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8 • Público • Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 2021
Espaço público
A América está de volta e a Europa estará?
O Mundo
às Avessas
D
Nuno Severiano Teixeira
esde 1963 que todos os anos,
em Fevereiro, se reúne em
Munique a nata da nata da
política internacional para
debater o estado do mundo.
Presidentes e
primeiros-ministros, ministros dos Negócios
Estrangeiros e da Defesa, diplomatas e
militares, académicos e jornalistas. Toda uma
gente que dá pelo nome de comunidade
estratégica. É a Conferência de Segurança de
Munique. Este ano, por causa da pandemia,
os dois ou três dias de debate foram
transformados num evento online com menos
de três horas. Na mesmíssima sala de sempre,
mas com as galerias vazias. Apenas o anÆtrião,
o embaixador Wolfgang Ischinger, uma pivot
da televisão alemã, Natalie Amiri, e três
enormes ecrãs onde, à vez, apareciam os
líderes mundiais que não tinham palco mais
de 15 minutos cada um. Eu tinha lá estado três
vezes, em estatutos diferentes: uma como
académico, duas como ministro
da Defesa. Desta vez, pude estar sem
estatuto nenhum. Sem as apertadas
medidas de segurança, confortavelmente,
O velório da palavra
A
Manuel Soares
história do escrito do Presidente
do Tribunal Constitucional (TC)
sobre o lobby gay tem vários
pontos adjacentes que merecem
reÇexão. O texto foi publicado
em 2010 num espaço digital de
debate académico, a propósito de um exame
que tinha gerado controvérsia, quando João
Caupers era professor de direito. Só em 2014
foi designado juiz do TC, por 9 anos, na quota
destinada aos juristas. Esta ressalva é
importante porque o seu actual estatuto dá ao
assunto uma importância acrescida, mas
quando escreveu o texto polémico não estava
sujeito aos deveres de reserva e moderação
impostos aos juízes. Assim, o primeiro ponto:
independentemente da validade das opiniões
do presidente do TC, este é um caso de
exercício de liberdade de expressão de um
sentado à frente do meu computador.
No ano passado, no meio da crise da ordem
liberal e da tensão transatlântica entre Trump
e os aliados europeus o tema tinha sido a
desocidentalização do Ocidente. Este ano,
pelo contrário, só estiveram presentes líderes
europeus e o norte-americano. Por causa do
formato reduzido? Também. Mas, sobretudo,
para marcar o regresso do vínculo
transatlântico. E quem sabe do Ocidente?
Nunca até agora, um Presidente
norte-americano em exercício de funções
tinha participado na Conferência de
Segurança de Munique. Biden, sim, duas
vezes: como vice-presidente de Obama e há
dois anos como simples cidadão. Prometeu,
então, no auge do isolacionismo trumpista,
que a América estaria de volta. Prometeu e
cumpriu. Regressou como Presidente dos
Estados Unidos e declarou, alto e bom som: a
América está de volta, a aliança transatlântica
está de volta.
Em menos de quinze minutos, Biden
enterrou o fantasma geopolítico da America
First e disse tudo o que era preciso dizer: que
acredita no multilateralismo, na liderança
americana, nas alianças permanentes e na
democracia. Em menos de um mês já o
demonstrou: regressou ao Acordo de Paris;
travou a saída da Organização Mundial da
Saúde; mostrou abertura para retomar
negociações sobre o acordo nuclear com o
Irão; e estendeu por cinco anos o acordo de
redução de armas estratégicas com a Rússia.
Na conferência aÆrmou, claro e sem hesitação,
que quer trabalhar com os parceiros da UE e
cidadão livre e não de violação dos deveres de
um juiz.
Segundo ponto: a chamada ao Parlamento
para dar explicações é inconsequente e viola a
independência judicial. O cargo dos juízes do
TC é inamovível e só pode terminar
antecipadamente por vontade do próprio ou
por sanção disciplinar. O momento para
veriÆcar a idoneidade dos candidatos ao TC é
antes da sua designação, quando é suposto os
currículos e percursos pessoais serem passados
a pente Æno. A ideia que o Parlamento pode
Æscalizar o pensamento e a palavra de juízes
em funções e obrigar o presidente de um
tribunal a ir pedir desculpa por escritos
passados, ainda que eventualmente “fora da
caixa”, é simplesmente absurda. Tão absurda
como os órgãos do poder judicial se lembrarem
de convocar um deputado para explicar algum
disparate que tivesse dito sobre a justiça — e
basta ir às redes sociais para ver que não
faltaria quem. Se o Parlamento convocar o
presidente do TC, não se pode esperar dele
outra atitude que não seja a de recusar o
convite. Se lá for falha aos seus pares e à justiça.
Terceiro ponto: o TC deve ter uma
composição plural, com juízes conservadores,
progressistas e mais alinhados ao centro. Essa
diversidade ideológica resulta da forma como
que apoia o ideal de uma “Europa unida e
livre”. Mais, que acredita no artigo V e que a
NATO não é uma relação transacional onde
cada um recebe na proporção daquilo que
paga, é um compromisso de defesa colectiva.
Numa palavra, restaurou a credibilidade da
NATO e apoiou a UE. Mas também lembrou
que durante a pandemia autocratas e
ditadores construíram a narrativa de que a
democracia não responde aos desaÆos e está
obsoleta. Ora, Biden quer provar o contrário e
travar o combate pela democracia. E quer
travá-lo com a Europa.
Isto era tudo o que europeus queriam ouvir.
Mas Biden também disse algumas coisas que
os europeus talvez preferissem não ter
ouvido, sobretudo a Alemanha. E são dois os
irritantes: um chama-se China, outro
Em menos de 15m, Biden
enterrou o fantasma
geopolítico da America
First e disse tudo o que
era preciso dizer. Biden
é uma oportunidade
para a Europa. Valia
a pena não a perder
são designados, por eleição por maioria
qualiÆcada dos deputados ou por cooptação
pelos pares, e é inerente à função de julgar a
conformidade das leis com a constituição. Não
há nenhum drama se um juiz tiver concepções
de vida e de sociedade diferentes das que têm
os deputados de esquerda ou de direita, a
menos que isso revele preconceitos
constitucionalmente insustentáveis.
Por Æm, o óbvio que já muitos disseram e
alguns se recusam a ver: não consta que a
liberdade de pensar, falar e escrever tenha
sido revogada e dado lugar a uma vida pública
higienizada, em que todas as pessoas pensam
a mesma coisa e se expressam da mesma
maneira, dentro de apertados parâmetros
morais deÆnidos por quem se arroga o poder
de puriÆcar a sociedade e de cancelar os que
se atrevem a ser diferentes. Um mundo livre
tem de consentir o direito ao pensamento,
ainda que errado ou desviado de uma
normalidade artiÆcial que se pretenda impor à
força. No limite, se eu for estúpido e estiver
proibido de dizer parvoíces, nunca serei
confrontado com a consciência da minha
estupidez nem interpelado para mudar o meu
pensamento, corrigir os meus preconceitos e
educar melhor os meus Ælhos.
Essa sociedade em que todos pensam e
chama-se Rússia. Biden propõe uma
estratégia comum de longo prazo para
competir com a China, que combine
confronto sobre democracia e direitos
humanos, desacoplamento selectivo em
matéria económica e cooperação em
questões globais, como o clima ou a
proliferação nuclear. Do lado europeu, as
resistências prendem-se com interesses
comerciais, o acordo de investimentos e da
tecnologia 5G. Relativamente à Rússia propõe
uma política mais assertiva, contra os
ciberataques russos e a violação de direitos
humanos. E uma vez mais, do lado europeu, a
resistência prende-se com os interesses
energéticos e o pipeline Nord Sream 2. Nem
sempre os interesses europeus coincidem
com os interesses norte-americanos e a
autonomia estratégica da Europa é um valor
importante. Mas é muito mais aquilo que une,
do que aquilo que separa europeus e
americanos. Na ordem internacional, a
centralidade da Europa joga-se na relação
transatlântica. Sem a América e sem a aliança
transatlântica, a Europa tenderá para uma
periferia. Na ordem política, os populismos e
a erosão da democracia ameaçam os dois
lados do Atlântico. É o mesmo combate para
as democracias europeias e norte-americana.
Biden é uma oportunidade para a Europa.
Valia a pena não a perder.
Professor catedrático da Universidade
Nova de Lisboa e director do Instituto
Português de Relações Internacionais.
Escreve quinzenalmente à quarta-feira
falam de acordo com o politicamente correcto
não existe e nunca existirá. Ela é contrária à
natureza humana, que preza por deÆnição a
liberdade. Momentaneamente, esta
modernidade da crítica violenta dos desvios
de expressão, por pessoas que têm acesso ao
espaço público e facilmente aniquilam alguém
com um rótulo de qualquer-coisa-fóbico, pode
silenciar os indivíduos moderados, que são a
maioria. Mas não anula a diversidade;
esconde-a e oprime-a. Aliás, basta olhar para o
mundo para ver que essa imposição
niveladora do politicamente correcto e
sobretudo o policiamento agressivo que vem
com ela está a produzir um movimento de
sentido contrário. Um dia os avanços
civilizacionais de tolerância, inclusão e não
discriminação podem bem voltar atrás por
causa dos exageros. Sendo assim, o mérito dos
textos do presidente do TC pode ser criticado
com a mesma legitimidade com que ele os
escreveu, mas a sua liberdade individual não
pode ser censurada em nome de um qualquer
nivelamento ideológico sobre questões sociais
fracturantes.
Presidente da direcção da Associação
Sindical dos Juízes Portugueses.
Escreve quinzenalmente à quarta-feira