosso) é outro texto muito similar ao de Jeremias 3 e
guarda relação com a cláusula de exceção de Mateus 5:32 e 19:9:

“Assim diz o SENHOR: Onde está a carta de divórcio de vossa mãe,


pela qual eu a repudiei? Ou quem é o meu credor, a quem eu vos tenha
vendido? Eis que por causa das vossas iniquidades é que fostes vendidos, e
por causa das vossas transgressões vossa mãe foi repudiada”.

Não cremos de forma alguma que Deus se alegre com o divórcio. Ele
deseja que o casal permaneça unido por toda a vida. Qualquer divórcio é
sempre uma tragédia. A perdão e a reconciliação são o caminho para a
resolução dos problemas conjugais, até mesmo da infidelidade. Entretanto, não
podemos afirmar que não existe possibilidade de divórcio quando um dos
cônjuges se entrega e permanece na imoralidade sexual, sem qualquer
arrependimento.
Com isso, não estamos incentivando de forma alguma o divórcio. A
verdade é que motivos como “incompatibilidade de gênios”, “o amor acabou”,
“a relação esfriou”, “a situação financeira está difícil” etc. não justificam a
separação. Segundo o Senhor da Igreja, há uma única exceção para o divórcio
entre Seus filhos.
O matrimônio é constituído por uma aliança, e deve ser digno de honra
entre todos (Hebreus 13:4). Porém, precisamos lembrar que a santidade de
Deus é maior do que o casamento e a família. No Antigo Testamento, vemos
que alguns homens, por causa da santidade do Senhor, despediram suas
esposas que vieram de outras nações condenadas por Ele (Esdras 10)104. O
propósito era santificar o povo eleito de Deus.
Estamos convencidos de que a exceção dada por Jesus se fundamenta na
santidade de Deus e não no incômodo do crente. Nós podemos suportar
qualquer sofrimento para a glória de Deus, mas a imoralidade sexual no
casamento contamina o próprio corpo de quem a pratica e ofende diretamente
o cônjuge, compromete sua santidade devida ao Senhor.
O sexo ilícito afeta diretamente a união conjugal. Vejamos alguns
princípios a esse respeito:

- O casamento é baseado em uma unidade física (uma só carne) entre os


cônjuges. A porneia adultera esta unidade. Quando o homem se une a uma
prostituta ele forma com ela uma só carne (I Coríntios 6:16).

- O casamento é baseado em um pacto mútuo de fidelidade. A porneia é


um ato de infidelidade conjugal.

- No casamento, o corpo de um cônjuge pertence ao outro. A porneia é


um pecado contra o próprio corpo (I Coríntios 6:18 a 7:2).

- O casamento é sagrado, santo. A porneia contamina, profana e macula


o leito conjugal (Hebreus 13:4; I Coríntios 7:14; Levítico 18:20).

- O casamento é o meio para formar e manter a família. O pecado da


porneia deforma e destrói o lar (Apocalipse 2:20,23).

A porneia afeta o casamento porque o cônjuge traz para dentro de seu


relacionamento a vida sexual ilícita e imoral que ele pratica fora;
contaminando o corpo, que é o templo sagrado do Espírito Santo,
espiritualmente e fisicamente (possibilidade de trazer doenças sexualmente
transmissíveis). É impossível ter um casamento santo e abençoado por Deus se
um dos cônjuges está se contaminando, se prostituindo. Isso afeta todos os
membros da família. Quando alguém abre essa porta, o diabo entra e destrói
todo o lar. Por isso a imoralidade sexual é a única exceção permitida para o
divórcio, pois ela destrói o que Deus santificou. Isso não é por causa de um
dos cônjuges, mas por causa da santidade de Deus.
A prostituição é uma agressão ao templo do Espírito Santo. É uma
verdadeira profanação. Nosso corpo é para o Senhor; é um lugar de culto ao
nosso Deus. Por isso, Deus deve ser glorificado por meio do nosso corpo.
Você quer verdadeiramente viver para Deus e agradá-lo? Então consagre
sua vida e seu casamento a Ele. Entretanto, não vemos na Palavra qualquer
argumento para dizer que não existe a possibilidade do divórcio em hipótese
alguma.
Assim, a única exceção que encontramos nas Escrituras permitida por
Jesus para o divórcio de um casal cristão é no caso de prostituição (porneia)
sem arrependimento da parte ofensora.
Capítulo 5
CORRENTES QUE DEFENDEM:
“DIVÓRCIO NUNCA!”
As tentativas de limitar o significado de porneia: as teorias dos
casamentos ilícitos e a dos esponsais

Depois de tudo o que foi exposto no capítulo anterior, poderíamos ler os


textos de Mateus 5:32 e 19:9 e entendermos facilmente que Jesus está falando
que a cláusula de exceção para o divórcio é a prática de relações sexuais
ilícitas, sem arrependimento, por parte de um dos cônjuges. Contudo, esse
entendimento não é unânime, pois alguns irmãos tentam reduzir o significado
de porneia nos textos de Mateus a apenas um ou, no máximo, dois tipos de
pecados sexuais.
Inúmeros teólogos excelentes, homens de caráter e conhecimento,
gostariam muito de tirar ou modificar a cláusula de exceção desses textos e, se
pudessem, já o teriam feito, por não acreditarem em nenhuma possibilidade de
divórcio e segundo casamento. Porém, eles não conseguem descartar esses
textos, que são totalmente verazes.
Entre os que entendem que nunca poderia haver um divórcio e segundo
casamento, há os que acreditam que porneia se refere exclusivamente a
casamentos inválidos, que necessariamente teriam que ser desfeitos, pois
nunca existiram diante de Deus. Quem pensa assim adota a teoria dos
casamentos ilícitos (ou da consanguinidade). Para outros, porneia, no
Evangelho de Mateus, se refere apenas à fornicação (sexo pré-marital). Quem
pensa assim é adepto da teoria dos esponsais. E há também aqueles que
mesclam ambas as teorias.

A. Teoria dos casamentos ilícitos (ou da consanguinidade)


Essa teoria, propagada principalmente entre católicos romanos e por
poucos protestantes, sustenta que a cláusula de exceção diria respeito apenas a
casamentos ilícitos ou falsos. Dessa forma, Jesus teria ensinado que um
casamento nunca poderia ser desfeito, a não ser que fosse ilícito, pois nesse
caso o vínculo matrimonial não existe por faltarem as condições que o tornam
válido. Sendo assim, casamentos incestuosos ou entre pessoas já casadas
seriam inválidos. Como não é possível que haja vínculo conjugal em tais
uniões, estas devem ser desfeitas. Na prática, o divórcio não seria uma
dissolução do casamento, mas sim uma declaração de sua nulidade. Algumas
traduções católicas chegam a traduzir a palavra porneia por “matrimônio
falso”105.
Portanto, para os adeptos da teoria dos casamentos ilícitos, não haveria
uma cláusula de exceção real, mas aparente, pois apenas é possível desfazer o
que não foi feito de verdade.
Para nós, essa interpretação é extremamente forçada. Diante da
abundante evidência do uso da palavra porneia para se referir à imoralidade
sexual em geral, não podemos concluir que no Evangelho de Mateus ela se
refira apenas aos casamentos ilícitos. Não há elementos claros no texto que
permitam uma redução tão drástica no significado da palavra porneia.
Ninguém no primeiro século, ao ouvir a frase “quem repudiar sua mulher,
não sendo por causa de porneia…”, sem ser acrescida de qualquer outra
explicação, poderia entender automaticamente que a exceção se tratava de
casamentos ilícitos.
Além da ampla demonstração, apresentada no quarto capítulo deste
livro, sobre o uso do termo porneia, precisamos também destacar que, na
tradição cristã posterior ao Novo Testamento, mesmo entre escritores que não
concebiam qualquer possibilidade de novo casamento após o divórcio,
entendia-se que exceção mencionada em Mateus 5:32 e 19:9 era uma
referência à possibilidade de divórcio em caso de adultério106.
Alguns dos adeptos da teoria dos casamentos ilícitos afirmam que
porneia se refere aos relacionamentos incestuosos previstos em Levítico 18.
Porém, esse mesmo texto que lista e condena as relações incestuosas (Levítico
18), também menciona o adultério (v. 20), o homossexualismo (v. 22) e a
bestialidade (23).
O próprio contexto da fala de Jesus em Mateus 19:9 exclui a
possibilidade de que a cláusula de exceção se refira à anulação de casamentos
inválidos. O pergunta dos fariseus foi sobre os motivos para o repúdio e carta
de divórcio, o que por si só pressupõe que existe um casamento válido e
real107. Eles fizeram referência a Deuteronômio 24:1-4, que regulamentava o
divórcio em um casamento lícito, e não o desfazimento de uma união inválida.
Os fariseus já sabiam da ilegalidade de um casamento enquadrado nas
proibições de Levítico 18.
É interessante conferir como o Novo Testamento descreve o casamento
ilícito entre Herodes e sua cunhada Herodias. Esta nunca é descrita como
mulher de Herodes, mas sempre como mulher de Filipe108. Nota-se também
que, em sua conversa com a samaritana, Jesus afirma que o homem com quem
aquela mulher estava se relacionando não era seu marido109. Entretanto, nos
textos em que ensina sobre o repúdio (Mateus 5:32, 19:9; Marcos 10:11 e
Lucas 16:18), Jesus fala sobre o homem “que repudia sua mulher”. Se a
mulher era desse homem, pressupõe-se que Jesus estava falando sobre o
repúdio em um casamento lícito, o que é claramente evidenciado por todo o
contexto da conversa entre Jesus e os fariseus.
Se a exceção se referisse apenas aos casamentos inválidos, porque foi
usada uma palavra que abarca qualquer relação sexual ilícita? O idioma grego
não tinha recursos que permitiam expressar a ideia de casamento ilícito,
distinguindo-o da imoralidade sexual em geral? Obviamente sim. Mas, apesar
disso, foi escolhida uma palavra que se refere à imoralidade sexual em geral.
Imaginemos, por exemplo, a seguinte situação: se presenciássemos a
conversa entre Jesus e os fariseus, e soubéssemos que a cláusula de exceção
fazia referência exclusivamente aos casamentos ilícitos. Se a nossa missão
fosse escrever o que Jesus ensinou para leitores de língua portuguesa, não
usaríamos uma palavra que os leitores estariam sujeitos a entender como
imoralidade sexual.
Ao usar uma palavra abrangente para expressar o conceito tão restrito de
casamento ilícito, o Evangelho de Mateus teria prolongado até os dias de hoje
o mesmo tipo de discussão das escolas rabínicas da época de Jesus. Enquanto
eles discutiam o significado de erwath dabar (coisa indecente) de
Deuteronômio 24, nós estaríamos discutindo o significado de porneia em
Mateus 5 e 19. Sendo assim, em vez de esclarecer definitivamente o tema,
Mateus teria mantido a confusão. Entretanto, a expressão usada na cláusula de
exceção coloca um ponto final nas discussões, pois é uma referência à
imoralidade sexual.
Por fim, ao entender que a única exceção é o casamento ilícito, a teoria
aqui analisada adota o pressuposto de que em Marcos 10:11,12 e em Lucas
16:18 a exceção é implícita. Ora, se pode ser considerada implícita a exceção
do casamento ilícito, por que razão a imoralidade sexual também não poderia
ser implícita? Nisso vemos uma escolha arbitrária para limitar o significado
de porneia, a fim de não ter que lidar com o fato de que existe uma exceção
real para o divórcio.

B. Teoria dos esponsais ou noivado

Para teoria dos esponsais ou do noivado110, Jesus teria ensinado que o


casamento nunca poderia ser desfeito, exceto se, até a sua consumação, o
marido descobrisse que a esposa não era mais virgem.
Essa tese se apoia no fato de que, na tradição judaica da época, o
casamento acontecia em duas fases, como já explicamos no segundo capítulo
deste livro. Em um primeiro momento, conhecido como kiddushin, os noivos
se comprometiam, já eram chamados de marido e mulher, mas ainda não
haviam consumado o casamento. O vínculo entre os noivos já tinha caráter
definitivo, a tal ponto que se uma virgem desposada111 fosse infiel ao seu
marido seria condenada à morte, tal como a mulher adúltera (Deuteronômio
22:23,24; Levítico 20:10). A jovem desposada é descrita como “a mulher do
seu próximo”. A consumação do casamento se dava na cerimônia conhecida
como nissuin.
Em função desse processo de casamento em duas fases, os adeptos da
teoria dos esponsais defendem que a cláusula de exceção foi mencionada em
Mateus 5:32 e 19:9 para fazer referência ao repúdio por erwath dabar (“coisa
indecente”) previsto em Deuteronômio 24:1-4. Nesse caso, “coisa indecente”
seria falta de virgindade, e o marido só poderia repudiar sua esposa se esse
pecado fosse descoberto durante o período do kiddushin até a consumação do
casamento. Depois disso, Jesus não teria contemplado qualquer possibilidade
de divórcio, nem mesmo em caso de adultério.
Toda a construção da teoria dos esponsais se apoia na interpretação de
que a expressão hebraica erwath dabar e a palavra grega porneia fazem
referência ao mesmo pecado. Portanto, a exceção mencionada por Jesus seria
a explicação da única possibilidade vigente para o divórcio desde
Deuteronômio. O divórcio por qualquer outro motivo que não fosse a falta de
virgindade seria uma distorção da lei.
Contudo, o que essa teoria não percebe é que, ao sustentar um
significado para a expressão erwath dabar, teria que atribuir,
necessariamente, um significado distinto a palavra porneia, pois essas
expressões não podem descrever a mesma coisa, o que fica demonstrado por
uma leitura atenta de Mateus 19. Jesus asseverou que a regulamentação do
divórcio na lei foi dada por causa da dureza dos corações, e logo em seguida
declarou: “Eu, porém, vos digo…”. Não faria sentido algum Jesus manter a
mesma permissão que havia sido dada em função dos corações endurecidos,
repetindo o que já havia sido dito aos antigos.
Jesus não veio se opor à lei de Moisés. Porém, quando respondeu aos
fariseus, tanto em Mateus 19 como em Marcos 10, percebemos que Ele não
estava simplesmente explicando o significado da expressão “coisa indecente”
ou completando uma lacuna deixada por Moisés. Na verdade, Ele fundamenta
seu ensino sobre o casamento em algo anterior à lei, pois Jesus foi até o livro
Gênesis, ao princípio, a uma verdade da qual Moisés não discordaria. Em
outras palavras, podemos dizer que a lei de Gênesis 2:24 é anterior e superior
à regulamentação de Deuteronômio 24:1-4, pois esta tinha um papel
transitório.
Entretanto, para os adeptos da teoria dos esponsais, as palavras ditas por
Jesus não revelam a transitoriedade da lei de Moisés, apenas esclareceriam a
expressão “coisa indecente” usada em Deuteronômio 24. Sendo assim, Jesus
teria mantido uma permissão para seus discípulos que Moisés deu a Israel por
causa da dureza de coração.
Não conseguimos crer dessa forma. Vemos claramente que Jesus não está
apenas interpretando o que foi prescrito em Deuteronômio 24:1-4. A
permissão de Moisés não é a mesma coisa que a exceção contemplada por
Jesus. Depois que Jesus disse “Eu, porém, vos digo”, nenhum dos seus
discípulos, judeus ou gentios, poderia fazer uso de Deuteronômio 24 para por
fim ao seu casamento.
Ainda que Jesus tivesse mantido para os seus discípulos a mesma
permissão dada por Moisés, não há elementos pelos quais possamos
determinar com exatidão o significado de “coisa indecente” (erwath dabar).
Há muitas razões para crermos que essa expressão não se referia ao fato da
mulher não ser mais virgem, o que já foi tratado de forma exaustiva no
capítulo 2 deste livro. Aqui retomaremos de forma resumida alguns fatos já
apresentado no capítulo 2.
A lei já trazia consequências específicas para o caso de sexo pré-
marital: se um homem casado descobrisse que sua esposa não era mais
virgem, esta seria apedrejada (Deuteronômio 22:20,21); se uma virgem
desposada se deitasse com um homem sem oferecer-lhe resistência, ambos
seriam apedrejados (Deuteronômio 22:23,24); e se essa moça resistiu e não
houve quem a socorresse, apenas o homem seria morto, pois ela não tinha
culpa (vs. 25-27).
A expressão “coisa indecente” só é usada mais uma vez na Bíblia, em
Deuteronômio 23:12-14, quando Moisés dá orientações sobre a limpeza do
acampamento do exército, sem que tivesse nenhuma conotação de indecência
sexual.
Se acreditarmos que Moisés permitiu o repúdio apenas por causa de
sexo pré-marital, nós teremos problemas para entendermos o segundo
casamento da mulher repudiada, pois o texto de Deuteronômio 24:1-4 nos diz
que a mulher repudiada poderia se casar com outro homem e ser repudiada por
este, apenas pelo fato do marido ter se desagradado ou aborrecido dela. Se o
primeiro divórcio foi pelo fato de não ser mais virgem, qual seria o motivo
para o segundo divórcio? A teoria dos esponsais não apresenta uma resposta
consistente para essa pergunta.
Concluir que Moisés permitiu o repúdio só em caso de sexo pré-marital
torna alguns textos extremamente difíceis de entender, ficando quase sem
sentido. Por exemplo, a lei só registrava explicitamente duas proibições
quanto ao repúdio: nos casos de difamação injusta da mulher (quando o
marido, após o casamento, mentia dizendo que a mulher não era mais virgem),
e nos casos de defloramento de virgem não desposada. Em ambas as situações,
o homem nunca poderia repudiar sua mulher. Se considerarmos que o repúdio
já era proibido, exceto em caso de fornicação da mulher, não haveria
necessidade de acrescentar as duas proibições mencionadas. O fato de haver
essas proibições só evidencia que na lei não havia uma proibição geral. A
impossibilidade de despedir a esposa soa como uma punição ou uma
disciplina, e não faria sentido algum se já existisse uma proibição do repúdio.
Para chegar à conclusão de que “coisa indecente” era falta de
virgindade, os adeptos teoria dos esponsais partem de algumas pré-
suposições, especulações e elementos totalmente estranhos ao texto em
questão. Isso não tem fundamento bíblico algum. Para crermos assim, teríamos
de “torcer” muito a Bíblia a fim de aceitarmos essa visão.
Diante de tudo o que vimos até aqui, podemos constatar que Moisés
deixou uma cláusula ampla para o divórcio, que poderia ser interpretada de
várias formas, e isso foi por causa da dureza de coração. É certa que “coisa
indecente” não é “qualquer coisa”, mas ainda assim é uma expressão
abrangente. Não podemos determinar precisamente como as palavras erwath
dabar foram compreendidas pelos leitores originais de Deuteronômio. O
debate entre as correntes rabínicas sobre essa expressão demonstra a
impossibilidade da redescoberta do seu significado exato. Qualquer afirmação
absoluta sobre o significado de erwath dabar não passa de mera especulação.
A teoria dos esponsais tenta recorrer ao valor que o noivado tinha na
cultura judaica para fortalecer a tese de que o divórcio só era possível quando
o noivo descobria a infidelidade de sua noiva, sendo que após a consumação
do casamento não haveria essa possibilidade, nem mesmo em caso de relações
sexuais ilícitas. Entretanto, essa afirmação contribui para o enfraquecimento
dos argumentos da própria teoria dos esponsais. Se a infidelidade da noiva
permitia ao noivo repudiá-la, mesmo sendo ambos já considerados marido e
mulher, o que impediria os demais maridos de repudiarem suas esposas por
causa da infidelidade das mesmas? Não há nada na lei de Moisés que
restringisse a possibilidade do repúdio apenas aos noivos. Na lei, a
infidelidade da mulher desposada era tratada da mesma forma que a
infidelidade da mulher já casada: ambas as situações são descritas como
adultério112. No Talmud babilônico há referências ao adultério de uma jovem
desposada.
Alguns defensores da teoria dos esponsais113 afirmam que Mateus
menciona a cláusula de exceção para explicar porque José, ao pensar que
Maria lhe havia sido infiel, cogitou repudiá-la secretamente antes da
consumação do casamento (Mateus 1:18,19). Como José é descrito como um
homem justo, Mateus teria mencionado a cláusula de exceção para deixar
claro aos seus leitores que José não teria cogitado uma possibilidade contrária
à lei, caso realmente Maria tivesse sido infiel.
Contudo, não parece coerente imaginar que Mateus teria adicionado a
cláusula de exceção para, aos olhos dos seus leitores, exonerar José da culpa
por ter pensado em repudiar Maria. Primeiramente porque José não executou
esse plano. Além disso, como o repúdio havia sido permitido por causa da
dureza dos corações, e José não é descrito como um homem nessa condição,
só podemos concluir que seu plano de repudiar Maria não correspondia
exatamente ao que estava prescrito em Deuteronômio 24:1-4.
Mesmo considerando o peso que o noivado tinha no contexto judaico, a
situação descrita em Deuteronômio 24:1-4 não se refere ao noivado, mas sim a
um casamento consumado, pois o texto começa dizendo: “Se um homem tomar
[no hebraico, laqach] uma mulher e se casar com ela...”. A palavra laqach é
usada em Deuteronômio 20:5-7, ao falar sobre o homem que desposou uma
mulher mais ainda não havia a recebido (laqach).

"Os oficiais falarão ao povo, dizendo: Qual o homem que edificou


casa nova e ainda não a consagrou? Vá, torne-se para casa, para que não
morra na peleja, e outrem a consagre. Qual o homem que plantou uma vinha
e ainda não a desfrutou? Vá, torne-se para casa, para que não morra na
peleja, e outrem a desfrute. Qual o homem que está desposado com alguma
mulher e ainda não a recebeu [laqach]? Vá, torne-se para casa, para que
não morra na peleja, e outro homem a receba [laqach]“ (Deuteronômio
20:5-7 - grifo nosso).

A regulamentação de Deuteronômio 24:1-4 não era a uma provisão para


o homem que estava por tomar (laqach) sua mulher, mas para o que já a havia
tomado. Isso também é evidenciado pelo fato de que a mulher repudiada saía
da casa de seu marido. Portanto, ela não era mais noiva114, pois neste caso
ainda viveria na casa de seus pais.
Retornando ao diálogo entre Jesus e os fariseus, não encontramos ali
nenhum elemento que permita concluir que, se há uma exceção para o
divórcio, esta seria restrita ao período do noivado. Para chegar a tal
conclusão, o texto deveria apresentar indicadores claros, que não
confundiriam seus leitores. Entretanto os termos usados se referem ao
casamento em qualquer dos seus estágios, e a cláusula de exceção usa uma
palavra que pode descrever a infidelidade sexual tanto da mulher desposada
quanto da mulher que já tem o seu casamento consumado.
A palavra grega para mulher utilizada em Mateus 5:32 e 19:9 é gune,
que se refere a qualquer mulher, seja virgem, noiva, casada ou viúva. Os
textos não apresentam nenhum elemento que possa restringir o significado de
gune a noiva115.
Por fim, ao insistir que a cláusula de exceção foi incluída por Mateus
para atender a uma especificidade da cultura judaica, a teoria dos esponsais
ignora o fato de que o próprio Evangelho destaca que os ensinos de Jesus
deveriam ser transmitidos a todas as nações.
Entre os evangelhos sinóticos, Mateus é o que mais se ocupa em registrar
a doutrina (didaké) de Jesus: apresenta a versão mais extensa do sermão do
monte, destacando que as multidões se maravilhavam da doutrina ali ensinada
(Mateus 7:28); registra a maior versão do sermão profético (Mateus 24);
contém mais parábolas sobre o Reino; e ao falar sobre a obra de fazer
discípulos de todas as nações, destaca a necessidade de ensinar a guardar tudo
o que Jesus ordenou.

“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em


nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas
as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até
à consumação do século” (Mateus 28:19,20 - grifo nosso).

Se Mateus se ocupa em registrar o ensino de Jesus e destaca seu alcance


universal, não faria sentido registrar uma exceção que só seria compreendida e
aplicada no contexto cultural judaico. Ainda que em Mateus 19:9 a exceção
seja mencionada em meio a um diálogo com os fariseus, em Mateus 5:32 ela é
mencionada espontaneamente por Jesus, num contexto em que se ocupa de
ensinar seus discípulos, perante as multidões (Mateus 5:1,2; 7:28,29). Depois,
os discípulos são enviados a todas as nações a fim de transmitir tudo o que
Jesus ordenou.
Após uma análise cuidadosa, podemos constatar que nenhuma das teorias
apresentadas neste capítulo conseguem usar argumentos consistentes para
afastar o significado geral da palavra porneia, e nem mesmo para sustentar
solidamente suas sugestões para o significado desse termo.
Conhecemos muitos defensores dessas teorias que são sinceramente
movidos pelo desejo de agradar a Deus e preservar a instituição do casamento
e da família. Porém, esse zelo pela instituição do casamento não pode nos
levar para além ou para aquém do que está escrito. À luz da Palavra de Deus,
entendemos que a dissolução do casamento entre dois cristãos só é possível
pela morte ou, excepcionalmente, pelo divórcio por causa de imoralidade
sexual de um dos cônjuges, sem arrependimento da parte ofensora. Com temor
e tremor diante da Palavra, essa é a compreensão que temos alcançado.
Capítulo 6
APLICAÇÃO PASTORAL
A única exceção que encontramos nas Escrituras para um casal de
cristãos se divorciar é no caso de porneia sem arrependimento da parte
ofensora. Acreditamos que a cláusula “exceto por causa de imoralidade
sexual” é válida somente para casais crentes, porque entendemos que Jesus
estava ensinando isso aos seus discípulos e não aos incrédulos. Isso é
evidenciado pelo fato de que Paulo tratou de forma diferente o caso
relacionado aos casados com cônjuge incrédulo (I Coríntios 7:12-16), tema
que estudaremos no próximo capítulo.
Dizemos que a exceção se dá por “falta arrependimento da parte
ofensora”, porque quando um dos cônjuges cai em imoralidade sexual, mas se
arrepende, confessa e abandona essa prática o mandamento é que devemos
perdoar e restaurar a relação. Uma relação sexual ilícita não dissolve
automaticamente o vínculo conjugal e nem torna o divórcio obrigatório. Se há
arrependimento da parte ofensora, a reconciliação é o caminho de Deus.
É interessante observar que o diálogo entre Jesus e os fariseus sobre o
divórcio (Mateus 19:1-9) aparece logo depois da parábola do credor
incompassivo, um dos mais profundos ensinos sobre o perdão. Depois de falar
sobre o homem que foi entregue aos atormentadores por não perdoar seu
conservo, Jesus completa: “Assim também meu Pai celeste vos fará, se do
íntimo não perdoardes cada um a seu irmão” (Mateus 18:35). Todos os
mandamentos sobre o perdão incidem sobre o casamento, pois marido e
mulher são, antes de tudo, irmãos em Cristo, “herdeiros da mesma graça de
vida” (I Pedro 3:7).
O cônjuge que se nega a perdoar o arrependido estará de numa situação
muito complicada. Enquanto o arrependido estará perdoado por Deus, o
cônjuge que não caiu em imoralidade estará sujeito a uma prisão por falta de
perdão.
No início de nossa comunidade, a experiência com esse tema foi muito
difícil. Não tínhamos conhecimento, material, internet ou a quantidade de
informações que existem hoje sobre o assunto. Toda essa limitação converteu-
se em benção para nós, pois tínhamos o Espírito Santo e a Bíblia. Então fomos
para um retiro e entramos em jejum e oração para recebermos de Deus uma
orientação sobre esse tema. A primeira coisa que o Espírito nos dirigiu foi
para que começássemos nosso estudo por Mateus 5, pois ali Jesus não está
sendo perguntado por ninguém, mas está ensinando espontaneamente.
Até então, havíamos aprendido que porneia era somente sexo entre
solteiros, mas o Espírito nos dirigiu a ler esta palavra em outros textos. E na
maioria deles, porneia não significa relações sexuais entre solteiros. Entre os
textos lidos, o que mais nos chamou a atenção foi o de Atos 15, pois ali os
apóstolos e presbíteros escreveram uma carta endereçada às igrejas dos
gentios orientando-os a se absterem “das contaminações dos ídolos, bem
como das relações sexuais ilícitas (porneia), da carne de animais sufocados
e do sangue” (Atos 15:19, 20). Essas recomendações coincidem com as
prescrições de Levítico 17 e 18 que condenam, entre outras coisas, as relações
sexuais abomináveis, como o incesto (vs. 1 a 18), o adultério (v. 20), o
homossexualismo (v. 22) e a bestialidade (v. 23).
Uma vez que a carta de Atos 15 havia sido escrita para uma igreja, não
podíamos acreditar que o dever de abster-se de porneia era direcionado
apenas aos solteiros, enquanto os casados estariam livres para fazerem o que
quisessem. Para nós, era uma grande incoerência tentar reduzir conceito de
porneia apenas a um tipo de pecado sexual.
Mediante esse entendimento, tornou-se claro para nós que porneia
abrangia a imoralidade sexual em geral, e assim nossa crença na
impossibilidade de um segundo casamento caiu por terra. O Espírito Santo nos
tirou daquele retiro com uma clareza sobre esse assunto – de que havia, sim,
uma exceção para o divórcio e novo casamento entre cristãos. Isso porque, na
lei, sempre foi dessa forma – a carta de divórcio dissolvia o primeiro
casamento e autorizava um segundo. Se o jugo fosse quebrado, ambos estariam
livres para um novo casamento.
Entendemos também que isso não era uma bagunça – “casa, separa,
casa, separa” –, mas que havia uma única exceção.
Graças a Deus, em nossa história de comunidade, o número de casais
que se reconciliaram é muito maior do que os que terminaram seus
casamentos. Lembro-me de pessoas que já estavam divorciadas no papel e, ao
receber e entender essa palavra, refizeram os documentos e se “recasaram”.
Outros continuam separados, mas sozinhos, dando um tempo, esperando em
Deus. O caminho excelente é que a parte ofendida espere, ore, e, com fé e
paciência, lute pela restauração do casamento. É nesse sentido que
pastoreamos o rebanho de Jesus.
Havendo fruto de arrependimento do cônjuge infiel, o cônjuge ofendido,
uma vez que é discípulo do Senhor Jesus, deve honrar a sua aliança e ser
benigno e compassivo (Efésios 4:31,32), perdoando seu cônjuge assim como
Deus nos perdoou, e procurando viver de uma forma tranquila (I
Tessalonicenses 4:11). O discípulo de Jesus não possui um coração duro, pois
ele tem o coração do Mestre.
Algumas perguntas costumam ser feitas sobre a nossa posição.
Buscaremos respondê-las a seguir.

Por que o adultério cometido após um divórcio ilegítimo não dissolve


o casamento e libera os cônjuges para um novo matrimônio (“... e aquele
que casar com a repudiada comete adultério”)?

Para responder esta pergunta, precisamos entender que a cláusula de


exceção diz respeito ao motivo do divórcio. Se não havia porneia no momento
do divórcio, o casamento não está dissolvido. O adultério pós-divórcio não
desfaz o vínculo conjugal.
Um casal cristão que se separa por qualquer outro motivo que não seja a
porneia, continua casado, presos um ao outro, e quem se casar de novo comete
adultério, pois o que importa é o motivo do repúdio e não o que o sucede.
Alguém que repudia a esposa por qualquer motivo pode vir mais tarde a
cometer adultério, mas isso não o libera da sua aliança.
Muitas pessoas se divorciam por um motivo qualquer e ficam na
expectativa de que o cônjuge caia em adultério, na ilusão de que isso
justificaria o seu divórcio e novo casamento. O adultério consequente de um
repúdio sem o verdadeiro motivo não dissolve o casamento, gerando assim
não só a responsabilidade de expor o outro ao adultério, bem como, se, após o
repúdio, houver novo casamento de ambos os lados, constitui-se adultério
para todos os envolvidos.

Será que depois de muitos anos de novo casamento o adultério inicial


de alguém “prescreveu”, não é mais considerado pecado?
A resposta é não, pois o motivo não foi consertado. Aos Coríntios,
respondendo se o cristão poderia se separar e casar de novo, Paulo apresenta
o mandamento do Senhor aos casados:

“Ora, aos casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se
separe do marido (se, porém, ela vier a separar-se, que não se case ou que
se reconcilie com seu marido); e que o marido não se aparte de sua mulher”
(I Coríntios 7:10, 11).

Em Mateus 19:3-9, conforme já vimos, Jesus também coloca a vontade


clara do Senhor, mas acrescenta a cláusula de exceção para os casos de
prostituição sem arrependimento.
Ainda que em nossa legislação haja a possibilidade do divórcio sem
motivo algum, precisamos lembrar que nenhum homem tem autoridade para
legislar sobre o casamento, mas apenas Deus. Há um limite básico para a
obediência do cristão ao governo: ele tem que obedecer a Deus antes que ao
homem (Atos 5:29). O cristão não deve nunca permitir que qualquer
autoridade, de qualquer tipo, suplante a autoridade de Cristo, que está acima
da autoridade do pai, do esposo, dos pastores da igreja, do chefe no trabalho
ou do funcionário no governo. Nunca podemos desculpar a desobediência a
Deus baseados em alguma lei ou decisão do Estado. Algumas vezes, as
pessoas se valem das leis liberais do governo a respeito do divórcio para
desculpar sua ignorância acerca do que Deus disse.
Esta é a nossa fé sobre divórcio e novo casamento – adotando a cláusula
da exceção. No entanto, embora compreendamos assim, isso não significa que
acreditamos ter a verdade final do assunto. Estamos sempre em temor e
tremor, abertos a Deus se estivermos errados, se houver equívocos em nossa
interpretação. Os pontos que cremos até esse momento são: Deus uniu o
homem e a mulher, Ele quer um marido e uma esposa, quer que o casamento
dure até que a morte os separe e que nenhum casamento se desfaça, pois Ele
odeia o repúdio (falado, sentido e escrito). Quando o repúdio é materializado
na carta de divórcio, está apenas reproduzindo externamente algo que o
coração duro já estava alimentando há tempos. Deus odeia aquilo que não é
amor – aquilo que não aceita, não acolhe, não recebe, não suporta, não espera,
não sofre.
O que cremos e queremos é o que havia no princípio. Só falamos da
exceção porque vivemos em um mundo onde as pessoas, infelizmente, em sua
maioria, não amam a Deus de todo o coração, não tomam a cruz, mas se
repudiam mutuamente, se divorciam em grande proporção (crentes e não
crentes). Estamos assustados com tudo isso, pois sabemos qual é a vontade de
Deus para a vida do casal. Porém, como estamos nesse contexto todo,
precisamos ter uma luz divina para pastorear as pessoas que chegam com
esses problemas, quer sejam crentes ou incrédulos.
Cabe ainda um esclarecimento sobre um tema. À luz dos textos de I
Timóteo 3:2 e Tito 1:6, onde se diz que o bispo ou presbítero deve ser marido
de uma só mulher, e também considerando a natureza do ministério do
presbítero, que deve ser modelo do rebanho (I Pedro 5:1-3), temos
compreendido que a presidência da igreja local não deve ser ocupada por
homens divorciados.
Em todas as Igrejas que servimos, costumamos dar estas orientações aos
líderes que cooperam no apascento da igreja. Elas surgiram durante o trabalho
pastoral do presbitério da Igreja na zona oeste do Rio de Janeiro:

1) Todo caso que envolva dificuldades matrimoniais graves deve ser


levado aos que presidem a igreja – governo da igreja local.

2) Em todo caso de conversão, havendo segundo casamento, que seja


avaliada a questão pelos que presidem a igreja – governo da igreja local.

3) Se a pessoa vem separada, que não se precipite em arrumar outro


matrimônio. Também deve ser submetido o seu caso aos que presidem a
igreja – governo da igreja local.

4) Havendo pecado de porneia (relações sexuais ilícitas), deve ser


informado imediatamente aos que presidem a igreja – governo da igreja
local.

Muitos líderes de células, grupos caseiros ou grupos familiares que


cooperam no apascento da igreja local, precisam deixar claro que o
compromisso de confidencialidade no discipulado não alcança a presidência
da igreja local. Anos atrás, eu (Sérgio Franco) fui visitar um irmão que estava
preso, um ex-policial. Conversando, ele confessou que realmente havia
matado várias pessoas. Eu lhe disse: “Por que, quando você matou a primeira
pessoa, já não pediu ajuda pastoral?” “Eu pedi”, respondeu ele, “falei com
meu discipulador”. Então chamei esse discipulador, questionei-lhe sobre o
assunto e ele confirmou o fato, dizendo: “Eu achei que era um assunto muito
sério e resolvi proteger aquele irmão!”
Existem coisas que nós ouvimos e não podemos simplesmente “guardar
segredo”. Em alguns casos, não podemos nos comprometer com a
confidencialidade, principalmente quando prestamos contas das vidas a outro
pastor, ou seja, quando temos acima de nós um grupo de homens que nos
presidem e nos pastoreiam no Senhor. Dependendo do que as pessoas nos
contam, precisamos deixá-los informados e lhes pedir ajuda. Quaisquer casos
que envolvam pecados como porneia, homicídio, roubo e heresias, entre
outros, não podem ser ocultados daqueles que nos apascentam. Mesmo que a
pessoa não seja exposta publicamente ou disciplinada, os irmãos que presidem
precisam saber do fato com o intuito de ajudar esse irmão ou irmã, inclusive
porque esses pecados trazem muito dano ao corpo de Cristo, a igreja (I
Coríntios 5:6).
Essas pessoas não precisam de segredo, mas de ajuda. Inclusive, quando
ocultamos algo, o próprio Deus se encarrega de revelar a alguém, pois Ele não
quer que essas coisas fiquem encobertas e, dessa forma, aprenderemos a
apascentar uns aos outros e fazer a vontade de Deus.
Capítulo 7
A CONDIÇÃO MATRIMONIAL DOS
INCRÉDULOS
Dedicamos os capítulos anteriores ao estudo sobre o casamento e o
divórcio quando os dois cônjuges se declaram cristãos. Porém, ainda resta
esclarecermos as dúvidas em relação ao casamento e separação quando um
dos cônjuges é incrédulo, e quando uma pessoa casada se converte já na
condição de divorciada. Neste último caso, é necessário ter uma ação pastoral
sobre algo que já está concretizado.
Para nos aprofundarmos neste tema, precisamos passar por I Coríntios 7,
capítulo em que o Paulo responde perguntas que os coríntios lhe haviam feito
anteriormente sobre o casamento. Não sabemos exatamente quais foram as
perguntas. Entretanto, a partir das respostas dadas por Paulo, podemos pensar
sobre os questionamentos daquela igreja. Podem ter sido perguntas como
estas: “Como fica a situação de uma pessoa que se converte e seu cônjuge
permanece na incredulidade, abandonando-a depois de algum tempo?”,
“Continua ligado pelo casamento ao cônjuge incrédulo que o abandonou?”,
“Uma mulher que havia se casado com um homem por imposição do pai, mas
sem amá-lo, poderia se casar com outro a quem amasse?” etc.
Eram inúmeras as questões que surgiam, e Paulo e os demais apóstolos
tinham que responder. Essas dúvidas aconteciam, provavelmente, porque o
assunto do divórcio não era tão debatido e ensinado no meio da igreja naquela
época.
A partir do versículo 8, Paulo começa a dar orientações específicas para
cada estado civil. Nos versículos 8 e 9, sua palavra é direcionada aos
solteiros e viúvos. Nos versículos 10 e 11, ele escreve aos casados,
transmitindo-lhes uma palavra do próprio Senhor. E nos versículos 12 ao 16,
Paulo começa a escrever “aos mais”. Quem seriam esses “mais”, uma vez que
Paulo já escreveu às viúvas, aos solteiros e aos casados? O próprio apóstolo
explica: “se algum irmão tem mulher incrédula... e a mulher que tem marido
incrédulo”.
Ao falar sobre os casamentos em que um dos cônjuges era incrédulo,
Paulo não estava animando os cristãos a se casarem com descrentes, pois ele
reprovava o jugo desigual (II Coríntios 6;12,16) e escreveu sobre a liberdade
da viúva de casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor (I Coríntios
7:39). Entretanto, há casos de casamentos mistos em que um dos cônjuges se
converte ao Senhor enquanto o outro permanece na incredulidade. Nessa
situação, o cônjuge cristão poderia separar-se do incrédulo para casar-se com
alguém da mesma fé?
Os questionamentos feitos sobre por alguém que está casado com um
incrédulo são absolutamente naturais. Afinal, um casal cristão, ainda que passe
por crises intensas, tem à sua disposição muitos recursos que favorecem a
reconciliação116: ambos contam com a presença do Espírito Santo, o temor à
Palavra de Deus e o desejo de fazer a vontade do Senhor. Além disso, ainda
podem contar com a ação pastoral da igreja e até mesmo receber uma ação
disciplinar, caso um ou ambos os cônjuges estejam endurecidos e se recusem a
obedecer à Palavra117. Entretanto, aquele que é casado com um descrente se
encontra numa situação diferente e que pode se tornar muito difícil, uma vez
que seu cônjuge não obedece à fé.
Vejamos o que Paulo disse aos casados e àqueles que são casados com
incrédulo(a):

- vs. 10 e 11 – “Ora, aos casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a
mulher não se separe do marido (se, porém, ela vier a separar-se, que não
se case ou que se reconcilie com seu marido); e que o marido não se
aparte de sua mulher” (grifo nosso).

- vs. 12 ao 15 – “Aos mais digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem
mulher incrédula, e esta consente em morar com ele, não a abandone; e a
mulher que tem marido incrédulo, e este consente em viver com ela, não
deixe o marido. Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da
esposa, e a esposa incrédula é santificada no convívio do marido crente.
Doutra sorte, os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos.
Mas, se o descrente quiser apartar-se, que se aparte; em tais casos, não
fica sujeito à servidão nem o irmão, nem a irmã; Deus vos tem chamado à
paz” (grifo nosso).
Para cada situação o apóstolo apresenta uma abordagem diferente. Aos
casais cristãos, Paulo diz “ordeno, não eu, mas o Senhor”. Já para os casados
com incrédulo, ele declara “digo eu, não o Senhor”. Será que Paulo estaria
falando algo contrário ao que Jesus ensinou. Certamente não. Ao dizer “digo
eu, não o Senhor”, o apóstolo está tão somente dizendo que não havia uma
palavra específica de Jesus acerca do tema. Essa era a concepção de Paulo
sobre o que Jesus disse sobre casamento e separação. Se entendesse que o
ensino de Jesus sobre o tema se aplicava universalmente a todo e qualquer
casamento, então Paulo estaria em contradição franca e direta com o Senhor,
admitida claramente. Entretanto, não foi assim, pois Paulo entendia que, ao dar
uma orientação aos casados com incrédulos, tratava de um tema não abordado
pelo Senhor. Por isso, entendemos que casamentos mistos tem um tratamento
diferente à luz do que o apóstolo ensinou.
Paulo usava de uma ousadia tremenda: “Digo eu, não o Senhor”. Ou
seja, ele não tinha um mandamento explícito de Jesus sobre alguns assuntos,
mas ensinava o que cria, pois tinha o Espírito do Senhor em sua vida e exercia
uma responsabilidade apostólica, pois era enviado do próprio Jesus aos
gentios. Por isso usava de ousadia para afirmar em seu próprio nome algumas
verdades que cria, mesmo sem as ter recebido diretamente de Jesus, pois agia
debaixo de um envio, um comissionamento.

Sabemos que Jesus, no seu ministério terreno, foi enviado aos judeus, e
não aos gentios:

“Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”


(Mateus 15:24 - grifo nosso).

“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (João 1:11 -
grifo nosso).

Já Paulo foi enviado por Jesus aos gentios:

“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, e o irmão


Timóteo, à igreja de Deus que está em Corinto e a todos os santos em toda a
Acaia...” (II Coríntios 1:1 - grifo nosso).
“Paulo, apóstolo, não da parte de homens, nem por intermédio de
homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dentre
os mortos...” (Gálatas 1:1 - grifo nosso).

“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus, aos santos que
vivem em Éfeso e fiéis em Cristo Jesus…” (Efésios 1:1 - grifo nosso).

“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão


Timóteo...” (Colossenses 1:1 - grifo nosso).

“Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, pelo mandato de Deus, nosso


Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança…” (1 Timóteo 1:1 - grifo
nosso).

“A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar


aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo...” (Efésios 3:8 -
grifo nosso).

Na orientação aos casais cristãos (I Coríntios 7:10,11), há algumas


colocações importantes. Primeiramente, o mandamento para a mulher é de que
esta não deve se separar118 de seu marido (v.10), mas se isso ocorrer, só lhe
resta duas alternativas: ficar sem casar ou se reconciliar com ele (v.11). À luz
do ensino de Jesus, vemos que existe a exceção para os casos de imoralidade
sexual, e por isso sabemos que nesse contexto Paulo está se referindo à regra
geral de proibição do divórcio. Já para o marido, o mandamento é que não se
aparte119 de sua mulher (v.11), porém nada é dito sobre o que ele deve fazer
em caso de separação. No entanto, a ausência dessa informação não
fundamenta um segundo casamento por parte do homem, pois o Senhor Jesus já
havia deixado claro para os discípulos que só havia uma única exceção para
um novo matrimônio.
E quanto aos casados com incrédulo(a)? Vamos analisar I Coríntios 7:12
ao 15.

- v. 12 - “Aos mais digo eu, não o Senhor…”.


Jesus não havia tratado desses casos, pois Seus mandamentos são
dirigidos aos convertidos, discípulos, povo de Deus. E os incrédulos,
obviamente, não estão comprometidos em viver esses mandamentos. Isso só
seria possível se eles se convertessem.
Por que ensinamos II Coríntios 6:14, “Não vos ponhais em jugo
desigual com os incrédulos”, aos cristãos solteiros? Justamente porque os
incrédulos não recebem ou praticam os mandamentos do Senhor. Eles estão
perdidos, independentemente de sua condição conjugal, e precisam nascer de
novo para poderem se sujeitar às leis do Reino de Deus.

- v. 12 e 13 - “se algum irmão tem mulher incrédula, e esta consente


em morar com ele, não a abandone; e a mulher que tem marido incrédulo, e
este consente em viver com ela, não deixe o marido” (grifo nosso).

Observe que o mandamento do apóstolo é para o cônjuge crente. O


incrédulo pode ou não consentir em seguir casado com o cristão. No entanto,
quando este consente de fato, o cônjuge crente possui um mandamento claro
dado pelo apóstolo: “Não a abandone” e “não deixe o marido”120.
Se algum dos coríntios tinha perguntas sobre a possibilidade de se
divorciar de um cônjuge incrédulo para se casar com um cristão, o ensino de
Paulo não deixa dúvida alguma sobre o dever que o cristão tem de se manter
no seu matrimonio, mesmo que o cônjuge seja incrédulo. Esse casamento é
válido e legítimo.
O fato de estar casado com o incrédulo não exime o cônjuge cristão de
cumprir o papel que lhe corresponde no casamento. Por isso, os maridos
devem amar suas esposas dando suas vidas por elas, mesmo quando a esposa
é descrente. As mulheres devem ser submissas aos seus próprios maridos, até
quando estes são incrédulos. Estar casado com um incrédulo não é uma licença
para descumprir as responsabilidades conjugais.
Provavelmente a maior dúvida aqui é com relação a palavra “consente”,
que no grego é suneudokeo, que significa: estar satisfeito com; aprovar junto
com, estar satisfeito ao mesmo tempo com, consentir, concordar com. Por que
é importante compreender bem esta palavra? Porque no pastoreio nós ouvimos
ou ouviremos a seguinte pergunta: Como fica, por exemplo, um caso em que o
marido incrédulo trai ou bate na mulher – ela é obrigada a permanecer com
ele? Cremos que a palavra “consente” é a chave para essa pergunta, pois
“consentir” implica em viver um padrão normal de casamento. Um cônjuge
incrédulo que agride, não cumpre o seu papel, não é fiel, certamente não
consente em viver com o cônjuge cristão. Ou seja, um cristão não é obrigado a
viver debaixo do mesmo teto com um incrédulo que não consente em viver
com o cristão. O mandamento é: “não abandone, não deixe, aquele marido ou
esposa incrédulo(a) que consente em viver com o cônjuge cristão”.
O texto também deixa uma pista interessante sobre a palavra “consentir”.
Tudo indica que quando o incrédulo quer se apartar é um forte indício que ele
não consente em viver com o crente.

- v. 14 - “Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da


esposa, e a esposa incrédula é santificada no convívio do marido crente.
Doutra sorte, os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos”.

Quando Paulo afirma que o cônjuge incrédulo é santificado no convívio


com cônjuge cristão, ele não quer dizer que o incrédulo é automaticamente
salvo. Com o termo “santificar” o apóstolo diz que o não crente é “posto à
parte”, numa posição em que é abençoado por esse convívio, sendo exposto ao
Evangelho e às influências do Espírito Santo121.

Isso é reforçado pelo que Pedro escreve às mulheres:

“Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vosso próprio marido,


para que, se ele ainda não obedece à palavra, seja ganho, sem palavra
alguma, por meio do procedimento de sua esposa, ao observar o vosso
honesto comportamento cheio de temor” (I Pedro 3:1).

- v. 15 - “Mas, se o descrente quiser apartar-se, que se aparte; em tais


casos, não fica sujeito à servidão nem o irmão, nem a irmã; Deus vos tem
chamado à paz” (grifo nosso).

Cabe ressaltar também a diferença em relação ao mandamento que Jesus


havia dado ao casal de cristãos que uma vez separados só tinham as
alternativas de ficarem sozinhos ou se reconciliarem entre si. A pergunta é: se
uma pessoa se converte após estar casada e seu cônjuge permanece na
incredulidade, além da exceção dada por Jesus, pode ocorrer o divórcio por
outro motivo? Sim, e Paulo explica essa concessão: “Se o descrente quiser
apartar-se, que se aparte”. Perceba que o motivo para essa separação deve
ser o desejo do cônjuge incrédulo em sair da casa, e não o cônjuge crente,
devido ao seu mau testemunho ou mero desejo de abandonar o incrédulo. O
abandono por parte do cônjuge incrédulo é um sinal de que ele não consente
em viver com o cônjuge cristão. Contudo, manipular a situação para que a
parte incrédula desista desta união é uma atitude pecaminosa. O convívio com
o cônjuge crente deve santificar do cônjuge descrente.
Os irmãos que defendem a impossibilidade de um segundo casamento
alegam que Paulo disse a mesma coisa que Jesus. Se isso fosse verdade, o
apóstolo não teria agregado mais nada ao que disse anteriormente. Paulo de
forma alguma precisaria escrever “digo eu, não o Senhor”, pois o Senhor
Jesus já teria tratado tudo sobre o tema. Quaisquer dúvidas sobre o tema
seriam totalmente dissipadas apenas com os versículos 10 e 11 de I Coríntios
7. Porém, Paulo considera a necessidade de dar uma direção especifica sobre
esse assunto tão delicado.
Para cada situação, Paulo apresenta uma condicional. Aos casados, a
condicional é: “Se, porém, ela vier a separar-se, que não se case ou que se
reconcilie com seu marido; e que o marido não se aparte de sua mulher”. A
condicional para os casados com incrédulo(a) é: “Se algum irmão tem mulher
incrédula, e esta consente em morar com ele, não a abandone; e a mulher
que tem marido incrédulo, e este consente em viver com ela, não deixe o
marido”.
Até certo ponto, a palavra dada aos casados com incrédulos já havia
sido dada aos casais cristãos: não se separem! No entanto, quando acontece a
separação promovida pelo cônjuge incrédulo, Paulo dá outra direção e não diz
que o cônjuge abandonado deve ficar sem casar, mas declara: “… em tais
casos, não fica sujeito à servidão nem o irmão, nem a irmã. Deus vos tem
chamado à paz”. Mas esse cônjuge crente que ficou só pode se casar
novamente? “... em tais casos, não fica sujeito à servidão nem o irmão, nem
a irmã”. Quando o assunto envolve a incredulidade de um dos cônjuges, Paulo
assume a responsabilidade e traz uma direção à igreja.
Vamos colocar nossa atenção em um detalhe importantíssimo. No grego,
a palavra servidão é douloo, que significa literalmente “escravidão”. No
dicionário Strong, douloo é traduzido como: 1) fazer um escravo de, reduzir à
escravidão 2) metaf. entregar-me totalmente às necessidades e ao serviço de
alguém, tornar-me um servo para ele. Paulo compara o jugo do casamento à
escravidão, da qual torna-se livre o cristão que é abandonado por seu cônjuge
incrédulo.
A expressão “não fica sujeito à servidão” de I Coríntios 7:15, era um
termo jurídico utilizado na época em várias situações, inclusive na questão
relacionada à libertação de escravos. Entendemos que se alguém é livre, mas
não pode se casar, então essa pessoa não é realmente livre.
A palavra usada para se referir a alguém que está sob douloo
(escravidão) é doulos, ou seja, escravo. Já a palavra que faz referência à uma
pessoa liberta da escravidão é eleutheros122. Curiosamente, essa é a mesma
palavra usada por Paulo para dizer que a mulher viúva é livre (eleutheros)
para casar-se novamente (I Coríntios 7:39). Se agora era livre, é porque antes
estava sob uma servidão ou escravidão (douloo). Mais uma vez vemos Paulo
comparando o casamento ao jugo da servidão.

“A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o


marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor” (1
Coríntios 7:39 - grifo nosso).

Se alguém deixa de estar sujeito à servidão, ou seja, deixa de estar sob


douloo, logo é eleutheros, livre.
Assim, se o cônjuge incrédulo decide deixar a família, o cônjuge crente
está livre do jugo do casamento e pode se casar novamente, mas somente no
Senhor, desde que não seja o crente o motivo da separação.
Um fato interessante sobre a corrente que não admite o divórcio em
hipótese alguma, é o tratamento dado pela igreja católica quando o assunto
envolve “pagãos”. Suponhamos que um “pagão” casou e se divorciou duas
vezes, e depois disso se converteu no seu terceiro casamento. Nessa situação,
a igreja católica aceita seu último casamento, pois considera que no ato em
que ele teve consciência da fé em Jesus, em que a graça operou em sua vida,
seu atual casamento se torna legitimado. Não importa quantas vezes tenha se
divorciado “no mundo”. Agora, diante de Deus, ele está casado e é esse que é
válido.
Tal posicionamento é mais coerente do que fazer com que ele(a)
abandone seu cônjuge e retorne ao primeiro. Esta prática contraria até a lei de
Moisés, e precisamos lembrar que a igreja surgiu no contexto judaico. Cremos
que é dessa forma que a orientação pastoral funcionava no início da igreja, ou
seja, eles aceitavam a condição em que cada um foi chamado e não orientavam
a separação e o retorno ao primeiro cônjuge. Os pastores da primeira igreja
recebiam muitos casais nessa situação. Então, provavelmente, desconsiderava-
se o tempo vivido “no mundo” ou “na ignorância” e, a partir do momento que
entravam no Reino, aprendiam qual era o plano original de Deus e Sua
vontade para suas vidas.

Em síntese, o texto de I Coríntios 7:12 ao 15 nos mostra algumas


verdades:

a) o vínculo matrimonial com incrédulo é um caso incomum, não


previsto anteriormente, pois é um “jugo” desigual (II Coríntios 2:14-16);

b) Jesus não administrou jugo desigual durante seu ministério terreno,


pois falou a judeus convertidos. Porém, agora, através do Espírito Santo,
Deus dá instruções a Paulo sobre como tratar os que se converteram já
casados, cujos cônjuges permaneceram na incredulidade;

c) a mulher ou homem cristão que possui cônjuge incrédulo não deve se


separar pela sua própria iniciativa, nem induzir o cônjuge ímpio a fazê-lo;

d) quando um incrédulo consente em permanecer casado com um


cristão, ele é santificado no convívio do cônjuge crente.
Capítulo 8
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O coração do pai
Sabemos que Deus une homem e mulher para que estejam juntos por toda
a vida. A orientação de Jesus é clara e precisa: “o que Deus ajuntou não o
separe o homem”. O divórcio não faz parte do plano original de Deus para o
casamento, e infelizmente só ocorre por causa da realidade do pecado no
mundo. Porém, precisamos reafirmar que nossa luta sempre é para manter
aquilo que foi unido pelo próprio Deus. Nosso trabalho é para preservar e
fortalecer a aliança do casamento. Afinal, digno de honra entre todos é o
matrimônio. Precisamos compreender o coração do Pai quanto a esse tema.
Quando eu (Sérgio Franco) recebi o “pacote pentecostal” com seus usos
e costumes, passei um tempo da minha vida numa prática que, além de mística,
me furtava a liberdade de usar alguns trajes. Passei a viver debaixo de um
jugo e ao mesmo tempo tentava impô-lo sobre outras pessoas. Ninguém
escapava dos meus olhos críticos que condenavam e desprezavam aqueles que
não viviam como eu. Entre as minhas vítimas de preconceito estavam as
mulheres que vestiam calças compridas, que se maquiavam, se perfumavam e
se adornavam. Se eu não visse nas irmãs o meu padrão de santidade, ou seja,
aqueles usos e costumes que, a meu ver, as santificavam, eu as julgava e
desprezava. Foi neste tempo que eu li um dos textos mais libertadores da
minha vida: Ezequiel 16:1-43. Foi quando vi Deus comparando Jerusalém com
uma mulher e Ele próprio como seu esposo, eu sabia que o Senhor não usaria
um tipo, uma figura profética que Ele mesmo não aprovasse para ensinar o Seu
povo. E para a minha perplexidade, no texto de Ezequiel 16, Deus adornou,
vestiu e perfumou aquela “mulher”. Para um “pentecostal roxo”, esse texto
soava como uma heresia. Onde que na minha teologia caberia um tratamento
daqueles para com uma mulher?

Ezequiel 16:11-13:

“…Também te vesti de roupas bordadas, e te calcei com couro da


melhor qualidade, e te cingi de linho fino, e te cobri de seda. Também te
adornei com enfeites e te pus braceletes nas mãos e colar à roda do teu
pescoço. Coloquei-te um pendente no nariz, arrecadas nas orelhas e linda
coroa na cabeça. Assim, foste ornada de ouro e prata; o teu vestido era de
linho fino, de seda e de bordados; nutriste-te de flor de farinha, de mel e
azeite; eras formosa em extremo e chegaste a ser rainha…”

Na continuação do texto, percebi que não apenas Deus tratou aquela


mulher como uma princesa amada, mas também levou-a, por causa da sua
prostituição (porneia) a um julgamento, ao apedrejamento e morte.

Ezequiel 16:36-43:

“Assim diz o SENHOR Deus: Por se ter exagerado a tua lascívia e se


ter descoberto a tua nudez nas tuas prostituições com os teus amantes; e por
causa também das abominações de todos os teus ídolos e do sangue de teus
filhos a estes sacrificados, eis que ajuntarei todos os teus amantes, com os
quais te deleitaste, como também todos os que amaste, com todos os que
aborreceste; ajuntá-los-ei de todas as partes contra ti e descobrirei as tuas
vergonhas diante deles, para que todos as vejam. Julgar-te-ei como são
julgadas as adúlteras e as sanguinárias; e te farei vítima de furor e de
ciúme. Entregar-te-ei nas suas mãos, e derribarão o teu prostíbulo de culto
e os teus elevados altares; despir-te-ão de teus vestidos, tomarão as tuas
finas jóias e te deixarão nua e descoberta. Farão subir contra ti uma
multidão, apedrejar-te-ão e te traspassarão com suas espadas. Queimarão
as tuas casas e executarão juízos contra ti, à vista de muitas mulheres; farei
cessar o teu meretrício, e já não darás paga. Desse modo, satisfarei em ti o
meu furor, os meus ciúmes se apartarão de ti, aquietar-me-ei e jamais me
indignarei. Visto que não te lembraste dos dias da tua mocidade e me
provocaste à ira com tudo isto, eis que também eu farei recair sobre a tua
cabeça o castigo do teu procedimento, diz o SENHOR Deus; e a todas as
tuas abominações não acrescentarás esta depravação” (Grifo nosso).

Não foi a única vez que Deus usou esta figura de marido e mulher para
confrontar o pecado do Seu povo. Isaías e Jeremias também falaram usando a
mesma metáfora, entretanto não falam de apedrejamento, mas de divórcio e
repúdio. Apesar deste triste fato, nós podemos aprender com o Pai algo
simplesmente espetacular sobre os direitos que temos diante do nosso amor
aos nossos cônjuges.
Penso que nos primeiros dias da igreja, mesmo existindo a cláusula de
exceção, ela pode não ter sido utilizada. Acredito nisso por conta de uma
maior fidelidade ao evangelho do reino que era pregado, e também por
entender que se parecer com o Pai (Efésios 5:1) pode nos levar a abrir mão
dos nossos direitos em detrimento do amor. O mesmo princípio que se aplica
quando abrirmos mão da liberdade por causa de um irmão que é débil na fé.
Costumamos dizer que a nossa fé nos liberta, enquanto o nosso amor nos
escraviza. Renunciamos em vários momentos à liberdade fundamentada pela fé
quando compreendemos que esta pode fazer alguém mais fraco tropeçar na fé.
Decidimos então, em nome do amor, renunciar a alguma prática que temos por
direito estabelecido e fundamentado numa fé clara.
Creio que o mesmo é possível com relação à cláusula de exceção. Além
disso, na nossa experiência pastoral de mais de 30 anos, contamos
pouquíssimos casos, menos de 10, onde houve de fato uma permanência no
pecado de prostituição sem que a parte ofensora se arrependesse. Os casos de
restauração são muitos e com testemunhos maravilhosos. Sendo assim, se eu
tenho poucos casos que verdadeiramente se enquadram na cláusula de exceção
e muito de ensino sobre a lei do amor, é possível que nenhum divórcio tenha
ocorrido entre cristãos nos primeiros anos de vida da igreja. Vejamos,
portanto, como a lei do amor pode ser percebida até na Antiga Aliança.

Isaías 50:1:

“Assim diz o SENHOR: Onde está a carta de divórcio de vossa mãe,


pela qual eu a repudiei? Ou quem é o meu credor, a quem eu vos tenha
vendido? Eis que por causa das vossas iniquidades é que fostes vendidos, e
por causa das vossas transgressões vossa mãe foi repudiada”.
O profeta mais uma vez apresenta Deus como se Ele fosse um homem
casado que está tratando a infidelidade de sua esposa. Desta feita, o juízo foi a
carta de divórcio. O motivo é o único considerado por Jesus: “prostituição”.
Aqui nós não conseguimos ver a lei do amor sobrepujar a lei da justiça. No
entanto, quando lemos Jeremias, os nossos olhos são iluminados.
Jeremias 3:1-15:
“Se um homem repudiar sua mulher, e ela o deixar e tomar outro
marido, porventura, aquele tornará a ela? Não se poluiria com isso de todo
aquela terra? Ora, tu te prostituíste com muitos amantes; mas, ainda assim,
torna para mim, diz o SENHOR. Levanta os olhos aos altos desnudos e vê;
onde não te prostituíste? Nos caminhos te assentavas à espera deles como o
arábio no deserto; assim, poluíste a terra com as tuas devassidões e com a
tua malícia. Pelo que foram retiradas as chuvas, e não houve chuva serôdia;
mas tu tens a fronte de prostituta e não queres ter vergonha. Não é fato que
agora mesmo tu me invocas, dizendo: Pai meu, tu és o amigo da minha
mocidade? Conservarás para sempre a tua ira? Ou a reterás até ao fim?
Sim, assim me falas, mas cometes maldade a mais não poder. Disse mais o
SENHOR nos dias do rei Josias: Viste o que fez a pérfida Israel? Foi a todo
monte alto e debaixo de toda árvore frondosa e se deu ali a toda
prostituição. E, depois de ela ter feito tudo isso, eu pensei que ela voltaria
para mim, mas não voltou. A sua pérfida irmã Judá viu isto. Quando, por
causa de tudo isto, por ter cometido adultério, eu despedi a pérfida Israel e
lhe dei carta de divórcio, vi que a falsa Judá, sua irmã, não temeu; mas ela
mesma se foi e se deu à prostituição. Sucedeu que, pelo ruidoso da sua
prostituição, poluiu ela a terra; porque adulterou, adorando pedras e
árvores. Apesar de tudo isso, não voltou de todo o coração para mim a sua
falsa irmã Judá, mas fingidamente, diz o SENHOR. Disse-me o SENHOR: Já
a pérfida Israel se mostrou mais justa do que a falsa Judá. Vai, pois, e
apregoa estas palavras para o lado do Norte e dize: Volta, ó pérfida Israel,
diz o SENHOR, e não farei cair a minha ira sobre ti, porque eu sou
compassivo, diz o SENHOR, e não manterei para sempre a minha ira.. Tão-
somente reconhece a tua iniqüidade, reconhece que transgrediste contra o
SENHOR, teu Deus, e te prostituíste com os estranhos debaixo de toda
árvore frondosa e não deste ouvidos à minha voz, diz o SENHOR. Convertei-
vos, ó filhos rebeldes, diz o SENHOR; porque eu sou o vosso esposo e vos
tomarei, um de cada cidade e dois de cada família, e vos levarei a Sião. Dar-
vos-ei pastores segundo o meu coração, que vos apascentem com
conhecimento e com inteligência” (grifo nosso).

Neste texto de Jeremias, fica claro que a misericórdia triunfa sobre o


juízo (Tiago 2:13) e que mesmo quando há uma causa justa para o divórcio,
nós encontramos um coração cheio de amor e misericórdia que não se apoia
neste direito.
A cláusula de exceção muitas vezes se torna um teste para corações
obstinados. Não foi apenas uma vez que precisei pastorear irmãos que me
buscaram na esperança de encontrarem uma “brecha” teológica para suas
obstinações. Eles pensavam que eu, pelo fato de crer na cláusula de exceção,
os animaria ao divórcio. Ledo engano. Graças a Deus eles foram guiados por
um caminho de amor e quebrantamento. Num desses casos, após uma conversa
no Rio de Janeiro, eu recebi uma mensagem dizendo que o casamento havia
sido restaurado. Glórias a Deus! Além destes encontros pessoais, testemunhei
muitos outros com meus companheiros de ministério.
Se um homem deve amar sua esposa como Cristo amou a igreja, será que
ele não pode dizer o que o Senhor declarou para o povo de Israel? - “Volta, ó
pérfida Israel, diz o SENHOR…”.
A condição ali era ainda mais grave, pois a lei dizia que uma mulher
divorciada que arrumou outro homem não poderia retornar para o seu primeiro
marido. No entanto, o Senhor abriu o seu coração para a mulher adúltera e a
chamou ao arrependimento, mesmo depois de ter se divorciado dela. Esta
lição, por exemplo, poderia ter influenciado a vida da igreja do primeiro
século. Por meio de um sábio apascento com uma Palavra clara, mesmo
havendo uma cláusula de exceção, é muito provável que os discípulos não se
valeram dela.
Alguém poderia me perguntar: Se esta é a sua fé, por que então você
aceita alguém que repudiou o seu cônjuge por causa de relações sexuais
ilícitas no meio da comunidade dos discípulos? A sua prática pastoral não
estaria incoerente com a sua fé? Para esta pergunta tenho duas respostas. A
primeira é a seguinte: Dizer que nos primeiros séculos não houve registro de
divórcio é uma coisa, outra coisa é dizer que a igreja não recebeu gente que já
era divorciada ou casada pela segunda vez. Alguns desses casos podem ter
ocorrido até mesmo pelo cumprimento da lei do “levirato”, e ainda poderia
haver aqueles que por cultura possuíam mais de uma esposa. A segunda
resposta infelizmente é um fato muito triste e que me pesa tremendamente: nós
não recebemos apenas divorciados que vêm do mundo, mas também ovelhas,
provenientes de outras comunidades, que não foram pastoreadas ou que foram
mal pastoreadas. Tenho vergonha, mas infelizmente isso é algo dramático, pois
a quantidade de casos não pastoreados ou pastoreados indevidamente é
enorme. Essas pessoas quando chegam ao nosso convívio, já estão
divorciadas e, em alguns casos, casadas novamente. Quando isso ocorre, nós
checamos cada situação. Avaliamos as circunstâncias daqueles que vêm do
mundo e dos provenientes de outras comunidades. Verificamos se o caso se
enquadra na exceção de Jesus ou nos ensinos de Paulo.
Na nossa concepção, os casos provenientes de outras comunidades
cristãs são os mais tristes e dolorosos, pois raramente se encaixam na cláusula
de exceção ou nos ensinos de Paulo. Na maioria das vezes fica notório que
faltou apascento. Quando o assunto é pastoreio de casais em crise, já ouvimos
coisas de doer o coração. Lembro-me do caso de uma filha de pastor que
ouviu a seguinte frase do seu próprio pai, quando estava em meio a uma crise
conjugal: “Quem te casou fui eu, logo, eu tenho autoridade para te descasar.
Pode deixar o seu marido que eu garanto!”.
Quando lemos a conclusão de Jeremias, não resta dúvida de que Deus
também contemplou esta falta de apascento no meio daquele povo que se
prostituía:

Jeremias 3:14-15:

“Convertei-vos, ó filhos rebeldes, diz o SENHOR; porque eu sou o


vosso esposo e vos tomarei, um de cada cidade e dois de cada família, e vos
levarei a Sião. Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, que vos
apascentem com conhecimento e com inteligência” (Grifo nosso).

Em geral nós aceitamos pessoas que chegam já casadas pela segunda vez
quando, mesmo sem conhecerem os ensinos de Jesus, elas se encaixam dentro
destes ensinos. Se não é assim, nós orientamos a separação. Isso se dá quando
compreendemos que, mesmo não tendo sido pastoreadas adequadamente, a
condição delas não está amparada pelo Senhor. Gostaríamos de receber
apenas casos provenientes do mundo. Receber os casos da igreja nos desafia e
corta o nosso coração.
O nosso anseio quanto a este tema é que a igreja do Senhor não
experimente divórcio mesmo havendo amparo pela cláusula de exceção. Que
todo este culto ao sentimento fosse substituído pelo culto ao Nosso Verdadeiro
Deus e Senhor. Estamos convictos de que se tão somente nos humilharmos e
nos arrependermos, Deus sarará as nossas muitas feridas. Também aquelas
provocadas pelas traições, pelos abandonos, separações e divórcios.
Para fortalecer esta fé, consideramos que a melhor forma de encerrarmos
este livro é trazendo um testemunho pessoal sobre o poder de Deus para
restaurar o casamento. Reproduzimos a seguir um texto anteriormente
publicado no livro “Tudo se Resume no Amor de Deus”.
Com isso queremos animar a todos aqueles que se encontram
desgastados ou desanimados com seu casamento a perseverarem e lutarem
pela aliança que Deus testemunhou. Sempre vale a pena fazer a vontade do
Senhor, pois afinal, ela é boa, perfeita e agradável.

______

Amar de verdade

Quero terminar contando uma experiência sobre amor. Assim que eu me


converti, aos 23 anos, não tinha nenhum projeto ministerial para minha vida.
Comecei provando as bondades e as misericórdias de Deus e fiquei muito
grato a Ele, como qualquer crente que sai de um lamaçal de pecados. Por
causa disso eu comecei a compartilhar minha fé, fui experimentando alguns
resultados práticos, mas sem nenhuma pretensão.
Eu vivia muito mal com minha família e quando me converti, o meu
casamento já estava acabado. Assim, coloquei toda a minha esperança em
Jesus no intuito de salvar meu casamento. Entretanto, não tínhamos uma visão
de discipulado, não havia uma estrutura para crescimento espiritual. Apenas
ouvíamos pregações evangelísticas aos domingos, os ensinos bíblicos, que não
apontavam para a praticidade dos mandamentos. Nenhum acompanhamento.
Meu coração continuava incorrigível, sem ser moldado.
Entretanto, por causa do momento de pura gratidão a Deus que eu vivia,
comecei a pregar o evangelho e, juntamente com um grupo de jovens, fazíamos
missões. Eu sempre fui atraído pela obra, e assim eu e esses jovens
viajávamos sem rumo. Jovens sem nenhum juízo, nenhuma referência.Para se
ter uma ideia de como fazíamos missões, nós íamos a uma determinada
rodoviária, parávamos e começávamos a orar para saber onde Deus queria
que fôssemos. Quando íamos comprar as passagens para determinada cidade,
se já não tivéssemos dinheiro suficiente, dizíamos: “Deus não nos quer lá,
vamos para outra cidade.” E, assim, saíamos “na fé”, sem dinheiro algum, sem
nenhuma direção ou orientação.
Nós sempre precisávamos vincular o nosso trabalho com alguma igreja
nos locais aonde íamos. Numa dessas viagens, conheci uma igreja que me
recebeu muito bem - porque missionário itinerante nem sempre é bem
recebido. O pastor abriu as portas da congregação e lá comecei a pregar.
Ficávamos hospedados em um hotel e vendíamos jornais para nos sustentar;
tudo isso fazíamos nas férias. Eu era casado e deixava minha esposa em casa
com minha filha ainda bebê.
Naquela cidade eu pregava, principalmente, nas regiões de prostituição,
de drogas e quase sempre às noites. Então conheci uma moça que era líder
naquela igreja e logo “senti” que ela era perfeita, maravilhosa, graciosa em
tudo: beleza, inteligência, espiritualidade. Pensei comigo: “O homem que
casar com essa moça será um bem-aventurado”. Comecei a ir e voltar àquela
cidade diversas vezes fazendo evangelismo, até que comecei a notar que
estava nascendo alguma coisa entre nós. Eu já não ia mais àquela cidade com
um coração de evangelista; ia com um coração “ateu”, pois minha grande
motivação e alegria era ver aquela moça. Casado e com uma filha, toda briga e
contenda em casa era combustível suficiente para eu sair e procurá-la. Não
tinha mais prazer em casa e queria estar na companhia daquela moça, pois
sentia que havia um interesse pessoal, um clima romântico entre nós.
A situação foi se agravando, porque o pai dela, um homem de idade que
havíamos conduzido para Jesus, havia aberto sua casa para nós. Além de
pregar na reunião pública da igreja, também frequentávamos a casa dele para
expor o evangelho. Assim, a proximidade com ela aumentou e eu comecei a
crer que Deus tinha um plano naquilo, já que eu vivia mal com minha mulher,
brigando todos os dias. Pensava: “Deus só pode estar agindo aqui. Conheci
essa moça que é quase um anjo, toda perfeita, então só pode ser um plano de
Deus. Ele quer me livrar da minha esposa, daquele jugo, e está me dando essa
bênção. Sou um cara bem-aventurado!” Assim, comecei a planejar uma
mudança de vida, sair do Rio de Janeiro e ir para Minas Gerais.
Então as coisas começaram a acontecer de forma sobrenatural. Recebi
uma oferta de emprego na cidade e o pastor me disse que precisava de um
homem como eu na igreja, porque através das minhas pregações várias
pessoas se converteram. Assim eu já tinha uma igreja, um lugar de co-pastor,
um trabalho e aquela moça. Para mim estava tudo perfeito. Eu estava
resgatando pessoas para Jesus e provando os milagres e sinais como fruto das
pregações. Daí, já não era mais somente nas férias; eu comecei a doar todos os
meus finais de semana para aquela obra, cada vez mais motivado. Estava
pronto para encarar aquilo que eu julgava ser o plano de Deus para minha
vida.
Entretanto, quando eu já estava planejando ir embora de vez no final do
ano, chegaram em casa três rapazes e, quando perguntei o que eles queriam,
responderam-me que gostariam de me contar um mover de Deus que aconteceu
no Rio. Aqueles jovens haviam sido batizados no Espírito Santo e, por
frequentarem igrejas mais tradicionais, foram convidados a “se retirar” porque
estavam tumultuando a igreja. Disseram-me que estavam reunidos orando na
casa de uma irmã, quando Deus revelou a eles que não deveriam se preocupar,
pois o Senhor já havia “preparado um pastor para estar com eles”. Pensei:
“Que bênção! Se Deus já levantou um pastor para estar com vocês, isso é
bom”. Perguntei: “Quem é?” Eles apontaram para mim dizendo: “Você!” Eu
disse: “Não, estou em Minas Gerais, não estou mais aqui no Rio. Estou em
outro projeto.” Quando eles saíram fiquei pensando sobre aquilo, porque,
enquanto eles falavam, assim como aconteceu com os discípulos de Emaús,
também senti algo “queimando” no peito. Eu rejeitei o convite, mas, lá no
fundo, fiquei muito interessado. Comecei, então, a ficar muito angustiado, mas
lembrei-me de algo que havia aprendido ainda novo na fé: quando estamos
diante de um caminho muito difícil, de um grande dilema, a primeira coisa que
eu deveria fazer era separar alguns dias para jejuar, orar e ouvir. Foi isso que
eu fiz. Naqueles dias, lendo a Bíblia, um texto “saltou” aos meus olhos:

“Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a


si mesmo se entregou por ela...” (Efésios 5:25).

Meu primeiro pensamento foi: “Esse tal de Paulo deveria ser solteiro.
Como é que ele diz isso? Como se fosse fácil, como se fosse simples amar
uma pessoa assim”. Eu estava jejuando, orando e perplexo com esse
mandamento. Quando, em João 13:34 Jesus diz para amarmos uns aos outros,
até que é fácil, porque é algo genérico, não dirigido ou definido a alguém
específico. Normalmente acontece, na vida da igreja, que acabamos amando
somente aqueles de quem gostamos mais e queremos amar. Não é bem “uns
aos outros”, mas amar aqueles com quem temos mais afinidades, os mais
agradáveis, os mais fáceis de serem amados. Assim, transformamos esse
mandamento dizendo: “Eu amo quem eu quero amar”. Mas, quando Paulo diz:
“Maridos, amem suas esposas”, ele direcionou para alguém, deu um nome
para essa pessoa. Não tem como camuflar: ou ama ou não ama.
Quando o Senhor disse “ame a sua esposa”, Ele fechou a minha história.
Ele disse: “Você tem uma pessoa para amar, é a sua esposa!” E eu me
perguntava: “Mas, e se eu não sinto mais nada por ela? Pelo contrário, só
converso com ela para brigar? Já estou me sentido atraído por outra mulher!”
Eu estava convencido de que Paulo escreveu uma coisa absurda, um
mandamento impossível. Fechei meu coração, não aceitando aquilo. “Imagine!
Já estou com outros planos em mente e, de repente, leio na Bíblia que Deus
quer que eu ame a minha esposa! Como se fosse fácil colocar isso no
coração!” Imagine como ficou minha cabeça? Eu fiquei totalmente travado.
Lembrei-me de uma mulher que certa vez pregou que esse mandamento
de amar era impossível de ser praticado e, então, comecei a achar que ela
estava certa. O meu problema era entender o amor, porque na minha cabeça
amar era estar apaixonado; esse era o meu conceito. Esse amor que Paulo e a
Bíblia inteira falam não tem nada a ver com o que eu pensava que era amor.
Então, o Espírito Santo começou a me desmontar durante aquele jejum. A
primeira coisa que Deus falou comigo foi: “Você não sabe o que é amor!”

“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor,


como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta
e sacrifício a Deus, em aroma suave”. (Efésios 5:1,2)

Paulo está dizendo nesse verso que temos de imitar a Deus como filhos
amados e andar em amor. Assim, eu percebi que todos os mandamentos que eu
conhecia sobre o amor tinham uma palavra que se repetia: “COMO”. Então eu
eliminei o “QUANTO”, porque Jesus NÃO disse: “Amai-vos uns aos outros
tanto quanto eu vos amei”.
Entretanto, a pregação daquela irmã era assim: “Como é que alguém vai
amar como Jesus amou?” Na cabeça dela também havia um equívoco, porque
ela estava pensando em termos de quantidade e intensidade de amor. Se Deus
é amor, como é que alguém vai amar com a mesma intensidade com que Ele
amou? O mandamento não é esse. O mandamento é “COMO eu vos amei”,
“COMO Cristo amou a igreja.” Outra coisa que eu percebi é que essa forma
de amor apontava sempre para o mesmo lugar: a entrega. Era um amor
sacrificial, não sentimental. Sacrifício fala de dor, de angústia, de morte e
Jesus fez isso por nós.

“Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e
devemos dar nossa vida pelos irmãos”. (I João 3:16).

Eu não sabia o que era o verdadeiro amor e era isso que precisava
conhecer. Quando João diz: “Nisto conhecemos o amor”, ele estava apontando
para o calvário, para a cruz onde Cristo deu sua vida por nós. Veja que
interessante: não era PARA nós, mas POR nós. Não era uma entrega PARA
uma pessoa, mas POR ela. Por nós valeu a pena o sacrifício.
Amar a Deus, então, é quando alguém se entrega POR outros para Deus.
Um filme se descortinou diante de mim. Meu conceito de amor estava
quebrado. Eu estava crendo que estava amando aquela moça, mas, na verdade,
o Espírito Santo me disse: “Você está amando a si mesmo. O amor que eu
tenho para você só acontece no altar, porque é um sacrifício.” O altar de Deus
é a cruz – amor, no sentido mais profundo da palavra. Deus me disse: “A
minha vontade é que você se entregue por Denise, sua esposa. Eu quero ver
você morrer por ela, a mulher da sua mocidade, a que fez um pacto com você,
aquela que você disse que amava!” Essa era uma decisão que eu deveria
tomar.
A cruz é uma escolha deliberada: você escolhe se a quer ou não. Jesus
foi bem claro sobre isso. Esse egoísmo que compete o tempo inteiro com o
Espírito Santo não tem outro modo de sair, a não ser pelo altar.

“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis


o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional” (Romanos 12:1).

A Bíblia fala muito de entrega por sacrifício. Só que às vezes nós temos
uma entrega que não é literal, mas apenas “da boca para fora”. É claro que
apenas pelo fato de sermos crentes já exigimos muito de nós e já renunciamos
a muitas coisas, mas não pense que já chegou ao fim; é apenas o começo.
Imagine que você tem algo que ama muito, que deseja muito e Deus lhe diz:
“Eu quero isso aí.” É assim que acontece todos os dias em nossas vidas.
Li certa vez acerca de um irmão que, apesar de estar a muitos anos na
igreja, não se desenvolvia, não frutificava, e o autor do livro não entendia o
porquê. Então, aquele irmão pediu para ficar um ano na igreja sem se
comprometer, só ouvindo o Evangelho. Entretanto, no decorrer do
relacionamento, alguns irmãos perceberam que, quando o assunto envolvia a
esposa dele, ele se anulava, simplesmente era muito fraco, não cooperava no
casamento. Um dos irmãos que estava trabalhando mais de perto com ele,
procurou saber o porquê daquela fraqueza tão grande e descobriu que ele “se
achava muito feio para a esposa”. Para ele, sua mulher era a pessoa mais linda
do mundo e ele era muito feio. Então ele fez a seguinte revelação: “Eu estava
lendo um livro sobre intercessão que relata a história de um homem que, no
momento em que se converteu, perdeu tudo, perdeu dinheiro, perdeu seus bens.
Eu até estou disposto a perder tudo. Só que, no decorrer da história, aquele
homem perdeu também a esposa. Quando o Espírito Santo me perguntou se eu
estava disposto a perder minha esposa também, eu respondi que não. Tudo
menos a esposa”. Por isso ele se fechou para Deus.
Jesus disse que “aquele que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser
Seu discípulo” (Lucas 14:33). Imagine que Deus peça algo bem específico
para você: “Renuncie ao que lhe pedi! Entregue no altar”. Algumas coisas
você perde definitivamente, outras não. A Abraão, Deus pediu o filho, e ele foi
sacrificá-lo. O fato de Deus ter dado um filho a Abraão, não significa que Ele
não possa pedir de volta, afinal, Ele tem soberania, Ele é dono de tudo. Já
ouvi gente dizendo que Deus não pode pedir aquilo que Ele mesmo deu, ou
seja, se Ele deu um noivo, não pode pedir o noivo, se Ele deu um emprego,
não pode pedir o emprego. Bem, não foi assim com Abraão. Deus lhe pede
algo que custa sua própria vida - seus sonhos, seus desejos - e você entrega,
mesmo que relutando um pouco. Nos primeiros dias você fica como se
estivesse literalmente morto, pois toda entrega, no início, não é um momento
de festa, mas de dor. Depois disso, um milagre acontece.
Eu me lembro de que, quando entendi essa palavra, concluí: “Então Você
está me dizendo que a Tua vontade é que eu fique com a minha esposa, ame
essa mulher do jeito que ela é e me consagre por causa dela? Tudo o que
aconteceu lá em Minas Gerais é coisa da minha cabeça? É isso que o Senhor
está me dizendo?” Deus me deu uma revelação, uma visão: De um lado havia
uma cruz, do outro lado uma paisagem com pássaros, um rio, uma ponte e um
casalzinho romântico em cima. A cruz era feia, mal feita. Eu estava no meio,
tendo que decidir. Entendi que amor, para Deus, era o lado que estava a cruz.
O outro lado não era amor; era um sentimento, uma paixão. O que eu deveria
fazer? Apegar-me a essa cruz feia e apagar o outro lado da minha vida?
Escolher entre a cruz ou um sonho que me preenchia? Então eu lutei, chorei,
experimentei a sensação de morte. Tomei essa decisão sozinho, em casa,
orando e jejuando, porque não precisamos tomar decisões formalmente, no
meio da igreja, entre muita gente. Eu tomei aquela decisão literalmente
morrendo.
Foi tão forte aquela experiência, que no fim de semana seguinte eu fui até
aquela cidade determinado a chegar lá e dizer que aquela era minha última
visita à igreja, que nunca mais eu voltaria para estar com eles. Quando eu
desci do ônibus, estava ali aquele grupo de jovens que sempre ia me buscar.
Aquela moça olhou para mim e disse: “O que houve com você?” Ela percebeu
que algo havia acontecido. Eu nunca lhe disse que tinha algum sentimento por
ela, mas ela percebeu que algo se quebrou! A cruz tem um poder muito forte. O
nosso grande chamado é para a cruz, o que age em nosso coração é o
sacrifício. O que queima, o que arde de verdade é a entrega. Se você voltar na
sua história, verá que o que sempre te atraiu foi o sacrifício, porque isso tem a
ver com o amor de Deus. Dar a vida por alguém é a manifestação do amor de
Deus. No entanto, naquele dia, naquela estação rodoviária, o que se podia
perceber era a morte. A moça viu que eu estava morto para ela e por ela.
Um dia o Senhor pede que você Lhe entregue algo e, então, você faz a
escolha de Deus, a escolha certa. Passado um período, você se sente morto.
Deus não ressuscita um vivo; o poder da ressurreição só pode operar em quem
já morreu. A vara de Aarão só floresceu por que era uma vara morta. Esse é o
milagre da ressurreição. Você morre por um tempo, mas depois vem o poder
da ressurreição e você começa, de repente, a ganhar uma vida nova, diferente,
começa a provar o poder e o amor de Deus.
Um exemplo: Vamos fazer de conta que o seu sonho está em Cabo Frio,
mas Deus quer o seu sonho, e lhe envia para cumprir o sonho dele em
Aquidauana. Então você renuncia a si mesmo e viaja para o centro do Brasil.
Você chega lá e começa a plantar uma igreja, começa a pregar, consegue a
conversão de uma pessoa e diz a ela: “Eu te amo”. A pessoa que está ouvindo
isso acredita, fica convencida pelo Espírito Santo do seu amor. Por que ela
tem essa convicção? Porque no dia em que você foi para o altar (a cruz) e fez
a entrega, você estava amando como Jesus amou. Amar como Jesus amou é dar
a vida por alguém. Você pode amar alguém sem nem mesmo conhecê-lo,
porque esse amor não depende disso. A pessoa irá lhe perguntar: “Mas por
que você me ama?” E você poderá responder: “Porque eu abri mão dos meus
sonhos, da minha vida para estar aqui, pregando para você o amor de Deus”.
Você nem sabe ainda por quantas pessoas está se sacrificando, mas Deus
sabe. Na hora em que Ele lhe chama para o altar dEle, para o sacrifício, Ele já
sabe quem será alcançado pelo seu amor. Não é uma coisa fictícia, surreal; é
uma coisa verdadeira. Você pode verdadeiramente dizer para as pessoas que
as ama, pode afirmar isso com toda sua confiança e fé e eles vão acreditar
porque é a verdade. Você não as ama agora, já as amou lá atrás.
Um dia uma irmã me disse: “Eu queria lhe agradecer pelo seu amor.” Eu
perguntei a ela: “Mas quando foi que você acha que eu te amei?” Ela disse:
“Foi naquele dia em que meu filho foi operado. Você chegou antes de mim no
hospital.” Então eu lhe disse: “Qualquer satanista poderia fazer até melhor do
que isso. Você acha que eu amo a sua família porque cheguei ao hospital antes
de você? Eu a amei no dia em que eu estava para “chutar o balde” da minha
casa, largar minha mulher e ir atrás de uma moça lá em Minas Gerais e, então,
escolhi fazer a vontade de Deus. Foi nesse dia que eu a amei”. Depois disso
houve outros casos de cruz, de renúncia, porque isso não parou lá atrás. Eu a
amei realmente, mas não foi por ter chegado antes no Hospital. Isso qualquer
um poderia fazer. Eu a amei porque lá atrás houve um preço que paguei; esse
amor teve um custo.
Quando eu digo: “Ame como Jesus”, não pense em coisas boas, pense na
cruz. O modelo de amor é Jesus. Como foi que Jesus amou? Se entregando a
Deus por nós. Maridos, amem suas esposas como Jesus amou a igreja. Que o
Espírito Santo encha sua mente e coração da compreensão desse amor, porque
o sacrifício, as exigências que Deus fará a você lhe darão melhor
compreensão do porquê dEle pedir certas coisas. Deus amou o mundo de tal
maneira que deu seu filho único para que todo aquele que nEle crer seja salvo
(João 3:16). Jesus se entregou, se sacrificou. Não foi diferente com ele. Ele
provou esse amor se entregando, se sacrificando. Essa é a maior expressão do
amor. Amor sem cruz não é amor bíblico. Vamos lembrar a história de Amnon
e Tamar novamente. Ele a amou com amor eros, paixão carnal; não era
sacrifício, não era cruz. Um amigo que ama o outro por preferência, porque é
simpático, porque agrada, também não é amor. Mas, se alguém se sacrificou
por você, abriu mão da sua vida e dos seus sonhos, se entregou a Deus e se
santificou por sua causa, isso é amor.
O egoísmo está tão forte hoje, tão “na moda”, que quando falamos em
santidade a maioria pensa em santificação para si próprio: “Eu tenho que me
santificar para ser salvo.” Quantos pensam ou declaram como a oração de
Jesus em João 17? “Por eles, eu me santifico”. Quantos pensam na santidade
POR outra pessoa? Pensamos que a santidade é um negócio que vai promover
a nossa salvação. Mas a verdadeira santidade, o verdadeiro amor, é aquele
que você se entrega, se santifica por outra pessoa.
Essa visão também nos guarda de pecar, porque o pecado está
intimamente ligado ao egoísmo, aos prazeres e escolhas pessoais. Quantas
vezes você pensou: “Se eu for por esse caminho vou desgraçar muita gente?”.
Então você pede: “Deus, me livre desse caminho!”. Você pensou em alguém,
se santificou por alguém, está novamente abrindo mão de algo por alguém. Isso
é amor, amor bíblico, amor “ágape”. Ágape é quando você se doa pelo outro,
se sacrifica pelo outro. Portanto, quando ouvir falar de amor, não pense em
qualquer coisa. Limpe seus conceitos antigos, reavalie seu entendimento
acerca do amor.
A visão errada do amor, inclusive, é uma complicação até para o
discipulado. Muitas vezes um irmão reivindica amor, mas o que ele quer não é
amor de verdade, é outra coisa. Pode ser até um ato bonito, mas não é amor.
Amor bíblico é entrega. A Bíblia diz que quando Jesus descartou o jovem rico,
fitou-o nos olhos, amou-o e lhe disse: “deixa teus bens, vende ou doe tudo o
que tens e depois me segue” (Lucas 19:21). Para entender essa atitude de
Jesus, precisamos ter uma visão real do amor. Se a nossa visão de amor for
uma coisa complicada, então julgaremos que Jesus não teve amor nenhum.
Quem consegue ver amor nesta cena? Quem consegue ver amor na disciplina?
Na maioria das vezes, se vamos corrigir alguém, a pessoa pensa que a estamos
odiando.
Lembro-me de um comentário de um pastor, citando um livro escrito por
uma prostituta. Em um trecho do livro ela dizia que esperava que seu pai a
amasse quando ela começou a cometer os seus erros; ela esperava esse amor
em forma de correção. A correção não veio e ela se sentiu desamada,
rechaçada, interpretou tudo aquilo como rejeição. Raramente alguém consegue
ver amor na disciplina. Por que é tão complicado vivermos uma vida no
Espírito? Porque não sabemos ouvir um “não” - nem de Deus, quanto mais dos
irmãos. Se você já disse “não” para si mesmo, então pode dizer “não” para um
discípulo. Você diz “não” a si mesmo quando renuncia a um desejo legítimo do
seu coração por Jesus. Esse é o melhor caminho: o da cruz.
Voltando à minha história pessoal, quando tomei a decisão de me
entregar por Jesus e renunciar a tudo o que eu estava vivendo, voltei em Minas
Gerais, sentei-me com a moça e abri meu coração. Falei tudo: sobre os meus
sentimentos, minha esposa, minha filha, meu casamento, minha decisão. Ela
começou a chorar e eu percebi que ela tinha os mesmos sentimentos por mim.
Naquela hora tomei suas mãos, convidei-a a fazermos uma oração de entrega
total a Jesus e eu nunca mais a vi. Voltei para casa e fui me encontrar com os
três rapazes que disseram que me queriam como pastor. Naquela mesma
semana o meu pastor me chamou e pediu para que eu retirasse alguns jovens
para longe dali e fizesse uma reunião com eles, e eu fui.
Logo em seguida, uma moça me encontrou na rua e me fez um pedido.
Sabendo do meu trabalho de evangelização com os drogados, disse que tinha
um salão onde se reuniam muitos drogados e queria que eu fosse fazer um
culto com eles, reunir uma igreja lá, cobrando-me apenas um valor simbólico
de aluguel. Coloquei o violão debaixo do braço e fui com os rapazes. Não
chegava nem a dez pessoas. Na primeira reunião não tinha cadeiras e nem
microfone. Fizemos um louvor a Deus, chamamos os vizinhos e começamos. O
lugar era o mais ridículo e feio que você possa imaginar. No meio da
pregação, se alguém entrava no banheiro e dava descarga, tínhamos que
esperar o barulho acalmar para depois continuar. Cada um que ia levava sua
própria cadeira. Era um “colorido” daqueles. Um homem levou até um banco
de Kombi e deixou lá. Em frente, havia um terreiro de macumba e ganhamos a
dona dele para Jesus. No dia em que aquela mulher se converteu, nós fizemos
uma fogueira com todas as coisas que ela usava para fazer macumba. Só
sobraram os banquinhos que ela usava para os seus “clientes”: esses foram
usados para a igreja. Cada vez ia mais gente e fazíamos reuniões todos os
dias.
Comecei, então, a enxergar que Denise, minha esposa, havia virado uma
guerreira e passei a admirá-la. Ela caminhava um longo percurso de casa até
aquele local de reunião com a criança no colo. Não faltava um dia, estava ao
meu lado o tempo todo me sustentando. Era como se eu nunca a tivesse visto
antes. Deus começou a mudar tudo entre nós; Ele fez um milagre.
Um ano depois, no dia do nosso aniversário de casamento, eu abri a
Bíblia para pregar em João 12:24: “Em verdade, em verdade vos digo: se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer,
produz muito fruto”. Quando eu olhei para aquela “igrejinha” lotada, me
voltou aquela visão lá do início: de um lado a cruz, do outro lado meu desejo.
Mas aquela minha cena romântica parecia um quadro manchado, todo feio, e o
casal já não existia mais, eu estava só. O Espírito Santo me mostrou que se eu
tivesse escolhido naquele dia o meu desejo, eu estaria assim hoje, sozinho num
deserto. Quando, porém, olhei para o lado da cruz, já não era uma cruz de
madeira, feia. Era uma cruz formada por várias faces, as faces das pessoas que
se converteram e estavam ali. Comecei a ver o rosto de cada irmão na cruz. Eu
estava vivendo aquilo intensamente. Foi assim que eu entendi o texto que eu
iria pregar. Se morrer, dá fruto; se não morrer, fica só. Pela graça de Jesus,
Deus entrou na minha história e não me deixou atolar na lama. Ele me
resgatou, e assim terminou aquele episódio na minha vida.
Amor sempre gera fruto. Amor é sacrifício. Veja o amor como Deus vê.
Entenda o amor como Deus entende. Tudo se resume no amor de Deus! Se
você entender isso, muitas coisas vão, de fato, acontecer em sua vida.

______

Como dissemos anteriormente, embora exposta a nossa posição quanto


ao divórcio e novo casamento, isso não significa que possuímos a verdade
final do assunto. Estamos sempre em temor e tremor, abertos a Deus e aos
irmãos para sermos corrigidos em nosso entendimento, se houver equívocos
em nossa interpretação.
Esperamos no Senhor que o conteúdo deste livro possa cooperar com a
sua compreensão sobre este tema tão difícil. Desde que o presbitério da Igreja
na zona oeste do Rio de Janeiro sentou para estudar este assunto, nunca mais
deixamos de voltar e reconsiderar todos os pontos aqui apresentados. Que o
Espírito Santo nos guie a toda verdade!

Amém!
BIBLIOGRAFIA
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Almeida Revista e Corrigida (ARC); Almeida Corrigida Fiel (ACF); Almeida
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Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/294/divorcio-e-
novo-casamento-um-estudo-biblico-inicial
NOTAS
1 Este conteúdo foi apresentado nas aulas de 18 a 22 do CTL, que você pode assistir pelo canal do
YouTube - www.youtube.com/EspacoDiscipulos.

2 KASCHEL, Werner; ZIMMER, Rudi. Dicionário da Bíblia de Almeida, p. 121

3 Em Ezequiel 16, o Senhor usa a figura do casamento para retratar sua relação com Jerusalém:
“... dei-te juramento e entrei em aliança contigo, diz o SENHOR Deus; e passaste a ser minha”.

4 Poliandria - Substantivo feminino. União conjugal de uma mulher com mais de um homem,
simultaneamente. § po.li.ân.dri.co adj.; po.li.an.dro adj.

5 João 1:17 - “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por
meio de Jesus Cristo”.

6 ELWELL Walter A (Editor). Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 241.

7 Em I Coríntios 7:10 e 11, Paulo dá orientações aos casais cristãos, e nos versículos seguintes (12
ao15) se dirigir aos cristãos que estão casados com incrédulos. A condição matrimonial dos
incrédulos será estudada mais detalhadamente no capítulo 7 desde livro.

8 A palavra fornicação tem origem na palavra latina fornicatio, que procedia de fornix, o arco da
porta sob a qual as prostitutas romanas se exibiam. Fornicatio era uma referência às relações
sexuais ilícitas em geral. Entretanto, em língua portuguesa, a palavra fornicação passou a ser mais
usada para designar a relação sexual entre pessoas solteiras (é neste sentido que essa palavra
será usada neste livro). Se uma das pessoas envolvidas da relação ilícita for casada, esse pecado é
chamado de adultério, e não de fornicação. Entretanto, reforçamos que, por vezes, tradutores
usaram a palavra fornicação para designar qualquer relação ilícita, e não apenas a relação entre
solteiros.

9 STOTT, John. Grandes questões sobre sexo, p. 72.

10 A relação entre a lei e a graça por vezes é descrita como um cumprimento. Ou seja, Jesus, em
sua própria vida, cumpriu as exigências da lei, oferecendo-se como sacrifício a Deus por nós.
Certos aspectos da lei eram sombras de realidades que já se estabeleceram em Cristo. Entretanto, o
ensino de Jesus estabelece mandamentos mais profundos do que a lei. Por isso, dizemos que essa
relação é de aprofundamento, e não de oposição.

11 Com isso não queremos dizer que a Lei, os Profetas e os Salmos não têm valor para um cristão,
mas sim que devem ser lidos à luz do Novo Testamento. A sombra deve ser compreendida à luz da
realidade. Isso não elimina a verdade de que “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o
ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de
Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (II Timóteo 3:16,17).

12 Em Mateus 14:15, por exemplo, quando os discípulos pedem para Jesus despedir a multidão, o
verbo que aparece é apoluo. Já em Mateus 15:27, apoluo é traduzido como “mandar embora”: “E
o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida” (ARA).

13 A palavra apostasion só aparece 3 vezes no Novo Testamento, sempre se referindo à carta de


divórcio (Mateus 5:31, Mateus 19:7; Marcos 10:4). Pertence ao mesmo grupo da palavra
apostasia (Atos 21:21 e II Tessalonicenses 2:3). Essas palavras provavelmente são derivadas do
verbo aphisthemi, traduzido na versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) como “desviar” (Lucas
8:13), “apartar” (Lucas 13:27), “afastar” (Hebreus 3:12) e “apostatar” (I Timóteo 4:1).

14 LOPES, Hernandes Dias. Casamento, divórcio e novo casamento, p. 75.

15 ADAMS, Jay E. Casamento, Divórcio e Novo Casamento na Bíblia, p. 63,64.

16 No quinto capítulo deste livro veremos que a “teoria dos esponsais” constrói sua tese sobre o
divórcio utilizando uma interpretação de Deuteronômio 24:1-4.

17 Ela [a legislação de Deuteronômio 24:1-4] não requer, nem recomenda, nem mesmo sanciona o
divórcio. Diz respeito, primariamente, não ao divórcio, de modo algum, nem mesmo a certificados
de divórcio. Seu objetivo é proibir o homem de tornar a casar-se com a primeira esposa” (STOTT,
John. Grandes questões sobre sexo, p. 73). Nesse mesmo sentido, ver também: ADAMS, Jay E.
Casamento, divórcio e novo casamento na Bíblia, p. 111.

18 ADAMS, Jay E. Casamento, divórcio e novo casamento na Bíblia, p. 61.

19 Em outras legislações da Antiguidade havia algumas possibilidades, ainda que restritas, de


divórcio por parte da mulher, como se pode ver no Código de Hamurabi (LOPES, Hernandes Dias.
Casamento, divórcio e novo casamento, p. 74).

20 “Marriage”, disponível em www.jewishencyclopedia.com/articles/10432-marriage, acesso em


21.07.2017.

21 SOARES, Ezequias. Casamento, Divórcio e Sexo à luz da Bíblia, p. 15.


22 Apesar dessa advertência, sabemos que a poligamia foi um costume muito comum entre os reis
de Israel e de Judá, tendo sido praticada por Davi (II Samuel 5:13), Salomão (I Reis 11:3), Roboão
(II Crônicas 11:21), Jeorão (II Crônicas 21:14), Ezequias (I Reis 20:3), Joás (II Crônicas 24:3),
entre outros. Ao apresentar a história da maioria dos reis, os livros de Reis e de Crônicas
mencionam juntamente o nome de sua mãe, o que pode demonstrar que o rei anterior tinha mais de
uma esposa (I Reis 14:21; 15:2; 15:10; 22:42; II Reis 12:1; 14:2; 15:2; 15:33; 18:2; 21:1; 21:19;
22:1; 23:31; 23:36; 24:8; 24:18; II Crônicas 13:2; 20:31; 24:2; 25:1 26:3; 27:1; 29:1).

23 “Os códigos mais antigos da humanidade já configuravam o divórcio como uma instituição
social inquestionável. O Código de Hamurabi (1792-1750 a.C.) legislou claramente sobre o
divórcio… Assim, Moisés não foi o primeiro legislador a tratar do divórcio” (LOPES, Hernandes
Dias. Casamento, divórcio e novo casamento, p. 74).

24 REID, Daniel G. (editor). Dicionário Teológico do Novo Testamento, p. 948.

25 “Os filhos de um homem casado com uma mulher que não é sua esposa não são mamzerim
(porque o casamento entre os pais não seria proibido), embora os filhos de uma mulher casada
com um homem que não seja seu marido são mamzerim (porque ela não poderia se casar com ele)”
(“Marriage”, disponível em <www.jewishvirtuallibrary.org/marriage-in-judaism>, acesso em
21.07.2017). Ver também: “Bastards” (disponível em <www.jewishencyclopedia.com/articles/2648-
bastard>, acesso em 21.07.2017); e “Mamzer” (disponível em
<www.jewishvirtuallibrary.org/mamzer>, acesso 21.07.2017). Sobre os bastardos eram aplicadas
as determinações de Deuteronômio 23:2 - “Nenhum bastardo entrará na assembléia do SENHOR;
nem ainda a sua décima geração entrará nela”.

26 O ketubah estabelecia, entre outros deveres, o pagamento de um determinado montante à esposa


em caso de morte do marido ou de divórcio. Esta instituição foi criada pelos rabinos para colocar
restrições à liberdade de divórcio, uma vez que esse poderia ser dado sem o consentimento por
parte da mulher. Alguns dos rabinos consideraram que o ketubah era de origem mosaica. Em
algumas situações a mulher perderia o direito ao pagamento do ketubah, como no caso de ter
cometido adultério (Ver “Ketubah”, disponível em <www.jewishencyclopedia.com/articles/9290-
ketubah>, acesso em 21.07.2017). Um homem não poderia tomar uma segunda esposa se, no
ketubah, havia se comprometido com sua primeira esposa a não fazê-lo (Ver “Monogamy”,
disponível em <www.jewishencyclopedia.com/articles/10949-monogamy>, acesso em 21.07.2017).

27 STOTT, John. Grandes questões sobre sexo, p. 76; RICHARDS, Lawrence O. Comentário
Histórico-Cultural do Novo Testamento, p. 63.

28 “No judaísmo, a carta de divórcio (sepher kerithuth) geralmente é chamada de guet.


29 ADAMS, Jay E. Op. cit. p. 64.

30 Tal prática ainda existe na atualidade entre os muçulmanos na Índia, apesar de não ser
determinada pelo Alcorão: “A Índia é talvez o único país no mundo onde um homem muçulmano
pode se divorciar de sua esposa em questão de minutos. Tudo o que ele precisa fazer é dizer à
mulher a palavra talaq (divórcio) três vezes” (Matéria de Geeta Pandey, publicada em 24.04.2016,
disponível em <www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160421_talaq_divorcio_india_mv,
acesso em 21.07.2017>).

31 31. ADAMS, Jay E. Op. cit. p. 64.

32 Minshnah, Gittin 9.3, disponível em <www.sefaria.org/Mishnah_Gittin.9.3?lang=bi>, acesso em


21.07.2017.

33 International Standard Bible Encyclopaedia. “Divorce in ot” in caput “Bill of Divorcement”


apud YUASA, Key. Divórcio e novo casamento - um estudo bíblico inicial, disponível em:
<http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/294/divorcio-enovo-casamento-um-estudo-biblico-
inicial>, acesso em 21.07.2017.

34 JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus, p. 185.

35 Sifrei Devarim, 270.1: “‘E ela deve sair de sua casa’: Nós somos ensinados que a mulher deixa
a presença do homem (isto é, ela sai da casa, não ele)” (Disponível em
<www.sefaria.org/Sifrei_Devarim.270.1?lang=bi>, acesso em 21.07.2017).

36 A lei mosaica não reconhecia às mulheres o direito de repudiar seus maridos. Entretanto, a
tradição rabínica posterior passou a admitir que a mulher, em casos como o não cumprimento dos
deveres conjugais, poderia requerer de um tribunal que o marido fosse obrigado a lhe dar carta de
divórcio. Ainda assim, o divórcio era um ato do marido, e não podia ser feito diretamente pelo
tribunal. Ou seja, a tradição rabínica reconhecia o direito da mulher de requerer o divórcio em
certas circunstâncias, mas nunca lhes deu o direito de dar carta de divórcio aos seus maridos.
Durante o período herodiano (37 a.C - 92 d.C), sob a influência da prática romana, são
registrados casos em que mulheres deram cartas de divórcio a seus maridos, mas esses casos foram
reconhecidos como violação da lei, e nunca se tornaram precedentes (Ver Divorce, disponível em
<www.jewishencyclopedia.com/articles/5238-divorce>, acesso em 21.07.2017). Flávio Josefo
menciona uma dessas situações, declarando que era contrária à lei: “Costabro teve depois uma
séria divergência com Salomé, sua mulher, e ela mandou-lhe o libelo de divórcio, contra o costume
de nossas leis, que permitem esse ato somente aos maridos e não consentem nem mesmo às mulheres
repudiadas tornar a casar-se sem a licença deles” (JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus, p.
725).
37 “Mulher que tem o divórcio negado há 17 anos faz greve de fome fora do Knesset (Parlamento
Israelense)” (SHARON, Jeremy. Woman denied divorce for 17 years goes on hunger strike outside
Knesset. Matéria jornalística publicada pelo The Jersusalem Post em 08.05.2017, disponível em
<www.jpost.com/Israel-News/Woman-denied-divorcefor-17-years-goes-on-hunger-strike-outside-
Knesset-490143>, acesso em 21.07.2017). Notícia aborda o caso de uma mulher israelense que
teve o divórcio negado por seu marido, o qual foi preso e por anos ainda continua negando o
divórcio.

38 “Em Israel, pena maior a marido que nega divórcio: Homens que se recusarem a conceder
separação podem ficar presos por até 20 anos” (KRESCH, Daniela. Matéria jornalística
publicada pelo O Globo em 03.03.2014, disponível em <https://oglobo.globo.com/mundo/em-israel-
pena-maior-marido-que-nega-divorcio-11777586>, acesso em 21.06.2017.

39 “Bigamia de judeu ortodoxo com brasileira detona batalha religiosa nos Estados Unidos:
Apesar de se recusar a conceder divórcio à ex-mulher, médico Meir Kin consegue que rabino
celebre seu novo casamento em Las Vegas” (LUCA. Isabel de. Matéria jornalística publicada pelo
O Globo em 30.03.2014, disponível em <https://oglobo.globo.com/mundo/bigamia-de-judeu-
ortodoxo-com-brasileira-detona-batalha-religiosa-nos-estados-unidos-12034021>, acesso em
21.07.2017).

40 Por exemplo, os sacerdotes eram proibidos de subirem no altar por degrau para que a nudez
(erwath) deles não ficasse exposta (Êx 20:26: “Nem subirás por degrau ao meu altar, para que a
tua nudez não seja ali exposta”). Já nos textos de Levítico 18 e 20 “descobrir a nudez” é uma
referência a relações sexuais.

41 Mishná, Gititn 9.10: “A Casa de Shammai diz: Nenhum homem deve divorciar de sua esposa, a
menos que tenha encontrado nela comportamento não casto, como é dito, porque ele encontrou
‘ervath dabar’ (Deuteronômio 24: 1). A Casa de Hillel diz: Mesmo se ela estragou sua comida,
porque é dito, ‘ervath dabar’. O rabino Akiva diz: Mesmo que ele tenha encontrado outra mulher
mais bonita do que ela, como é dito ‘se acontecer que ela não encontre mais favor aos seus olhos’”
(Disponível em: <www.sefaria.org/Mishnah_Gittin.9.10?lang=bi>, acesso 16.07.2017). Esse
debate entre as escolas de Hilel e Shammai sobre o significado de erwath dabar também é
registrado no Talmud Bavli, Gittin 90a e no Sifrei Devarim 269.

42 “Essa posição é defendida, p. ex., por Gleuso A. Heringer: “Essa exceção de Deus indicava um
ato de misericórdia tanto para com a mulher descoberta nesta situação, pois cairia em desgraça,
quanto para o homem enganado” (HERINGER, Gleuso A. Divórcio: Não pense nisso! Separação,
divórcio, recasamento e o Reino de Deus, p. 63).

43 Para sustentar essa ideia, por vezes utiliza-se da história de José e Maria (Mateus 1:17-24), os
quais já eram identificados como marido e mulher, mas o casamento ainda não havia sido
consumado. Ao pensar que Maria lhe havia sido infiel, José pretendeu deixá-la (no gr. apoluo,
repudiar) secretamente. Entretanto, o fato dos judeus utilizarem o expediente do divórcio para
desfazer o noivado não implica que a situação descrita em Deuteronômio 24:1 seja a de um
noivado. Como veremos, Deuteronômio 24:1 trata claramente de um divórcio em um casamento já
consumado, e não de uma possibilidade que só poderia ocorrer no noivado.

44 Atualmente as duas fases do casamento judaico são realizadas numa única cerimônia, dividida
em duas partes. A promessa de casamento (que corresponderia à ideia moderna de noivado) é
chamada de shiddukhin.

45 No caso da noiva ser uma viúva, essa intervalo era reduzido para 30 dias (Mishnah, Ketubot
5.2), pois ela já tinha itens disponíveis em seu casamento anterior (Talmud Bavli, Ketubot 57a.10).

46 A palavra kiddushin vem da raiz Qof-Dalet-Shin, que significa “santificado”, indicando algo
reservado ou consagrado para um propósito específico. O ritual do kiddushin reservava a mulher
para ser esposa de um homem em particular e de nenhum outro.

47 Ver “Betrothal”, disponível em <www.jewishencyclopedia.com/articles/3229-betrothal>, acesso


em 21.07.2017.

48 Levítico 19:20 apresenta uma exceção para o caso do homem que se deitava com uma mulher
desposada. Trata-se do caso em que essa mulher fosse escrava ainda não resgatada ou liberta.
Nessa situação, ambos seriam açoitados, mas não mortos: “Se alguém se deitar com uma mulher, se
for escrava desposada com outro homem e não for resgatada, nem se lhe houver dado liberdade,
então, serão açoitados; não serão mortos, pois não foi libertada”. Como essa escrava era
desposada mas ainda não era liberta, há quem defenda que esse desposamento não correspondia
ao kiddushin, pois nesse caso a mulher já seria livre.

49 Nota-se a diferença da linguagem entre o versículo 23 (“… a achar na cidade e se deitar com
ela”) e o versículo 25 (“… achar… e a forçar e se deitar com ela”). No primeiro caso houve
consentimento da mulher, enquanto no segundo ela foi forçada.

50 Alguns autores, ao sustentarem que “coisa indecente” seria a falta de virgindade, afirmam que
não poderia ser adultério pois esse pecado era punido com morte (ARRUDA, Enoque de Lima,
Divórcio entre vírgulas: uma abordagem exegética de Mateus 19, p. 41; HERINGER, Gleuso A.
Divórcio: Não pense nisso! - separação, divórcio, recasamento e o reino de Deus, p. 62,63).
Entretanto, esses autores não mencionam que a infidelidade da mulher durante o noivado também
era punida com morte, tal como o adultério. Na verdade, os judeus desconheciam distinção entre
infidelidade no noivado e infidelidade no casamento, pois desde o noivado (kiddushin) a mulher já
era considerada esposa, consagrada a um único homem. Se “coisa indecente” não pode ser
adultério, pois este era punido com morte, necessariamente deveria ser dito que também não pode
ser falta de virgindade da mulher.

51 “Se um homem casar com uma mulher, e, depois de coabitar com ela, a aborrecer, e lhe atribuir
atos vergonhosos, e contra ela divulgar má fama, dizendo: Casei com esta mulher e me cheguei a
ela, porém não a achei virgem” (Deuteronômio 22:13,14).

52 HERINGER, Gleuso A. Divórcio: Não pense nisso! Separação, divórcio, recasamento e o Reino
de Deus, p. 63.

53 Diante do questionamento dos fariseus sobre os motivos para o repúdio (Mateus 19:1-9), Jesus
não alimenta o debate entre as escolas rabínicas de Hilel e Shammai. Estudaremos no próximo
capítulo que o fato de Jesus mencionar uma cláusula de exceção não tem relação alguma com a
expressão “coisa indecente” de Deuteronômio 24:1-4.

54 De acordo com a Jewish Encyclopedia, a abolição total da pena de morte entre os judeus teria
ocorrido no ano 40 d.C., antes da destruição do Templo, quando os tribunais judeus,
provavelmente sob pressão das autoridades romanas, renunciaram ao direito de infligir pena de
morte. Ver “Adultery”, disponível em <www.jewishencyclopedia.com/articles/865-adultery>, acesso
em 21.07.2017.

55 Segundo a Mishná, a mulher divorciada por causa de adultério estaria proibida de se casar
com o homem com quem adulterou (Sotah 5.1; Yevamot 2:8). Até os dias de hoje, no Estado de
Israel, uma mulher que recebeu o divórcio por causa de adultério estará impedida de casar com o
homem com quem adulterou: “A Torá é inequívoca: se um homem comete adultério com uma mulher
casada, homem e mulher serão mortos. O Estado moderno de Israel, em contraste, não possui leis
contra adultério, assim os adúlteros podem viver livremente. Mas o que eles não podem fazer é
casar com a pessoa com quem cometeram adultério em uma cerimônia oficial judaica. Isso é
proibido pela lei judaica, que regulamenta os tribunais rabínicos de Israel, que por sua vez
regulamentam o casamento judaico reconhecido pelo estado no país” (ETTINGER, Yair. Rabbinical
Courts Keep Blacklist of Allegedly Adulterous Women’. Matéria jornalística publicada pelo Haaretz
em 24.04.2015. Disponível em: <www.haaretz.com/israel-news/.premium-1.653333?>. Acesso em
21.07.2017).

56 O texto de Deuteronômio 24:4 faz referência a uma contaminação, e por isso alguns autores
supõem que isso se deve ao fato da mulher ter casado com outro homem enquanto ainda valia o
primeiro casamento. Assim, a contaminação seria a evidência de que o segundo casamento era um
tipo de adultério tolerado pela lei ou algo equivalente a essa prática. Porém, isso não faz sentido
algum. É uma suposição que ultrapassa em muito os limites do que está escrito. Embora o adultério
também seja descrito como uma contaminação (Levítico 18:20; Números 5:13,29), ele é muito mais
grave que isso, pois era punido com morte e foi listado entre as abominações que contaminaram a
terra (Levítico 18:20,24-30). O adultério era um mal que deveria ser eliminado de Israel
(Deuteronômio 22:22,23). Já o segundo casamento não é descrito nesses termos. Em Deuteronômio
24:4, a abominação que faz a terra pecar não é o segundo casamento, e sim o retorno da mulher
para o primeiro marido. Dizer que a mulher estava contaminada não é a mesma coisa que dizer
que ela havia adulterado. A lei de Moisés fazia referência a muitas contaminações cerimoniais, e
provavelmente é esse o tipo de contaminação que Deuteronômio 24:4 menciona. Muito
possivelmente essa contaminação já era uma demonstração que algo não estava de acordo com os
propósitos de Deus. E Jesus deixa isso claro, dizendo a lei só permitiu o repúdio por causa da
dureza do coração dos homens.

57 As leis religiosas samaritanas baseiam-se nas leis judaicas do Pentateuco (Torá). Contudo, ao
contrário dos judeus, o samaritanos rejeitam a importância religiosa de Jerusalém como lugar de
adoração e se consideram descendentes dos antigos israelitas do Reino do Norte. Há ainda nos
dias de hoje um pequeno remanescente da população samaritana dentro do Estado de Israel, o
qual os reconhece como judeus. No entanto, os samaritanos não são reconhecidos como judeus
pelo rabinato ortodoxo de Israel.

58 Alguns autores (p. ex. DUTY, Guy. Divórcio e novo casamento, p. 33), talvez por desatenção,
afirmam que o homem judeu precisava da carta de divórcio para contrair novas núpcias.
Entretanto, isso é um equívoco.

59 RBC, Ministérios. Respostas às perguntas difíceis, p. 44-47.

60 Também é a mesma palavra usada em Esdras 10, para dizer que os judeus despediram suas
esposas gentias.

61 YUASA, Key. Divórcio e Novo Casamento - um estudo bíblico inicial, disponível em


<www.ultimato.com.br/revista/artigos/294/divorcio-e-novo-casamento-um -estudo-biblico-inicial>,
acesso em 18.07.2017.

62 A Mensagem: Bíblia em linguagem contemporânea – Eugene H. Peterson, lançada pela Editora


Vida em 2011.

63 Já vimos que, segundo a Mishná, a mulher divorciada por causa de adultério estaria proibida
de se casar com o homem com quem adulterou (Sotah 5.1; Yevamot 2:8).

64 Pelos registro de Flávio Josefo e de Fílon de Alexandria, escritores judeus do século I, sabemos
que o pensamento de Hilel sobre o repúdio era o mais popular entre os judeus, sendo comum a
prática do repúdio por qualquer motivo. Ver “Divorce”, disponível em
<www.jewishencyclopedia.com/articles/5238-divorce>, acesso em 21.07.2017.
65 A prática da poligamia entre judeus só foi abolida no século XI, muito depois do início da Era
Cristã (ADAMS, Jay E. Op. cit., p. 136, 137). Apesar de abolida há cerca de 1.000 anos, na
atualidade há quem defenda que essa prática seja recuperada no judaísmo: “Rabino defende
poligamia em Israel” (Matéria jornalística publicada pela Redação do Estadão em 21.08.2011,
disponível em <www.estadao.com.br/blogs/jt-radar/rabino-defende-poligamia-em-israel/>, acesso
em 21.07.2017). Sobre a poligamia no judaísmo, recomendamos a leitura de “Polygamy”,
disponível em <www.jewishencyclopedia.com/articles/12260-polygamy>, acesso em 21.07.17.

66 “Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus
enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com
efeito, condenou Deus, na carne, o pecado, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que
não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Romanos 8:3,4).

67 O adultério contra a esposa é claramente mencionado em Marcos 10:11: “E ele lhes disse:
Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra aquela”.

68 Ao considerar que a cláusula de exceção mencionada por Jesus (porneia) se refere às relações
sexuais ilícitas, alguns equivocadamente sustentam a tese de que Jesus se aproximou das ideias
defendidas por Shammai (p. ex: “…de acordo com Mateus, o ensino de Jesus não está distante da
opinião de seu quase contemporâneo Shammai” - REID, Daniel G. Dicionário Teológico do Novo
Testamento, p. 830). Outros se recusam a admitir que a exceção tenha esse significado justamente
por pensarem que isso aproximaria Jesus da escola shammaíta (GELDARD, Mark. Jesus’ Teaching
on Divorce: thoughts on the meaning of porneia in Matthew 5:32 and 19:9, p. 137). Entretanto,
tais conclusões nascem de uma leitura do texto a partir de categorias ocidentais contemporâneas.
Pelo fato da nossa sociedade proibir a bigamia, costumamos ler o texto entendendo que, como uma
pessoa já casada deve desfazer o primeiro casamento se quiser casar com outra, a discussão sobre
os motivos do repúdio entre as escolas rabínicas dizia respeito ao segundo casamento após o
divórcio. Entretanto, na discussão entre Hilel e Shammai, não estava em consideração a liberdade
para o segundo casamento do homem. Lembrar disso nos faz ver como Jesus foi surpreendente ao
responsabilizar o homem e denunciar o adultério deste ao repudiar sua esposa, exceto em caso de
porneia, e casar com outra.

69 Um dos autores que defende essa teoria é Walter L. Calisson, no texto “O divórcio, a lei e
Jesus”, publicado como apêndice no livro “Quando o vínculo se rompe”, de Esly Regina de
Carvalho (Editora Ultimato).

70 Trata-se de uma teoria a que tivemos acesso recentemente através do livro “Divórcio? Não
pense nisto!”, de Gleuso Araújo Heringer.

71 MURRAY, John. Divorce and Remarriage, disponível em


<http://thirdmill.org/newfiles/joh_murray/joh_murray.divorce.remarriage.doc>, acesso em
21.07.2017.
72 Isso serve para qualquer teoria sobre o significado de porneia, mesmo aquelas que defendem
que porneia é a falta de virgindade e os que sustentam que é casamento ilícito. Para ambas as
teorias, se o repúdio foi por causa de porneia, logo o segundo casamento não é adultério.

73 RYRIE. Charles C. Biblical teaching on divorce and remarriage, disponível em


<https://biblicalstudies.org.uk/pdf/gtj/03-2_177.pdf>, acesso em 21.07.2017. Autor defende que a
exceção não se aplica ao novo casamento.

74 A teologia católica faz uma distinção entre divórcio absoluto (divortium plenum ou perfectum), o
qual implica dissolução do vínculo matrimonial e possibilidade de novo casamento, e o divórcio
limitado (divortium imperfectum), que deixa o vínculo matrimonial intacto e implica apenas a
cessação da vida comum (separação de cama e de mesa, ou, além disso, separação de moradia).
Em um casamento cristão nunca poderia haver divórcio absoluto. Em casos de adultério poderia
haver o divórcio limitado. Entretanto, essa distinção entre divórcio absoluto e divórcio limitado era
totalmente desconhecida dos judeus a quem Jesus dirigiu suas palavras em Mateus 5:32 e 19:9,
pois o próprio conceito de divórcio carregava consigo a possibilidade de novo casamento

75 DUTY, Guy. Divórcio e novo casamento, p. 45,46.

76 Mishná, Gittin 9.3.

77 NOGUEIRA. Rafael. A questão do divórcio e novo casamento. Disponível em:


<www.cacp.org.br/a-questao-do-divorcio-e-novo-casamento/>. Acesso em 27.06.2017.

78 Autor anônimo que por muito tempo foi identificado com Ambrósio, tendo recebido
posteriormente a designação de Ambrosiaster ou Ambrosiastro, e que escreveu comentários sobre
as epístolas paulinas entre 366 e 383 d.C.

79 FERNÁNDEZ, Aurelio. Teologia moral - curso fundamental de la moral católica, p. 298.

80 Exemplo disso são os textos de Lactâncio (240 - 320 d.C): “Como uma mulher é obrigada pelos
laços de castidade a não desejar nenhum outro homem, então que o marido fique preso pela mesma
lei, uma vez que Deus juntou o marido e a esposa na união de um só corpo. Por este motivo, ele
ordenou que a esposa não seja repudiada, a menos que seja condenada por adultério, e que o
vínculo da aliança conjugal nunca se dissolva, a menos que a infidelidade o tenha quebrado”
(Epitome of the Divine Institutes, 66). “Quem se casa com uma mulher divorciada por seu marido é
um adúltero; assim é quem se divorcia de sua própria esposa (exceto por uma acusação de
adultério) para se casar com outra. Deus não pretendia que o corpo unido fosse separado e
dividido em dois” (Divine Institutes, L. VI, c. 23, n. 33).
81 Epifânio de Salamina (310-406 d.C), depois de destacar a necessidade do celibato para o clero
e afirmar que isso não é exigido dos leigos, declara: “Se o homem não pode se contentar com a
única esposa, a qual morreu, ou se houve um divórcio por algum motivo - fornicação, adultério ou
outra coisa - e o homem se casa com uma segunda esposa ou a esposa com um segundo marido, a
Palavra de Deus não os censura ou os afasta da igreja e da vida, mas os tolera por causa de sua
fraqueza. A santa palavra e a santa igreja de Deus mostram misericórdia de tal pessoa,
particularmente se ele é, por outro lado, devoto e vive pela lei de Deus - não deixando ele ter duas
mulheres ao mesmo tempo enquanto vive, mas deixando-o casar com uma segunda esposa
legalmente, se surgir a oportunidade, depois de se separar da primeira (Panarion, 59, 4.8)

82 Basílio de Cesareia (330-370 d.C), em sua resposta à consulta feita por Anfílóquio de Icônio
sobre o que fazer com aqueles que estão em segundo casamento, declara: “Não sei se é possível
denominar adúltera a mulher que vive com o marido abandonado. A que abandona é adúltera, se
convive com outro homem. O que é abandonado por sua mulher é desculpável e a que vive com ele
não é condenada” (Basil of Caesarea, Letter 188, Canon IX, disponível em
<http://www.newadvent.org/fathers/3202188.htm>, acesso em 21.07.2017).

83 O Pastor de Hermas. Mandamento 4, capítulo 29, disponível em <http://monergismo.com/wp-


content/uploads/Pastor_de_Hermas.pdf>, acesso em 21.07.2017.

84 O Sermão da Montanha, Livro I, 43. In: AGOSTINHO, O Sermão da Montanha e Escritos sobre
a Fé.

85 COLLINGWOOD, Jeremy. Divorce and Remarriage, p. 74, disponível em:


<https://biblicalstudies.org.uk/pdf/anvil/03-1_066.pdf>, acesso em 21.07.2017.

86 Falamos sobre um casal de discípulos de Jesus considerando que, em I Coríntios 7, Paulo trata
de forma separada a situação do casal em que ambos os cônjuges são cristãos e a situação do
cristão casado com incrédulo.

87 No próximo capítulo analisaremos a teoria dos casamentos ilícitos (a exceção caberia apenas
para casamentos inválidos) e a teoria dos esponsais (a exceção se referiria apenas à fornicação
durante o noivado, já que o Evangelho de Mateus foi escrito para um público judaico, que já
considerava os noivos como marido e mulher antes mesmo da consumação do casamento. A
exceção não teria aplicação para casamentos já consumados).

88 ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p.485.

89 NOGUEIRA. Rafael. Op. cit.; YUASA, Key. Op. Cit.


90 Há versões católicas que traduzem porneia como “matrimônio falso” (tradução dos monges
maredsous – Bíblia Ave Maria) ou “união ilícita” (tradução da CNBB) a fim de sustentar a tese da
indissolubilidade total do casamento. Entretanto, nem mesmo as versões católicas são unânimes
quanto a isso, pois algumas traduzem porneia como “adultério” outras como “fornicação”.

91 A palavra fornicação (do latim, fornicatio) em sua origem também foi usada para se referir a
relações sexuais ilícitas em geral. Porém, em alguns idiomas, com o passar do tempo essa palavra
teve seu significado reduzido a sexo pré-marital, e é nesse sentido que a estamos usando neste
livro.

92 Na família do substantivo porneia estão os substantivos porne (prostituta ou qualquer mulher


que se entrega à relação sexual ilícita) e pornos (prostituto ou qualquer homem que se entrega à
relação sexual ilícita) e os verbos porneuo e ekporneuo (prostituir e entregar-se à prostituição,
praticar relações sexuais ilícitas).

93 No grego clássico, a palavra porneia não é frequentemente mencionada, ocorrendo em apenas


quatro autores clássicos. Originalmente estava relacionada ao sexo por pagamento, sendo que
porne era a prostituta. Entretanto, essa palavra ganhou importância e nova aplicação nos escritos
do judaísmo helênico e do cristianismo (aparecem cerca de 400 vezes até o ano 200 d.C), onde a
imoralidade sexual é condenada (HARPER, Kyle. Porneia: The Making of a Christian Sexual
Norm, p. 369).

94 Nos capítulos 17 e 18 de Levítico encontramos as proibições dos sacrifícios aos demônios/ídolos


(Lv. 17:7-9), do beber sangue (Lv. 17:10-12), do comer carne cujo sangue não tenha sido retirado
(Lv. 17:13-16) e de várias relações sexuais ilícitas (Lv. 18).

95 Já estudamos que sob a lei, o adultério consistia em tocar a mulher do próximo. Entretanto, à
luz do ensino de Jesus, o adultério passar a ser um pecado cometido contra a própria esposa. O
casamento é um pacto de fidelidade e exclusividade entre os cônjuges.

96 É interessante destacar que, na Septuaginta, os filhos de Gômer, esposa de Oséias são descritos
como filhos de prostituição (tekna porneiaV, em Oséias 1:2 e 2:4 [2:6)).

97 Apesar do livro de Oséias descrever os pecados de Gômer como porneia, por vezes utiliza-se, de
forma isolada, o texto de Oséias 4:13 e 14 para dizer que o adultério não poderia estar incluído
no conceito de porneia, pois esses versículos falam sobre “filhas que se prostituem” e “noras que
adulteram”. Entretanto, o que vemos nos referidos versículos é um caso de paralelismo, muito
comum na literatura hebraica, em que uma frase repete a ideia da frase anterior, utilizando outras
palavras a fim de reforçar a comunicação. Isso pode ser visto claramente quando lemos o texto a
partir versículo 12: “O meu povo consulta o seu pedaço de madeira, e a sua vara lhe dá resposta;
porque um espírito de prostituição os enganou, eles, prostituindo-se, abandonaram o seu Deus.
Sacrificam sobre o cimo dos montes e queimam incenso sobre os outeiros, debaixo do carvalho, dos
choupos e dos terebintos, porque é boa a sua sombra; por isso, vossas filhas se prostituem, e as
vossas noras adulteram. Não castigarei vossas filhas, que se prostituem, nem vossas noras, quando
adulteram, porque os homens mesmos se retiram com as meretrizes e com as prostitutas cultuais
sacrificam, pois o povo que não tem entendimento corre para a sua perdição” (Oséias 4:12-14).
Vemos que todo o povo estava entregue à prostituição - porneia (v. 12). Isso era tão generalizado
que as mulheres, tanto solteiras como casadas, estavam cometendo prostituição. Contudo, a
prostituição de uma mulher casada é adultério. A ênfase do texto é que todos estavam entregues à
porneia, tanto homens quanto mulheres, tanto solteiras como casada. O adultério não deixa de ser
porneia só pelo fato de ser cometido por uma pessoa casada.

98 P. ex.: Na ocasião em que foi pedido um sinal do céu a Jesus, enquanto Marcos registra a
resposta como “a esta geração não se lhe dará sinal algum” (Marcos 8:12), Mateus e Lucas
registram “nenhum sinal lhe será dado, senão o do profeta Jonas” (Mateus 12:39; 16:4; Lucas
11;29). Entretanto, não há contradição alguma, pois o pedido foi por um sinal do céu, o que foi
negado, e o sinal que seria dado (o de Jonas) não surgiria no céu: “Porque assim como esteve
Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e
três noites no coração da terra” (Mateus 12:40); “Porque, assim como Jonas foi sinal para os
ninivitas, o Filho do Homem o será para esta geração… Ninivitas se levantarão, no Juízo, com esta
geração e a condenarão; porque se arrependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está quem
é maior do que Jonas” (Lucas 11:30,32).

99 Vimos que essa construção aparece no texto apócrifo de Eclesiástico 23:33 - “Primeiro, ela foi
infiel à lei do Altíssimo; segundo, pecou contra seu marido; terceiro, prostituiu-se no adultério
[porneia emoiceuqh] e teve filhos de outro marido”.

100 Alguns mencionam o texto de Hebreus 13:4 para dizer que o moichos (adúltero) não pode estar
incluído no conceito de pornos, pois essas palavras são mencionadas uma ao lado da outra.
Portanto, pornos se referiria a um homem solteiro e moichos, a um homem casado. Vejamos o
versículo: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula; porque
Deus julgará os impuros (pornos) e adúlteros (moichos)”. Entretanto, a palavra pornos é
mencionada em outro versículo no mesmo livro, e não foi usada para se referir a um homem
solteiro: “nem haja algum impuro (pornos) ou profano, como foi Esaú, o qual, por um repasto,
vendeu o seu direito de primogenitura” (Hebreus 12:16). A única coisa que a Bíblia registra sobre
a vida sexual de Esaú é que ele foi casado com duas mulheres hetéias que se tornaram amargura
de espírito para Isaque e para Rebeca (Gênesis 26:34,35). O livro de Hebreus chama Esaú de
pornos não porque ele era solteiro, mas provavelmente por ele ser um homem que, conduzido pela
imoralidade (porneia), tomou decisões equivocadas. Portanto, dificilmente o termo pornos em
Hebreus 13:4 teria um significado diferente do usado em Hebreus 12:16.

101 Quando pensamos em adultério e prostituição, descobrimos algo interessante: muita gente que
adultera não é promíscua no sentido mais generalizado da palavra (pessoa dada à prostituição).
Muitos alegam motivos que consideram “justos” para o segundo casamento, ao qual se dizem fiéis.
Ou seja, estão sinceramente enganados. Não são promíscuos, mas estão em adultério por causa da
dureza do coração – rejeitaram o primeiro o cônjuge, não amaram a primeira aliança etc. Certas
mulheres buscam um segundo casamento para se ampararem em um homem. Outros decidem ficar
juntos, mas não se casam para não perderem a pensão ou um benefício qualquer do casamento
anterior. Então, o problema dessas pessoas não é sexual, não é a promiscuidade, mas é a avareza,
a dureza do coração; ou seja, estão em adultério.

102 Embora Jesus se aproxime de Shamai, ele é bem mais conservador quanto a quem pode casar-
se de novo, pois, segundo ele afirma, divorciados ilegítimos não podem contrair novas núpcias sem
cometer adultério – coisa que a escola shamaíta permitia” (NOGUEIRA. Rafael. A questão do
divórcio e novo casamento”. Disponível em: <http://www.cacp.org.br/a-questao-do-divorcio-e-
novo-casamento/>. Acesso em 21.07.2017).

103 Já vimos que a palavra hebraica traduzida como prostituição em Jeremias 3:8,9 é zanah, e que
na Septuaginta esse termo foi traduzido para o grego como porneia. Quem conhecia essa tradução
do Antigo Testamento entenderia que Deus se divorciou de Israel por causa de porneia,
prostituição espiritual.

104 O episódio narrado em Esdras 10 não serve como fundamento para que um cristão tome a
iniciativa de se divorciar de seu cônjuge incrédulo, pois Paulo trata desse tema em I Coríntios 7.

105 Tradução Ave Maria: “Eu, porém, vos digo: todo aquele que rejeita sua mulher, a faz tornar-se
adúltera, a não ser que se trate de matrimônio falso, e todo aquele que desposa uma mulher
rejeitada comete um adultério” (Mateus 5:32).

106 Na obra O Pastor de Hermas, o divórcio é uma obrigação para o homem cuja esposa está
vivendo em contínuo adultério impenitente. Sem o divórcio, o marido seria cúmplice do adultério da
esposa, mas o marido não poderia casar de novo para não impedir o arrependimento da mulher
adúltera (Mandamento 4, capítulo 29). Já para Agostinho, o divórcio em caso de adultério era uma
permissão e não uma obrigação, mas ainda assim o novo casamento não seria permitido nem
mesmo para a parte inocente (O Sermão da Montanha, Livro I, 43. In: AGOSTINHO. O Sermão da
Montanha e Escritos sobe a Fé). Jerônimo, que não concebia a possibilidade de novo casamento,
traduziu a palavra porneia para o termo latino fornicatio, que se referia à imoralidade sexual em
geral, e não apenas a matrimônios ilícitos. Entre os autores cuja leitura permitem compreender que
o segundo casamento é permitido em caso de divórcio por causa de adultério estão Lactâncio,
Epifânio de Salamina, Basílio de Cesareia e Ambrosiáster.

107 Segundo o Talmud babilônico, os casamentos ilícitos que envolvem relações incestuosas
proibidas pela Torá não requeriam carta de divórcio para serem desfeitos, pois tais casamentos não
eram efetivos (Kiddushin 67b.16; Yevamot 52b.9, 91a.16, 94b.5). Segundo a tradição judaica, a
dissolução de um casamento proibido apenas pela lei rabínica, mas não pela Torá, requer carta de
divórcio (Ver “Marriage, Prohibited”, disponível em <http://www.jewishvirtuallibrary.org/marriage-
prohibited>, acesso em 21.07.2017).

108 Herodias, ainda que casada com Herodes, sempre é descrita como mulher de Filipe: “Porque
Herodes, havendo prendido e atado a João, o metera no cárcere, por causa de Herodias, mulher
de Filipe, seu irmão; pois João lhe dizia: Não te é lícito possuí-la” (Mateus 14:3); “Porque o
mesmo Herodes, por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe (porquanto Herodes se casara
com ela), mandara prender a João e atá-lo no cárcere. Pois João lhe dizia: Não te é lícito possuir a
mulher de teu irmão” (Marcos 6:17,18); “mas Herodes, o tetrarca, sendo repreendido por ele, por
causa de Herodias, mulher de seu irmão, e por todas as maldades que o mesmo Herodes havia
feito, acrescentou ainda sobre todas a de lançar João no cárcere” (Lucas 3:19,20 - grifo nosso).

109 “Disse-lhe Jesus: Vai, chama teu marido e vem cá; ao que lhe respondeu a mulher: Não tenho
marido. Replicou-lhe Jesus: Bem disseste, não tenho marido; porque cinco maridos já tiveste, e
esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade” (João 4:16-18 - grifo nosso).

110 Entre os adeptos dessa teoria estão John Piper (Sobre divórcio e recasamento em caso de
adultério. Disponível em: <http://www.desiringgod.org/articles/on-divorce-remarriage-in-the-event-
of-adultery?lang=pt>. Acesso 21.07.2017).

111 Em se tratando de virgem não desposada, ela e o homem que a deflorou não receberiam o
tratamento de adúlteros (Deuteronômio 22:28,29). O homem teria que pagar ao pai da moça 50
ciclos de prata, casar com ela e não poderia repudiá-la por toda a sua vida.

112 Em Deuteronômio 22:24, quando trata do pecado do homem que se deitou com uma virgem
desposada, é dito que esse homem “humilhou a mulher do seu próximo”. O pecado desse homem é
descrito nos mesmos termos que o adultério, e tratado da mesma forma: com morte. Confira: “Nem
te deitarás com a mulher de teu próximo, para te contaminares com ela” (Levítico 18:20); “Se um
homem adulterar com a mulher do seu próximo, será morto o adúltero e a adúltera” (Levítico
20:10); “Se houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade e se deitar com ela,
então, trareis ambos à porta daquela cidade e os apedrejareis até que morram; a moça, porque
não gritou na cidade, e o homem, porque humilhou a mulher do seu próximo; assim, eliminarás o
mal do meio de ti” (Deuteronômio 22:23,24).

113 John Piper é um dos pensadores que sustentam essa ideia: “Mateus diz que José era ‘justo’ em
sua tomada de decisão para divorciar-se de Maria, provavelmente por conta de sua porneia,
fornicação... Portanto, a fim de evitar a inconsistência gritante entre o que ele disse sobre José e o
que Jesus diz sobre o divórcio, Mateus insere a cláusula de exceção, a fim de exonerar José e
mostrar que o tipo de divórcio que alguém pode perseguir durante um noivado por causa de
fornicação, não está incluído no que Jesus tinha dito” (PIPER, John. Sobre divórcio e recasamento
em caso de adultério. Disponível em: <http://www.desiringgod.org/articles/on-divorce-remarriage-
in-the-event-of-adultery?lang=pt>. Acesso 10.06.2017).
114 Na lei de Moisés não há nada que condene, limite ou proíba um homem de repudiar sua noiva.
A tradição judaica estendeu a regulamentação sobre o divórcio para os casos de noivado.

115 A palavra grega que designa uma mulher desposada é mnesteuo, que é usada para descrever
Maria em Mateus 1:18 e Lucas 1:27.

116 ADAMS, Jay E. Casamento, divórcio e novo casamento, p. 88.

117 Toda a disciplina deve ocorrer na expectativa de contribuir com o arrependimento do irmão
que está se opondo à Palavra de Deus: “disciplinando com mansidão os que se opõem, na
expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a
verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos
cativos por ele para cumprirem a sua vontade” (II Timóteo 2:25,26).

118 Aqui a palavra grega traduzida como “separe”, é chorizo, que significa: separar, dividir,
despedir-se, partir, ir embora. Paulo estava falando sobre a mulher deixar o marido. Naqueles
dias, os homens não saiam de suas casas.

119 No grego, a palavra “apartar” é aphiemi, que significa: enviar para outro lugar, mandar ir
embora ou partir, deixar ir, abandonar.

120 Aqui, ambas as palavras, “abandonar e deixar” possui o mesmo significado: aphiemi, a mesma
palavra usada no versículo 11 para dizer que o marido não deve se apartar da sua esposa.

121 ADAMS, Jay E. Casamento, divórcio e novo casamento na Bíblia, p. 88.

122 Tanto a palavra doulos como a palavra eleutheros aparecem em I Coríntios 7:21, na qual
Paulo escreve sobre a situação do escravo que poderia tornar-se livre: “Foste chamado, sendo
escravo [doulos]? Não te preocupes com isso; mas, se ainda podes tornar-te livre [eleutheros],
aproveita a oportunidade”.

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