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DA VELHA CENSURA
AMOSTRA GRÁTIS
CAPÍTULO
Cristian Derosa
A censura soviética
1
Michael S. Fox. Glavlit, Censorship, and the Problem of Party Policy in Cultural Affairs,
1922–1928. Soviet Studies (1992).
evidentemente produziu um efeito de silenciamento geral sobre as
críticas à política soviética.
A censura soviética possuía várias agências especializadas, cada
uma alocada em órgãos específicos para cada área. Eles “checavam”
e aprovavam o conteúdo de tudo o que fosse publicado dentro das
suas áreas. Por exemplo, histórias de ficção científica são rejeitadas
pela Glavlit, caso contenham qualquer menção à fissão atômica sem
o carimbo da Comitê de Energia Atômica do Estado no Conselho de
Ministros da URSS, onde havia um escritório especializado de
“checagem”.
2
Vladimirov, Leonid. “Glavlit”: como funciona a censura soviética (1972). Trad. Renato Rabelo.
Estudos Nacionais, 2020.
Os métodos oficiais da Glavlit foram sendo relaxados a partir de
1988, a partir da glasnost de Mikhail Gorbachev, deixando de existir
oficialmente em 1991. No entanto, muitos escritores relatam outras
formas de pressão estatal sobre os meios de comunicação existentes
até hoje na Rússia.
3
Informações do verbete “Departamento de Imprensa e Propaganda” do Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro, a partir de trechos selecionados pela própria Fundação Getúlio
Vargas.
que foi feito a partir do retorno dos militares ao poder, em 1964, em
um processo lento.
Durante o regime militar instalado em 1964, a censura buscou
resgatar de forma discreta o trabalho do DIP, através do Serviço
Nacional de Informações (SNI), mas com bem menos intensidade. O
filósofo e jornalista Olavo de Carvalho, que trabalhou intensamente
em jornais durante o período, conta que a censura se fazia
principalmente nas notícias, quando tinham erros ou imprecisões
(que coincidiam obviamente com críticas ao regime). Mas a censura
não se ocupava dos textos de opinião, que se mantiveram livres
durante o período.
Carvalho conta ter presenciado a ocupação da imprensa
brasileira por militantes do Partido Comunista, o que obteve grande
auxílio do próprio governo ao exigir a sindicalização dos jornalistas.
Como os sindicatos já eram plenamente ocupados por comunistas,
todas as redações dos grandes jornais passaram a estar em suas
mãos graças ao próprio governo que se dizia oposto ao comunismo.
O resultado desse processo o Brasil colhe até hoje.
O combate dos governos militares à luta armada ganhou toda a
atenção estratégica do regime, deixando de lado e livre o trabalho
editorial e de pequenos jornais de esquerda, que tiveram o período
como de maior atividade, sendo inclusive em alguns casos
financiados com o dinheiro estatal. A censura ou fiscalização de livros
era bastante óbvia e pouco efetiva por ser facilmente burlada.
Embora houvesse uma lista de obras proibidas, uma imensa
quantidade de livros de esquerda entravam no país por meio de
editoras ligadas à Igreja Católica, por exemplo, como a Editora Vozes,
associada ao clero progressista.
Jornais e panfletos de extrema esquerda circulavam livremente
também nas universidades, deixadas em paz por meio da estratégia
de Golbery do Couto e Silva, teórico principal da doutrina de
segurança nacional brasileira que defendia amplo diálogo com a
esquerda. Ele foi um dos principais responsáveis pela manutenção
da atividade revolucionária nas universidades, principalmente a
Universidade de São Paulo, berço de importantes nomes da
esquerda como Fernando Henrique Cardoso. Foi também o período
de grande prestígio de sociólogos e historiadores da esquerda, como
Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes, que trabalhavam
ativamente e formaram toda uma classe política que mas tarde viria
a ocupar a política brasileira.
A partir do poder intelectual exercido das universidades, a
esquerda obteve o controle de diversos meios de comunicação. Em
1979, no auge da atividade acadêmica de esquerda, o marxista
Adelmo Genro Filho publica uma tese de jornalismo em que faz uma
crítica para a implementação uma “teoria marxista do jornalismo”.
Uma de suas sugestões, que já vinha sendo implementada à risca, é
a ocupação das editorias dos jornais ligadas ao noticiário factual, não
apenas o opiniativo. Embora isso já estivesse ocorrendo há tempos, a
orientação clara de Adelmo representa uma tomada de consciência
importante para a tomada do poder esquerdista nas redações.
Para Genro Filho, era preciso superar a idéia ortodoxa do
marxismo de que o jornalismo encarnava o capitalismo
invariavelmente.
4
Genro Filho, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto
Alegre: Tchê!, 1987.
Tais apontamentos puseram em nova chave a crítica marxista
dispensada ao jornalismo burguês, historicamente financiado por
grandes grupos. Após o fim da União Soviética, uma imensa
operação de abertura do comunismo ao mundo, a profusão de ONGs
e movimentos sociais aliaram-se ao jornalismo em uma rede de
fontes e definidores primários. Por meio dessa nova estrutura, o
jornalismo parecia, aos olhos do mundo, finalmente “corrigir-se” do
problema da dependência financeira e capitalista.
Nisso voltamos aos anos 90, quando a credibilidade começou a
ser abalada, por um lado pelo acúmulo crítico da própria esquerda
externa ao jornalismo e, por outro, pela própria presença dela na
imprensa, em uma espécie de “ação de duplo efeito”, marca da
dialética marxista: enquanto o ocupavam, criticavam os efeitos
deletérios dessa ocupação, de modo a superar cada etapa em um
processo revolucionário perfeitamente hegeliano e frankfurtiano5.
O jornalismo viu no ativismo aberto a melhor forma de combater
a perda de credibilidade fruto da crescente suspeita sobre o seu
conteúdo. Ao invés de continuar a prometer objetividade, os jornais
assumiram de vez o tom ativista em prol das causas sociais. Afinal,
jornais que se contentavam em ser meros espectadores dos fatos
não tinham lugar no novo mundo em que a transformação social se
convertia na atividade fundamental e obrigatória, mesmo sem uma
ideia clara sobre o sentido de tal transformação. Nem mesmo seus
financiadores bilionários seriam bem vistos no mundo sem a
obrigatória preocupação social.
O percurso histórico que vai da função informativa até o atual
ativismo não precisa ser descrito em tantos detalhes, mas apenas
resumidamente.
A defesa acalorada da objetividade jornalística, retomada do
positivismo diante do avanço tanto das Relações Públicas comerciais
quanto da propaganda comunista, nazista e fascista, parecia impor à
comunicação social a necessidade de distinção fundamental das
outras linguagens, diante da urgência consensual da defesa da
democracia e manutenção da paz. Foi com a mesma disposição que
5
A tese de Marx, da crítica total de tudo quanto existe, baseada na dialética do negativo, de
Hegel, foi eficientemente recuperada pela Escola de Frankfurt, que via no capitalismo todos os
problemas inerentes à deterioração cultural. Ler Olavo de Carvalho: A Nova Era e a Revolução
Cultural.
se chegou à conclusão irremediável de que as divergências de
opinião, quando levadas ao extremo, poderiam provocar conflitos
insolúveis, culminando talvez na repetição dos horrores das guerras6.
Essa convicção justificou a imensa centralização observada na
comunicação do século XX.
Foi a partir dos anos de 1980 que a credibilidade dos jornais
começou a cambalear, chegando aos anos 1990 em grande
descrédito, especialmente nos Estados Unidos, conforme observou o
pesquisador e jornalista português, Nelson Traquina.
6
Ver reflexões de Harwood Childs em An Introduction of public opinion, de 1940, republicado
no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas sob o título de “Relações Pública, Propaganda e Opinião
Pública”, em 1964.
De certa forma, o papel dos jornais na educação para a
democracia já estava presente nas reflexões do sociólogo John
Dewey7. O debate histórico entre Dewey e Lippmann marcou as
discussões sobre as esperanças na democracia. Lippmann era crítico
do jornalismo e não acreditava que a democracia das massas tinha
capacidade de produzir clareza de uma orientação benéfica para o
mundo. Esse debate produziu grande impressão nas mentes que se
viam como potenciais definidoras dos rumos do mundo.
Em defesa do papel ativo do jornalista, autores como Davis
Merritt, Jay Rosen e outros, escreveram verdadeiros manifestos em
defesa de uma mudança profunda no jornalismo em direção ao seu
papel de garantidor da democracia. Deve-se a eles o início do “civic
journalism”.
O objetivo principal desta nova proposta para o jornalismo era
alcançar uma maior clareza de princípios, abandonando a velha
posição ambígua de transformação social discreta. Como escreve
Rosen: “O jornalismo pode e deve ter um papel no reforço da
cidadania (citizenship), melhorando o debate público e revendo a
vida pública”, cita Traquina em um artigo que revisa o histórico do
movimento.
8
Dias, Robson. Direitos da Criança: jornalistas, ONGs e o agenciamento da cidadania.
Publicatio UEPG: Ciencias Sociais Aplicadas, 2011.
9
Apud, Ibidem, 2011.
Financiadas por organismos internacionais, essas ONGs
precisavam fazer valer cada centavo e não desperdiçar aquele
montante recebido, o que impulsionou novos estudos para ampliar a
efetividade da sua mensagem, ampliação do alcance na opinião
pública. Aí entra o papel dos jornais. Mesmo já tendo desenvolvido
ideias de participação social do “jornalismo cívico”, como vimos, o
jornalismo ainda dependia financeiramente do meio empresarial,
sustentado por anunciantes que pagavam pelo número dos seus
assinantes, um modelo de negócio consagrado pelo tempo.
A atividade jornalística tradicional resumia-se em encher
páginas com notícias do dia-a-dia e da política, recebidas ou
descobertas por meio do que repórteres levantassem de fontes
anônimas, conhecidas ou publicações oficiais do governo e suas
assessorias. O “jornalismo cívico” trouxe novos métodos e, como
vimos, nos EUA as empresas já investiam pesado em novas práticas.
Mas tudo ainda dependia da boa vontade do jornalista, do repórter
ou do editor, em dar voz às necessidades populares ou não. Embora
as relações públicas já se desenvolvessem na direção de uma
crescente influência nos jornais, essa estrutura só se formalizou com
a profissionalização das ONGs e sua consagração como fontes
primárias do jornalismo.
As ONGs foram deixando de ser fontes marginais para se
tornarem as principais fornecedoras de contextualizações sociais e
critérios de pauta. Ao mesmo tempo, essas organizações precisaram
se valer de diversas técnicas de convencimento para captar novos
investidores.
10
Ler A transformação social: como a mídia de massa se tornou uma máquina de propaganda
(2016)
eles jamais pensaram que isso seria possível. Para eles, a missão
delineada por intelectuais como H. G. Well, Walter Lippmann, de que
o conteúdo dos jornais deve ser determinado por instâncias
superiores, era algo inquestionável e que não poderia mudar. Com o
objetivo de manter esse status quo, os poderosos começaram a agir
contra a liberdade de expressão, um valor que sempre desejaram
estar associados.
A integração e assimilação do jornalismo pelas agendas globais
representadas pelas ONGs, deu aos grandes veículos o status de
cinco sentidos da elite política de todos os países. Governantes,
parlamentares, juízes de supremas cortes, têm nos jornais o seu
oráculo sobre a realidade. Isso é o que proporcionou o grande levante
das elites contra o povo, seja na criação do fact-checking e de seus
frutos políticos e jurídicos.
Em agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal do Brasil criou o
Programa de Combate à Desinformação (PCD), que elevava a
instituição da checagem finalmente à categoria de tribunal de
exceção, um instrumento de perseguição política e de opinião como
nunca se imaginou que seria possível. Assinado pelo ministro Luiz
Fux, a Resolução de criação do PCD tinha a seguinte redação: