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Fragmentos da espiritualidade dos Sacerdotes do Coração de Jesus (pp.

Dehonianos)

Os padres dehonianos são assim chamados a partir do fundador da sua congregação: Padre João
Leão Dehon que, em 1878, na França, fundou a Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus.

Nós acreditamos no amor

Com bem evidencia o nome da Congregação, o ponto central a partir do qual todo carisma
dehoniano prende forma é o Sagrado Coração de Jesus. Esta expressão, “Coração de Jesus”, quer
dizer que, para o padre Dehon, a fé do cristão não tem principalmente como objecto uma série de
verdades ou de práticas religiosas, mas a pessoa de Jesus Cristo, “o Filho de Deus, que me amou e Se
entregou por mim” (Gal 2,20). O “Coração de Jesus” é a manifestação plena, definitiva, não
negociável do Amor de Deus, do Amor que é Deus. Por isso que padre Dehon, quando fala da fé, usa
a mesma expressão que se encontra na Primeira Epístola de São João. “Nós acreditamos no amor” (1
Gv 4,16).

O Coração de Jesus é um Coração trespassado

Quando padre Dehon fala do Coração de Jesus, ele sempre entende indicar com isso o mistério da
redenção, a pessoa de Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado, a paixão de amor do Vivente que está
no meio dos seus e da história do mundo com o Coração aberto, com o Coração trespassado. Não é
possível compreender o carisma dehoniano se, superficialmente, se esquece este dado fundamental:
o Coração de Jesus é um Coração trespassado, contemplando o qual, na mente ecoam as palavras do
Evangelho: “Deus tanto amou o mundo que lhe enviou o seu Filho unigénito (Gv 3,16).

Deus é rico em misericórdia

Quem diz: “sou dehoniano!” dá testemunho de que uma grande revolução aconteceu na sua vida: lá
onde a religião prognosticava a iminência de um castigo divino como justa punição do pecado do
homem (também do meu pecado!), exactamente aí, foi ouvida uma senteça de graça e de perdão:
“Filho, os teus pecados estão perdoados”. Sempre que você olha para o Coração traspassado de
Jesus, você descobre isso: “Filho, os teus pecados estão perdoados!”. Esta é a beleza do carisma
dehoniano: te faz descobrir o verdadeiro rosto de Deus Amor, que quer connosco uma relação de
amor, sem medo dele, porque não há nenhuma razão de ter medo dele. O Coração de Jesus,
Coração trespassado, produz em nós a abertura, a possibilidade de ver bem como estão as coisas: é
verdade, nós somos pecadores (e esta não é uma novidade e não é uma boa nova, um evangelho!)
mas o nosso pecado e o pecado do mundo foi, é e está perdoado. Esta sim que é uma boa nova, um
evangelho: “Deus, que é rico em misericórdia, por meio do grande amor com que nos amou,
estando nós ainda mortos em nossos pecados, deu-nos vida com Cristo, portanto: pela graça sois
salvos! (Ef 2,4)

De Deus, só se pode esperar amor

Quando um jovem ouve falar da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, pode pensar em
mais uma congregação religiosa. Só que de “religioso” esta congregação não tem nada! A religião é
um fenómeno humano e se concretiza com uma série de práticas, acções, ritos, sacrifícios, orações,
devoções etc… que têm como fundamento dois pilares: 1) entre Deus e o homem há um abismo,
agravado pelo pecado, e o homem, praticando a religião, fazendo bem o que a religião lhe
prescreve, pode colmatar esta vertigem e resultar novamente agradável a Deus, obtendo e

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merecendo o seu perdão a força de obras de penitência ou a sua bênção a força de boas obras; 2)
Deus se relaciona com o homem de reflexo: se uma pessoa é boa, então Deus será bom com ela; se
uma pessoa é má e comete o mal, eis que Deus lhe pagará o mal com o mal, nesta ou na outra vida
(inferno). Quem frequenta a narração dos evangelhos, poderá facilmente reconhecer aqui os pilares
do fariseismo.

O Coração trespassado de Jesus revela outros eixos fundamentais do relacionamento Deus-Homem


e Homem-Deus: 1) Entre Deus e o homem não há um abismo, mas sim Jesus Cristo, o Crucificado e
Ressuscitado. Por isso não é necessário fazer obras de penitência ou obras boas para resultar
agradável a Deus ou ser abençoado por Ele; 2) A resposta de Deus ao homem bom que faz o bem e
ao homem mau que faz o mal é sempre a mesma: o seu Filho unigénito com o Coração traspassado
por amor. Olhando ao Coração trespassado de Jesus, o dehoniano compreendeu isso: de Deus, só se
pode esperar amor, sempre amor, nada a mais ou a menos ou diferente do que amor.

Profetas do amor e servidores da reconciliação, celebrando uma missa contínua

Quem acredita nisso (e, sinceramente, é esta a única revelação que vale a pena de ser acreditada!)
vive toda a sua vida como uma grande eucaristia (palavra que significa “Obrigado”, “dar Graças a
Deus” porque Ele é Bom): isto é a “missa contínua” da qual falava padre Dehon. É bastante fácil
reconhecer um padre dehoniano: está sempre a celebrar missa, mesmo que esteja a dar aulas ou a
cultivar a horta…porque tudo faz com amor, com coração aberto, fazendo da sua vida um dom
oferecido gratuitamente. Ele se reconheceu amado, perdoado, não condenado e é desta mesma
forma que ele vê e considera os outros, sobretudo aqueles que pensam que estão longe de Deus, ou
acreditam que Deus está zangado com eles, ou que as dificuldades da vida, desgraças, doenças e
misérias são um castigo de Deus. Celebrando a sua missa contínua, o dehoniano é profeta do amor e
servidor da reconciliação. Uma coisa está certa e ele sempre te vai dizer isso: Deus te ama de
verdade e sempre!

Onde abundou o pecado, superabundou a graça

Nós dehonianos nunca poderemos levar ao mundo ou às pessoas um juízo de condenação, porque
nós acreditamos no amor, no amor de Deus que salva e que tem um nome, Jesus Cristo, cujo
Coração trespassado fala disso, anuncia isso, testemunha isso, revela isso. Quando olhamos para o
Coração trespassado de Jesus, nós descobrimos que Deus reserva no seu coração um lugar especial,
um tratamento VIP aos pobres pecadores e lá onde abundou o pecado, Deus faz superabundar o seu
amor. Por isso o dehoniano é sempre em todo caso uma testemunha da esperança: para ele nunca
ninguém está perdido, mesmo que a religião lhe tenha excomungado, mesmo que os outros lhe
digitem de pecador (como Zaqueu), mesmo que não tenha como se encaixar entre os “puros” e
“dignos” (se é que existem…mas uns se acham tais!), o dehoniano lhe diz: “Filho, os teus pecados
estão perdoados!”.

Como agradecer ao Senhor pelo seu grande amor?

Para os dehonianos é instintivo, imediato e não constitui esforço nenhum acolher a todos sem
condições, ser amigo dos homens, tecer encontros e diálogos com os que estão longe de Deus ou da
Igreja, porque não há nenhuma pessoa que esteja longe de Deus, dado que Ele, no seu Filho do
Coração trespassado, se aproximou de todo homem e lhe amou radicalmente. Nós dehonianos
sentimos um impulso irrefreável: a única maneira que temos para agradecer a Deus que nos amou
primeiro e sem mérito nenhum do nosso lado, é aquela de amar a todos a prescindir. Alguém pode
se aproveitar da nossa bondade e misericórdia: sim, verdade, e nós fazemos experiência disso todos
os dias…porque todos os dias nós fazemos a mesma coisa com o Coração trespassado de Jesus:

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aproveitamos sempre do seu amor e bondade, bebemos copiosamente á nascente do amor que lá
se encontra, nos lavamos nela, nos refrescamos nela: nós somos autênticos oportunistas
aproveitadores dessa nascente de amor. Como posso lamentar o irmão que se aproveita da minha
bondade, quando eu aproveito cem vezes mais da bondade do Senhor?!

As palavras chave da espiritualidade dehoniana

Portanto, com Saõ João…com padre Dehon, nós dehonianos “acreditamos no amor”, e isso nos
basta! Claro que depois, esta fé no amor implica um tipo de relacionamento com Deus e com os
demais muito exigente, totalizante, não parcelado, não fragmentado. Todavia, padre Dehon nos
seus escritos espirituais, mesmo quando fala do que nós dehonianos devemos fazer para
corresponder ao amor de Deus em Cristo Jesus, ele mostra sempre uma certa alergia a falar das
nossas acções. Prefere antes insistir na fé que prende forma no “Sim” do “Ecce Venio” (eis-me aqui
Senhor!), no “Fiat” do “Ecce Ancilla” (faça-se em mim segundo a tua Palavra!).

1. Abandono no “Sim” e no “Obrigado Senhor” a respeito de nós mesmos e da nossa salvação.


Já não pensamos em nós mesmos, não andamos preocupados para connosco: a nós pensa o
Senhor! Esta é a via indicada por Jesus: as bem-aventuranças dos pobres em espírito, das
crianças segundo o Evangelho, da confiança e disponibilidade ao projecto de Deus que se
nos mostra dia após dia. Ficamos atentos à sua Palavra e aos sinais do tempo. Da mesma
maneira interpretamos a nossa missão: fazer de Cristo o coração do mundo, “Adveniat
Regnum Tuum”, instaurar o seu Reino nas almas e nas sociedades (Cost. 4).
2. Percebe-se imediatamente que o dehoniano é missionário. Ele percebe que a única maneira
justa de corresponder ao amor que é Deus está no se inserir naquela dinâmica de amor que
caracteriza o Missionário de Deus Pai: Jesus Cristo, cujas intenções e disposições estão bem
delineadas na Epístola aos Hebreus (10,9). A tentativa ou pretensão da religião com seus
ritos e sacrifícios, além de não sortir efeito nenhum, não é agradável a Deus: não é a religião
que Deus quer, mas que a humanidade se dê conta de que Ele é amor e todo faz por amor e
que todo homem é sinal do seu amor, espaço vital do seu amor, investimento do seu amor.
No “Ecce Venio” de Cristo ecoa algo maravilhoso: Ele, o Filho, que se recebe eternamente do
Pai-Amor, partilha plenamente com o Pai o drama de ver e constatar que a sua humanidade
não se deixa amar, e esta recusa é a causa do pecado. Padre Dehon “reconhece, na recusa
do amor de Cristo, a causa mais profunda desta miséria humana” (Cost. 4). A resposta ao
drama do Amor-Deus recusado e rejeitado pelos homens consiste em um projecto de Amor:
“Ecce Venio”… “Eis que vou eu a ser aquele homem que se deixa amar por Ti e, assim
fazendo, revela aos outros de que Tu, Pai, és o Deus-Amor”.
3. Este é o SIM de Jesus Cristo, o SIM que é Jesus Cristo, o SIM que Deus opõe ao NÃO da
humanidade. Por isso é que o dehoniano sempre, a todos, faz ouvir este SIM: ele com Jesus
Cristo do Coração trespassado, é o missionário do “SIM” que, em Cristo Jesus, Deus-Amor
diz a cada homem. Mas que maravilha quando a humanidade toda, representada pela
Virgem Maria, ao “SIM” de Deus em Cristo Jesus responde com um “SIM” de alegre
confiança e desejo: “Ecce Ancilla Domini”… “SIM, aconteça e se faça em mim segundo a tua
Palavra”, “Se faça carne em mim o teu Verbo”…”Que o teu SIM a mim me transforme em
SIM a TI”. Justamente padre Dehon conclui: “Nestas palavras: Ecce venio, … Ecce ancilla...,
encerram-se toda a nossa vocação, toda a nossa finalidade, o nosso dever, as nossas
promessas” (Dir. Esp. I. 3).
4. Este é o Evangelho que o dehoniano vive e que como missionário anuncia. O seu drama e
desfalecimento seria de não o anunciar. Com São Paulo, o dehoniano diz: “Aí de mim, se não
anunciar o evangelho! (1 Cor 9,16). Todavia, padre Dehon, não fez coincidir a missão da

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Congregação que fundava em uma obra ou campo específico, porque ele sabe muito bem
que quem salva o mundo é Deus-Amor em Jesus Cristo que se oferece até à morte na cruz.
Portanto, não importa tanto o que, como dehonianos, nós fazemos lá onde os sinais dos
tempos nos provocaram a viver. Importa como o fazemos! Padre Dehon traduz esta
espiritualidade na palavra “Oblação” que significa “Oferta”, fazer tudo por puro amor: é o
Espírito que anima o Coração trespassado de Jesus Cristo, a dinâmica da sua disponibilidade
total e extrema ao projecto de amor do Pai-Deus. Nós vivemos tudo como ocasião de amor,
de oferta da nossa pessoa, das nossas capacidades, mas também das nossas limitações. A
nossa oração e o nosso trabalho, o apostolado e a vida fraterna em comunidade, as alegrias
e os sofrimentos nossos e da humanidade com a qual partilhamos o dia-a-dia, na saúde ou
na doença…nós vivemos “oferecidos”.
5. Há algo a mais, porque padre Dehon, quando fala de “Oblação” não entende uma actitude
espiritual meramente passiva, intimista, sentimental ou de estética superficial. Ele fala
sempre de “Oblação reparadora” ao ponto que os dehonianos, em certos lugares do
mundo, são também conhecidos como os padres “reparadores”. A reparação remete logo ao
drama do pecado e do mal que há no mundo. O pecado é a grande rotura da ligação com a
nascente da vida que é Deus-Amor; o mal é o que entra e se espalha pelo mundo como
vírus; a morte é o terrível efeito e consequência disso. Pode ser que ouvindo isso, alguém
esteja a pensar na morte física-biológica. Não, pior: é a morte do coração, a sua frieza,
indiferença, egoísmo, ódio e desespero, incapacidade de amar, acolher, perdoar; é um
respirar sem viver, um andar sem meta, um já não saber sonhar fazendo de tudo para que os
outros não tenham sonhos de uma vida e um mundo melhor. Mas do Coração trespassado
de Cristo Jesus, o seu Filho que morre na cruz, Deus fez e faz fluir o seu amor, o dom do seu
Santo Espírito de amor derramado sobre nós que nos purifica do pecado, nos liberta dessa
terrível escravidão, e, baptizando-nos na sua morte, nos une a si como membros do seu
corpo, e nos associa à sua obra de salvação. Esta é a reparação: incorporados a Cristo,
continuamos com Ele a sua obra de “carregar” sobre si o pecado do mundo e seus efeitos
nefastos.
6. Por isso os dehonianos são particularmente próximos e solidários com a humanidade ferida
pelo mal pessoal e social. Lá onde existem estruturas de morte, aí se encontra o dehoniano a
solidarizar, a partilhar essa cruz, a crer e esperar a redenção, a libertação, a quebrar os jugos
das injustiças e opressões: nós somos lutadores, estamos sempre ao lado de quem luta para
sobreviver, de quem anseia um dia melhor, e damos voz aos que não são escutados nas suas
legitimas reivindicações dos seus direitos fundamentais: direito a uma vida digna e feliz, a
um trabalho justo, a uma casa, saúde e educação, a um ambiente saudável, à proteção
social. A “oblação reparadora” se traduz num ser e estar e agir social, que naturalmente têm
reflexos políticos, económicos e culturais. Por isso que os dehonianos, ao exemplo do padre
Dehon, estudam as coisas de Deus e as coisas do homem, porque o coração aberto deve ser
sempre acompanhado por uma mente aberta, que procura entender as causas e os efeitos
dos grandes males que mortificam a humanidade.
7. Atenção, porém: a acção social dos dehonianos não é um socialismo ou uma ideologia
política. Prova disso é que a nossa maior e melhor acção social é a “Adoração Reparadora” e
a “Vida fraterna em Comunidade”. Nós acreditamos no amor de Deus que salva, na sua obra
de reparação: só Deus é capaz de renovar a face da terra com a força do seu Santo Espírito.
O mundo não muda e não será melhor se primeiro não muda o coração dos homens, a
começar do meu! Por isso é que padre Dehon nos deixou estes dois pilares da nossa vida: a
“Adoração Reparadora” e a “Vida fraterna em Comunidade”. A primeira nos dimensiona
correctamente e nos mantém no justo equilíbrio, para não cairmos na tentação de que seja

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possível amar sem Cristo, reparar sem Cristo, salvar o mundo sem Cristo. A segunda nos faz
autênticos e verdadeiros, porque se a fraternidade universal não começa com o testemunho
de vivermos reconciliados na nossa casa, então mais nada é de uma palavra altissonante,
mas vazia. “Sint Unum” é a palavra chave que padre Dehon acolhe do Evangelho de Jesus
Cristo e que propõe como regra da vida fraterna em comunidade. Vivendo em comunidade,
na alegria e também no empenho de nos acolhermos, de crescer na estima recíproca, na
consideração do outro como superior a mim mesmo, no perdão oferecido e recebido, na
partilha dos bens e recursos queremos testemunhar ao mundo que a fraternidade é possível
se e quando Jesus está no meio de nós, segundo a sua promessa: “onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18,20)

Conclusão: Le très bon père – O padre muito bom

A espiritualidade dos Sacerdotes do Coração de Jesus é, portanto centrada em Jesus Cristo: Ele é
tudo para nós, do seu Coração trespassado atingimos com abundância o nosso ser, estar e agir na
Igreja e no mundo. Esta é a característica principal do dehoniano: como o Discípulo amado, ele apoia
o seu ouvido ao Coração de Jesus, escuta o que esse Coração diz e revela, fica sempre maravilhado
deste milagre de Deus-Amor e por este Amor é impelido, motivado, sustentado. Na Eucaristia, o
Amor que se fez Pão, ele encontra o seu alimento e o seu estilo de vida: “Tomai e comei…fazei isto
em memória de mim”. É exactamente isso que faz: toma a sua vida e a oferece a Deus, dando o seu
amor, tempo, energias, capacidades pessoais aos que andam cansados e oprimidos, famintos e
sedentos de amor, de justiça, de vida e de felicidade. Ele, o dehoniano, é um pão bom, como padre
Dehon que era chamado “Le très bon père – O padre muito bom”. A herança que padre Dehon nos
deixou, é o mais maravilhoso dos tesouros, o Coração de Jesus, que nós não guardamos para nós,
mas que sempre desejamos partilhar com todos.

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