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Civilização Material, Ecomomia e Capitalismo: Séculos XV-XVIII –

Volume I – As Estruturas do Quotidiano: O Possível e o


Impossível
Fernand Braudel

Introdução (pp.11-14)
Desconcerto com o facto das realidades económicas entre os
séculos XV e XVII se enquadrarem mal, ou não se enquadrarem de
todo, nos esquemas tradicionais e clássicos da economia. Os
próprios economistas vêm a economia como uma realidade homogénea
que é lícito tirar dos seus enquadramentos e que nada é
inteligível fora dos números. O desenvolvimento da Europa pré-
industrial (posta em causa com a exclusão do resto do mundo,
como se não existisse) seria a sua progressiva entrada nas
racionalidades do mercado, da empresa, do investimento
capitalista, até ao advento de uma Revolução Industrial que
partiu a história dos homens em dois.
Evoluções que se confrontam, se combinam, se contradizem.
Não há uma economia, mas sim economias. A que costuma ser
preferencialmente descrita é a economia do mercado, os
mecanismos de produção e da troca ligados às atividades rurais,
às lojas, às oficinas, aos estabelecimentos, às Bolsas, aos
bancos, às feiras e, naturalmente, aos mercados. São realidades
bem nítidas, “transparentes”, e foi sobre estes processos que
começou o discurso constitutivo da ciência económica. Foi assim
que esta se encerrou num espetáculo privilegiado, com exclusão
das outras.
Muitas vezes é difícil de se observar uma zona de
opacidade, por falta de documentação histórica suficiente, que
se estende sob o mercado: é a atividade elementar de base,
denominada de “vida material” ou “civilização material”. Esta
infra-economia, esta outra metade informal da atividade
económica, a da auto-suficiência, da troca dos produtos e dos
serviços num raio muito curto.
Acima e não abaixo da vasta superfície dos mercados,
ergueram-se hierarquias sociais ativas, grupos de atores
privilegiados que entraram nos circuitos e nos cálculos.
Prefácio (pp.15-18)
Discursos para-históricos – a demografia, a alimentação, o
vestuário, a habitação, as técnicas, a moeda, as cidades –
habitualmente isolados uns dos outros e desenvolvidos à margem
dos relatos tradicionais.
Essencialmente para delimitar o campo de ação das economias
pré-industriais e para apreendê-lo em toda a sua densidade, há
um limite que confina toda a vida dos homens, uma fronteira mais
ou menos vasta, difícil de transpor. É o limite que se
estabelece em cada época. Outrora porque os seus mantimentos
eram insuficientes, o seu número demasiado pequeno ou demasiado
grande (para os seus recursos), o seu trabalho insuficientemente
produtivo, a domesticação da natureza quase por começar. Do
século XV ao fim do século XVIII, esses limites em nada mudaram.
Insistamos na lentidão. Os transportes terrestres: vemos a
velocidade aumentar graças à construção de vias modernas, à
melhoria dos veículos de transporte de mercadorias, progressos
que só se generalizaram por volta de 1830, às vésperas da
revolução das ferrovias. Só haverá rutura com o século XIX e a
convulsão total do mundo.
Os pormenores da vida quotidiana: o aquecimento, os
transportes, os alimentos, as doenças, os medicamentos… são
regras que, durante muito tempo, encerram o mundo numa
estabilidade duradoura.
O possível não é apenas limitado por cima: é também
limitado por baixo pelo conjunto dessa “outra metade” da
produção que se recusa a entrar integralmente no movimento das
trocas. Esta vida material corre sob o signo da rotina: semeia-
se o trigo como sempre se semeou; prepara-se o solo do arrozal
como sempre se preparou. E este setor de história estagnada é
enorme: a vida rural, isto é, 80 a 90% da população do globo,
pertence-lhe na sua grande maioria. É muito difícil definir onde
ela acaba e onde começa a economia de mercado. A civilização
material anda a par, é perturbada, e contradita e explicada pela
civilização económica. No entanto, a barreira existe.
A vida material, entre os séculos XV e XVIII, é o
prolongamento de uma sociedade, de uma economia antiga que muito
lentamente, muito impercetivelmente se foram transformando.
Desde sempre houve a coexistência entre o topo e a base do
progresso e da sofisticação económica, nomeadamente entre o
espaço rural e os espaços urbanos. Atrasos que ou são
involuntários, ou são desejados. A economia de mercado, antes do
século XVIII, não teve força para agarrar ou para moldar o
conjunto da infra-economia, muitas vezes em função da distância
e do isolamento.
Como compreender as cidades sem os campos, a moeda sem a
troca, a miséria múltipla sem o luxo múltiplo, o pão branco dos
ricos sem o pão de farelo dos pobres…?
“A quotidianidade são os factos miúdos que quase não deixam
marca no tempo e no espaço.”
Capítulo I – O peso do número (pp.19-88)
Uma escala de referência
A escala da humanidade atual não é apenas maior, mas
também, do próprio ponto de vista biológico, as pirâmides de
idades não são de todo idênticas.
Cidades, exércitos e frotas
Grandes perdas de população na Europa: Expulsão dos mouros
na Espanha (1609-1614) 300 mil no mínimo), revogação do Édito de
Nantes na França; o povoamento do Novo Mundo por homens brancos
da Espanha (no século XVI, 100 mil no total) – problema de
conjunto: A Europa, por causa da sua clausura política, da falta
de flexibilidade da sua economia, não pode perder mais gente.
Sem a África não poderia ter explorado o Novo Mundo,
particularmente por causa do clima, mas também porque não podia
subtrair demasiados elementos à sua mão-de-obra.
K. J. Beloch tentou auferir o peso correto da Europa do
século XVII dividida pelas três grandes potências em disputa: o
império otomano, o império hispânico, a França de Luís XIII e de
Richelieu – cerca de 17 milhões de homens cada uma – chegou à
conclusão de que seria esse o nível a partir do qual uma nação
poderia aspirar a ser grande potência. (Preocupação do Estado
Moderno com o aumento da população)
Com o século XVIII terminou um Ancien Régime biológico,
conjunto de pressões, de obstáculos, de estruturas, de
religiões, de jogos numéricos que haviam sido a norma até então.
Um Ancien Régime biológico termina com o século XVIII
O equilíbrio acaba sempre por vencer
Em geral, no Ancien Régime há um equilíbrio entre os dois
coeficientes da natalidade e mortalidade. “O que a vida dá, a
morte leva”.
No curto prazo, ativo e passivo andam juntos; se um dos
adversários está ganhando o outro reage. Em 1451, em Colónia, a
peste leva 21 mil pessoas; nos anos que se seguem, celebram-se
aí 4 mil casamentos. Profundamente abalada pelos desastres da
Guerra dos Trinta Anos, toda a Alemanha, quando sai da tormenta,
passa por um crescimento demográfico. É o fenómeno compensatório
jogando a favor de um país a que a guerra destruíra metade ou um
quarto da população.
No curto prazo, os aumentos e as diminuições alternam, vão-
se compensando. A epidemia logo se encarregará das crianças de
tenra idade, sempre em perigo, e de todos aqueles que a
precariedade dos recursos ameaça, suprimindo-os, se necessário.
Os pobres são sempre os primeiros a ser atingidos. Todos estes
séculos viveram sob o signo de inúmeros “massacres sociais”. E,
1483, em Crépu, “a terça parte da dita cidade anda mendigando
pela região e morrem os anciãos nas entulheiras, todos os dias”.
Só com o século XVIII a vida passa a ganhar da morte. Mas
subsiste a possibilidade de revezes ofensivos, como na França,
logo em 1772-1773, ou por ocasião dessa crise surgida das
profundezas, de 1779 a 1783. Estes alertam a precariedade de um
melhoramento tardio à mercê de um equilíbrio entre as
necessidades alimentares e as possibilidades da produção.
As fomes
Durante séculos, a fome volta sempre, de modo que se
incorpora no regime biológico dos homens, é uma estrutura da
vida quotidiana. Carestias e penúrias são coisas contínuas e
familiares. Alguns ricos muito bem nutridos nada alteram nesta
regra. Os rendimentos cerealíferos são medíocres. Duas más
colheitas seguidas, e é a catástrofe.
Na Europa, as “culturas miraculosas” (o milho, a batata) só
tardiamente se instalam, e os métodos da agricultura intensiva
moderna levam também muito tempo para se impor.
A França, país privilegiado como poucos, passou por 7 fomes
gerais no século XV; 12 no XVI; 11 no XVII; 16 no XVIII. Este
levantamento deixa de lado centenas de fomes locais, que nem
sempre coincidem com os flagelos gerais.
O mesmo se poderia dizer de qualquer outro país da Europa.
Na Alemanha, mesmo depois de chegarem as facilidades dos séculos
XVII e XVIII, as catástrofes sucedem-se: fomes de 1730 na
Silésia, de 1771-1772 na Saxónia e na Alemanha meridional; fome
de 1816-1817 na Baviera.
Florença dependente do trigo siciliano trazido pelos
mercadores a partir do século XVII.
Por paradoxal que pareça, os campos sofrem por vezes muito
mais do que as cidades. Como vive na dependência dos mercadores,
das cidades, dos senhores, o camponês não dispõe de quaisquer
rendas. Em caso de má colheita, não lhe resta outra solução
senão recuar para a cidade, mudar-se para lá, mendigar nas ruas
até.
As cidades começaram a ter de se defender destas invasões
regulares de pobres mendigos, que não eram apenas os
necessitados dos arredores, antes punham em marcha verdadeiros
exércitos de pobres, por vezes vindos longe. Em 1573, a cidade
de Troyes viu surgirem nos seus campos e nas ruas mendigos
“estrangeiros”, esfaimados.
Ferocidade burguesa agrava-se desmedidamente com o final do
século XVI e ainda mais com o XVII. Pôr os pobres em condições
de não causarem danos. Em Paris, doentes e inválidos foram
enviados para hospitais, os válidos empregados fastidiosamente.
Na Inglaterra aparecem as poor laws, leis, na realidade, contra
os pobres. Pouco a pouco multiplicam-se no Ocidente as casas
para pobres e indesejáveis onde o internado é condenado a
trabalho forçado, como as workhouses, Zuchthäuser, maisons de
force, e o exemplo notável do Grande Hospital de Paris, fundado
em 1656 – “grande enclausuramento” dos pobres, loucos,
delinquentes. Um dos aspetos da “sociedade racional” do século
XVII. Reação à multiplicação da miséria nesse século difícil.
Dijon chegou a proibir aos cidadãos, em 1656, a caridade
privada. “No século XVI, cuida-se e alimenta-se o mendigo
estrangeiro antes de expulsá-lo. No princípio do século XVII,
rapam-no. Mais tarde, açoitam-no; e, no fim do século, a última
palavra em repressão faz dele um forçado”.
Fome de 1696-1697 na Finlândia, “o mais terrível
acontecimento da história europeia”: desaparece então um quarto
ou um terço da sua população. A fome fustiga o Leste europeu
ainda depois do século XVIII.
“Pequena era glacial” na Europa ocidental no século XVII.
No Blésois, em 1662, “há cinco anos que não se via miséria
semelhante”, diz uma testemunha. Vários outros relatos na Lorena
e Leste francês de carestias de cereais, onde os humanos se
sustentam da erva como animais até ao início do século XVIII.
As epidemias
Uma má colheita é suportável. Com duas, os preços sobrem,
estala-se a fome, que nunca vem só: mais cedo ou mais tarde,
abre a porta às epidemias que também têm os seus ritmos
próprios. A peste, “a hidra de sete cabeças”, “estranho
camaleão”, é o terrível, entranha-se e compõe-se como uma
estrutura da vida dos homens.
Na verdade, não é mais do que uma doença entre muitas
outras. A varíola é, na época, considerada como “a mais geral de
todas as doenças”.
Suadeira inglesa que assolou a Inglaterra de 1486 a 1551,
com vários surtos, que em 1529 se espalhara para o continente.
Diante destes ataques em massa, pensemos na falta de
resistência de populações malnutridas, mal protegidas.
Tuberculose inclusive mata vários reis franceses.
Doenças viajam a par dos contactos entre os vários
contextos mundiais.
Sifílis expande-se a partir da descoberta da América pré-
colombiana.
A peste
Doença pelo menos dupla: peste pulmonar e peste bubónica.
A regressão da peste a partir do século XVIII é associada à
substituição das casas de madeira por casas de pedra na
sequência de grandes incêndios, ao aumento de limpezas nos
interiores e nas pessoas, condições que haviam propagado as
pulgas.
Sejam quais forem as causas, o flagelo diminui no Ocidente
com o século XVIII. A sua última aparição no Ocidente será a
peste de Marselha de 1720. Surtos de peste no Leste europeu nos
finais do século XVIII e na primeira metade do XIX.
A peste bubónica manteve-se endémica nas regiões quentes e
húmidas, o sul da China, Índia e Norte de África.
Logo que a peste aparece, os ricos mudam-se para as suas
casas de campo, numa fuga precipitada. Quanto aos pobres, ficam
sós, imobilizados na cidade contaminada onde o Estado os
alimenta, os isola, os bloqueia, os vigia. “Em relação ao
quarteirão de Petit Champs. Em Paris, toda a região ficou limpa
de pobres que antes aí habitavam em grande número”. Um burguês
de Toulouse escreve em 1561 “O dito mal contagioso nunca se pôs
senão na gente pobre”. Sartre escreve “A peste atua apenas como
um exagero das relações de classe: ataca a miséria, poupa os
ricos.” Na Saboia, terminada a epidemia, antes de voltarem para
as suas casas, os ricos instalam durante umas semanas uma pobre,
a “ensaiadeira”, encarregada de verificar, com a sua vida, se o
perigo está afastado.
Nenhuma doença atual implica tais loucuras ou dramas
coletivos.
Casas barricadas em Florença em 1637, ruas proibidas onde
só circula o serviço de abastecimento, onde passa um padre.
Florença está morta: já não se fazem negócios, já não há ofícios
religiosos. Salvo a missa que os enclausurados seguem
espreitando das janelas.
Le Capucin charitable, do Pe. Maurice de Tolon, a propósito
da peste de Génova em 1656, enumera as precauções a tomar: não
falar com pessoas suspeitas; queimar substâncias aromáticas para
desinfeção; lavar ou queimar pertences dos suspeitos; e,
sobretudo, orar.
História cíclica das doenças
Cólera desaparece da Europa no século XIX.
A palavra “gripe” data apenas da primavera de 1743. Doença que
não ceifa, mas põe de cama.
1400-1800: Um Ancien Régime biológico a longo prazo
O Homem do Ancien Régime está constantemente em situação
precária. Antes do século XIX, por toda a parte, conta com uma
ténue esperança de vida.
No Beavaisis, no século XVIII, 25 a 33% dos recém-nascidos
morrem em doze meses; apenas 50% atingem os vinte anos. Nenhuma
das famílias reais escapa à mortalidade da época.
Sorte mais dura para os pobres.
Só uma parte da Europa ocidental se consegue libertar da
dinâmica igualitária entre a morte e a vida no âmbito dos
impulsos do século XVIII.
As mulheres estão terrivelmente expostas pelas sucessivas
maternidades. Todavia, se bem que os homens sejam mais numerosos
do que as mulheres ao nascer, os homens morrem mais. Números
excedentários de viúvas.
Ancien Regime: Recuperações a curto prazo, golpes bruscos e
uma ascensão a longo prazo.
Capítulo II – O pão de cada dia (pp.89-XX)
Entre o século XV e XVIII, a alimentação humana consiste,
essencialmente, em alimentos vegetais. Agricultura alimenta dez,
vinte vezes mais pessoas que a pecuária.
Por toda a parte, as progressões demográficas implicam um
recurso acentuado aos alimentos vegetais. A alimentação
testemunha o estatuto social, a civilização, a cultura que
rodeia o Homem.
Quanto à Europa, toda ela é carnívora. Região com vastos
territórios percorridos por animais e, a seguir, a sua
agricultura deu largas possibilidades à pecuária. Falta de carne
no século XVII.
Carne significava estatuto – os patrões, quando chegavam
além-mar, exigiam carne para a sua alimentação.
“Na história da alimentação, mil anos não trazem quaisquer
mudanças”.
Agricultura neolítica: o advento dos cereais cultivados. Os
campos estendem-se em detrimento dos terrenos de caça e da
pecuária intensiva. Passam os séculos, e eis os homens, cada vez
mais numerosos, relegados para os alimentos vegetais.
Agricultura, mais antiga de todas as indústrias. Três
culturas tiveram um destino brilhante: o trigo, o arroz e o
milho. São plantas que organizam a vida material e por vezes a
vida psíquica dos homens.
O trigo (pp.93-
“O trigo é, antes de tudo, o Ocidente”, mas não só.
A partir da Europa, o trigo foi longe nas suas conquistas.
A colonização russa levou-o para Leste, para a Sibéria; o
camponês russo, a partir do século XVI, consagrou a sua fortuna
nas terras da Ucrânia, onde o trigo triunfa aí. Relatório de
1771: “Ainda agora há na Polólia e na Volínia […] trigo que
daria para alimentar toda a Europa. Situação de superabundência
e catástrofe em 1784. O trigo está a “a tão baixo preço na
Ucrânia que muitos proprietários renunciaram à sua cultura”. A
abundância deste cereal é tão grande que tanto alimenta uma
grande parte da Turquia como chega a fornecer exportações para a
Espanha, Portugal, França, via Marselha, cujos navios carregam
trigo no mar Negro e na região.
O trigo atravessa o Atlântico. Teve que lutar, na América
ibérica, contra as traições do clima. Sucesso nas colónias
inglesas da América, sobretudo no século XVIII. Os veleiros
bostonianos transportam o trigo para as Antilhas açucareiras,
depois para a Europa e para o Mediterrâneo. (Alteração profunda
nos circuitos de produção -» introduzido pelos europeus,
produzido na América e chegado, no fim, ao Mediterrâneo, que
anteriormente desempenhava a primazia. No século XIX, o trigo
triunfa na Argentina, na África, na Austrália. Por toda a parte
afirmando, com a sua presença, a expansão da Europa.
O trigo e os cereais secundários
Melhor dizer “os trigos”. Há trigos de diferentes
qualidades; o melhor chama-se «la tête dub lé»; o trigo médio, o
trigo miúdo, ou trançado, mistura de trigo e de outro cereal,
frequentemente o centeio. O trigo nunca se cultiva sozinho. O
trigo a par de outro mais antigo. A espelta, trigo de grão
encamisado, encontra-se na Itália do século XIV; por volta de
1700, na Alsácia, no Palatinado, na Suábia e no planalto suíço,
como cereal panificável; no fim do século XVIII, na Gueldre e em
Namur (onde serve, principalmente, para a alimentação dos porcos
e do fabrico da cerveja). O milhete ocupa um lugar ainda maior
(grande importância em Veneza). Cereal de longa conservação (por
vezes vinte anos). É expedido para os presídios venezianos da
Dalmácia ou para as ilhas do Levante, quando lá faltam os
viveres. No século XVIII ainda se cultiva o milhete na Gasconha,
em Itália e na Europa central. Encarado como grosseiro,
associado à alimentação dos camponeses, pouco avançados.
A cevada, alimento de cavalos nos países do Sul. Má
colheita de cevada -» não há guerra. Na Europa do Norte, trigos
mais tenros – a aveia e o centeio. Tal como de trigo, de centeio
que se carregam os navios do Báltico, atraídos, cada vez mais
para longe, pela fome da Europa; até ao Mar do Norte e à Mancha,
aos portos ibéricos e, em massa, aquando da grande crise
cerealífera de 1590, até ao Mediterrâneo. “Trigo do mar” – nome
dado ao trigo do Báltico. Todos estes cereais servem para fazer
o pão quando falta o trigo. Durante todo o século XVIII, em
França, as terras semeadas de cereal são partilhadas quase meio
por meio entre “blend” (cereais panificáveis, trigo e centeio) e
«menus grains» (cevada, aveia, sarraceno, milhete). “Cereais
secundários” não alimentam tanto como o trigo.
O arroz é reencontrado pelo comércio da Idade Média com o
Levante. No entanto, encontrava-se também na Espanha, onde os
árabes o haviam implantado, sendo vendido, no século XIV, nas
feiras de Champagne. A partir do século XV, cultivavam-no em
Itália e vendiam-no a baixo preço.
Quando correm bem, os arrozais proletarizam a mão-de-obra
camponesa. Nos Balcãs turcos o arroz ocupa um lugar de destaque.
Chega à América, onde a Carolina, no fim do século XVIII, se
tornará, via Inglaterra, um grande exportador (arroz carolino).
Todavia, o arroz continua a ser um alimento de recurso que
não tenta os ricos. Em Veneza, a partir do século XVI, em caso
de escassez, juntava-se farinha de arroz às outras para fabricar
pão popular. Em França fora um recurso para a alimentação dos
pobres. Consumia-se nos hospitais, nos quarteis, nos navios, era
ainda utilizado nas distribuições populares das igrejas,
misturado com nabos, abóbora, cenouras, um «arroz económico»,
com «restolho». Misturado com milhete, o arroz permitia fabricar
um pão barato. Na China era igualmente destinado à alimentação
dos pobres.
Correlação evidente aproxima o trigo dos cereais
supletivos. As curvas dos preços ingleses a partir do século
XVIII demonstram que os preços dos cereais são solidários na
baixa; na alta, a unidade apaga-se um pouco porque o centeio,
alimento dos pobres, em carestia, ultrapassa, por vezes, o preço
do próprio trigo. A aveia mantém-se retraída. Relação natural
entre o trigo e a aveia é de 3 para 2. Quanto mais vale a aveia,
mais grave é a fome. (são mais os pobres)
Entre 1596 e 1635, e provavelmente durante a maior parte do
século XVI, a aveia terá valido menos de metade do que o trigo
em França. Só em 1635 se esboça a relação de 3 para 2. Em 1635 a
França entrara na Guerra dos Trinta Anos -» necessidade de aveia
para a alimentação dos cavalos aumenta o preço.
Todos juntos, os cereais panificáveis nunca criam a
abundância. O Homem do Ocidente tem de se adaptar a penúrias
crónicas. Uma primeira compensação é o hábito de consumir
legumes, ou pseudo-farinhas. Castanhas e sarraceno, chamado de
«trigo negro» serve como uma farinha de que se faz o chamado
«pão de árvore». Desempenham, em espaços, o papel que virá a ter
a batata no século XIX.
Consumo de “delfinado”, de glandes e raízes, como sinal de
pavorosa fome na França da segunda metade do século XVII.
Verdadeiros cereais supletivos, os legumes secos,
lentilhas, favas, fava-rica, ervilhas e trigo escuro, feijão
frade, são uma fonte barata de proteínas. São os menudi ou
menuti, de grande importância em Veneza. Se uma aldeia perde os
seus menudi, conhecido o desastre, as autoridades venezianas
atuariam de imediato. Estes pequenos viveres são considerados
«cereais», equiparados, na documentação, ao próprio trigo.
Chegam a assumir o mesmo preço para Veneza e, por vezes, até são
preferidos pelos soldados. Na Boémia há indícios de uma
alimentação à base de ervilhas, muito mais do que o trigo. As
mercuriais de Namur e do Luxemburgo, nos séculos XVII e XVII,
estão presentes no mercado, ao lado do trigo, do centeio, do
sarraceno, da cevada, da aveia, da espelta e das castanhas.
Podemos encontrar exemplos de alimentação à base de cereais
supletivos por toda a parte na Europa, afirmando-se
particularidades regionais no que toca aos recursos escolhidos!!
Trigo e rotação das culturas
O trigo não pode ser cultivado dois anos seguidos na mesma
terra sem grandes danos - Tem de rodar. Ao contrário do arroz
que cresce indefinidamente numa mesma terra. Deste modo, o trigo
tem que ter à sua disposição um espaço duplo ou triplo da
superfície que ocupa. Trigo desgastante para os solos.
Dois sistemas agrários alternam na Europa. No Sul, o trigo
ou os outros cereais panificáveis ocupam metade do terreno,
ficando a outra em pousio. No Norte, o terreno é dividido em
três solos: cereal de Inverno, cereal de Primavera e pousio.
Ainda assim, há no Sul culturas «ao terço», como no Norte
há casos de afolhamento bienal. Um afolhamento trienal de
desenvolvimento mais tardio sucedeu a um afolhamento bienal que
subsiste em terrenos bastante vastos.
O tempo morto permite ao solo de pousio reconstituir a sua
riqueza em sais nutritivos. Quanto mais adubado, mais lavrado,
com maior capacidade de preparar colheitas abundantes.
A cultura de trigo exige uma estrumação cuidada que nunca é
dada à aveia ou a qualquer outro, se bem que o rendimento da
aveia é de menos de metade que o do trigo. O estume destinado ao
trigo tem tal importância que é vigiado de perto pelo
proprietário. Nos séculos XVII e XVIII, um arrendamento prevê
mesmo que os estrumes sejam verificados por quem de direito
antes de serem espalhados ou que a sua fabricação seja vigiada.
A principal fonte de adubação é o gado (os lixos urbanos
são, no entanto, utilizados junto de certas cidades, como na
Flandres ou à volta de Valência ou mesmo de Paris).
Em suma, trigo e pecuária recomendam-se, associados entre
si, tanto mais que se impõe o recurso aos animais de tiro: é
impossível que um homem possa cavar quando muito um hectare por
ano (na hierarquia dos meios, o homem vem muito depois do cavalo
e do boi).
Assim se organizou, na Europa, com as variações regionais
que se adivinham a partir do trigo e de outros cereais, «um
sistema complicado de relações e de hábitos de tal modo
enraizados. Nada se concebe sem os camponeses, sem os animais a
puxar as charruas e sem a mão-de-obra sazonal das ceifas e
debulhas.
Terra de trigo com os seus campos abertos (openfields), as
suas rotações regulares e um tanto precipitadas, a repugnância
dos seus camponeses em subtrair ao cereal grandes superfícies é
apanhada num círculo vicioso: para aumentar a produtividade,
seria necessário aumentar as adubações, portanto o gado graúdo,
cavalos e bovinos, portanto estender os pastos, forçosamente a
expensas do trigo. O afolhamento trienal não permite grandemente
culturas roubadas ao pousio e concebe a primazia absoluta às
culturas cerealíferas, em geral dá rendimentos muito fracos. O
gado tem que se alimentar das florestas, dos baldios, dos campos
de palha e de ervas ao longo dos caminhos. Mas estes recursos
são insuficientes. Solução descoberta e aplicada apenas em
territórios de pequena extensão: no Artois, no norte da Itália,
na Flandres, desde o século XIV, em certos terrenos alemães do
século XVI e na Holanda, depois em Inglaterra. Consiste em
alternar cereais e forragens com rotações longas que suprimem ou
reduzem consideravelmente o pousio, com a dupla vantagem de
fornecerem alimento ao gado graúdo e aumentarem os rendimentos
do cereal reconstituindo assim a riqueza mineral do solo. Mas, a
despeito das recomendações dos agrónomos, que são cada vez mais,
a «revolução agrícola», que começa a ganhar terreno depois de
1750, há de levar um bom século a fazer-se senti num país como a
França. A cultura cerealífera é uma estrutura difícil de
progredir. Na Beauce, durante muito tempo os contratos de
arrendamento impuseram o respeito pelo afolhamento trienal.
Os agrónomos do século XVIII vêm na supressão do pousio e
na adoção das pradarias artificiais a condição primordial do
progresso da agricultura.
Há, no entanto, numerosas e vastas regiões onde a erva leva
a melhor sobre o trigo, onde o gado é a riqueza dominante, o
«excedente» comercial de que cada qual pode viver. Os agrónomos
do século XVIII ignoraram, obnubilados pela sua vontade de
aumentar a todo o custo os rendimentos cerealíferos respondendo
assim à procura de uma população em aumento. Nestas regiões, o
pousio, se o há, é o motor e não um tempo ou um peso morto. A
erva alimenta os animais, fornecedores de produtos por si
próprios.
O erro é confundir o pousio em região de cereal com pousio
em região de pecuária. Nestas regiões ditas «retardatárias», o
milho, planta forrageira e alimento humano ao mesmo tempo, fora
largamente adotado e difundido relativamente cedo, durante a
segunda metade do século XVIII, rábanos, nabos redondos, couves,
«turnips», em suma, plantas forrageiras modernas da «revolução
agrícola».
Regiões ricas em gado e pobres em trigo contrastam com as
regiões ricas em trigo e pobres em gado. Há contraste e
complementaridade, as culturas cerealíferas exigem tração animal
e estrume animal, nas terras da pecuária falta o cereal.
Países da pecuária: regiões vizinhas de Riga ou de Reval.
Fracos rendimentos, compensações e catástrofes
Pecado imperdoável do trigo: faco rendimento. Do século XV
ao século XVIII os resultados são dececionantes. Por cada grão
semeado, a colheita é muitas vezes 5, às vezes muito menos. É
necessário tirar o grão da sementeira seguinte, então o
rendimento é 4. A produtividade, relação entre o que é produzido
e a soma dos esforços despendidos para esse efeito é um valor
difícil de estimar. A França, por volta de 1775, vive do seu
trigo, de que, conforme os anos, exporta o equivalente ao que
importa.
No entanto, achamos números muito superiores ou muito
inferires a esta média.
Sementeiras em massa dão ao Languedoc do século XVI
rendimentos miseráveis: menos de 3 para 1 por volta de 1580-
1585; 4 a 5 para 1 em média no apogeu do século XVII, por volta
de 1660-1670; depois, nova queda e subida lenta a partir de
1730, até uma média de 6 para 1, só depois de 1750.
Aumento dos rendimentos e das semeaduras
Estas médias fracas não excluem um progresso lento
contínuo. Grupos de corredores: 1. (à frente) Inglaterra,
Irlanda, Países Baixos; 2. França, Espanha, Itália; 3. Alemanha,
Cantões Suiços, Dinamarca, Noruega, Suécia; 4. Boémia, Polónia,
países bálticos e Rússia.
Recuos nos rendimentos dos cereais na Europa entre 1400 a
1500 e de 1600 a 1700. Progressão a longo prazo. Os progressos
obtidos entre 1750-1820, assistem à promoção de países
populosos, Inglaterra, Irlanda, Países Baixos. Há,
evidentemente, correlação entre a subida dos rendimentos e a
alta demográfica.
Semeaduras estendem-se particularmente aquando dos surtos
demográficos. Ganhar terras à água dos rios, dos lagos, dos
pântanos, das florestas e das charnecas, todo este lento
trabalho para aumentar as terras aráveis para o cultivo.
Comércio local e comércio internacional do trigo
Os campos vivem das suas colheitas e as cidades dos
excedentes. Para uma cidade, o aconselhável é alimentar-se do
que tem ao alcance. Na França, até Turgot, o camponês tinha a
obrigação de vender o seu trigo nos mercados da cidade próxima.
Esta vida de trocas locais não deixa de encontrar os seus
obstáculos. Qualquer má colheita obriga as cidades a recorrer
onde o haja (trigos do Norte a chegar ao Mediterrâneo no século
XVI). Já a Itália recebia trigo bizantino, mais tarde turco. A
Sicília fora sempre um grande abastecedor também.
Celeiros das grandes cidades devem ser de fácil acesso, à
beira-mar ou rio, já que os transportes por água são vantajosos
para as mercadorias pesadas. Marselha será, sobretudo no século
XVIII, um grande porto do “trigo do mar”. É a Marselha que todos
apelam na Provença, nas horas difíceis. Mas ela prefere, para
consumo próprio, o trigo local. Trigo importado pode estar
parcialmente deteriorado pelo transporte marítimo (no entanto
continua a ser vantajoso). Também Génova consome o trigo local e
reexporta o que compra no Levante.
A partir do século XVI, os trigos nórdicos adquirem um
lugar cada vez mais destacado no comércio internacional dos
cereais. Muitas vezes em detrimento do próprio exportador. A
nobreza terratenente da Polónia, um dos espaços mais férteis em
cereais, exporta o trigo produzido por camponeses escravos e
confiscam-lhes os seus proveitos. O próprio consumo dos cereais
na Polónia é limitado para os grandes senhores. “uma só cidade
dos outros Estados da Europa consome mais trigo do que todo o
reino da Polónia.”
Europa aproveita as suas margens, ou nórdica, oriental
(Império turco) ou meridional (Sardenha, Sicília), para
fornecer-lhe o cereal que lhe falta. Fecha-se um celeiro, abre-
se outro: na primeira metade do século XVIII, a Suécia; depois a
Inglaterra na primeira metade do século XVIII; posteriormente,
as colónias inglesas da América.
O comércio do trigo paga-se de pronto, em metal (ouro,
prata e moeda). Em 1754, um pseudo-inglês escreve: “Nos últimso
anos [foi] a abundância dos nossos trigos e a sua exportação que
sustentou o nosso câmbio.” Em 1795, a França, à beira da fome,
envia caixotes de prata para a Itália para obter trigo.
Todavia, este comércio nunca implica quantidades tão
grandes como se poderia crer. O comércio marítimo representa
mais ou menos 1% do consumo toral de trigo no Mediterrâneo do
século XVI.
A situação é a mesma no século XVII. Danzig, o principal
porto cerealífero. Estas quantidades supletivas de cereais
circulam quase unicamente no mar, de maneira que só as potências
marítimas conseguem conjurar no seio as fomes recorrentes (caso
das repúblicas mercantis italianas em 1590).
Este comércio continua a ser episódico. Será preciso
esperar pelo século XVIII para que se instaurem alguns grandes
sistemas de compra, de entreposto, de redistribuição, sem os
quais as mercadorias pesadas não podem circular com regularidade
em grandes distâncias. No século XVI, nem em Veneza, nem em
Génova, nem em Florença há grandes mercadores especializados no
comércio de cereais. Ocupam-se dele por ocasião de crises
violentas. Casas portuguesas, como os Ximenes, financiaram a
descida dos trigos nórdicos para o Mediterrâneo em 1590,
juntando enormes lucros. Só haverá concentração destes negócios
com o século XVIII – comércio em Marselha.
Mercados não têm profundidade. Os obstáculos a um comércio
livre multiplicam-se muito durante o século XVII. A
administração monárquica cria um monopólio do comércio do trigo
em proveito próprio, ou melhor, dos mercadores a seu serviço,
tudo a suas expensas. O velho sistema, incapaz de prover ao
abastecimento das cidades em crescimento, dá lugar a monstruosas
prevaricações e a concussões repetidas, criando a lenda do Pacto
da Fome.
Preço do trigo e nível de vida
“O trigo é metade da vida quotidiana das pessoas” (Mercier)
Miséria dos assalariados urbanos; miséria também da gente
do campo, onde os salários em géneros seguiram mais ou menos os
mesmos ritmos. Regra dos pobres fica bem clara: por força têm de
consumir os cereais secundários. Produtos menos caros que
fornecem um número suficiente de calorias, abandonar os
alimentos ricos em proteínas para consumir uma alimentação
baseada nos farináceos. Nas vésperas da Revolução Francesa, na
Borgonha, o camponês não come trigo.
Pão dos ricos, pão e papas dos pobres
Como há trigos e trigos, há pão e pães.
A Europa continua, até ao século XVIII, a alimentar-se de
sopas grosseiras, de papas. No século XVI e até ao século XVIII,
na Champagne, na Gasconha, a papa de milhete é corrente. Na
Bretanha acrescenta-se-lhe um puré espesso de sarraceno, chamado
grou.
número de comedores de pão branco na Europa não
ultrapassaria os 4% da população. Ainda no século XVIII, uma boa
metade das populações rurais se alimentava de cereais não
panificáveis e de centeio. O pão de trigo e pão branco, o pão
mole, foram durante muito tempo um luxo.
A verdadeira revolução do pão branco virá a situar-se
apenas entre 1750 e 1850, e é então que o trigo se sobrepõe a
outros cereais (como na Inglaterra). À escala do continente,
esta revolução será espantosamente lenta e não terminará antes
de 1850. Na França, a partir do século XVII, o trigo domina em
redor de Paris. No Oeste da França o domínio é o centeio.
Pois o trigo é rei
Trindade trigo, farinha, pão percorre a história da Europa.
É a principal preocupação das cidades, dos Estados, dos
mercadores, dos homens. Elevações do seu preço são bastante
dramáticas.
A cada alerta, a arraia-miúda consumidora não reluta em
recorrer à violência. Em Nápoles, em 1585, grandes exportações
de cereal para a Espanha desencadearam a fome – motins. Em
Paris, em 1692, as pradarias da praça Maubert são saqueadas. É
assim, aliás, que começa a Revolução Francesa.
Em contrapartida, uma colheita muito boa é por vezes
acolhida com uma bênção.
O milho
Milho e civilizações americanas
No século XV, quando se formaram as civilizações asteca e
inca, já há muito o milho estava presente no espaço americano.
A cultura intensiva de milho encontrava-se nas margens dos
lagos mexicanos e nos terraços de cultivo do Peru.
“O milho é sem dúvida uma planta miraculosa” (Braudel,
1979, p.141): forma-se depressa e os seus grãos, antes mesmo de
estarem maduros, são já comestíveis. Para cada grão semeado, a
colheita tem um rendimento deveras elevado. No México, em terra
quente ou temperada, chega-se mesmo a obter duas colheitas, uma
de irrigação e outra graças à chuva. Vantagens do milho para os
camponeses: só lhes pede, por ano, cinquenta dias de trabalho,
um dia em cada sete ou oito conforme as estações.
As revoluções alimentares do século XVIII
Após a descoberta da América, os movimentos das plantas de
cultivo multiplicaram-se, aceleraram-se. As plantas do Velho
Mundo chegam ao Novo; inversamente, as do Novo Mundo chegam ao
Velho: de um lado, o arroz, o trigo, a cana-de-açúcar, o
cafezeiro…; do outro, o milho, a batata, o feijão, o tomate, a
mandioca, o tabaco…
Crescimento demográfico necessita. Se a população do mundo
aumenta não será em parte por causa do aumento da produção
hortícola que as novas culturas permitem?
O milho fora da América
Ponto de chegada: o regresso de Colombo da América em 1493.
O seu sucesso pleno só se regista no século XVIII.
Botânicos começam a descrevê-lo no século XVI. Muitas vezes
esta conquista do milho se associou ao feijão, também ele vindo
da América, que permitia a reconstituição dos solos. Milho pouco
cultivado na França em 1700.
Implantações precoces e resultados espetaculares: Na
Andaluzia, onde já existe em 1500, na Catalunha, Galiza e em
Portugal, onde chegara em 1520; depois para a Itália e sudoeste
da França.
Êxito espetacular na Venécia (introduzido em 1539),
generalizando-se no fim do século.
Os pobres da Venécia trocam o pão pela bolacha de milho.
Descrito, em 1698, como o “principal alimento da arraia-miúda de
Portugal”, segundo o cônsul russo em Lisboa.
Argumento a seu favor: a produtividade. Possivelmente
colocara o fim às fomes recorrentes na Venécia. Alimenta tanto
homens como animais. O milho instala-se nas terras de pousio. A
generalização do trigo aumenta a produção do trigo
comercializável!!! O camponês come milho e vende o seu trigo,
cujo preço é mais ou menos o dobro. Faz com que o trigo se
tornasse uma cultura destinada ao grande comércio tanto na
Venécia como na França, sobretudo no século XVIII. (Ligação com
o incremento do comércio do trigo a longa distância no século
XVIII, com Marselha num lugar destacado)
Milho importado da América pelos portugueses é imposto no
Congo no início do século XVI. (Triunfo do Ocidente)
Milho penetra na Índia, na Birmânia, no Japão e na China e
na restante Ásia.
A batata, mais importante ainda
Batata da América.
A sua difusão no Velho Continente em nada se parece com a
do milho. É lenta como esta, ou mais lenta ainda, e não é
universal: a China, o Japão, a Índia, os países muçulmanos não a
acolheram. A Europa foi por ela colonizada: a nova cultura teve
as proporções de uma revolução. Whilhem Roscher, economista do
século XIX, afirma que a batata tinha sido a causa do aumento da
população europeia. Digamos que foi, quanto mais, uma das
causas. O crescimento demográfico da Europa tem lugar antes de a
nova cultura produzir os seus efeitos.
Os espanhóis conhecem-na em 1539 no Peru e a nova planta
atravessou a Península Ibérica sem consequências imediatas. Na
Itália, talvez por ser mais povoada, despertou interesse mais
cedo. No início do século XVI já se encontrara pela Inglaterra e
Alemanha.
Em geral, a batata só ganhou plenamente, na Europa, no fim
do século XVIII ou mesmo já no século XIX. Na França,
particularmente retardatária, introduz-se primeiro só na região
da Alsácia logo em 1600; depois na Lorena, por volta de 1680
(basicamente no Leste). Logo na primeira metade do século XVII
chega à Irlanda, onde se torna, no século XVIII, quase o único
alimento dos camponeses. Progredia na Inglaterra
maioritariamente para exportação.
Sucesso mais fraco na Suíça, Suécia, Alemanha.
Onde quer que surja o cultivo, propunha-se este tubérculo
para concorrente ao pão.
Uma das vantagens da batata é que, não estando à
superfície, está menos suscetível à devastação pela passagem de
exércitos, que devastavam os campos de trigo. As guerras do
século XVIII parecem estimular o cultivo da batata, coincidindo
com a crise cerealífera de 1740.
Aumento revolucionário de consumo de batata nas regiões
flamengas graças à diminuição do consumo de cereais. Batata
substitui 40% o consumo de cereais na Flandres. França é hostil
à batata. A “revolução da batata” só começou na França no século
XIX.
Capítulo V – A difusão das técnicas: Fontes de energia e
metalurgia
Entre o século XV e o XVIII, o homem dispõe da sua própria
força; da dos animais domésticos; do vento; da água corrente; da
lenha; do carvão da madeira; do carvão de pedra.
O motor humano
Em 1739, Forest de Belidor afirma que são necessários 7
homens para realizar o trabalho de um cavalo. Rendimento humano
é fraco.
No tempo de Luís XIII, o dia do jornaleiro é pago à metade
de um dia do cavalo; esta tarifa sobrestima o trabalho humano.
Este motor insignificante é quase sempre ampliado pelas
numerosas ferramentas que o homem pôs a seu serviço: martelo,
machado, serra, tenaz, enxadão, e pelos motores elementares que
ele anima com a sua própria força: trépano, cabrestante,
roldana, grua, guindaste, alavanca, pedal, manivela, torno.
Estas ferramentas multiplicam o rendimento energético do homem.
Vantagens do homem: habilidade e destreza. Por vezes era
visto como mais desejável o trabalho do homem a lavrar do que o
de uma charrua, uma vez que uma charrua, operando através de um
movimento automático, não tem capacidade de deixar a terra tão
bem revolvida. É má economia lavrar à charrua quando não se tem
uma propriedade considerável, sendo uma das razões pela qual os
pequenos produtores se arruínam.
A força animal
A substituição do homem operou-se muito cedo graças aos
animais domésticos, aliás muito mal repartido no mundo.
Os outros animais domésticos da Europa também proliferaram
no Novo Mundo, sobretudo bois e cavalos.
Na Europa: uma junta de bois sob o jugo; atrás deles, o
carro de bois de rodas maciças. O boi também pode ser atrelado a
um cavalo: assim procedem os japoneses e os chineses e por vezes
os europeus do Norte. Como animal de tiro, o boi tem imensas
possibilidades: lavram mais profundamente que as mulas (que
andam mais depressa). Na França louvam—se os cavalos que fazem
tanto como três bons bois (século XVI). Agricultura tradicional
emprega sobretudo bois. Segundo medições atuais, o cavalo tem
uma força de tração igual à do boi. Mas o cavalo é mais rápido,
o seu dia de trabalho é mais longo, mas come mais e deprecia-se
muito mais, quando está velho, do que o boi. Contudo, o boi sai
30% mais caro que o cavalo.
Na Europa, esta familiaridade multissecular permitiu o
aperfeiçoamento progressivo dos seus arreios (coelheira de
espáduas no século IX no Ocidente e, mais cedo ou mais tarde,
sela, estribos, freio, rédeas, arreios, emparelhamento em fila,
ferraduras). Inicialmente, atrelado no peito, o cavalo asfixia,
só conseguindo puxar uma carga relativamente leve. No século XII
é melhorado, com a sua potência elevada quatro ou cinco vezes,
graças à coelheira de espádua. Até aí animal de guerra, passa a
desempenhar um grande papel de lavoura e nos transportes:
aumento demográfico, difusão da charrua pesada, propagação na
região Norte do afolhamento trienal, aumento dos rendimentos,
avanço evidente da Europa setentrional.
Na Europa, os bons cavalos vendem-se a peso de ouro.
Não sabemos se o preço dos cavalos baixou relativamente,
durante o século XVIII. Todavia, multiplica-se a sua posse.
A mula desempenhou também o seu papel, na agricultura
espanhola, no Languedoc e em outras regiões. Quiqueran de
Beaujeu fala, a propósito de Provença, de mulas “cujo preço
excede muitas vezes o dos cavalos” no século XVII.
Não há cidade que não viva sobre a dependência dos cavalos
para o seu abastecimento quotidiano, as suas ligações internas,
as suas carroças, os seus carros de aluguel.
A lenha, fonte quotidiana de energia
Antes do século XVIII, a lenha, o mais corrente dos
materiais, é uma importante fonte de energia. As civilizações
anteriores ao século XVIII são civilizações da madeira e do
carvão de Madeira, como as do século XIX o serão do carvão de
pedra.
É com madeira que se fabricam os meios de transporte
terrestres e marítimos, as máquinas e ferramentas, sendo as
partes metálicas que elas comportam sempre poucas; é com madeira
que se fabricam os teares e as fianças, as prensas e as bombas;
o mesmo quanto à maior parte das alfaias agrícolas; o arado é
inteiramente de madeira, a charrua tem quase sempre um soco de
madeira.
A omnipresença da madeira teve outrora enorme peso. A
Europa, tão bem fornecida do ponto de vista florestal, tirou do
facto um dos motivos do seu poder.
A floresta serve indistintamente o homem para o aquecer,
para construir casa, construir os seus móveis, os seus
instrumentos, os seus carros, os seus barcos.
Seja qual foi o país, a construção de uma frota destrói
enormes massas florestais. A construção naval do tempo de
Colbert levou ao abate regular de recursos florestais por todo o
reino.
A lenha para queimar, material volumoso, tem de estar à
mão. Para além de 30km é ruinoso fazê-la viajar.
O ferro: um parente pobre
No geral, a metalurgia do ferro utiliza os mesmos processos
de base dos nossos dias, altos-fornos e martelos-pilões, mas o
quantitativo faz uma enorme diferença. No século XVIII, o mais
aperfeiçoado dos fornos começa por só funcionar
intermitentemente e não tem grande capacidade de produção.
A “revolução” do ferro só se dá no século XIX porque
anteriormente não eram produzidas quantidades muito expressivas.
A civilização económica está então muito mais dominada pelo
têxtil do que do ferro.
A metalurgia continua a ser tradicional, arcaica, em
equilíbrio precário, depende da natureza, dos seus recursos, do
minério que felizmente é abundante, da floresta sempre
insuficiente, da força variável dos cursos de água. No século
XVI, na Suécia, os camponeses fabricam ferro, mas só com o
impulso das águas da primavera. Não há ou há poucos operários
bem especializados, quase sempre são camponeses. Também não há
empresários. Último ponto: a procura é temporária, ligada às
guerras.
Na realidade, a regra é a produção local dispersa ou o
fornecimento a pequena distância. Os produtos metalúrgicos não
viajam como os tecidos, excetuando os objetos de luxo. As
grandes trocas de produtos metalúrgicos movem apenas quantidades
modestas.
Os progressos do século XI ao século XV: na Estúria e no
Delfinado
Trinfo tardio da Europa. O primórdio da metalurgia medieval
vislumbra-se nos vales dos rios do nordeste francês. O minério
do ferro encontra-se um pouco por toda a parte.
Às forjas de floresta sucedem as forjas de beira-rio. No
fim do século XIV instala-se o alto-forno, a partir da Alemanha
ou Países Baixos. As forjas manuais subsistem no interior das
florestas até ao século XVI.
Estíria é um bom exemplo dos novos progressos. Atinge-se a
fusão no século XIV. Desde então, a partir da fundição, obtém-se
facilmente ferro. É o aço que se tenta produzir, mas, quase
sempre, é “ferro-aço”.
Outro exemplo ilustrativo destes processos nos Alpes
ocidentais: papel desempenhado pelos cartuxos em todo este
primeiro surto da metalurgia. Desde o século XII, estão
instalados na Estíria, Lombardia, Caríntia, Piemonte e estiveram
“intimamente associados à própria invenção da siderurgia
[pré]moderna”. No Delfinado, terão sido eles os inventores da
fundição logo no século XII, mais cedo do que na Estíria, graças
às enormes trompas de água da torrente alpina. Com a chegada dos
operários tiroleses - um método de fabrico do aço dito natural.
As técnicas tendem a generalizar-se, quanto mais não seja
por causa dos movimentos dos operários.
As pré-concentrações
Com a guerra multiplica-se a procura do ferro. Estas
procuras são, no entanto, temporárias. Estas diversas procuras,
ao adensar-se, acarretam pré-concentrações.
No século XVI, em Lyon, recolhem-se os produtos de uma
multidão de pequenos centros metalúrgicos.
Os artesãos levavam eles próprios as mercadorias para a
grande cidade.
Múltiplas atividades de ferrajaria expõem uma realidade de
relativa dispersão e de dificuldade dos transportes. Só há
concentração onde se oferece a via fluvial ou marítima: o Reno,
o Báltico, o Mosa, o golfo da Gasconha, o Ural. Até meados do
século XVIII, a Espanha continua a vender o seu ferro à
Inglaterra, e é com ferro espanhol que os ingleses equipam os
barcos que combatem no mar as frotas hispânicas.
Procura do ferro associada à afirmação dos Estados Modernos
de guerra.
Capítulo V – A difusão das técnicas: Fontes de energia e
metalurgia
A lentidão dos transportes
A vitória do alto-mar está na base de um sistema de
ligações universais. Mas instaura-o sem nada alterar quanto à
lentidão, à imperfeição dos transportes propriamente ditos que
continuam a constituir um dos limites permanentes à economia do
Ancien Régime. Até ao século XVIII, as navegações são
intermináveis, os transportes terrestres estão como que
paralisados.
Isto tudo dificulta as trocas comerciais e até as meras
relações humanas. Os correios da época levam semanas, meses a
chegar aos seus destinos. Só haverá “derrota do espaço”
(expressão de Ernst Wagemann, a partir de 1857, com a
instauração do primeiro cabo marítimo intercontinental. A
estrada de ferro, o barco a vapor, o telégrafo, o telefone
inauguraram demasiado tarde as verdadeiras comunicações de massa
em escala mundial.
Fixidez dos itinerários
Transportadores e viajantes são prisioneiros de um leque de
limitações: portagens e postos de alfândega; condições
climatéricas e das estradas.
Casas de posta e hospedarias onde se repousa, come e bebe.
Os itinerários por mar são de antemão fixados. Os navios
estão sujeitos a ventos, às correntes, às escalas. A cabotagem
impõe-se tanto nos mares da China como no Mediterrâneo. Quanto
às viagens no alto-mar, têm as suas regras ditadas pela
experiência. A rota de ida e volta entre a Espanha e as “Índias
de Castela” foi logo fixada por Cristovão Colombo, melhorada por
Alaminos em 1519, mas ficará inalterada até ao século XIX. Em
1565, Urdaneta descobriu e fixou de uma vez por todas a rota de
Acapulco a Manila, da Nova Espanha às Filipinas.
Nas escalas previstas, renovam-se víveres e água;
ocasionalmente fazem-se reparos e fica-se no abrigo dos portos.
Tudo está previsto.
Contra os acontecimentos viários
No princípio do século XIV, a estrutura do grande comércio
transforma-se, o mercador itinerante torna-se mais raro, as
mercadorias viajam sozinhas, a correspondência escrita rege os
seus movimentos de longe, entre a Itália e os Países Baixos, os
dois “pólos” da economia europeia. Ir por Champagne passou a ser
menos útil.
Não se julgue também que a descoberta do Novo Mundo tenha
transformado imediatamente as circulações prioritárias do globo.
O Mediterrâneo, um século depois de Colombo e Vasco da Gama,
ainda vê passar no seu seio a animação da vida internacional; a
regressão virá mais tarde.
Arcaísmo dos meios de transporte: fixidez, atraso…
Os meios de transporte não evoluem.
Na Europa
Carroças só surgem, sob forma rudimentar, com a segunda
metade ou com o fim do século XVI (só no século XVII têm
vidros). Estas inovações não conseguem furtar à base da vida
quotidiana inúmeras permanências. Também no domínio das
transformações dos navios há limites superiores intransponíveis,
os das tonelagens, das velocidades.
Um bom século antes da Invencível Armada de 1599, a arte
dos estaleiros navais atingiria o seu auge.
Velocidades e débitos irrisórios
“Estradas ruins, velocidades ridículas.” Dizia Paul Veléry:
“Napoleão anda tão devagar como Júlio César.” O máximo de
velocidade possível é 100km em 24 horas. Em Nuremberg, no
princípio do século XVI, pode-se, pagando, mandar levar uma
ordem a Veneza em quatro dias. Se as grandes cidades atraem a si
as notícias rápidas é porque pagam a pressa e sempre tiveram
meios de forçar o espaço (algumas estradas pavimentadas). O
Loire é o mais cómodo dos cursos de água de França.
Progresso do século XVIII em França: extensão da grande
estrada arranjada e o aumento do orçamento das Obras Públicas.
As diligências chegam no século XVII, o que inspira
protestos (“era o fim da nobre arte de cavalgar”).
Entre 1745 e 1760, esboça-se a primeira revolução viária: o
preço dos transportes baixa (Inglaterra), mais ainda, uma linha
de pequenos capitalistas especuladores tira proveito disso.
Todavia, estes sucessos modestos incidem apenas sobre as
grandes vias.
O transporte, um limite da economia
Sociedade económica em progresso foi prejudicada pelos
limites que lhe eram impostos pelos transportes: a sua lentidão,
o seu magro fluxo, a sua irregularidade e o seu elevado custo.
Capítulo VIII – As cidades
A cidade tanto cria a expansão como é criada por ela.
A cidade em si
Não há cidade sem divisão obrigatória do trabalho e não há
divisão do trabalho um pouco avançada sem a intervenção de uma
cidade. Não há cidade sem mercado e não há mercados regionais ou
nacionais sem as cidades. Fala-se muitas vezes do papel da
cidade no desenvolvimento e na diversificação do consumo, mas
muito raramente do facto, aliás importantíssimo, de o mais pobre
dos citadinos passar obrigatoriamente pelo abastecimento do
mercado, do facto de a cidade, em geral, generalizar o mercado.
Linguagem fundamental das cidades: o diálogo ininterrupto
com o campo, necessidade primordial da vida quotidiana; a sua
situação obrigatória no centro de redes de ligações mais ou
menos longínquas; a sua articulação com os seus arrabaldes e com
outras cidades.
Do peso mínimo ao peso global das cidades
Não há cidade nem vila que não tenha as suas aldeias, a sua
porção de vida rural anexa, que não imponha as comodidades do
seu mercado, a utilidade das suas lojas, dos seus pesos e
medidas, dos seus prestamistas, dos seus juristas. Para existir,
ela tem de dominar algo.
Estatísticas utilizam critérios diferentes quanto ao que
consideram como cidade. França utiliza os 2 mil habitantes;
Inglaterra 5 mil. Quando se afirma que em 1801 as cidades
representavam 25% da população inglesa, é preciso saber que, se
se tornasse por base as comunidades acima de 2 mil habitantes, a
percentagem passaria a ser 40.
Há cidades com o estatuto de tal, com infraestruturas e
instituições de tal, que contam com apenas centenas de
habitantes.
As pequenas cidades acabam por vencer os seus campos
circundantes. Estas cidades são ainda apanhadas pelos sistemas
urbanos que giram habitualmente em torno de uma cidade-sol. Em
toda a parte as cidades constituem hierarquias.
O importante seria poder calcular toda a massa dos sistemas
urbanos, o seu peso global, à articulação entre cidades e campos
– uma maneira bastante segura de aferir certas estruturas
económicas e sociais da unidade em observação.
Percentagem urbana na Holanda é possivelmente superior a
50%, o que é extremamente raro.
Uma divisão do trabalho a retomar continuamente
Problema essencial da vida das cidades: entre o campo e os
centros urbanos, há uma divisão de trabalho que nunca está bem
definida. Em princípio, do lado da cidade estão os mercadores,
as funções de chefia política, religiosa e económica.
Cidades e campos obedecem à “reciprocidade das
perspetivas”: eu te crio, tu me crias; eu te domino, tu me
dominas; eu te exploro, tu me exploras.
Desde o fim do século XVI, escreve Richard Gascon, “que o
campo é o sorvedouro onde vão enterrar-se os capitais urbanos”,
quanto mais não seja com a compra de terras, com a criação de
domínios agrícolas ou de inúmeras casas de campo. No século
XVIII, Veneza abandona os lucros do mar e coloca toda a sua
fortuna nos campos. Mais dia menos dia, todas as cidades do
mundo passam por transferências deste género.
O campo tem de suportar a cidade se esta não quiser temer a
cada momento pela sua subsistência: o grande comércio só
excecionalmente pode alimentá-la.
Até ao século XVIII, mesmo as grandes cidades conservam
atividades rurais. Abrigam pastos, guardas rurais, lavradores,
viticultores; têm dentro e fora das muralhas um cinturão de
hortas e pomares e, mais longe, campos.
Houve mesmo quem falasse de “cidades rurais” quando não se
distinguem da vida rural. Em toda a Europa as cidades velam
ciosamente pelos seus campos e pelas suas vinhas.
Na época das colheitas, artesãos trocam os seus ofícios e
as suas casas pelo trabalho do campo. É o que acontece na
Flandres industriosa e superpovoada do século XVI. É também o
que acontece em Inglaterra, às vésperas da Revolução Industrial.
Se a cidade não abandonou completamente aos campos o
monopólio das culturas ou da pecuária, inversamente o campo não
se despojou de todas as suas atividades “industriais”. As
aldeias nunca deixaram de ter os seus artesãos. Na Flandres e em
outras regiões, onde se tinha instaurado nos séculos XVI e XVII
uma espécie de monopólio industrial das cidades, verifica-se um
grande refluxo das indústrias citadinas, a partir dos séculos XV
e XVI, para os limites rurais, em busca de mão-de-obra mais
barata e fora da proteção da vigilância minuciosa das
corporações urbanas!!! (cidades também beneficiam pelo controlo
da manufatura rural)
A cidade e os que para lá se dirigem, sobretudo miseráveis
Uma cidade atrai pessoas. As pessoas vão muitas vezes pelas
suas liberdades reais ou aparentes, os seus salários melhores.
Vão também porque, primeiro os campos, depois outras cidades
menores não as querem lá. Associação de uma região pobre de
emigrantes e uma cidade ativa.
Normalmente estes “imigrantes” fazem o trabalho pesado e o
necessário das cidades.
As cidades não recebem só miseráveis. Têm os seus recrutas
de qualidade, em detrimento dos burgueses das cidades próximas
ou afastadas.
Biologicamente, antes do século XIX, a cidade não excede em
nascimentos os seus óbitos. Há sobremortalidade. Quando a cidade
cresce, não o consegue sozinha. Socialmente deixa as piores
tarefas para quem chega. “A escória dos campos torna-se a das
cidades”.

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