Você está na página 1de 2

RAE-DEBATE

DEBATE

RÉPLICA: COMPARAÇÃO IMPOSSÍVEL


Por Luiz Carlos Bresser-Pereira
Professor da FGV-EESP
E-mail: bresserpereira@uol.com.br

Imagine-se que alguém comparasse uma colher com democracia participativa em âmbito local. O artigo está
uma maçã, e manifestasse sua clara preferência pela comparando, portanto, duas coisas muito diferentes:
segunda. A perplexidade do interlocutor seria enor- um tipo de administração pública e uma forma de go-
me. Pois bem, fiquei quase tão perplexo quando li esse verno ou de regime político.
artigo comparando a administração pública gerencial De acordo com a classificação histórica que desen-
com a “gestão social”. Conheço bem o que é a gestão volvi de democracias, tivemos inicialmente, nos paí-
pública moderna, ou a administração pública gerencial, ses mais avançados, na primeira metade do século XX,
já que me envolvi profundamente no desenvolvimen- uma democracia de elites ou schumpeteriana; na se-
to de uma teoria democrática e participativa para ela, gunda metade, uma democracia de opinião pública ou
e fui o responsável inicial pela realização da Reforma social; e estamos começando a assistir à transição para
da Gestão Pública de 1995-1998. Trata-se de uma nova uma forma superior de democracia: a participativa ou
forma de organizar e administrar o Estado, que se opõe republicana. A administração pública gerencial, que
à administração pública burocrática, a qual pretende tenho chamado também de gestão pública, pressupõe
substituir. Não se trata de uma forma de governar, de a existência de um regime democrático, já que seu prin-
escolher entre um regime democrático meramente li- cípio mais geral é dar mais autonomia aos gestores
beral ou um regime democrático participativo, mas de públicos em troca de um responsabilização maior da
saber como gerir o aparelho do Estado e os serviços sua parte, que é possível apenas numa democracia. Não
sociais e científicos que o Estado decide financiar. Já o define, porém, qual é o tipo de democracia, se de eli-
conceito de gestão social, na forma como é apresenta- tes, de opinião publica, ou participativa.
do no artigo, não é uma forma de organizar e adminis- Pessoalmente, tenho uma declarada preferência por
trar o aparelho do Estado, mas um aspecto da demo- uma democracia participativa e republicana, e, por isso,
cracia participativa. Segundo o artigo, o modelo de administração gerencial que desenvolvi
em meus trabalhos tem um claro sentido participati-
[...] um aparelho do Estado com características parti- vo. O mesmo se expressa, fundamentalmente, em uma
cipativas deve permitir a infiltração do complexo te- das três formas de controle específicas da gestão pú-
cido mobilizatório, garantindo a legitimidade das de- blica. Enquanto a administração pública burocrática
mandas populares. Para isso é preciso criar arranjos controla por regulamentos detalhados, supervisão e
institucionais que organizem a participação nas dife- auditoria, a gestão pública reduz esses controles e au-
rentes esferas governamentais que sejam dinâmicas o menta o papel da administração por resultados, da
suficiente para absorver as tendências cambiantes ine- concorrência administrada por excelência e do con-
rentes à democracia (p. 44). trole ou responsabilização social.
É por meio desta última forma de controle que a ad-
O exemplo oferecido de gestão social é o Orçamento ministração pública gerencial do tipo que defendo e que
Participativo, que é uma experiência bem-sucedida de procurei implantar no Brasil – há outros tipos, inclusi-

50 • © RAE • VOL. 45 • Nº1


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA • ANA PAULA PAES DE PAULA

ve o estritamente neoliberal como aquele tentado com bém de versões mais liberais e autoritárias de admi-
maus resultados na Nova Zelândia, durante algum tem- nistração pública gerencial. O que não podem, po-
po – estabelece uma clara ponte com a democracia par- rém, é comparar modelo de administração pública
ticipativa. Instituições como os conselhos gestores, e com tipo de regime político. Como também não po-
como o Orçamento Participativo, são formas de parti- dem colocar todas as versões de administração pú-
cipação e controle social que defendi e defendo como blica gerencial numa mesma categoria e associá-las
essenciais para uma boa gestão pública. às “estratégias neoliberais”, ao “Consenso de Wa-
Se os autores querem chamar esse tipo de gestão shington”. Sempre fui um crítico de ideologias con-
pública de “gestão social”, não tenho objeções. Ha- servadoras desse tipo, e nos trabalhos que escrevi
veria assim uma “administração pública gerencial sobre a administração pública gerencial e nas Refor-
social”. E assim seria possível distingui-la não ape- ma da Gestão Pública de 1995-1998, à qual me dedi-
nas da administração pública burocrática, mas tam- quei, rejeitei-as sempre.

JAN./MAR. 2005 • © RAE • 51

Você também pode gostar