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A GEOLOGIA NA LITERATURA BRASILEIRA:


UM EXEMPLO EM OS SERTÕES

José Carlos Barreto de Santana


Prof. Adjunto do Dep. de Ciências Exatas
Doutorando em História Social - USP

RESUMO — A existência em Os Sertões, um dos mais importantes livros da


Literatura Brasileira, de uma abordagem geológica, construída entre o final do
séc. XIX e o limiar do séc. XX, reflete o momento histórico pelo qual passava o
conhecimento geológico de então.Em Os Sertões a geologia compõe a 1 a parte,
A Terra, e é descrita do geral para o particular, apresentando, em mapa, um
esboço geológico e propondo uma gênese para o continente americano. Evidên-
cias mostram que o autor, Euclides da Cunha, tinha envolvimento com temas
geológicos anteriormente à produção do livro, e as suas relações com elementos
da comunidade geológica permitiram que ele estivesse a par do que existia de
mais relevante nesta área do conhecimento.As idéias e trabalhos de Charles
Frederick Hartt, Orville Derby (geólogos) e Teodoro Sampaio (engenheiro) exer-
ceram marcante influência sobre o conteúdo geológico de Os Sertões.

ABSTRACT — In Os Sertões, one of the most important books of Brazilian


Literature there is an approach whose geological content based upon theories of
the end of 20th century and the very beginning of the 19th century, reflects the
historical moment in which the geological knowledge of the time was built up.The
first part of Os Sertões deals with the land. The geological content is described
in it from the general to the particular, and presents, in form of a map, a
geological drawing as a proposal of genesis to the American Continent.Some
evidences show that the author — Euclides da Cunha — has been involved with
geological themes before writing the book, and his relationship with members of
geological community allowed him to be in contact with the most relevant ideas
concerning this field of knowledge. The ideas and works of Charles Frederick
Hartt, Orville Derby (geologists) and Teodoro Sampaio (engineer) had a strong
influence on the content of Os Sertões.

São Paulo, 1902, é publicada a 1. a edição de Os Sertões, da


autoria de Euclides da Cunha.
Guindados às alturas em que se encontram os mais importan-
tes livros publicados em língua portuguesa e os mais festejados
escritores desse idioma, Os Sertões e Euclides da Cunha tornaram-
-se objetos de estudo de autores diversos, dentre os quais citamos
Cândido Rondon, Afonso Arinos de Melo Franco,Sílvio Rabelo, Gil-
berto Freyre, Afrânio Peixoto, Roquete Pinto, Olímpio de Souza
Andrade, Antonio Cândido, José Lins do Rego, Tristão de Ataíde,

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Câmara Cascudo, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Nelson Werneck


Sodré. BARBOSA (1986) admitia a existência de, aproximadamen-
te, 10 000 trabalhos publicados sobre o autor e sua obra).
Ao se referir à obra Os Sertões , FREIRE (1966) considerou-a
“notável como literatura e notável como ciência: ciência ecológica
e ciência antropológica e até sociológica”. Tais características
tornam o livro de Euclides da Cunha um importante referencial para
se entender aspectos da realidade/cultura brasileira.
Trata-se, na verdade, de obra e autor polimáticos que marcaram
a cultura brasileira em distintas áreas do conhecimento:Sociologia,
Antropologia, Literatura, História, Jornalismo, Psicologia, Geogra-
fia, para citar algumas.
Analisando o “espírito geográfico na obra de Euclides da Cunha”,
PEREIRA (1966) identificou, na metodologia do autor, a estruturação
em dois mundos, “um foi a natureza, orgânica e inorgânica, desen-
volvendo-se segundo a lei da finalidade; outro a cultura em cuja
formação trabalham a tradição histórica e a vontade individual”.
Em Os Sertões a natureza compõe toda a 1 a parte, subdividida
em cinco capítulos em que são descritos a geologia, o relevo, o clima
e a vegetação, constituindo a base na qual o autor se apóia para
compreender a ação do meio na formação das etnias e sua influência
na gênese das personagens típicas. A geologia é descrita do geral
para o particular. Euclides partiu do que ele denominou de “planalto
central”, indo até o sertão de Canudos, apresentando, ainda, em
mapa, um “esboço geológico para o estado da Bahia”, e, com o sub-
título de “Um Sonho de Geólogo”, propõe uma gênese para o
continente americano.
ANDRADE (l960), buscando vestígios do interesse de Euclides
da Cunha pelas coisas da natureza, encontrou raízes no período de
“exílio disfarçado” a que foi submetido o escritor, em função de
desentendimentos públicos com um senador, pelo Ceará, defensor
de “repressão sumária aos autores de crimes políticos” contra a
República, o que para Euclides configurava “(...) o morticínio sem
os perigos do combate”. Por determinação de Floriano Peixoto, o
autor de Os Sertões , funcionário público — Engenheiro da Diretoria
de Obras Militares, foi transferido, em 28 de março de 1894, da
Capital do país para a cidade de Campanha/MG, onde lhe sobrou
tempo para os estudos, tendo acesso a variada bibliografia, inclu-
sive a Geologie, Flore, Faune et Climats du Brasil de E. Lias que
depois seria citado pelo menos três vezes em Os Sertões .
Em meados de 1894, Euclides, licenciado do Exército, vai para
São Paulo trabalhar como Engenheiro Civil e estreita amizade com
Teodoro Sampaio cuja influência nas leituras científicas daquele foi

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registrada por autores, como, SODRÉ (1966) e ANDRADE (op.cit.).


Entre os autores que passam a preponderar nas suas alusões e
referências encontram-se “os antigos cronistas, os viajantes estran-
geiros, os autores de monografias sobre a terra e a gente do Brasil,
as obras de Vernhagen, Morize, Caminhoá, Sílvio Romero, Capistrano
de Abreu, Teodoro Sampaio, Orville Derby, Saint-Hilaire, Liais...”
(ANDRADE, op.cit.).
Quando os acontecimentos em Canudos são, pela primeira vez,
tratados por Euclides o resultado é o artigo “A Nossa Vendeia”, em
1897, em que são largas as citações de Martius, Saint-Hilaire,
Humboldt, Caminhoá e Levingstone. A descrição do meio físico faz-
-se significativa para entender o revés sofrido pela Expedição co-
mandada pelo Coronel Moreira, no enfrentamento com os seguidores
de Antônio Conselheiro, na medida em que

(...) pela ocorrência simultânea de quartzitos e gneisse graníticos


característicos, o solo daquelas paragens, arenoso e estéril, revestido
sobretudo nas épocas de seca, de vegetação escassa e deprimida, é,
talvez, mais do que a horda dos fanatizados sequazes de Antônio
Conselheiro, o mais sério inimigo das forças republicanas.

Relacionado com as características físicas encontra-se o ho-


mem, os rudes sertanejos “identificados à própria aspereza do solo
em que nasceram, educados numa rude escola de dificuldades e
perigos (...) tem naturalmente toda a inconstância e toda a rudeza
do meio em que se agitam”. Essa relação homem X natureza será
desenvolvida, ampliada e marcante em Os Sertões .
Assim, o jornalista Euclides da Cunha, que chegou em Salva-
dor, em 7 de agosto de 1897, era possuidor de vasta bagagem
cultural. Durante a sua permanência na capital da Bahia, Euclides
manteve freqüentes contatos com os órgãos da imprensa local, que
o recebem com destaque, noticiando a sua chegada e, posteriormen-
te, informando aos seus leitores sobre o livro que o correspondente
de O Estado de São Paulo tinha por missão escrever.
Vejamos o que diz o Diário da Bahia , do dia 08 de agosto:

tivemos ontem a satisfação de receber nesta redação a visita do Sr.


Euclides da Cunha, engenheiro militar (...) O Dr. Euclides da Cunha vem
incumbido de estudar as condições geológicas do terreno de Canudos
e escrever um livro sobre a atual guerra em que naquela localidade se
empenha o exército nacional contra o fanatismo (CALAZANS,1969).

Já o jornal A Bahia , do mesmo dia, registra o prazer de

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cumprimentar Euclides e informa a pretensão do mesmo de estudar


a região de Canudos, sob os pontos de vista militar e científico
(CALAZANS, op.cit.).
Partiu Euclides de Salvador, com destino a Canudos, em fins
de agosto, descrevendo, no seu Diário de uma Expedição , a Geo-
logia da região por onde passa a estrada de ferro que liga Salvador
a Queimadas, notadamente no trecho até a cidade de Alagoinhas,
e, parecendo distinguir a transição entre “grandes camadas terciárias
de grés [arenito] — um solo clássico de deserto — em que tabuleiros
amplos se desdobram a perder de vista, mal revestidos, às vezes,
de uma vegetação torturada” e rochas “cretáceas subjacentes cuja
decomposição determina a formação de um solo mais fértil”, o
escritor ressaltou que a sua observação (...) já de si mesma
resumida aos breves horizontes de imperfeitíssimos conhecimentos
geológicos, fez-se em condições anormais na passagem rápida de
um trem”. Essa evidente preocupação com as características do seu
conhecimento geológico pode ser encontrada, também, em outros
trechos do seu “Diário”, a exemplo da visita feita ao rio Itapicuru “de
margens ridentes e pitorescas em cujo seio afloram ilhas de belíssimos
gneisses (...) recolhi um pouco de areia claríssima, destinada ao
exame futuro de pessoa mais competente.
As anotações sobre a geologia da região prosseguem no “Di-
ário” e são encontradas também na sua Caderneta de Campo
(CUNHA,1975) onde meticulosos croquis ilustram as suas observa-
ções sobre o relevo e onde, pela primeira vez, aparece o roteiro de
um estudo, a ser realizado, que resultaria em Os Sertões .
Ao retornar de Canudos para Salvador, novamente os jornais da
Bahia fizeram referências aos seus estudos sobre as condições
geológicas e as etnias que serviriam de base para um livro a ser
escrito por solicitação do jornal paulista.
Após o fatídico 5 de outubro de 1897, que mais tarde o escritor
imortalizaria ao relatar “quando cairam os seus últimos defensores
(de Canudos), que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho,
dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados” (CUNHA,1985), Euclides regressa
para São Paulo, “traz um rascunho de um livro, um depoimento
áspero, um libelo arrasador. Há de escrever algum dia, quando tiver
uma pausa” (SODRÉ, op.cit.).
Euclides retomou, em 1898, as suas atividades de funcionário
da Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo.
No ano seguinte, foi designado para a reconstrução de uma ponte
que desabara nesta cidade de São José do Rio Pardo onde “passará
três anos num lugar, e isso constitui, em sua vida nômade, a pausa

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de que necessita(...) ali encontra um ambiente amigo, gente que


participa do seu problema”, conforme entende Nelson Werneck
Sodré. Ainda segundo Nelson Werneck, quanto às suas anotadas
“deficiências em Geologia, em Botânica e em outros campos”, ele
“tentou superá-las todas, antes de lançar-se ao trabalho final (...)
operou uma completa revisão de seus conhecimentos (...)”.
Em 1902, o livro foi lançado ao público com retumbante suces-
so. Vejamos como ele foi recebido pela crítica inicial e como ele
apareceu nos meios mais especificamente geológicos.
Sob o título Juízos Críticos , a Leammert, editora de Os Ser-
tões , reuniu, em 1903, 15 artigos de diferentes autores publicados
nos jornais do Rio e de São Paulo. Quase todos deram conhecimento
do conteúdo do capítulo “A Terra”, chamando a atenção para o seu
conteúdo científico e elogiando-o. Apenas um artigo de Moreira
Guimarães apontou para o que o articulista chamou de contradições
dessa parte do livro.
Além dos artigos reunidos nos Juízos Críticos , apareceu na
Revista do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, uma
análise de autoria de José de Campos NOVAES (1903) que, apesar
do tom geral elogioso, fez críticas ao conteúdo geológico e botânico
de Os Sertões , atribuindo ao autor do já então destacado livro um
certo “nefelibatismo científico”.
Os dois artigos destacados foram objetos de resposta de
Euclides da Cunha, nas suas “Notas à 2. a edição” em que o autor
citou Geólogos e livros de Geologia em sua defesa, sendo bastante
clara a sua insatisfação com a observação relativa ao “nefebelibatismo
científico” que lhe foi atribuído.
No que diz respeito à comunidade geológica, mais especifica-
mente, Os Sertões são incluídos na Bibliografia Mineral e Geológica
do Brasil, 1903 - 1906 (Lisboa,1906/1907), como portador de “(...)
uma descrição física dos sertões da Bahia com referências à
Geologia do Estado”.
GONÇALVES (1928), na sua Bibliografia da Geologia, Minera-
logia e Paleontologia do Brasil , mantém Os Sertões entre os livros
que tratam do tema. Teria sido, talvez, o bastante para que AB’SÁBER
(1980), ao se referir aos títulos obrigatórios que, em certo tempo,
eram encontrados nas bibliotecas de pessoas cultas que “tinham a
obrigação de conhecer um pouco da Geologia do país”, relacionasse
Os Sertões , “admirada como exemplo de ensaio erudito, impregnada
de conhecimentos geológicos e fisiográficos”, ao lado de livros como
A Geografia do Império do Brasil de J.E. WAPPACUS (1884) e
Geologia Elementar de John Casper BRANNER (1906).
PAIVA (1974) ao analisar a “Geologia de Canudos em Os

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Sertões ", limitou-se à comparação entre a geologia descrita em


1902 e a geologia do seu tempo (dele, Paiva), listando, inclusive,
as concepções ou expressões utilizadas por Euclides da Cunha “que
causam estranheza ao geólogo profissional”. Cometendo assim um
pecado em composição histórica que

(...)é extrair os acontecimentos de seu contexto e erigi-los numa


comparação implícita com o presente, e então pretextar que ‘os fatos
falem por si mesmos’. E imaginar que a história como tal (....) possa
nos proporcionar juízos de valor - é supor que possamos provar, pela
mera passagem do tempo, que este ideal ou aquele indivíduo estavam
errados (Herbert Butterfield, Apud GOULD, 1991).

Aqui é revelada a nossa hipótese base: existe em Os Sertões


uma abordagem geológica construída entre o final do século XIX e
o limiar do século XX, refletindo o momento histórico pelo qual
passava o conhecimento geológico de então.
Inicialmente concordamos com SODRÉ (op.cit.) que em sua
Revisão de Euclides da Cunha considerou ser Os Sertões “um
esforço, uma construção, uma obra difícil, que o autor ergueu
penosamente, arrimando-se a estacas que julgava eternas” e arre-
mata, citando Gilberto Freyre para quem “(...) é precária a posição
dos que ingenuamente exaltam n’Os Sertões um livro improvisado.
Nem improvisado nem fácil”.
As pistas para a compreensão do esforço de Euclides da
Cunha, na construção do livro que o imortalizaria na cultura brasi-
leira, podem ser encontradas no próprio texto de Os Sertões onde
são feitas referências explícitas a naturalistas e geólogos cujos
nomes são encontrados na “escassa bibliografia disponível sobre a
história geral das ciências geológicas no Brasil” (FIGUEIRÔA,1992),
a exemplo de LEINZ (1955) e LEONARDOS (1955).
Utilizando-se da periodização proposta por Maria Amélia DAN-
TES (1988) para a história das ciências naturais no Brasil, adotada
por Sílvia FIGUEIRÔA (1991) no seu estudo sobre “aspectos da
história das ciências geológicas no Brasil”, constatamos que alguns
dos nomes citados por Euclides são relacionados à fase identificada
como “o iluminismo e a tradição naturalista (c. 1770-1850)”, dentre
eles encontram-se: Charles Darwin, Alexandre Humboldt, George
Gardner, John B. von Spix, Carl F. P. von Martius e Jean Agassiz.
Outros nomes estão relacionados à fase da “introdução da ciência
experimental (1850-1920)”, notadamente Charles Frederick Hartt e
Orville Derby.
Dos autores citados por Euclides da Cunha, escolhemos três

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para exemplificar as influências que possam ter sido exercidas na


elaboração de Os Sertões :
Charles Frederick HARTT (1840-1878), geólogo canadense,
naturalizado americano, cuja importância para o conhecimento ge-
ológico brasileiro é ressaltado por vários estudiosos, responsável
pela implantação da Comissão Geológica do Império, publicou, em
1870 a Geologia e Geografia Física do Brasil e mais outros 50
trabalhos sobre o Brasil, dentre os quais figuram a Teoria da origem
glacial da Bacia Amazônica , Recentes explorações da porção ori-
ental da Bacia do Amazonas , Origem da Bacia do Amazonas (todos
datados de 1872) e Contribuição à geologia e à geografia física do
Baixo-Amazonas (1874).
É de Hartt o seguinte trecho sobre a gênese do Continente
Americano:

O vale do Amazonas, ao princípio, apareceu como um largo canal entre


duas ilhas ou grupo de ilhas, das quais uma constituiu a base e o
núcleo da planalto brasileiro, e a outra ao norte, do planalto da Guiana.
Estas ilhas aparecem no princípio da idade siluriana ou um pouco
depois dele. Naquela época os Andes não existiam ainda (Hartt, apud
DERBY, 1877:83).

Esse trecho aparece em Os Sertões com a seguinte redação:

Não existiam os Andes, e o Amazonas, largo canal entre as altiplanuras


das Guianas e as do continente, separava-as, ilhadas. Para as bandas
do sul o maciço de Goiás - o mais antigo do mundo - segundo a bela
dedução de Gerber, o de minas e parte do planalto paulista, onde
fulgurava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam o núcleo
do continente futuro... (CUNHA, 1985:104).

Orville Adalbert Derby (1851-1915), um dos mais importantes


nomes das ciências geológicas brasileiras, fez parte da equipe de
Geólogos da Comissão Geológica do Império, montada por Hartt,
dirigiu a Comissão Geográfica e Geológica da Província de São
Paulo, a quem Euclides se refere como “...o meu grande amigo Dr.
Derby” (em carta ao Dr. Pedro Aquino - Apud ANDRADE op.cit.) e
de quem Gilberto Freyre ( apud Sodré,op.cit.) informa “ter o autor de
Os Sertões recebido forte auxílio técnico” em questões relacionadas
à Geologia.
Derby partilhava com GORCEIX (francês que criou e dirigiu a
Escola de Minas de Ouro Preto até 1891) a convicção de que as
regiões diamantíferas de Minas Gerais e da Bahia possuíam a
mesma gênese (PRAGUER,1899). Sobre essas regiões escreveu

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Euclides:

Reponta a Região Diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de


Minas, como um desdobramento ou antes um prolongamento, porque
é a mesma formação mineira (...) (CUNHA op. cit.:95)

Teodoro Fernandes Sampaio, engenheiro, organizou a Escola


Politécnica de São Paulo, a quem Gilberto FREYRE (op.cit.) atribui
ter prestado colaboração a Euclides da Cunha e possuir caracterís-
ticas de “paciente pesquisador de Geografia Física e de História
Colonial do Brasil”.
Teodoro Sampaio percorrera os sertões da Bahia, desde o ano
de 1878, como integrante da Comissão Milners Roberts da qual
também fez parte o geólogo Orville Derby, autor de trabalhos que
variavam desde temas relacionados à lingua Tupi até assuntos
geológicos. Gozava de respeito e livre trânsito junto a geólogos
como Derby e Jonh C. Branner para quem redigiu algumas “notas”
sobre as rochas arqueanas na Bahia.
Em Os Sertões , o nome de Teodoro Sampaio é mencionado três
vezes, numa delas como um dos autores do “esboço geológico para
o estado da Bahia”, parece muito pouco para alguém a quem
diferentes autores (ABREU, 1977; FREIRE, 1944; AZEVEDO, 1950
— dentre outros) atribuem uma influência acentuada sobre Euclides
da Cunha.
A influência de Teodoro Sampaio sobre o autor de Os Sertões
pode ser entendida a partir de relato do próprio Teodoro ao se referir
às relações dos dois:

Uma vez tornou-me mais depressa do interior, e vinha mais animado.


Era outro e tinha como que um vago pressentimento de que o seu
destino ia mudar. Aquela pasmaceira de tantos anos ia ter o seu fim.
Foi quando se ateou a guerra de Canudos(...) (SAMPAIO, 1919).

Dessa visita, Euclides levou do amigo “(...) algumas notas das


que eu lhe ofereci sobre as terras do sertão que eu viajara antes dele
em 1878. Pediu-me cópia de um meu mapa ainda inédito, na parte
referente a Canudos e vale superior do Vasa Barris, trecho do sertão
ainda muito desconhecido, e eu lh’a forneci (...)”.
Vejamos alguns dos trabalhos de Teodoro que devem ter sido
oferecidos a Euclides: “A respeito dos caracteres geológicos do
território compreendido entre as cidades de Alagoinhas e a de
Joazeiro pelo trajeto da linha férrea em construção”, publicado na
Revista de Engenharia, em 1884 com comentários de Orville Derby

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(parte do trecho apresentado nessa comunicação foi percorrido pelo


autor de Os Sertões , que no seu Diário de uma Expedição descreve
a Geologia entre Salvador e Alagoinhas, como a complementar as
do amigo); Mapa até então inédito, na parte referente a Canudos e
vale superior do Vasa Barris; Notas sobre a geologia da região
compreendida entre o rio S. Francisco e a Serra Geral (do Espinhaço)
nas imediações da cidade do Joazeiro.
Deixemos, mais uma vez, que o próprio personagem conte a
história de como se deu o início do famoso livro. Diz-nos TEODORO
(1919) sobre este momento:

A princípio trazia-me aos domingos os primeiros capítulos, os referen-


tes à natureza física dos sertões, geologia, aspecto, relevo e m’os lia
naquela sua caligrafia minúscula que era como a minha também. A
leitura fazia-se pausada a meu pedido(...). Passávamos em revista
essas terras adustas do Nordeste Brasileiro que o homem ainda não
subjugou e em que a natureza de contínuo vitima o homem, selecionan-
do-o pela energia e resistência que ele opõe às crises periódicas da
seca e da fome. Recordávamos a geologia através de Hartt, de Derby,
e neste examinar em que contemplávamos aquelas extensões de
terras salgadas, ou com inflorescências salinas, na catinga como nas
margens do S. Francisco, passávamos dos depósitos calcáreos, de
calheira silicosa das várzeas onde dos rios temporários só se vê o
sulco profundo e estéril, que as águas abandonaram, ao relevo antiplano
das montanhas de quartzitos e de schistos cristalinos do divisor das
águas; revíamos de memória aquele cenário imenso das planuras
sertanejas com os seus serros isolados, de um pitoresco sem par,
perdidos na catinga como se foram ilhas num mar petrificado; revía-
mos os taboleiros onde por léguas não se encontra uma baixada úmida
que sirva de refrigério.

Além dos exemplos, aqui expostos, poderíamos analisar um


outro aspecto relacionado com a influência que possa ter sido
exercida por Orville Derby e Teodoro Sampaio sobre um dos maiores
escritores da língua portuguesa, mas, neste momento, apenas
citaremos as relações de Euclides da Cunha com as instituições
científicas da sua época.
Euclides da Cunha foi sócio de, pelo menos, três instituições
nas quais poderia encontrar pessoas interessadas pelas questões
relacionadas ao conhecimento da natureza. São elas, em ordem
cronológica de acesso: Instituto Histórico e Geográfico da São
Paulo; Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas e Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. No quadro dos sócios dessas três

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instituições, já se encontravam Orville Derby e Teodoro Sampaio, os


quais, juntos a Alberto Lofgren (botânico), foram os proponentes da
admissão de Euclides no primeiro instituto. Considerando-se a
época estudada, podemos afirmar que a circulação, nesses institu-
tos, possibilitava o contato com uma parcela significativa da produ-
ção científica até então desenvolvida no país, e mesmo a atualização
com o que se passava no mundo.
Finalizando, salientamos que o estudo da Geologia em Os
Sertões feito a partir de uma perspectiva histórica, contextualizada
no tempo e no espaço, pode ajudar no entendimento de como o
conhecimento geológico, produzido no final do séc. XIX, tornava-se
acessível a setores mais amplos da população, para além dos
limites da comunidade mais específica dos que praticavam as
atividades científicas, podendo-se, neste sentido, afirmar que o
famoso livro se constituiu em veículo de divulgação de questões
relacionadas com a geologia.

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