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TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.

Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. [p. 107-181]. Resenhado por Silvana dos Santos Costa Oliveira

Tema: a produção das teorias científicas racialistas

Sobre o autor: Tzvetan Todorov nasceu em Sófia, 1 de março de 1939 e faleceu em Paris, 7
de fevereiro de 2017, foi um filósofo e linguista búlgaro radicado em Paris, França, desde 1963.
Após completar seus estudos em Letras, frequenta os cursos de Filosofia da Linguagem de
Roland Barthes que foi seu orientador do doutorado e, posteriormente, seu colega de trabalho
na École Pratique des Hautes Études. Foi professor de outras universidades como da
Universidade de Yale e diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris (CNRS).
Dirigiu o Centro de Pesquisa sobre as Artes e a Linguagem da mesma cidade. Publicou um
número considerável de obras, que estão hoje traduzidas em vinte e cinco idiomas, além disso,
produziu uma obra considerada vasta na área de pesquisa linguística e teoria literária. O
pensamento de Todorov direciona-se, após seus primeiros trabalhos de crítica literária sobre
poesia eslava, para a filosofia da linguagem, numa visão estruturalista que a concebe como
parte da semiótica (saussuriana), fato que se deve aos seus estudos dirigidos por Roland
Barthes. A publicação de A Conquista da América, inicia sua transição do gênero “literatura e
teoria literária” para “a história dos pensamentos ou filosofia política”. Nessa obra Todorov
expõe suas pesquisas a respeito do conceito de alteridade, existente na relação de indivíduos
pertencentes a grupos sociais distintos, cujo tema central encontra justificativa na situação do
próprio autor, que é imigrante na França, um país onde supostamente a relação entre nacionais
e estrangeiros é historicamente marcada por um xenofobismo não declarado. Com a publicação
de “Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana (1989)”, rompe
definitivamente com o estruturalismo e a crítica literária, temas que o tornaram famoso e
reconhecido e aprofunda seu pensamento sobre a humanidade e a diversidade humana.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tzvetan_Todorov. Acesso em 23/08/23.

Racismo, racialismo

Concepções de racismo como comportamento humano e como epistemologia (racialismo):

A palavra “racismo”, em sua acepção corrente, designa dois domínios muito


diferentes da realidade: trata-se, de um lado, de um comportamento, feito, o
mais das vezes, de ódio e desprezo com respeito a pessoas com características
físicas bem definidas e diferentes das nossas; e, por outro lado, de uma
ideologia, de uma doutrina referente às raças humanas. (p. 107)

Para separar esses dois sentidos, adotar-se-á aqui a distinção, às vezes operada,
entre racismo, termo que designa o comportamento, e racialismo, reservado às
doutrinas. (idem)

Doutrina Racialista:
[...] racialismo é um movimento de ideias nascido na Europa ocidental, cujo
grande período vai de meados do século XVIII a meados do século XX.
(ibidem)

[...] apresentada como um conjunto coerente de proposições, que se encontram


todas no “tipo ideal” ou versão clássica da doutrina, [...]. Essas proposições
podem ser reduzidas a cinco: (p. 108)

1. Existência das raças: [...] as raças são aqui assimiladas às espécies animais,
e afirma-se que há entre duas raças a mesma distância que entre o cavalo e o
jumento: não é bastante para impedir a fecundação natural, mas suficiente para
estabelecer uma fronteira que salta aos olhos de todos. (idem)

2. A continuidade entre físico e moral: [...] a solidariedade das características


físicas e morais; em outros termos, à divisão do mundo em raças corresponde
uma divisão por culturas, igualmente bem definida. Ora, o racialista faz como
se essas duas séries (física e mental) fossem apenas as causas e os efeitos de
uma única e mesma série. Esta primeira afirmação implica, por sua vez, a
transmissão hereditária do mental e a impossibilidade de modificar o mental
pela educação. (p. 109, grifo nosso).

3. A ação do grupo sobre o indivíduo: O mesmo princípio determinista age


também em outro sentido: o comportamento do indivíduo depende, em grande
medida, do campo racial cultural (ou “étnico”) a que pertence. (p. 109-110)

4. Hierarquia universal dos valores: [...] umas (raças) são superiores às outras,
o que implica uma hierarquia única de valores, de um padrão de avaliação com
o qual faz julgamentos universais. (p. 110, grifo nosso)

5. Política baseada no saber: [...] o racialisla tira deles (fatos) um julgamento


moral e um ideal político. Assim, a submissão das raças inferiores, ou mesmo
sua eliminação, pode ser justificada pelo saber acumulado a respeito das raças.
(idem, grifo nosso)

Racialismo e Cientificismo:
Diversos traços em comum indicam que a família espiritual do racialismo é o
cientificismo. [...] O cientificismo, pode-se dizer, é o iceberg e o racialismo é
sua ponta aparente. Hoje em dia as teorias racialistas não são bem aceitas; mas
a doutrina cientificista continua tão próspera quanto antes. (p. 111)
Formulação do racialismo

Francois Bernier, em 1684, emprega pela primeira vez a palavra “raça” em seu
sentido moderno, mas não trata da questão. (p. 113)

A unidade do gênero humano está na base da construção; Buffon não ignora a


variedade e por isso mesmo sua conclusão é de peso: Tudo concorre, portanto,
para provar que o gênero humano não é composto de espécies essencialmente
diferentes entre si; que, ao contrário, houve apenas uma espécie de homens” (De
l'homme, p. 320). (idem)

Hierarquização das espécies:


A unidade do gênero humano tem como corolário a diferença radical entre o
homem e os animais. [...] “O homem é um ser racional, o animal é um ser sem
razão; e como não existe um ponto de equilíbrio entre o positivo e o negativo,
como não existem seres intermediários entre o ser com razão e o ser sem razão,
é evidente que o homem é de uma natureza diferente da do animal”. (ibidem)

Toda a exposição de Buffon sobre as “Variedades na espécie humana” (é o título


do capítulo), se articula sobre essa hierarquização: no cume se encontram as
nações da Europa setentrional, logo abaixo os outros europeus, depois vem as
populações da Ásia e da África, e, na parte mais baixa da escala, os selvagens
americanos. (p. 115)

Animalização de seres humanos


[...] para Voltaire (poligenista) as raças humanas são tão diferentes entre si
quanto as espécies animais ou vegetais; mais simplesmente, as raças são
espécies. “Tenho boas razões para crer que ocorre com os homens o que ocorre
com as árvores: as pereiras, os abetos, os carvalhos e os pés de abricó não vêm
de uma só árvore, e os brancos barbudos, os negros de lã na cabeça, os amarelos
de crinas e os homens sem barba não vêm do mesmo homem”. [...] Os negros,
segundo ele (Buffon), são seres inferiores, e afinal de contas é normal que sejam
submetidos e reduzidos à escravidão. É nesse ponto do raciocínio que a
doutrina propriamente racialistas recebe um complemento necessário, sob o
efeito da atitude cientista de Buffon. (p. 117, grifos nossos)

Relação entre cor da pele e comportamento/maneira de viver:


Quando se interroga sobre o que constitui a variedade na espécie humana,
enumera três parâmetros: a cor da pele, a forma e tamanho do corpo, e o que ele
chama de “natural” (De l’homme, p. 223) quer dizer, os costumes. (p. 117-118)

[...] “a cor depende muito do clima”, mas também de outras causas: “Uma das
principais é a alimentação (...); outra, que não deixa de produzir efeito, são os
hábitos ou maneiras de viver." (p. 118)

Pode-se constatar agora que o conjunto da teoria racialista se encontra contido


nos escritos de Buffon: considera a existência das raças como uma evidência,
afirma a solidariedade do físico e da moral, subentende a determinação do
indivíduo pelo grupo, proclama bem alto um sistema único de valores, enfim,
tira de sua doutrina consequências práticas e políticas (a escravidão não é
ilegítima). (p. 119)

O ideal estético
O ideal estético de Buffon é, portanto, tão estreitamente etnocêntrico quanto seu
ideal ético e cultural; mas com ainda menos razões onde se apoiar. Os europeus
lhe servem de ponto fixo de comparação para estabelecer a distância que separa
os outros povos da perfeição. (p. 120)

O racialismo vulgar

Nesta seção o autor traz os pensamentos racialistas de Renan e Le Bon que concordam com a
existência de três raças e a hierarquização entre elas, na qual uma raça seria superior e estaria
“predestinada” a ser “civilizada” e dominar as demais (intermediárias - asiáticos e inferiores -
negros).

Renan:
A contribuição original de Renan refere-se, como se verá, à oposição entre as
“raças” ariana e semita. (p. 122)

[...] a divisão da humanidade de em algumas grandes raças - branca, amarela e


negra - e a hierarquização das mesmas. (idem)

Para Renan, a raça inferior é constituída pelos negros da África, pelos nativos
da Austrália e pelos índios da América (reunidos, portanto, em nome de sua
inferioridade cultural, não de traços físicos comuns). (ibidem)

Le Bon
Le Bon é partidário do poligenismo, e assimila as raças humanas às espécies
animais (o que Buffon recusava - com razão). “Baseando-se em critérios ana-
tómicos bem claros, como a cor da pele, a forma e a capacidade do crânio, foi
possível estabelecer que o gênero humano compreende várias espécies
claramente separadas e provavelmente de origens muito diferentes” (Lois, p. 8).
(p. 122)

Na parte inferior da escala encontram se "as raças primitivas", exemplificadas


pelos indígenas da Austrália- nenhum traço de cultura" entre esses selvagens
que ficaram num estado vizinho ao da animalidade" (Lois, p. 25); (p. 123)

A divisão racial do trabalho:


“Sendo a raça ariana e raça semítica (...) destinadas a conquistar o mundo e a
conduzir a espécie humana à unidade, não lhes importa o resto, a não ser a título
de experimento, de obstáculo ou de auxiliar" (p. 115). Visivelmente, é ainda a
providência que decide quanto ao papel que cabe às diferentes populações do
globo; como a raça branca é a única investida da dignidade do sujeito humano,
as outras raças devem se limitar a funções instrumentais: não existem em si
mesmas, mas apenas na ótica do projeto imperial ao qual está predestinado a
raça branca. (p. 126)
Projeto eugênico

Entusiasta da miscigenação: somente com as raças intermediárias


Renan não se contenta em projetar a transformação da vida social das outras
raças, mas sugere também sua transformação física, com a contribuição de um
sangue de qualidade superior: um projeto eugênico duplica, portanto, o projeto
imperialista. (p. 127)

“Uma quantidade muito pequena de sangue nobre posta em circulação em um


povo basta para enobrecê-lo” (idem)

Miscigenação causa degenerescência


[...] vê-se que, aos olhos de Le Bon, o homem branco e civilizado leva uma
vida perigosa, cercado que está de numerosos abismos. (p. 128)

O determinismo científico

A doutrina racialista, como se viu, está ligada desde seu início ao


estabelecimento das ciências, ou mais exatamente, ao cientificismo, quer
dizer, a utilização da ciência para fundar uma ideologia. (idem)

O cientificismo repousa essencialmente, já se viu, em dois postulados: o


determinismo integral e a submissão da ética à ciência. (p. 129)

O reino da ciência

A ciência é o traço mais elevado da humanidade, seu maior título de glória. “O


progresso da pesquisa positiva é a mais clara aquisição da humanidade. (...)
(“L’instruction supérieure en France”, p. 70). [...] A ciência merece esse lugar
porque apenas ela nos conduz, para a solução dos enigmas da humanidade; seu
papel” é dizer definitivamente ao homem a palavra das coisas, é explicá-la a ele
mesmo” (L'Avenir de la science, p. 746). [...] Em outros termos, é a ciência, e
apenas a ciência, que pode nos revelar a verdade. (p. 132)

Creio sempre que a razão, quer dizer, a ciência, conseguirá criar de novo a força,
quer dizer, o governo, na humanidade (L’ eau de jouvence , Préface, p. 441).
Isto não quer dizer apenas que a razão se tomará forte, mas também que o
governo deve se apoiar na ciência. Em outra ocasião Renan especifica um
pouco mais este pensamento: “A ciência é a alma de uma sociedade; pois a
ciência é a razão. (p. 136)

A moralidade superior
Segundo Gobineau, o comportamento dos homens é inteiramenle dependente
da raça a que pertencem e se transmite pelo sangue; a vontade do indivíduo nada
pode fazer. (p. 137)

As qualidades morais do indivíduo são inteiramente determinadas por suas


disposições físicas; é vã, portanto, qualquer esperança nos efeitos da educação.
(p. 138)
Já os europeus são civilizados de antemão, e neles a razão decorre do inato, não
do adquirido. (idem)

Gobineau

Racialismo vulgar

A habilidade de Gobineau com as palavras e seu poder de, através delas, deixar subentendido
que era justificável a escravização, a inferiorização e até o extermínio de outras raças, pode ter
contribuído para a aceitação, divulgação e ressignificação de suas teorias “científicas” ao longo
dos anos.

[...] certas raças são passíveis de aperfeiçoamento, outras não. (p. 143)

As raças não são apenas diferentes; são, ademais, hierarquizadas, segundo uma
escala única: [...] As três grandes raças- negra (ou melaniana), amarela (ou
finlandesa) e branca, identificadas por marcas físicas como a carnação, o
sistema piloso, a forma do crânio e da fácies — são avaliadas, sempre com o
mesmo resultado, segundo três critérios, beleza, força física e capacidades
intelectuais. (idem, grifo nosso)

Raça e Civilização
Ideia/Noção de civilização em Gobineau

[...] partir das hierarquias que estabelece entre as diferentes formas de


sociedades humanas. São duas, mais ou menos semelhantes. Na primeira, as
sociedades conhecem três graus: a tribo, a povoação e a nação. (p. 144)

A segunda hierarquia refere-se ao estatuto e ao papel do ideal na vida de uma


sociedade. No grau mais baixo, o ideal não consegue separar do real, ou, quando
consegue, não age sobre esse último; a população, assim, está condenada à
imobilidade. No segundo grau, a população tem um ideal, que lhe permite
modificar seu estado presente. No terceiro grau, enfim, esse ideal age não
apenas sobre a população onde surge, mas também sobre outros povos (p. 145)

Por mais vagas que sejam essas evocações (mas as metáforas biológicas são
carregadas de um sentido pesado em Gobineau), pode-se ver que possuem um
traço comum, que permite aproximá-las dos três graus da sociedade
apresentados anteriormente: é que a mistura é preferível ao estado simples e
puro; a nação, como a civilização, consiste em uma absorção da
heterogeneidade; a estabilidade e a mobilidade, o macho e a fêmea, devem estar
simultaneamente presentes; e a própria raça branca, coroamento, como se sabe,
da espécie humana, é de fato um “meio justo”, consegue evitar os excessos das
raças negra (“feminina” demais) e amarela (“masculina” demais); ela é, pelo
menos no plano conceitual, uma mistura. (p. 146)

O que Gobineau propõe é uma teoria da história social; e seu postulado é que
deve julgar a qualidade de uma sociedade por sua capacidade de se integrar a
outras, de submeter absorvendo. Ao lado dessa primeira afirmação vem uma
segunda, ou seja, a de que a civilização é um efeito da raça, e apenas dela. Todos
os outros fatores que podem influenciá-la agem apenas na superfície; na
realidade, a qualidade de um povo é um fato resultante da raça” (Essai, p. 1168).
Correlativamente, a hierarquia das civilizações é rigorosamente paralela à das
raças. “A desigualdade das raças (...) basta para explicar todo o encadeamento
dos destinos dos povos (p. 138). É o que Gobineau chama de seu axioma”: [...]
Assim, o “ariano é superior aos outros homens, principalmente na medida de
sua inteligência e de sua energia” (p. 981), e “a raça germânica é dotada de toda
a energia da variedade ariana” (p. 1161). (p. 148)

Raça e história

Tal a segunda tese de Gobineau, a estreita solidariedade entre civilização e raça.


(p. 148)

“As raças atuais não conseguem perder seus traços principais a não ser em
consequência e pela força dos cruzamentos” (p. 268). (p. 148)

Com efeito, na ótica da raça, a mistura é uma degradação. Mais, até: toda
degradação é o efeito de uma mistura de sangues. É o que Gobineau chama de
sua “afirmação fundamental. “Os povos só degeneram em seguida e em
proporção às misturas que sofrem” (p. 345). (p.149)

Pode-se medir agora o caráter paradoxal da tese de Gobineau. “Raça” e


civilização" são, segundo ele, duas entidades ligadas entre si o mais
estreitamento possível; talvez sejam apenas dois aspectos de uma única
entidade, a sociedade. (p. 150).

Renan

Raças linguísticas

Em suas análises particulares procede sempre assim: para estudar a religião, por
exemplo, é preciso começar “pondo de lado" mais de metade da humanidade:
[...] Os povos civilizados, como se vê, formam uma espécie à parte. (p. 153)

Assim, quando se encontra no terreno da raça superior, Renan se coloca em um


novo caminho. Parte da observação de que não existem mais raças puras, após
inumeráveis misturas que marcaram sua existência passada (aqui,
evidentemente, o termo “raça" não cobre mais as três grandes raças, mas
corresponde à população de cada um dos Estados da Europa). (idem)

Bem mais do que pelo sangue, os homens modernos são movidos “por essa
grande força superior às raças e destruidora das originalidades locais, que se
chama civilização!" (Histoire gene rale, p. 139; cf. "La société berbère", p. 570).
(p. 154)

A língua, a religião, as leis, os costumes, muito mais do que o sangue, fizeram


a raça" (Histoire du peuple d’ Israel, p. 32). (p. 155)
A raça semítica e a raça ariana, que vão reter a atenção de Renan por muitos
anos, não são, portanto, raças físicas, mas raças linguísticas. "A divisão dos
semitas e dos indo-europeus, por exemplo, foi criada pela filologia e não pela
fisiologia" (L’Origine du langage, p. 102). (idem)

Se a raça está na origem da gramática, é que a raça não é a gramática. E em sua


última grande obra, Histoire du peuple d'Israel: "Sendo a língua, para uma raça,
a própria forma do pensamento, o uso de uma mesma língua ao longo dos
séculos de alguma maneira se torna, para a família a que pertence, um molde,
um espartilho" (p. 32). O que esta frase afirma não é apenas um determinismo
linguístico (e cultural); é também uma relação entre língua e raça, que
testemunha a não coincidência das duas, e, em seguida, sua solidariedade. (p.
156-157)

A "raça linguística" é a porta que lhe permite fazer comunicar a raça e a língua.
Longe de evacuar o conceito de "raça", a obra de Renan reforça-o, porque é com
ele (e com alguns de seus contemporâneos) que “ariano" e "semita" deixam de
ser termos que servem para designar famílias de línguas, para se aplicar às
"raças", quer dizer, aos seres humanos. (p. 157)

O membro de uma raça, diz Renan, jamais escapa a seu império; a educação não
adianta muito. "Todos os progressos da ciência moderna levam, ao contrário, a
pensar cada raça como encerrada em um tipo que ela pode realizar ou não, mas
do qual não sairá" ("Le désert et le Soudan", p. 541). (idem)

Ciência contra religião

Renan consagrou a vida â descrição da língua, da religião, da história


“semíticas", confrontando sempre, mais ou menos explicitamente, essa “raça" à
outra grande “raça" branca, indo-europeia ou ariana, e, portanto, â família de
línguas (e de culturas) que lhe são próprias. É nos retratos comparados dos
arianos e semitas que se pode melhor observar seu uso do conceito de “raça
linguística" (p. 158)

Com efeito, todas as suas oposições podem ser reunidas em uma só, entre
raciocínio e fé, verdade e revelação, filosofia (ou ciência) e religião. “A pesquisa
da verdade, refletida, independente, severa, corajosa, em uma palavra,
filosófica, parece ter sido o destino dessa raça indo-europeia" (L’ Origine du
laugage. p. 98; cf. Histoire gênérale, p. 145, e L 'Avenir de lascience, p. 955):
(p. 158)

[...] O contrário, para os semitas: “É, por excelência, a raça das religiões,
destinada a dar-lhes nascimento e propagá-las (L’Origine du language, p. 97)
(p. 159). [...] “A língua ariana tinha uma grande superioridade, sobretudo no que
se refere à conjugação do verbo.” [...] A língua semita, ao contrário, no que se
refere ao verbo, tomou desde o início um partido defeituoso. (idem)
Se isso acontece com as línguas, a coisa é ainda mais verdadeira com as próprias
culturas. Os povos semíticos são sempre descritos negativamente, quer dizer,
pelo que lhes falta em comparação aos indo-europeus; [...] “Assim a raça
semítica é reconhecida quase unicamente por seus caracteres negativos: não tem
mitologia, epopeia, ciência, filosofia, ficção, artes plásticas, vida civil; em tudo,
ausência de complexidade, de matizes, sentimentos exclusivos de unidade"
(Histoire générale p. 155). (p. 160)

“A partir do dia em que transmitiram a Bíblia hebraica à ciência europeia, (...)


não tiveram mais nada de essencial a fazer (“L’ Avenir religião…”, p. 239).
(Histoire générale, p. 587). (idem)

Eis que a superioridade da raça ariana sobre a raça semita se exprime em termos
rigorosamente paralelos aos que descrevem a superioridade da raça branca sobre
as outras raças — e se trata, num caso, de raças físicas, e no outro, de raças
linguísticas! Os arianos são para as outras raças brancas (quer dizer, os semitas
— judeus ou árabes), o que a raça branca é para as duas outras raças: o povo
destinado a se tomar senhor do mundo. (p. 161)

A fé na razão

A perfeição de todas as coisas consiste no equilíbrio de seus elementos; mas


esse estado de equilíbrio e de moderação também as torna pouco perceptíveis,
e, portanto, pouco inteligíveis. A imperfeição, ao contrário, consiste no
crescimento excessivo de um constituinte em detrimento dos outros; mas, com
isso, é fácil conhecê-lo. [...] Assim como a psicologia tira suas maiores luzes do
estudo da loucura, a história encontra seu objeto por excelência na religião. As
religiões são, assim, a expressão mais pura e mais completar. da natureza
humana” (p. 948). (p. 162)

Na verdade, o ideal de Renan não é ver triunfar a razão sobre a fé, mas provocar
sua reconciliação final. (p. 164)

Assim, a religião - que Renan assimila também à moral, e às vezes até mesmo
às doutrinas políticas, como o socialismo - jamais é apresentada como realmente
autônoma; mesmo no interior do domínio que e o seu, o da fé, ela é atacada pela
ciência. O que explica, talvez, melhor do que o próprio Renan porque ele
consagra seus esforços àquilo que dizia estimar tão pouco: a religião e seus
inventores, os semitas. (p. 164 e 165)

Os caminhos do racialismo

Raças históricas

No fim do século XIX a modificação mais importante a afetar a noção de raça


é a que a transpõe do plano físico para o plano cultural; essa modificação se
produz sob o impulso de autores como Renan, Taine e Le Bon. (p. 166)

Como seu contemporâneo Renan, Taine oscila, na verdade, entre duas


interpretações da palavra “raça”, uma física e outra cultural, autorizando assim
seus discípulos a encontrar em seus escritos argumentos em favor de teses
contraditórias. (idem)
Quando quer ilustrar a ação da raça, na Histoire de la littérature anglaise, Taine
recorre a um exemplo que parece confirmar a distinção precedente. “Uma raça
como o antigo povo ariano, dispersa desde o Ganges até as Hébridas,
estabelecida sob todos os climas, escalonada em todos os graus de civilização,
transformada por trinta séculos de revoluções, manifesta, no entanto, em suas
línguas, em suas religiões, em suas literaturas e em suas filosofias, a
comunidade de sangue e de espírito que ainda hoje une todos os seus rebentos”
(p. XXIII). [...] Qualquer que seja ela, a raça se apresenta como uma entidade
supranacional. (p. 167)

O racialismo como cientificismo

O racialismo, como se viu desde o início dessa discussão, floresce à sombra da


ciência, pois dela toma emprestado o espírito determinista e leva-o ao extremo.
O determinismo inexorável da raça: eis o traço partilhado por teorias racialistas
distintas sob outros aspectos, como as de Gobineau, de Renan e de Taine. O
indivíduo é impotente face à raça, seu destino é decidido por seus ancestrais e
os esforços dos educadores são em vão. (169-170)

Cientificismo e totalitarismo

A leitura que hoje fazemos do racialismo é inevitavelmente orientada pelo


conhecimento que lemos de seu destino histórico (desde o caso Dreyfus até o
apartheid) e mais particularmente de sua influência sobre a doutrina nazista, que
conduziu ao extermínio de muitos milhões de seres humanos — um dos maiores
crimes raciais da história da humanidade. (p. 172)

Também para Hiller a natureza é onipotente e é preciso submeter-se a suas leis;


ora, estas nos ensinam que a vida é combate e guerra, e que só sobreviverão os
mais aptos, quer dizer, os mais fortes: como em Gobineau, a civilização é
identificada à superioridade militar [...] É sobre essas bases científicas que
Hiller decide fundar uma política: impedir os cruzamentos, como também
queriam Le Bon ou Barrès, purificar a raça por uma seleção rigorosa e eliminar
os indivíduos menos perfeitos (viu-se o projeto de eugenia já colocado por
Renan). (p. 172-173)

“O princípio de que a sociedade existe apenas para o bem-estar e a liberdade


dos indivíduos que a compõem não parece conforme aos planos da natureza,
planos onde apenas a espécie é tomada em consideração, e onde o indivíduo
parece sacrificado" (p. 608). É preciso então, para começar, desembaraçar-se de
“nosso individualismo superficial" (p. 623). (p. 173)

O cientificismo não é a ciência. E, seria preciso acrescentar, o cientificismo não


é o humanismo. Embora cientificismo c humanismo tenham coexistido em
certos filósofos do Iluminismo, é preciso ser muito míope, ou ler uma perfeita
má fé, para pensar que se confundem. (p. 180)

O cientificismo não conduz necessariamente ao totalitarismo; mas esse falo


toma-o mais, não menos perigoso. (p. 181)

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