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BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________
Prof ª Dra. Laís Guaraldo (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
_______________________________________________
Prof ª Dr. Eduardo Anibal Pellejero (Examinador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
______________________________________________
Prof ª Ma. Estrela Pereira dos Santos (Examinadora)
Membro externo
3
Quando as grandes árvores caem
Maya Angelou (Trad.: Nelson Santander)
4
Em memória de Francisca Martins da Costa (Chicó, 1927-2022)
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe e ao meu pai, à toda minha família, amigas e ao meu amor.
Agradeço à minha orientadora. À banca examinadora. À todas professoras que tive. Agradeço
por acreditarem em mim, pela oportunidade que me deram de florescer. Vocês são minhas
raízes, me nutrem de amor e vida. À vocês dedico o fruto desta pesquisa.
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RESUMO
7
ABSTRACT
KEY-WORDS:
In this research, I propose to reflect on the nature of artistic creation and poetic
elaboration. For this purpose, I intend to identify some trends that have guided the
transformations of my creative process in the field of graphic and plastic expression, based on
the analysis of productions I have made from the age of 6 to 26 (2001-2022). The
methodology of writing will be self-writing, as discussed by Michel Foucault. The analysis of
the graphic material will be grounded in the process critique proposed by Cecília Salles,
which examines sets of documents related to the creative action from a processual
perspective. This will be combined with the cartographic method initially described by
Deleuze and Guattari. This research engages in dialogue with the reflections of Fayga
Ostrower, Maturana and Varela, Edgar Morin, Rosa Iavelberg, Edith Derdyk, Ana Mae
Barbosa, and Vygotsky. Through it, the aim is to contribute to the broadening of reflections
on creativity, the process of creation, and the teaching-learning process in art. Finally, the
analysis of the implicit trends present in the body of work will allow tracing new paths for
artistic practice and teaching-learning in art.
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LISTA DE IMAGENS
Imagem 01- Mapa conceitual. 2019-2020. Grafite sobre folha de caderno. p.16
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 02- A placenta. 2021. Lápis grafite sobre papel. Diário gráfico. (26 p.22
anos). Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 03- Automatic drawing. The Five. Direito de Imagem: The Hilma af p.24
Klint Foundation, Estocolmo. The New York Times.
Imagem 04- L’art c’est une investigation. 2022. Lápis grafite sobre papel. p.26
(26 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 05- Intersecção entre arte e natureza. 2022. Lápis grafite sobre p.29
papel. (26 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 06- S/N. 2019. Lápis grafite e adesivos de Analu Medeiros sobre p.31
papel. (24 anos). Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 07- Ciclos e hiperciclos. 2019. Lápis grafite sobre papel. (24 anos). p.33
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 08- Nós das interações. 2020. Lápis grafite sobre folha de caderno. p.36
(25 anos). Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 09- 11/20/20. 2020. Lápis grafite sobre papel. Da série “Diário do p.37
Corpo”. (25 anos). Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 10- Eu queria ser como uma planta. 2021. Lápis grafite sobre papel. p.39
(26 anos). Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 11- Rotina em casa. 2002. Grafite sobre papel. (7 anos). Fonte: p.42
Acervo Pessoal.
Imagem 12- Cochilo. 2002. Caneta esferográfica, lápis de cor e colagem p.44
sobre papel. Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 13- Bebê no berço. 2002. Lápis Grafite. Fonte: Acervo Pessoal. p.44
Imagem 14- Mãos. 2005. Lápis grafite sobre papel. (10 anos). Fonte: p.47
Acervo Pessoal.
Imagem 15- Not my nails. 2021. Grafite sobre papel. Diário gráfico. (26 p.47
anos) Fonte: Acervo Pessoal.
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Imagem 16- Santa Maria, mãe de Deus. 2018. Nanquim e Posca sobre papel. p.47
Diário gráfico. (22 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 17- Yin Yang. 2014. Nanquim e lápis de cor sobre papel. Diário p.49
Gráfico. (19 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 18- Mon coeur. 2021. Grafite e lápis de cor sobre papel. (26 anos) p.49
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 19- Vai salvar? 2017. Nanquim sobre papel. (21 anos) Fonte: p.50
Acervo Pessoal.
Imagem 20- Corações. 2001. Lápis grafite e lápis de cor. (6-7 anos) Fonte: p.51
Acervo Pessoal.
Imagem 21- Estudo (Why does my heart feel so bad?) 2021. Lápis grafite p.52
sobre papel. (26 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 22- Why does my heart feel so bad? 2021. Lápis grafite sobre papel. p.52
(26 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 23- Coração flechado. 2005. Lápis grafite sobre papel. (9-10 anos) p.53
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 24- Hjärt. 2013. Caneta Nanquim e lápis grafite sobre papel. Diário p.53
de artista. (18 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 25- S/N 2016. Caneta Nanquim e lápis de cor sobre papel. (21 anos) p.53
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 26- Sorriso amarelo. 2020. Lápis grafite, lápis de cor e pastel. Da p.54
série “The smiling hour”. (25 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 27- Coração bravo. 2021. Lápis de cor, hidrocor e pastel sobre p.54
papel. (26 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 28- Words. 2022. Lápis grafite sobre papel. (27 anos) Fonte: Acervo p.56
Pessoal.
Imagem 29- Escolar estudar que é bom. 2002. Lápis grafite sobre papel. (7 p.58
anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 30- Escolar estudar que é bom nº2. 2002. Lápis grafite sobre papel. p.58
(7 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 31- As melhores coisas. 2014. Nanquim e lápis aquarelável sobre p.60
papel. (19 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
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Imagem 32- As punks amam? 2018. Lápis grafite e tinta guache. (23 anos) p.60
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 33- Tragicomics #1. 2021. Lápis grafite sobre papel. (21 anos) p.61
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 34- Tragicomics #10. 2021. Nanquim sobre papel. (21 anos) Fonte: p.61
Acervo Pessoal.
Imagem 35- Tragicomics #3. 2021. GIF. (21 anos) Fonte: Acervo Pessoal. p.61
Imagem 36- Passeio da 3ª série. 2002. Lápis grafite e caneta esferográfica p.62
sobre papel. (7 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 37- Eduque com Diálogo. 2018. Isogravura. (23 anos) Fonte: p.63
Acervo Pessoal.
Imagem 38- Eduque com Diálogo. 2018. Adesivo em vinil. (23 anos) Fonte: p.65
Acervo Pessoal.
Imagem 39- Eduque com Diálogo. 2018. Isogravura sobre papel jornal. (23 p.65
anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 40- Eduque com Diálogo. 2018. Lambe-lambe. (23 anos) Fonte: p.65
Acervo Pessoal.
Imagem 41- Obrigada, mãezinha. 2019. Zine impresso. (24 anos) Fonte: p.66
Acervo Pessoal.
Imagem 42- Obrigada, mãezinha. 2019. Página 01. Zine impresso. (24 anos) p.66
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 43- Does it enlighten my spirit? 2022. Grafite e papel seda sobre p.67
papel. Diário gráfico. (27 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 44- Quero criar mas não sei o que. Grafite, lápis de cor, pastel e p.69
recorte sobre papel. 2021. Diário gráfico (lado direito). 26 anos.
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 45- Já era de se esperar. Grafite e recorte sobre papel. 2021. Diário p.69
gráfico (lado esquerdo). 26 anos. Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 46- 21/10/20. 2020. Lápis grafite e papelão sobre papel. (25 anos) p.71
Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 47- I.D.C. 2007. Lápis grafite sobre papel. (12 anos) Fonte: Acervo p.73
Pessoal.
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Imagem 48- S/N. Helena Obersteiner. 2020. Grafite sobre papel. Reprodução p.75
do Instagram @helenaobersteiner.
Imagem 49- S/N. Helen Fernandes (Malfeitona). 2020. Desenho digital. p.76
Reprodução do Instagram @malfeitona.
Imagem 50- S/N. Céu. 2020. Caneta sobre papel. Fonte: Reprodução do p.77
instagram @raisssa_braga.
Imagem 51- Universo. Lápis grafite sobre papel. 2020. (25 anos) Fonte: p.79
Acervo Pessoal.
Imagem 52- A pose. 2021. Lápis grafite e borracha sobre papel. Fonte: p.80
Acervo Pessoal.
Imagem 53- Toi aussi tu détestes la vie? 2020. Caneta hidrocor sobre papel. p.83
(25 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 54- Lacrimosa 2020. Caneta hidrocor sobre papel amassado. Fonte: p.84
Acervo Pessoal.
Imagem 55- Paranoinhas 2020. Caneta hidrocor, lápis de cor, giz pastel e p.84
cera sobre papel rasgado. 2020. Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 56- A melhor maneira de lidar com o controle é abrir mão. 2019. p.87
Nanquim sobre papel craft. Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 57- Criar por criar. 2019. Nanquim sobre papel craft. Fonte: Acervo p.88
Pessoal.
Imagem 58- Natureza Criadora. ano. Nanquim sobre papel craft. Fonte: p.89
Acervo Pessoal.
Imagem 59- O indil. 2002. Lápis grafite sobre papel. Diário de artista. (7 p.93
anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 60- Neurofloresta. 2021. Lápis grafite sobre papel. (26 anos) Fonte: p.95
Acervo Pessoal.
Imagem 61- “O meio ambiente está de repente no interior dela”. 2022. Lápis p.99
grafite sobre papel. (27 anos) Fonte: Acervo Pessoal.
Imagem 62- Resposta ao exercício proposto pela profª Laís no primeiro p.104
semestre de Artes Visuais. 2017. Nanquim e hidrocor sobre
papel. (22 anos)
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Imagem 63- Nuvem de palavras dos temas de interesses das participantes. p.112
2023. Free Cloud Generator.
Imagem 64- Imagem de divulgação da oficina nº2. 2023. Indesign. Fonte: p.113
Acervo pessoal.
Imagem 66- Escolaridade das participantes da oficina Grafias de si. 2023. p.116
Google Forms.
Imagem 67- Produções da participante A.A. 2023. Lápis branco sobre tela p.117
preta. Fonte: Foto de A.A.. na Oficina grafias de si: a prática
escrita em artes visuais.
Imagem 70- Resposta da participante L.A. 2023. Fotografia. Fonte: Foto de p.119
L.A. na Oficina grafias de si: a prática escrita em artes visuais.
Imagem 71- Processo de criação da oficina grafias de si. Fotografia. 2023. p.123
Fonte: Acervo pessoal.
Imagem 74- Ícone criado em .png para oficina grafias de si. 2023. Fonte: p.125
Acervo Pessoal.
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LISTA DE TABELAS
Tabela 02- Oficina grafias de si: Sequência didática. Aula n.01 p.120
“Introdução”. 2023
Tabela 03- Oficina grafias de si: Sequência didática. Aula n.02 p.121
“Nascimento”. 2023
Tabela 04- Oficina grafias de si: Sequência didática. Aula n.03 “Nutrição”. p.121
2023.
Tabela 05- Oficina grafias de si: Sequência didática. Aula n.04 p.121
“Desenvolvimento”. 2023.
Tabela 06- Oficina grafias de si: Sequência didática. Aula n.05 “Morte e p.122
renascimento”. 2023.
Tabela 07- Tabela 07. Oficina grafias de si: Sequência didática. Aula n.06 p.122
“Considerações ficnais”. 2023
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 17
CAPÍTULO 1. NASCIMENTO 22
Uma ideia não nasce do nada. Ela é gerada depois de muitas outras ideias. 29
CAPÍTULO 2. O CORPO 37
Rasuras e improvisos 42
Detalhes 45
Desenho-lixo 48
CAPÍTULO 3. A PALAVRA 57
Diário Gráfico 68
CAPÍTULO 4. O ERRO 72
Caos e Cosmos 78
CAPITULO 5. NATUREZA 90
Apresentação 106
REFERÊNCIAS 126
15
Imagem 01. Mapa conceitual. 2019-2020. Grafite sobre folha de caderno.
16
INTRODUÇÃO
17
espaço indo a lugar-algum, sem começo nem fim. Trata-se de um método de pesquisa que se
assume fluido e não rígido em relação às suas estruturas.
O método cartográfico possui riscos. Segundo a pesquisadora Roberta Romagnoli
(2009), a flexibilização metodológica que tem como intuito fugir da reprodução de técnicas e
do acomodamento intelectual, tem como risco a produção de textos sem fundamentação, sem
pé nem cabeça. Além disso, corre o risco também de contrariar a própria metodologia e
simplesmente se acomodar na pesquisa, ignorando a complexidade em que está inserida.
18
processo prazeroso e divertido. Para além de algumas gracinhas, adianto que trago também
muito forte uma questão de gênero.
Sempre me incomodou os artigos masculinos para generalizar um grupo de pessoas.
Acho importante reiterar isso pois lembro de quando, ainda na adolescência, não me sentia
confortável para escrever como uma personagem feminina, simplesmente porque não tinha
muitas referências de escritoras mulheres. O artigo "A" me soava estranho. É como se não
existisse a mulher no mundo. Foi por esse e outros inúmeros motivos que, aos 24 anos,
passei a dar preferência por ler romances escritos por mulheres e pude, finalmente, me
enxergar no lugar de quem conta a própria história.
Nesse texto me proponho a realizar uma escrita de si, que pode ser compreendida
como um gênero literário em que eu, como autora, assumo explicitamente a postura de 1ª
pessoa do singular. O termo escrita de si aparece ainda na filosofia antiga. Segundo Pierre
Hadot, a filosofia antiga funcionava como uma espécie de espiritualidade e estava envolvida
na produção e difusão de técnicas de subjetivação, como por exemplo, fazer anotações de
caráter filosófico para serem lidas e incorporadas na subjetividade e também o ato de narrar a
própria história, como uma forma de constituir a si mesma. (OLIVA, 2020)
A escrita de si foi estudada não somente pelos filósofos antigos e por Pierre Hadot.
Segundo o profª Alfredo Oliva, Michel Foucault foi fortemente influenciado por estas ideias,
e se aprofundou no estudo da escrita de si com intuito de compreender a dimensão subjetiva
do poder e de que forma o sujeito participa e interioriza as relação de poder, de modo que elas
possam atuar sobre sua vida intrasubjetiva. (OLIVA, 2020)
A escrita de si revela sinais da tentativa de organização do eu pós-moderno
“descentrado, fragmentado e cujas identidades múltiplas giram em torno de um núcleo
caótico e gritante…” (ARAUJO, 2011. p. 8). Nesse sentido, Foucault considera que escrever
é significar a própria vida, se constituir como sujeito e também questionar a própria
identidade. O autor Pedro Galas Araújo (2011), reflete que esse gênero textual passeia entre o
real e a ficção, borrando seus limites. Pois existe, na escrita de si, uma lacuna deixada pela
memória, o gato de Schrödinger: pode e não pode ter acontecido. Pode existir também um
caráter fantasioso que surge unicamente por vontade de fantasiar, vagar nas possibilidades.
Ainda segundo o autor, essa estrutura textual problematiza a ideia de referência na
literatura. Em um contexto literário, Araújo (2011) destaca que a presença de um autor que
narra a própria história mas que revela a instabilidade da verdade durante o texto, é uma das
características mais marcantes da literatura contemporânea brasileira. Sobre isso, coloca:
19
A ficção se apropria da autobiografia para ressaltar o caráter falho de ambas, quer
dizer, revela a impossibilidade de uma representação plena da realidade.” (ARAÚJO,
2011. p.8)
Aqui conto minha história com os mais diversos artigos. Mas não somente, conto uma
história sobre como surgem as coisas, como se relacionam e se transformam com o mundo.
Pensando nisso é que tudo está organizado em um fluxo natural como o da vida. Tem
início portanto pelo Capítulo 1. Nascimento, onde começo a ativar a rede de relações da
minha produção artística, rede esta que será expandida durante todo trabalho. Neste capítulo
falo sobre o conceito de tendências, descrito por Cecília Salles, e identifico aquelas que
guiam meu processo criativo. Investigo também a origem biológica da criatividade,
utilizando como alicerce a teoria da autopoiese descrita por Maturana e Varela.
No Capítulo 2. O corpo, discuti a influência das transformações do corpo no
desenho, tanto a partir do afinamento da habilidade motora, quanto a forma de experienciar o
corpo no espaço. Para entender a rede de relações que o corpo estabelece com o meio que
está inserido, trago para a discussão a teoria da complexidade descrita por Edgar Morin. Esse
capítulo vem como uma forma de se perceber existindo em relação ao mundo.
A investigação segue com o Capítulo 3. A palavra, onde enfatizo a presença da
palavra na minha produção artística e a partir disso reflito sobre o papel da linguagem e da
educação, mais especificamente da arte-educação na mediação das relações com o meio. É
também nessa seção onde discuto o diário gráfico como uma forma de registrar visualmente
as impressões do mundo, desenvolver a habilidade de desenho e também de construir a
própria identidade.
A discussão do processo de ensino-aprendizagem em arte que se inicia neste capítulo,
nos leva ao Capítulo 4. O erro, em que vai ser evidenciado o papel do erro e do acaso no
processo de criação baseado nas ideias apresentadas por Cecília Salles, Maturana, Varela e
Edgar Morin. Também outras autoras e autores que aparecem durante o texto como Fayga
Ostrower, Rosa Iavelberg, Edith Derdyk, Ana Mae Barbosa e Vygostky. A partir dessas
reflexões, proponho uma forma de lidar com esses elementos de incerteza no ensino de arte.
Por fim, trago o Capítulo 5. Natureza como o elo que une todos os temas. Isto
porque neste capítulo discuto a criação de uma perspectiva ancestral, evidenciando a arte,
educação e natureza como elementos indissociáveis. Também chamo atenção para a potência
e necessidade desses temas para pensar o futuro.
Nas considerações finais, retomo de forma objetiva as idéias que construí nesse texto,
refletindo sobre a importância da arte-educação no desenvolvimento do potencial criativo do
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indivíduo, e também para a vida na Terra. Em um âmbito mais particular, reflito sobre os
possíveis rumos para a minha criação artística a partir desse trabalho.
A partir de tudo que foi analisado, pesquisado e aqui escrito, elaborei um plano de
ensino em arte e promovi uma oficina chamada de “Grafias de si: a prática escrita em artes
visuais”, em que proponho aproximar artistas visuais da escrita. A oficina aconteceu via
e-mail, no período 08/05 a 12/06 somando uma carga horária total de 8h. Relatei toda
experiência no fim deste trabalho.
21
CAPÍTULO 1. NASCIMENTO
Querida criança,
Você está prestes a aterrissar no planeta terra. Nesse momento, imagino que você
esteja se tornando matéria, nadando em líquido amniótico, se alimentando por meio da sua
mãe e ouvindo sons com seu próprio ouvidinho. Tudo que nasce passa por um processo de
gestação e a placenta é como se fossem raízes que nos fixam nesse mundo.
Quando, de súbito, você sentir a necessidade de sair da sua mãe, vai romper com a
barreira que divide a vida e a morte, e se tornar um ser que mama, chora, dorme e excreta.
Vai sugar das tetas da mãe Terra a energia vital. Você virá ao universo como parte dele e com
ele deve viver em harmonia.
Imagem 02. A placenta. 2021. Lápis grafite sobre papel. Diário gráfico. (26 anos)
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Eu fui uma das inúmeras criações de meus pais. E as minhas primeiras criações foram
(dois pontos) Fluídos. Chorei buá, buá, buá! Excreções e gestos. Através dos gestos, imprimi
no papel minhas primeiras experiências estéticas.
Na psicologia, essa expressão “primeiras experiências estéticas” é utilizada para se
referir aos rabiscos infantis como gestos instintivos. Li sobre o assunto pela primeira vez em
um texto que falava sobre as primeiras aquarelas abstratas de Wassily Kandinsky. Por volta
dos 40 anos, o artista resolveu resgatar o espírito despretensioso do desenho infantil. Para
ele, o desenho infantil é composto de formas e não de conceitos. E assim se dedicou e foi
reconhecido como o primeiro abstracionista ocidental.
Sempre que falo de Kandinsky, lembro de Hilma af Klint, embora o contrário nem
sempre seja verdadeiro. Isto porque, Hilma Af Klint pintou uma série de abstrações em 1906,
anos antes de Kandinsky e dos modernistas de sua geração. As pinturas de Hilma só vieram a
público 20 anos depois de sua morte, como ela mesma pediu em seu testamento. A artista
pintava escondido e acreditava que as pessoas de sua época não estavam preparadas para o
caráter esotérico de suas obras. É interessante pensar que a arte geralmente está nesse lugar
que assusta um pouco, que provoca e incomoda. Mas isso é assunto para outro momento.
Nascida em Estocolmo, Hilma af Klint (1862-1944) entrou na escola técnica de
desenho aos 17 e ganhou uma boa reputação com suas pinturas de paisagem e elementos da
natureza. Ao decorrer do tempo, ela passou a seguir por um caminho artístico bem diferente
ao que estava habituada e às práticas comuns de sua época. Guiada por uma curiosidade sobre
o fenômeno da existência, Hilma af Klint se juntou a quatro outras mulheres, e formaram um
grupo espiritualista chamado de “As Cinco”, onde se reuniam em segredo para meditar e
entrar em contato com seres espirituais. Essas sessões eram registradas em desenhos e
escritos automáticos que estão reunidos em uma série chamada “Automatic Drawings by The
Five” (1908). Elaborados em pastel seco e lápis grafite, esses desenhos contribuíram para
que Hilma af Klint passasse a se libertar do caráter técnico de suas obras e investigar o
mundo espiritual, natural e os avanços científicos de seu tempo.
Fui apresentada às pinturas e a história de Hilma por um querido amigo, Didi, em
uma tarde no Departamento de Artes. Conhecer a obra de Hilma teve forte efeito sobre
minhas carnes e a minha forma de enxergar o mundo e de produzir arte. O espiritual em sua
obra certamente me conectou mais profundamente com o caráter esotérico de minha própria
existência e com uma maneira de transformá-lo em arte. As tardes sossegadas no
Departamento de Artes tinham essa magia: frequentemente eram reviradas por um prazer
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visual imenso, de contaminação estética que dava sabor à vida e, como um choque,
restabelecia o ritmo do coração.
Imagem 03. Automatic drawing. The Five. 1908. The Hilma af Klint Foundation, Estocolmo.
O que eu queria falar, quando trouxe os primeiros rabiscos que a criança imprime no
papel, chamados de garatuja, é que foi através desses exercícios gráficos que passei a
entender quem sou, me construir e me conectar com o mundo ao meu redor. Não lembro ao
certo quando comecei a desenhar, mas o fato é que as linhas passaram a correr em meu corpo
como se fossem veias, onde enfileiram-se pontinhos: neutrófilos, eosinófilos, basófilos,
linfócitos e monócitos.
24
“O azul da veia é o azul profundo do mar, o azul profundo de algo ancestral.”
(Anelise Chen)
Lembro que, ainda na infância, tinha uma menina que quando caía, chupava a ferida
ensanguentada e eu ficava horrorizada com a cena. A criança gosta de fazer as mais infinitas
nojeiras. Como por exemplo, fazer uma bolinha com o recheio do biscoito, arrancar meleca e
comer e misturar todos os xampus e condicionadores que existem no banheiro, dando origem
a uma fórmula super, hiper, mega hidratante. Existe na infância uma investigação, com
abertura para descobertas e atenção perceptiva. E essa investigação é um elemento
fundamental do processo criativo.
Sempre que criamos estamos indo em direção a algo. Como plantas que crescem
serpentinando em busca da luz do sol. Comigo não foi diferente, tomei muito banho de chuva
e deixei o sol me iluminar. Me nutri de trocas químicas e físicas com o meio e cresci. Tenho
crescido, a verdade é essa. Tenho me transformado constantemente.
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Imagem 04. L’art c’est une investigation. 2022. Lápis grafite sobre papel. (26 anos)
26
Para onde estou indo?
Quando desenhei A placenta no ano de 2021, eu tinha em minha mente muitos dos
devaneios que discutirei aqui. Neste desenho, um traço de lápis grafite marca o papel
amarelado com a imagem de um feto flutuando, sim, dentro de uma placenta, como o próprio
nome sugere. Ao lado dele os dizeres “a placenta é como uma árvore da onde saem raízes”.
Tudo escrito em uma caligrafia cheia de voltas, de letras apertadas, escritas com calma -
afirmo, embora não lembre a velocidade que risquei o papel. O fato é que hoje meu olho
toma tempo pra ler. Olha cada voltinha com cautela. Acompanha cada curva, de cada letra,
devagarzinho. Até que constrói uma sílaba, palavra, começa a fazer sentido. O tempo da arte
é outro - concluo.
Escolhi “A Placenta” (2021) para iniciar esse texto porque esse desenho reúne
elementos que mais tarde se revelaram como o ponto central da minha investigação ou, em
outras palavras, sugerem as tendências as quais guiam meu processo criativo. São estas:
Essas tendências vieram à luz da percepção depois de uma análise dos desenhos que
fiz dos 6 aos 26 anos. Guiada pela crítica de processo descrita por Cecília Salles, observei
forma, material, conteúdo, contexto, etc. Inseri as obras em uma cartografia aceitável
Simplesmente estabeleci relações. Agrupei os desenhos por tendências e distribuí nos
capítulos que se seguem.
A curiosidade sobre meu próprio processo criativo aparece de maneira muito literal no
desenho “L’art c’est une investigation.’ What am I searching for?” (trad.:A arte é uma
investigação/O que eu estou procurando?) elaborado no ano de 2022 quando já me debruçava
sobre esta pesquisa. Nesse sentido, podemos afirmar que este texto faz parte do processo
criativo em si.
Essa pesquisa surge como uma amarração de muitas ideias em uma sequência de
desenhos e letrinhas. É fruto de uma tendência natural que se desenrolou no curso da vida e
que suscita pensamentos, inquietações e vontade de criar. Tudo está reunido e tenta se
organizar nestas páginas. Um tecido de substâncias que se entremeiam… Artistas, filósofos,
biólogos…enfim, gente em geral.
27
Em seu livro “Redes de criação: Criação como rede", Cecilia Salles ressalta a
necessidade de inserir a criação artística em uma rede complexa de inferências, indo contra a
ideia de uma “criação como uma inexplicável revelação sem história, ou seja, uma
descoberta sem passado, só com um futuro glorioso que a obra se materializa.” (SALLES,
p.26).
Pensando nisso, esse texto propõe ser um híbrido, uma colagem visual e literária.
Beira o livro de artista, mas não é bem isso. Outras coisas nesse sentido são produzidas o
tempo todo, como são os esforços de hibridização realizados por Godard e descritos por
Susan Sontag. Segundo a autora, o que Godard faz é inserir em uma forma de arte, elementos
que lhe são estranhos - semelhante também ao que acontece no rock'n'roll. (SONTAG, 2015)
A forma desse texto é incerta. Como descrito por Deleuze e Félix Guattari, se constrói
de maneira cartográfica. A partir de uma curiosidade inicial sobre a criatividade e processos
de criação, as palavras se desenrolam rumo a outras perguntas, obstáculos, limites e também
descobertas. Esse texto é um objeto móvel, não estático, que acontece no movimento de sua
criação. Assim se estrutura refletindo o objeto de sua investigação: o processo criativo e suas
relações ecossistêmicas. Dito isto, uma das forças que atuam sobre esse texto é o
academicismo. Forças que tento escorregar por entre elas como se fosse slime - um
brinquedo viscoso, pegajoso.
Também tem forte influência sobre a estrutura desse texto, as escritoras Lygia
Fagundes Telles, Monique Wittig e Anelise Chen que, cada uma à sua maneira, desafiam a
estrutura da narrativa, gênero textual e da formatação do livro em si. Brincam com o espaço
da folha, com a lógica e os sentidos. Ainda muitas outras foram as escritoras e artistas que
inspiraram este texto, as quais aparecerão às vezes de maneira óbvia, às vezes nas entrelinhas.
Nesse sentido, percebo que esse texto caminha em consonância com o tipo de obra que se
propõe a extrapolar os limites das linguagens.
Embora eu venha falando de mim e isso e aquilo, sinto a necessidade de afirmar e
reafirmar que isto não é sobre mim. O que quero dizer é que, além desse falso altruísmo -
pois fala sim sobre mim - é, principalmente, uma reflexão.
Este trabalho, embora seja uma narrativa contada sob minha perspectiva, é um
romance de fatos. De certo que sou <<eu>> escrevendo sobre <<minha>> produção, e de
certo, existe nisso uma carga de subjetividade imensurável. Porém, devo dizer, existe também
nisso uma realidade e, mais importante, escrevo com fundamento e intenção.
Aqui uso de meus rabiscos como um objeto de estudo para refletir sobre o fenômeno
da criatividade, a partir de uma perspectiva biológica e também social - onde vive? como se
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alimenta? Pretendo perscrutar de onde surge a força criadora a partir do ponto de intersecção
entre arte e natureza, ou como eu acho bonito dizer <<natureza criadora>>.
Proponho o termo natureza criadora por sua ambiguidade que pode se referir tanto a
1) origem quanto a 2) a capacidade criadora. Tenho usado esse termo em minha produção e
me divertido com seus sentidos. Falarei mais sobre a época que surgiu essa experimentação
no Capítulo 4. O erro. Por enquanto é suficiente entender que o texto busca investigar o
processo de surgimento e morte da criação artística e o que nutre esse processo.
Imagem 05. Intersecção entre arte e natureza. 2022. Lápis grafite sobre papel. (26 anos)
Uma ideia não nasce do nada. Ela é gerada depois de muitas outras ideias.
Lembro que na primeira aula de biologia do ensino médio o professor pediu para
gente escrever em um papel a resposta pra pergunta que não quer calar “o que é vida?”
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Não lembro o que eu respondi, nem lembro como foi o resto da aula, e pra dizer a
verdade, nem lembro muita coisa da escola em geral. Me dei bem nos primeiros anos, gostava
muito de estudar, de fazer caligrafia e ditado. Gostava de estudar a história de Zumbi dos
Palmares. Aprendi que a borracha vem da seringueira Que antes de p e b se usa m. Depois de
um tempo, com a chegada da química e física, não entendia mais muita coisa e perdi o
interesse. Queria fazer amigos, sair de casa, ficar na internet. Entrei na universidade sem
saber ao certo o que ia fazer da vida. Passei por três cursos de odontologia.
Estudei anatomia, patologia, imunologia, saúde coletiva… vejo que essas áreas que eu
gostava agora se refletem também nesse trabalho. Desisti de odontologia e ingressei em em
artes visuais. O ano entre-cursos me possibilitou estudar temas que me interessavam,
desenhar com mais frequência e conhecer artistas. Até que, certo dia, lembrei de quando era
criança e costumava dizer: Quero ser desenhista.
Neguei muito tempo viver de alguma coisa que exigisse da minha criatividade.
Primeiro porque passei muitos anos sem sequer lembrar que existia essa opção. Depois,
porque quando esta lembrança me veio à luz dos pensamentos, passei a acreditar que o meu
potencial criativo era um poço raso que inevitavelmente iria se esgotar. Eis que, aos 21 anos,
inevitavelmente me candidatei ao curso de artes visuais. Caí de paraquedas aqui. Só me
lembro de me candidatar, ser aprovada e de repente essa se tornou a realidade. Agora escrevo
esse texto.
***
A teoria da evolução pré-biótica diz que a vida surgiu na água. A polaridade elétrica
das moléculas de água, quando interagiu com as moléculas de lipídio, deu origem a uma
espécie de vesícula. Isso porque a molécula de lipídio tem um lado que tem afinidade pela
água e outro que a repele. A partir do momento que essas moléculas se fecham em um
sistema delimitado por uma membrana, inauguram um ambiente interno e um externo.
(CAPRA, 2009)
As membranas celulares são permeáveis, e a partir delas se estabelece um contínuo
fluxo de matéria e energia. Esse fluxo é necessário, não somente para o crescimento e
replicação das vesículas, mas também para a pura e simples conservação das estruturas
estáveis. É importante salientar que, quando falamos em estabilidade dentro de uma molécula
nos referimos, na verdade, a um estado de equilíbrio dinâmico, que está em constante
atividade. (idem)
30
Imagem 06. S/N. 2019. Lápis grafite e adesivos de Analu Medeiros sobre papel. (24 anos)
31
A membrana celular é a primeira característica que define a vida. Além dela é
fundamental que aconteçam processos metabólicos no interior da célula, pois é por meio do
metabolismo, dos fluxos químicos e energéticos, que a vida perpetua a si mesma e que se
abre espaço para o surgimento de novas formas. (CAPRA, 2009)
Se analisarmos de perto os processos metabólicos percebemos que os eventos estão
conectados em redes químicas que criam e recriam a si mesmas, de modo que uma coisa leva
a outra. Uma coisa <-----------> Outra coisa. As redes são um elemento fundamental na
definição da vida, pois possibilita que as estruturas se modifiquem continuamente,
preservando seu padrão de organização.
Podemos esquematizar os elementos fundamentais para que haja vida:
1) Membrana celular: que separa o indivíduo do meio ao mesmo tempo que
possibilita trocas;
2) Metabolismo: série de reações químicas que buscam a autoconservação;
3) Redes celulares: redes químicas de reações entre os componentes de um meio
celular.
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Imagem 07. Ciclos e hiperciclos. 2019. Lápis grafite sobre papel. (24 anos).
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Segundo Morin, a criatividade é um fenômeno antropológico muitas vezes ignorado
mas que “marca todas as evoluções biológicas, de maneira mais inaudita que a evolução
histórica.” (MORIN, 2015. p.54) Pois é só por meio da imaginação, das fantasias, das
hipóteses e da ação criadora que surgem novas invenções. Invenções essas que se propõe a
facilitar e perpetuar a vida na Terra (MORIN, 2015)
Do ponto de vista neurobiológico, a criatividade pode ser vista como ponto mais alto
da cognição ou como inerente a todos aspectos cognitivos. A cognição é o processamento dos
estímulos sensoriais que recebemos, seja da visão, olfato, tato ou paladar. Os estímulos são
interpretados, digeridos e armazenados. É desse processamento que se originam novas
percepções, ideias e aprendizados. (KAUFMAN, 2010)
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conversas, leituras e também as que realizamos pela superfície da nossa pele, pela membrana
da nossa célula. Como bem coloca Cecília Salles, “o processo de criação está localizado no
campo relacional” (SALLES, 2016. p.26). Nasci desse fenômeno e também você. Estamos
constantemente criando e recriando. “Tudo que vive é resultado dessa interação”.
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Imagem 08. Nós das interações. 2020. Lápis grafite sobre folha de caderno. (25 anos)
36
CAPÍTULO 2. O CORPO
Em uma dessas de nascer, morri. Lembro de estar voltando muito rápido de um lugar
muito escuro com flashes de luz. Seriam estas minhas memórias? Fazia um silêncio
ensurdecedor que foi dando lugar a um apito muito forte que atingiu profundamente meus
tímpanos. Será que é isso a mescalina? Abri finalmente os olhos e diante de mim, minhas
mãos. Morri, portanto, somente para nascer de novo.
***
Imagem 09. 11/20/20. 2020. Lápis grafite sobre papel. Da série “Diário do Corpo”. (25 anos)
***
37
diário do corpo _ ano 2020 (editado)
m.m.p
24 anos
f
1,55m
52 kg
vivo na mesma velocidade que respiro. isto posto, tenho uma obstrução dos
seios nasais e uma capacidade pulmonar reduzida. meu peito dói ansioso.
choro. choro e berro porque minhas emoções estão acumuladas nos meus
interstícios.o peritônio, a pleura...
***
Quando nasci de novo, foi como usar óculos. Passei a enxergar o verde das folhas e o
vento soprar. As árvores dançando. O mundo se movendo devagar, com a paciência de uma
pintura à óleo. A natureza é paciente. Cresce de pouquinho em pouquinho até que fica
madura e caí do pé. Será que, assim como as plantas, o corpo cresce em direção aos
nutrientes? Ou cresce contido num vaso daquilo que deveria ser? Consome o que há de
consumir na terra, então fica sem fôlego e morre? Tudo que ultrapassa seu limite morre.
É possível sentir o momento em que a vida abandona o corpo. Ali diante dos olhos
não está mais quem se conhecia. Obrigada por tudo e que descanse em paz… Quando o
corpo morre, é devorado pela terra. Bichos das mais diversas e inúmeras e minúsculas
espécies. Emaranhados de raízes de antigas árvores e pequenas mudas. Fungos de todas as
cores. Certo dia, assisti no youtube um timelapse qualquer de fungos crescendo. Enquanto
chorava de rir, senti:. A natureza é divertida e engraçada, ao mesmo tempo que devora tudo.
Penso muito sobre o que vai acontecer com o meu corpo depois da morte. Depois que
for devorada a carne, os ossos vão ser guardados em um saco plástico, dentro do caixão. Os
fungos devoram tudo que morre. Foi nesse sentido que o inventor holandês Bob Hendrikx
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criou um caixão-vivo feito de micélios: Pra ser engolido pela terra. Fiquei feliz com a
notícia. Queria virar uma árvore, ser plantada como uma semente…
Nos últimos anos conheci o “Kusözu” ou a pintura dos nove estágios de um corpo em
decomposição. Kusözu é uma prática de origem budista que foi reinterpretada durante meio
milênio no Japão. De acordo com Gail Chin, a prática tem a intenção de mostrar os efeitos da
impermanência e da natureza grosseira do corpo humano, principalmente da mulher. Isto
porque, para o budismo, superar o desejo sexual é um passo fundamental para alcançar a
iluminação. Em um estudo sobre o assunto, Fusae Kanda discute como as mudanças de
significado dessa prática foram catalisadas por transformações religiosas e sociais.
Imagem 10. Eu queria ser como uma planta. 2021. Lápis grafite sobre papel. (26 anos)
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Algumas culturas como o budismo e o oriente, de maneira geral, assim como o
México, enxergam a morte não somente como um ciclo natural da vida, como também uma
celebração. No Brasil, não conversamos muito sobre morte e geralmente somos assombrados
por ela. A nossa relação com a morte é distante e misteriosa. Permeia o imaginário coletivo
que entre o corpo e o espírito existe uma distância equivalente à distância entre a terra e o
céu. Uma dicotomia cartesiana. Crença religiosa. Corpo/Espírito. Céu/Terra.
Vivemos sob um paradigma moderno. Descrito por Edgar Morin como paradigma
simplificante, remete à influência do surgimento do pensamento científico ocidental.
Pensamento este centrado na razão, matematizado e determinista, que ignora a diversidade
das múltiplas formas de existir. É nesse sentido que coloca Mocellin:
É diante disso que o autor destaca a necessidade do pensamento complexo que leva
em consideração a teia de “acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações,
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acasos, que constituem nosso mundo fenomênico.” (MORIN, 2015.p12). Assim, é necessário
levar em consideração as individualidades, circunstâncias, acasos e erros do processo como
parte constituinte deste. Não se pode separar produção poética do sujeito, nem corpo do
espírito. (SALLES, 2016)
Dito isto, cresci a léguas de distância do meu corpo. Não tinha aptidões físicas. Nem a
altura, nem bons pulmões. Tinha muito medo da bola. Na escola tentei muitos esportes, não
deu. Acordei para a existência do meu espírito antes mesmo que para o corpo, que estava ali,
em carne e osso diante de mim, refletido no espelho. Até que me dei conta que não existe um
sem o outro.
A série “diário do corpo” surge nesse contexto, como resposta a uma proposição em
sala de aula feita pela profª Estrela Santos. Consiste em desenhos criados a partir da seguintes
regras, assim definidas por mim:
1.Desenhar com a mão esquerda. Pra me conectar comigo mesma, para perder o
controle, reaprender a desenhar e me divertir como se estivesse fazendo os exercícios
de caligrafia;
2. Colocar a data (como nos cadernos da escola) porque é um diário;
3. Ainda que um diário, não fazê-lo diariamente, mas quando surgisse um sentimento
genuíno;
4. Materiais simples e de fácil acesso;
5. Formato 1:1.
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Quando nos foi sugerido o diário do corpo, eu estava começando a desenvolver
práticas como o yoga, que me aproximavam do meu corpo. Estava desenvolvendo noções de
força, equilíbrio e capacidade Certo dia, durante um asana, chorei, chorei e chorei de soluçar.
Descobri que o trauma se acumula nos interstícios. Percebi que o corpo e o espírito estão
intrinsecamente ligados, assim como o céu e a terra, passado e futuro. De modo muito
natural, essas descobertas passaram a se refletir nos desenhos dali em diante.
Rasuras e improvisos
Por volta dos 6-8 anos, o corpo aparecia no desenho com muita frequência. É
recorrente observar pessoas sozinhas ou em grupos realizando atividades cotidianas.
Lembro-me de fazer muito esforço para aprender a reproduzir a forma humana. Fazia poses,
imitava os cartoons e os desenhos de minha irmã mais velha. Lembro de começar a observar
como eram as pessoas, seus cabelos e o que vestiam. Observava também a rotina, os gestos e
os hábitos. Ao mesmo tempo que descobria o outro, passava a perceber minha existência.
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Queria usar meião listrado e calça com gibeira. Gostava muito de revistinha, de jogo
de sete erros, do "cade?" da Revista Recreio. Tudo isso aguçava minha imaginação. Mexia
com meus sentidos. De alguma forma, queria devorar. Ler, assistir, desenhar, nada me era o
suficiente, ao mesmo tempo que me preenchiam profundamente.
No desenho “Rotina em casa”, feito aos 7 anos de idade, o sol nasce na margem
esquerda, e abaixo dele se estende um varal que vai de ponta a ponta do desenho, indo até a
margem direita, onde encontra um menininho pendurado em um galho, sorrindo. Mais
abaixo, no centro do desenho, temos uma menina com uma bolsa de carrinho, uma mulher
com braço engessado e um menino de boné, correndo com os braços para cima. Este desenho
remete ao que Viktor Lowenfeld (1970) denomina Estágio Esquemático, em que a criança
desenvolve o conceito definido de forma. Nesse estágio, a criança representa parte do meio
em que vive, dispondo os objetos em linha reta, na largura da margem inferior do papel.
Como a própria classificação sugere, é como se fosse a esquematização da realidade.
Foi nessa época que aprendi conscientemente truques de representação. Usava muito a
borracha ou a rasura, queria acertar. É comum encontrar desenhos manchados ou com
“improvisos” para cobrir um erro. Como por exemplo, um braço engessado para uma mão
que não deu certo que pode ser observado no desenho Rotina em casa (2002). De acordo
com Cecília Salles, a rasura marca uma escolha:
O processo de escolhas se torna evidente no desenho Cochilo (2002), onde foi feito
uso do corretivo líquido e também de uma colagem de papel para encobrir os erros crassos.
Também chama atenção o uso da régua em algumas linhas, que aparecem como uma tentativa
de alcançar o formato ideal dos objetos. Ao ver a cômoda com uma bíblia em cima,
lembro-me saudosamente de minha avó, que mantinha um móvel semelhante em sua casa.
O apego às minúcias e sensações é uma marca importante da minha produção desde a
infância. Ainda em Cochilo, por exemplo, é possível ver a atenção dedicada ao chulé saindo
do pé e sapato. Também da mesma época, o desenho Bebê no berço (2002) faz um retrato da
sensação de chegar em casa e reencontrar a família. Do alívio de tirar meias depois de um
longo dia de aula. Digo isto pois, a letra “M” escrita na camisa do garotinho, faz referência
direta ao uniforme escolar que minha irmã utilizava na adolescência.
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Imagem 12 .Cochilo. 2002. Caneta esferográfica, lápis de cor e colagem sobre papel. (7 anos)
Imagem 13. Bebê no berço. 2002. Lápis Grafite. (7 anos)
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Detalhes
Foi por volta dos 10 aos 14 anos que passei a me ater aos detalhes. Desenhava
pessoas sozinhas, objetos pontuais. Desenhava o pêlo no nariz. A aguilha do cadarço.
Gostava das coisas pequenas, sentia que elas faziam a diferença. Passei também a buscar uma
identidade no desenho. Meu corpo mudava e também mudava a minha relação com o mundo.
Me sentia estranha. Ao mesmo tempo que desenhava introspectiva nos cantos dos cadernos,
também distribuía tatuagens carismáticas feitas de canetinha.
Desenhava bastante e quando acabava o papel, desenhava na pele. O que começou
com o reloginho de caneta esferográfica na infância - que, segundo minha mãe, fazia mal pra
pele e que, portanto, é a mais absoluta verdade - mais tarde, encontrou espaço para aflorar. À
medida que eu me desenvolvia, os desenhos iam se tornando mais complexos e incorporando
à eles minha personalidade e aprendizados. Lembro, por exemplo, que nessa época eu
costumava assistir muito reality show de tatuagem na tevê e aqueles desenhos me
deslumbravam.
Começava desenhando em mim mesma até que era descoberta pelas outras crianças.
Meu irmão pedia pra eu desenhar um dragão no antebraço, minhas amigas uma frase no
pulso. A caneta esferográfica aos poucos foi substituída pelo marcador permanente, caneta
nanquim. Os materiais começavam a se mostrar como um aspecto a ser considerado, com
prós e contras. Com fobias e atrações. Outro dia, uma amiga de meu antigo trabalho me
estendeu o braço para desenhar e me lembrei feliz dessa época em que brincava de tatuagem.
As mudanças físicas acompanham a transformação do desenho. Segundo Lowenfeld,
isso pode ser observado desde as primeiras garatujas à toa que, aos poucos passam a se tornar
traços controlados, conscientes, que seguem se refinando. De acordo com o autor, “o desejo
de realizar mudanças mais refinadas e minuciosas”, pode levar a um desenvolvimento mais
rápido das aptidões motoras na faixa dos 11 a 14 anos de idade. (LOWENFELD, 1970)
Posteriormente intitulado, o desenho “Mãos” (2005), feito aos dez anos de idade,
mostra os detalhes a que me refiro. É como se fosse uma visão macro sobre o objeto, a fim de
entendê-lo. Aqui a clássica mão, contornada desde os primeiros anos de vida, passa a ser esse
objeto de investigação. Pode ser a mão pequena, a grande, de braço musculoso e luva de boxe
ou peluda e cheia de anéis. A mão é representada como um reflexo da individualidade de
cada um. As linhas do desenho, feitas em lápis grafite, riscam em um vai-e-vem, em busca do
domínio da forma.
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Para Lowenfeld (1970), o desenvolvimento da capacidade motora também diz a
respeito da projeção das sensações conscientes ou inconscientes do corpo. Assim, aos 22
anos, o desenho da mão ganha outro tipo de representação. Em “Santa Maria, mãe de Deus”
(2018) as mãos aparecem em oração, feitas com nanquim e posca, sobre papel. Sobre estas,
têm-se a prece: "Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores…” Sendo o “M” de
Maria o mesmo que existe na palma da mão. As linhas são trêmulas, e lembram o exercício
de desenho cego. Os pingos cor-de-rosa de caneta Posca se espalham pelas mãos. São gotas
de sangue. Estou em desespero. Existe também uma rasura. Eu já nem ligo, pois nada se
compara a dor que eu sentia ali. As mãos aos 22 anos são disformes pois investigam a
sensação, imprimem o sentimento.
É nesse sentido que Lowenfeld coloca que não é somente o desenvolvimento motor
que atua sobre o desenvolvimento da capacidade criadora. O autor discute também o
desenvolvimento emocional, intelectual, social, estético e o desenvolvimento criador em si.
De acordo com o autor, esse crescente desenvolvimento se manifesta no uso de uma
variedade cada vez maior de elementos artísticos.
Assim, embora desprendido da forma, o desenho Santa Maria, mãe de Deus é rico em
detalhes. Desde a cordinha amarrada no braço, até as linhas que separam falanges, falanginas
e falangetas. Esse desenho é o amadurecimento da habilidade motora, perceptiva etc. que
vinha sendo desenvolvida desde Mãos e ainda, muito antes, desde os anos iniciais do
desenho. Se antes o traço temia a irregularidade, agora se apresenta propositalmente
irregular; deriva da intenção de capturar a essência da forma e desenhá-la. Transmitir a
sensação de mão e não necessariamente reproduzir uma mão.
Foi também nessa época que passei a me interessar pelas mídias digitais: fotografia,
edição de imagem, desenho de computador. Experimentei photoshop, gimp, corel draw,
windows movie maker, adobe premiere. Me sentia capaz de aprender qualquer coisa a partir
do momento que surgia curiosidade e que tinha à minha disposição a aparelhagem necessária.
Fui feliz crescendo com um computador. Achava bonito os joguinhos on-line e me diverti
com as fontes do msn.
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Imagem 14. Mãos. 2005. Lápis grafite sobre papel. (10 anos).
Imagem 15. Not my nails. 2021. Grafite sobre papel. Diário gráfico. (26 anos)
Imagem 16. Santa Maria, mãe de Deus. 2018. Nanquim e Posca sobre papel. Diário gráfico. (22 anos)
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Desenho-lixo
Por volta dos 15-17 anos, senti que se eu quisesse continuar com minha habilidade de
desenho teria que me esforçar. Acredito que isso se deu porque fui exposta a amigas e artistas
com grandes habilidades e percebi que tudo aquilo que admirava era fruto de muita
dedicação. Foi quando passei a treinar proporções humanas, volume, perspectiva, entre outras
técnicas e materiais.
Lembro de estar sentada no fundo da sala de aula, desenhando em meu caderno de 10
matérias, um rosto frontal que ocupava toda a folha. Esfumei o grafite com o dedo, obtendo
um resultado novo mas também sujando a folha em lugares que não devia. Fiquei
impressionada com o desenvolvimento da minha habilidade criativa ao mesmo tempo que
achei o desenho feio, mal executado e distante de mim.
Me frustrava bastante com a dificuldade e o erro. Nunca fui muito profundamente no
estudo do realismo porque além da dificuldade, aquilo não me interessava, é como se não
desse conta do que eu sentia. Dessa época, joguei muitos desenhos no lixo, boa parte eram
feitos nas bordas dos livros didáticos e nas páginas que sobravam nos cadernos de química.
Esses desenhos gritavam meu humor: desesperada para o intervalo, para chegar em casa e
dormir. Alguns dias adolescente, triste e revolucionária; outros, feliz, movida por paixões
ainda mais desesperadas e românticas.
Durante toda minha vida escolar desenhei no horário da aula. Assisti muitas aulas
como se ouvisse podcast. Como quem risca o papel quando fala ao telefone. Esse desenho
livre e espontâneo brota de um lugar quase vazio da mente, um estágio de meditação. Um
lugar parecido com os pensamentos que ocorrem durante um banho. Em estudo, a
pesquisadora Allisson Kaufman (2010) discute como a inspiração criativa está atrelada
justamente a esse estado mental onde a atenção está desfocada e um grande número de
representações mentais (imagens) são simultaneamente ativadas.
Nos anos de ensino médio, desenvolvi a habilidade de desenho muito
despretensiosamente. Não tinha muito compromisso com o que criava. Lembro que já no
terceiro ano, perto de terminar a escola, tive um caderno de capa preta que levava comigo
para todo lugar. Hoje não sei por onde ele anda. Acho que não tinha apego às coisas que
produzia e por isso hoje é tão difícil encontrar um registro.
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Busca por estilo
A partir dos 18 anos, sentia ter mais precisão no traço. Evitava ao máximo o rastro do
lápis. Me apaixonei pela poética do nanquim e pelas possibilidades; especialmente pela
aparência de impressora e de perfeição. Percebi que gostava mesmo de algo mais gráfico.
Assim, antes mesmo de dominar o desenho realista, passei a desconstruir a figura humana.
Lembro de buscar alcançar, no desenho à mão, a estética dos desenhos que assistia na tevê ou
na internet, desenhos estes que, provavelmente, eram finalizados no computador.
Nessa época o processo criativo foi guiado por uma investigação muito forte de estilo.
Pratiquei novos formatos de composição e de representação. Buscava muito fortemente criar
desenhos que bastassem por si só. Em desenhos como Yin Yang (2014), essa investigação se
torna evidente. O desenho assume uma forma que se aproxima mais da ideia de produto, uma
ideia final. Um desenho encerrado.
Imagem 17. Yin Yang. 2014. Nanquim e lápis de cor sobre papel. Diário Gráfico. (19 anos)
Imagem 18. Mon coeur. 2021. Grafite e lápis de cor sobre papel. (26 anos)
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Em Yin Yang o desenho está centralizado no centro da folha. Feito em nanquim, um
círculo emoldura dois torsos femininos, que se completam como yin-yang. No peito, um
enorme coração rosa. Bochechas e nariz também são cor de rosa. Seus olhos estão fechados.
É um desenho limpo. As linhas se sobrepõem cuidadosamente em busca de um equilíbrio da
forma. Não é possível prever o gesto da mão, mas é possível driblar as falhas. É isso que
busco aí.
Passei muito tempo desenhando o corpo. Aprendi e desenvolvi a habilidade de
desenho a partir desse referencial. Busquei inúmeras formas de representá-lo. Depois que
entrei no curso de Artes, aos 21 anos, o estudo desse elemento ganhou ainda mais força.
Desde o corpo-poético ao corpo-personagem. Passeei de um lado pro outro buscando me
encontrar.
Imagem 19. Vai salvar? 2017. Nanquim sobre papel. (21 anos)
50
conscientemente pensando nessas questões. Queria me divertir no desenho como na infância
e também descobrir as possibilidades do meu gesto criador, da minha capacidade
imaginativa.
Como dito, em paralelo a esse processo de representação da aparência externa e
estética, passa a interessar também o corpo a partir de uma perspectiva sensível e além,
visceral. Literalmente, passam a ser objetos de estudo os órgãos. Em desenhos como Hjärt
(2013) isso se torna evidente.
O desenho do coração é um clássico. Por volta dos 6-7 anos de idade, surge o
desenho “Corações” (2002), em que dois corações floridos estão centralizados na folha. No
coração à esquerda, a flor habita seu peito, manchada de vermelho e laranja. Um ponto preto
marca seu botão. No coração à direita, as florzinhas emolduram sua forma. A profª Lais
Guaraldo apontou que há aqui um jogo de dentro e fora que desloca o papel do coração e da
flor - de continente para conteúdo, e vice-versa.
Imagem 20. Corações. 2001. Lápis grafite e lápis de cor. (6-7 anos)
Ao decorrer dos anos, o coração foi o eixo de uma investigação estética, técnica e
anatômica. Na idade adulta, passou a ser uma das formas dentre as quais usei para resgatar
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materiais, métodos e gestos da criação infantil. De acordo com com Vygotsky, “A lei básica
da criatividade infantil consiste em que o seu valor não reside no resultado, no produto da
criação, mas no próprio processo.” (VYGOTSKY. 2014. p.90) Estes experimentos podem ser
observados em desenhos como Sorriso amarelo (2020) e Coração bravo (2021), que
esbanjam lápis de cor, hidrocor e pastel.
Nas imagens desta seção vemos corações em seus múltiplos modos de existir. Esses
desenhos são um reflexo das transformações do modo de ver e de representar que acontecem
ao decorrer da vida. Os aprendizados vão sendo incorporados, escolhas são feitas,
curiosidades se despertam. Um desenho resgata características do anterior e introduz
elementos de si. Em muito divergem: Composição, forma, cor, volume... Entretanto, também
se aproximam. Para Borges, “o que chamamos de criação é uma mistura de esquecimento e
recordação”. (SALLES, 2016. p.73) Como dois alelos que se unem fazendo nascer um código
genético único.
Imagem 21. Estudo (Why does my heart feel so bad?) 2021. Lápis grafite sobre papel. (26 anos)
Imagem 22. Why does my heart feel so bad? 2021. Lápis grafite sobre papel. (26 anos)
Fonte:Acervo Pessoal.
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observar isso de forma micro nas tentativas para desenhar “Why does my heart feel so bad?”.
Feito em lápis grafite sobre papel, o desenho foi baseado em uma música de Mobi. Para
alcançar a forma final, o foi refeito até que simplesmente fizesse sentido.
Nesse movimento de escolhas artísticas, é importante observar que o processo criativo
não caminha em direção a uma única tendência, e nem pode ser definido tão somente como
isso. É nesse sentido que Salles afirma:
O fazer da artista é direcionado pelos seus princípios éticos e estéticos e cada obra
constitui parte de seu grande projeto poético. Segundo Salles, "o processo de criação de uma
obra é a forma de o artista conhecer, tocar e manipular seu projeto de caráter geral"
(SALLES, 2011. p. 46). Assim, o que começou com o coração romântico na infância, mais
tarde se expande para átrios e ventrículos. Posteriormente, segue por ossos, cérebro, sistema
digestório e todas as moléculas que compõem um sistema vivo.
Imagem 23. Coração flechado. 2005. Lápis grafite sobre papel. (9-10 anos)
Imagem 24. Hjärt. 2013. Caneta Nanquim e lápis grafite sobre papel. Diário de artista. (18 anos)
Imagem 25.S/N 2016. Caneta Nanquim e lápis de cor sobre papel. (21 anos)
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diretamente afetado por este. De acordo com a autora, a mera constatação dessa influência
não é o suficiente para dar conta dos fenômenos criativos, é necessário entender como o
tempo e espaço passam a pertencer a obra. (SALLES, 2011)
Além desse dialogismo consigo, o processo de criação também se inclina ao outro.
Por carregar em si as singularidades de um projeto poético, a obra afeta o seu contexto, por
meio da comunicação com seus contemporâneos, e também antepassados e futuros
descendentes. Ao ser recebida pelo outro, a obra se desdobra em possibilidades. Quando se
fala em arte como ato comunicativo, é dito que a obra precisa de um receptor. (SALLES,
2011)
Ao buscar se adaptar a um público consumidor e ao mercado, a artista pode se deparar
com limites e com a necessidade de fazer adaptações, novos direcionamentos. “O artista não
cumpre sozinho o ato da criação”. (SALLES, 2011. p.54) A criação é uma relação uma
influência mútua entre quem cria e quem recebe.
Imagem 26. Sorriso amarelo. 2020. Lápis grafite, lápis de cor e pastel. Da série “The smiling hour”. (25 anos)
Imagem 27. Coração bravo. 2021. Lápis de cor, hidrocor e pastel sobre papel. (26 anos)
Vejo que toda minha criação artística carrega em si um conflito mercadológico. Por
um lado, existe o desenho S/N (2016, p. 49), que busca pertencer, se adaptar a uma estética
externa. Fui fortemente influenciada pela internet e sites como Tumblr, um blog muito
utilizado durante a minha adolescência. Por outro, Coração Bravo (2021) que busca se
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aproximar da minha própria identidade. E que, ainda sim, faz também uma tentativa de se
aproximar do mercado, por meio de um descolamento. Ninguém está imune.
O estilo como objeto estático e reconhecível já foi um tema de muita importância,
principalmente nos anos da adolescência. Sentia que precisava me definir e me aprimorar até
que aquele estilo fosse o “meu”. Então havia sempre um dilema: Sou óbvia ou subjetiva?
Superficial ou profunda? Séria ou engraçada? Sou produto ou processo? Até que desencanei.
E foi nesse movimento, na oscilação entre uma coisa e outra, que me encontrei. Sou diversa.
55
Imagem 28. Words. 2022. Lápis grafite sobre papel.
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CAPÍTULO 3. A PALAVRA
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Imagem 29. Escolar estudar que é bom. 2002. Lápis grafite sobre papel. (7 anos)
Imagem 30. Escolar estudar que é bom nº2. 2002. Lápis grafite sobre papel. (7 anos)
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Depois da fase inicial de ondinhas e garatujas, lembro-me de começar a fazer escolhas
conscientes no desenho. De me esforçar para desenhar um olho igual ao outro, por exemplo.
Comecei a conquistar um equilíbrio motor e perceptivo que me permitia desenhar
minimamente aquilo que eu imaginava. E ainda, para tentar de novo quando não conseguisse.
Por volta dos 6 anos de idade, em consequência da alfabetização, as letras começaram a ter
curvas elaboradas e também um significado: passam a ocupar no desenho um lugar
decorativo e descritivo.
Em Escolar estudar que é bom (2002) tem-se um desenho em grafite sobre papel de
duas crianças no corredor de sala de aulas de uma escola. Além das pessoas e objetos
desenhados, chama a atenção a quantidade de palavras escritas.
A palavra aparece na placa “escolar estudar que é bom” e nas portas, indicando “1ª
série” e “2ª série”. Aparecem até mesmo nas luzes que pendem do teto, anunciando “luz”.
Observo que nos casos da placa, da porta e também da roupa da criança (que só percebi mais
tarde!), são frases comuns de estarem gravadas em uma superfície, e de existir no ambiente
escolar, diferentemente do que acontece com a luz, por exemplo. Aqui, a palavra parece
querer descrever aquilo que o desenho não foi suficiente em representar.
No verso da folha de escolar estudar que é bom tem-se ainda outro desenho, de tema
similar. Parece narrar uma história, assim como os gibis que eu lia. No desenho aparecem
várias mini-cenas de partes diferentes de uma nova escola. A folha está dividida em quatro
quadrantes. No quadrante superior esquerdo, está desenhada uma escola. No topo, alguém
toca o sino e lemos: Tim Tim, é chegada a hora da aula. Próximo dali, duas motos parecem
estar chegando, uma com duas meninas, outra com um menino, assim identificados
nominalmente. O quadrante ao lado está vazio.
No quadrante inferior esquerdo temos um grande espaço em branco e na margem
inferior, um corredor de portas das salas de aula e pessoinhas de palito interagem; No
quadrante inferior direito essa cena parece ganhar um zoom: Vemos uma aluna conversar com
a professora Aqui, os objetos e também as personagens ganham características físicas mais
bem definidas, o que contribui para a ilusão ótica de aproximação e construção de uma
narrativa.
Essa característica de contação de histórias, de tirinha etc. vai aparecer no meu
desenho com frequência. Vez por outra recorro a esse formato quando é conveniente. Cada
narrativa pede uma estrutura. Se na infância as cenas funcionam como estáticos de um
mesmo momento em cômodos diferentes de uma casa, ao decorrer do tempo, o desenho
começa a pedir uma sequência temporal e vem à percepção que, para uma história fazer
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sentido, os elementos devem está bem distribuídos na página, ou seja, a composição passa a
ser um elemento muito importante da linguagem visual.
Em As melhores coisas (2014) têm-se uma sequência de afeições: O blusão vermelho,
o incenso do cheiro, a mão e o cabelo no travesseiro. Aqui as palavras chamam atenção: por
vezes assumem curvas sinuosas, outras se comportam em fôrma. Nesse desenho, materializei
não somente as paixões, mas também o desejo de transformar uma música de Arnaldo
Antunes em desenho, e de experimentar uma técnica que admirava: nanquim e aquarela.
Aqui foi o primeiro experimento usando aquarela, por meio do lápis aquarelável.
Experimentei poucas vezes e logo abandonei, por simplesmente não me identificar com seu
ritmo, seus resultados.
As Punks amam? (2018) mostra outra experiência com o quadrinho, realizada quatro
anos mais tarde. Aqui, o desenho se constrói em guache e papel grafite sobre uma folha A4
avulsa. É possível perceber que no período de quatro anos entre um desenho e outro houve
um amadurecimento quanto à noção de uso do espaço em função da construção da narrativa.
O desenho ganha mais detalhes e a palavra ganha corpo.
Imagem 31. As melhores coisas. 2014. Nanquim e lápis aquarelável sobre papel. (19 anos)
Imagem 32. As punks amam? 2018. Lápis grafite e tinta guache. (23 anos)
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Outro momento em que o quadrinho ganhou força foi em “Tragicomics”, uma curta
série de 10 desenhos que fiz como exercício da disciplina de Desenho III - Tópicos especiais
em desenho, ministrada pelo profº Rodrigo Born. A ideia da série surgiu diante da
necessidade de explorar o estilo, que desde a infância me interessava. Estabeleci um
cronograma para criar um quadrinho por semana e assim ter o tempo como um parâmetro
para minha produção.
Os Tragicomics, seriam cômicos se não fossem trágicos: Narram os altos e baixos da
existência. Esses desenhos começaram com o formato tradicional de tirinha e foram se
construindo e reconstruindo em torno deste eixo, até que assumiram um formato 1:1, por ali
ficou até que morreu. Esse exercício desafiou minha habilidade de desenho e me ensinou a
ter mais disciplina na prática artística. Tive que passar muito desenho a limpo e correr contra
os prazos.
Imagem 33. Tragicomics #1. 2021. Lápis grafite sobre papel. (21 anos)
Imagem 34. Tragicomics #10. 2021. Nanquim sobre papel. (21 anos)
Imagem 35. Tragicomics #3. 2021. GIF. (21 anos)
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A escola teve um importante papel na minha construção como indivíduo é claro, mas
também na construção de um imaginário. A vida na escola alimentou minhas ideias e
frequentemente aparece representada nos desenhos infantis. Existe uma série de desenhos
por volta dos 7-8 anos de idade que ilustram cenas do cotidiano escolar. É o que acontece, por
exemplo, em Escolar estudar que é bom e em Passeio da 3ª série (2002). De acordo com
Vygotsky “qualquer ato imaginativo se compõe sempre de elementos tomados da realidade e
extraídos da experiência humana pregressa.” (VYGOTSKY, 2014. p.10)
Quando estava estudando sobre processo criativo na universidade, fui apresentada a
Vygotsky por meio de um livro sobre criatividade na infância, e adentra as discussões sobre a
transição do desenho para a palavra. O autor destaca que é principalmente na adolescência
onde acontece uma maior aproximação do universo das letrinhas. Vygotsky diz ainda que [se]
não somos estimulados a desenvolver nossa habilidade de desenho, abandonamos justo nessa
fase. Isto pode ser compreendido sobre a ótica de que, o processo de desenvolvimento
progride até a puberdade e, depois disso, diminui, comprometendo a habilidade de aprender
uma nova linguagem. (COHN, 2012)
Imagem 36. Passeio da 3ª série. 2002. Lápis grafite e caneta esferográfica sobre papel. (7 anos).
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Foi exatamente na adolescência que comecei a ouvir atentamente as músicas, decorar
palavra por palavra. Comprei livros, escrevi poesias, aprendi inglês. Tudo isso porque a
curiosidade pela palavra foi crescendo e crescendo dentro de mim, e também porque achava
cool, claro. Havia uma aura de jovem descolada em torno desses hábitos. O fato é: imergir
nessas produções contribuiu para a construção de um imaginário em torno do alfabeto.
O que gosto é que a palavra possibilita brincadeiras, gracinhas e também composição.
Quando percebi isso comecei então a me divertir. Misturei sílabas em palavras, organizei em
uma oração. Passei a enxergar a frase como um cálculo matemático que, enquanto escrevo,
tento solucionar. Sem resposta exata, com margem de erro, relativo como o tempo.
Aos poucos comecei a compreender a palavra como imagem e ainda, como desenho.
Foi por volta de 2018, aos 23 anos, que a palavra apareceu como protagonista nas produções.
Ela, que ocupava o lugar de acompanhante - uma legenda, uma fala de personagem - passa a
chamar atenção e roubar a cena. Bebi do delicioso suco das brasileiras Arnaldo Antunes,
Vania Mignone, Leonilson, do poema processo, da arte-veículo, dos jornais, dos posters, dos
livros… Eis que a palavra cria vida e cresce, diminui, cursiva, discursiva, se espalha por toda
folha, ocupa tudo, engole as margens. Fala por si só.
O ano de 2018 foi um ano politicamente difícil no Brasil. Fortes tensões eleitorais. A
extrema-direita se promoveu com uma campanha sem diálogo, com um discurso mentiroso e
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assustadoramente conservador que acredita que a violência é a solução. Violência contra a
gente (nós mesmas!), os animais, a natureza, ou simplesmente tudo aquilo que fazemos parte.
Que triste.
Violência essa destilada em nome do poder e da “família tradicional brasileira” - um
ideal que surgiu revelando um povo excludente e preconceituoso. Enfim, todo um discurso
sem pé nem cabeça, que alimenta o ódio de classes em um país que vive os resultados da
colonização, da escravidão, do massacre aos indígenas e que, em decorrência disso, mata
diariamente índio, preto, pobre, mulher e lgbtqia+. Matar é uma maneira violenta de silenciar
um discurso.
Segundo Morin, o pensamento simples é aquele que não estabelece diálogo, que tem a
ambição de controlar e dominar o real. É nesse lugar que o autor ressalta a necessidade de um
pensamento complexo, que se propõe a interagir, dialogar e negociar com a realidade. Pois,
aquele que, por ventura, não é capaz de dialogar, também não é capaz de estabelecer trocas
com os outros. Em oposição ao diálogo, se situa a violência e a censura, que não deixam
espaço para discussões. Segundo Gisele Leite (2006):
É nesse contexto que, em Eduque com Diálogo (2018), a palavra ganha força
discursiva nas produções, se posicionando politicamente contra um governo autoritário. O
trabalho surge como uma isogravura que mais tarde ganhará várias formas. Virou colagem
digital, lambe-lambe e adesivo. A proposta era mesmo espalhar a mensagem por aí.
O trabalho foi desenvolvido na disciplina de gravura, em uma época que estudava
fortemente o trabalho de artivistas. De modo geral, me interessava bastante a ideia de uma
arte política que circula por aí, como fez Paulo Bruscky com seus anúncios de jornal, cartas e
cartazes; e também Graziela Kunsch com seu trabalho “Tarifa Zero”, em que a propôs ao
município de São Paulo a criação de uma linha de ônibus gratuita para a 31ª Bienal de São
Paulo.
Foi nesse desgoverno caótico que também elaborei o zine “Obrigada, mãezinha”
(2019). Por volta dessa época as políticas de destruição se intensificaram. Órgãos de
proteção ao meio ambiente eram cada vez mais sucateados. O avanço do agronegócio.
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Desmatamento. Massacres. Enfim. Tudo em poucas palavras para não ficar muito
angustiante.
Imagem 38. Eduque com Diálogo. 2018. Adesivo em vinil. (23 anos)
Imagem 39. Eduque com Diálogo. 2018. Isogravura sobre papel jornal. (23 anos)
Imagem 40. Eduque com Diálogo. 2018. Lambe-lambe. (23 anos)
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Em paralelo a isso, crescia em progressão geométrica minha relação com a natureza,
passei a exaltar nossas diferenças e perceber tudo que somos em comum. Recebi um
chamado e atendi. Nos conectamos. É como se as imagens viessem até mim e eu fosse atrás
das imagens. É como se toda rede de relações fosse ativada e o cérebro ficasse todo a brilhar,
como um céu estrelado.
Até que, como parte integrante da cadeira de Projeto Gráfico, foi pedido que
elaborássemos uma espécie de livro de artista. Eis que decidi fazer um zine. Para isso, peguei
um texto que havia escrito, desenhos, recortes de revistas e escaneei tudo, depois editei.
Imprimi frente-e-verso e pronto. Nasceu um zine. Em “obrigada, mãezinha” a palavra
aparece contando uma narrativa. Deriva da busca de estabelecer diálogo entre um texto
previamente escrito, desenhos e recortes que carregava comigo.
Li isso por aí. Vou verificar as fontes e volto aqui com informações.
Eu nem sequer lembrava que tinha anotado essa frase. <<A linguagem é uma
tecnologia>> Mas, quando de súbito a encontrei escrita no caderno, meio a tantas e tantas
outras palavras, fez completamente sentido. Lembrei-me do texto que havia lido sobre o
assunto. A tecnologia é, em sua definição, um conjunto de técnicas, métodos e instrumentos
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que buscam uma solução para a vida cotidiana. Abrange, portanto, desde o uso da linguagem,
passando pela invenção da lança, até os satélites enviados ao espaço. (CAPRA, 2009)
Lembrei também da obra O grande Rio de Leonilson. Leonilson gostava de desenhar
pontes. Seu desenho era de linha simples e emoção profunda. Há quem enxergue as pontes
como um elemento de ligação, união entre duas partes: comunicação. Falar e ser ouvido, ser
compreendido. Enviar uma mensagem e ela ser recebida, visualizada e respondida. Redes
sociais, internet wi-fi: A tecnologia se propõe a facilitar a comunicação.
Imagem 43. Does it enlighten my spirit? 2022. Grafite e papel seda sobre papel. Diário gráfico. (27 anos)
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Toda reflexão, inclusive a que se faz sobre os fundamentos do conhecer humano,
ocorre necessariamente na linguagem, que é nossa maneira particular de ser
humanos e estar no fazer humano. (MATURANA E VARELA, 2021. p. 32)
Seriam aqueles que não sabem dialogar, seres que não absorvem? Mais propensos a se
extinguir por serem incapazes de realizar trocas? De se nutrir de diversidade?
Diário Gráfico
While I write, I am not the ‘other’ but the self, not the object but the subject. I
become the describer and not the described. I become the author and the authority
on my own history. I become the absolute opposition of what the colonial project
has predetermined. I become me. (KILOMBA, 2016)
Em tradução livre do inglês.: Enquanto escrevo, não sou a outra, mas o eu, não o objeto, mas o assunto. Eu me
torno a escritora e não a descrita. Eu me torno a autora e a autoridade na minha própria história. Eu me torno a
oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou. Eu me torno.
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Os diários revelam uma história ao mesmo tempo que individual, também coletiva.
Como os registros do francês Jean-Baptiste Debret que narram a história do Brasil colonial,
escravocrata sob a perspectiva de um colonizador. Que imagem do Brasil foi exportada?...
Usei diários gráficos durante grande parte de minha vida, mas só tomei
conhecimento do termo ao ingressar na universidade. O termo remete ao registro inadiável e
cotidiano de escritos, desenhos e pensamentos em geral. O diário gráfico tem uma
característica que combina com o desenho: Ambos são rápidos. São uma ideia que vem e
deseja se concretizar imediatamente.
Imagem 44. Quero criar mas não sei o que. Grafite, lápis de cor, pastel e recorte sobre papel. 2021. Diário
gráfico (lado direito). 26 anos.
Imagem 45. Já era de se esperar. Grafite e recorte sobre papel. 2021. Diário gráfico (lado esquerdo). 26 anos.
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subjetividade e também para registros ocasionais, despretensiosos, mas que de
alguma forma funcionam como marcadores interpessoais e inter-temporais.
(BRASIL e GUARALDO , 2020)
As autoras ainda chamam atenção para o uso do termo “gráfico”, que tem suas
origens no grego graphein, ou o ato de inscrever, gravar, deixar marcas. Podendo significar
assim, tanto desenhar ou escrever. É como se o termo habitasse a transição de uma ação para
outra, morasse na possibilidade de se transformar. Afinal, o mesmo gesto que imprime o
desenho, imprime também a palavra.
Não é somente o gesto que imprime. O termo “gráfico” abarca uma série de práticas
artísticas, como a produção de peças serigráficas, carimbos, adesivos, tickets etc. Diante
disso, é que se reafirma a compreensão do diário gráfico como um gênero que vai além dos
rascunhos feitos à mão, e engloba uma série de possibilidades visuais e textuais, de registros
pessoais e temporais.
Na infância tinha grandes cadernos de desenho A4 de folha muito fina. Além disso,
desenhava em folhas de ofício e colecionava em pastas. Lembro das tardes ensolaradas e
infantis, em que me debruçava sobre os papéis e imergia. Enquanto os lápis, com cheiro de
madeira, se espalhavam por toda mesa. A memória é tão bonita.
Fui crescendo e desenhava em papéis soltos, cadernos de escola, até que finalmente
encontrei o sketchbook ou mais especificamente, caderno sem pauta (com folha amarelinha,
de preferência). Esse formato foi muito reconfortante durante os anos da adolescência e,
embora não fosse familiarizada com o termo “diário gráfico” era realmente assim que o
utilizava. Esses diários foram fundamentais não só para desenvolver as habilidades artísticas,
mas também para lidar com os sentimentos que se tornavam mais intensos, profundos e
confusos. Para Cecília Salles, os desenhos de criação agem como uma forma de diálogo
interno e nesse sentido, ajuda a processar as informações que pairam na imaginação.
Embora os diários impliquem em um sentido de espontaneidade na criação, quanto
mais apego eu desenvolvia pelo caderno, mais perfeito queria que fossem suas páginas. Cada
folha do caderno passava a fazer parte dele como elementos de uma composição. Isso levava
muitas vezes a um excesso de cautela e ao abandono da verdadeira intenção do diário. Diante
disso, muitos desenhos foram abandonados, arrancados, riscados, desconsiderados.
Desenhar é divertido, mas também desafiador. Não é sempre que o desenho brota
espontâneo. E ainda que brote, é preciso esforço para alcançar o resultado desejado. Às vezes
abria o caderno e não sabia o que desenhar. Ou até mesmo, sabia mas sentia uma espécie de
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medo de agir, antecipando resultados tenebrosos. Até os dias de hoje, vez por outra, me
deparo com ele: o medo de criar.
Imagem 46. 21/10/20. 2020. Lápis grafite e papelão sobre papel. (25 anos)
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CAPÍTULO 4. O ERRO
Uma vez, na quarta-série do ensino fundamental, que hoje seria o quinto ano, lembro
que todos os alunos estavam desenhando suas casinhas com macieiras e pessoinhas e eu
lembro de estar desenhando justo uma pessoinha quando fui corrigida pela professora “você
deve colocar um chão porque pessoas não flutuam”. Essa observação me machucou porque
eu sabia que uma pessoinha não precisava de um chão para se aterrar, e ainda sem entender
teoricamente nada sobre nada, e portanto, sabendo de tudo, entendi que uma linha horizontal
estragaria todo o desenho.
Não sei o que aconteceu o resto desse dia mas o fato é que, apesar disso, continuei a
desenhar e aqui estou. Acredito fielmente que continuei porque era completamente
apaixonada pelo desenho e recebi incentivos e elogios o suficiente para nunca desistir.
Superei o “período de opressão” com sucesso. Descrito por Davis & Gardner, esse período
acontece por volta dos 11-14 anos de idade, quando a progressão das habilidades reduzem seu
ritmo abruptamente caso não haja interesse ou motivação ao desenvolvimento destas.
(COHN, 2012)
No desenho I.D.C. (2007), de quando tinha 12 anos, por exemplo, está impresso um
tempo em que começava a desenhar com certo esforço em busca de manter minha habilidade.
Nele, aparece representado um ser com um vestuário que se assemelha aos povos egípcios.
Ao seu lado, uma inscrição. Um código alfabético que hoje não consigo decifrar muito bem.
Formam algo como “(Nome indecifrável) nosso querido imperador”. Existe imperador no
Egito? Ou são os chamados Faraós? Explorava curiosa novos estilos, enxergava que ainda
havia potencial em criar. O que eu queria criar? Personagens? Histórias? O desenho constrói
um mistério.
Ainda na mesma folha avulsa e sujismunda, surge um clássico desenho de super
herói com traços de desenho japonês: a expressão na testa e o cabelo espetado para cima,
como o Goku. Lembro de desenhar nessa época personagens de olhos grandes com referência
da famosa família Os Simpsons. Estava reproduzindo o que via na tevê na expectativa de me
encontrar. Repeti esse procedimento muitas vezes durante a vida.
Aqueles que continuam a desenhar frequentemente são tidos como talentosos, algo
como um dom natural e divino. É comum, por exemplo, em uma turma de adolescentes
72
existir Aquele Que Desenha, a quem são atribuídas todas funções artísticas. Digo com
propriedade no assunto: tive que desenhar em muitas cartolinas. A verdade é que todo
mundo que desenha sabe que desenhar leva tempo e dedicação; É uma habilidade como todas
as outras.
Embora tudo isso possa parecer somente questão de gosto ou predisposição, o
desenvolvimento da habilidade do desenho também está fortemente ligada à cultura do lugar
em que se vive. Cohn (2012) chama atenção para o desenvolvimento contínuo da habilidade
de desenho das crianças japonesas que costumam reproduzir desenhos de quadrinhos.
Observo a influência dessa realidade em colegas e alunas que deram início ou continuidade à
prática do desenho por meio da cópia de personagens dos quadrinhos japoneses.
Imagem 47. I.D.C. 2007. Lápis grafite sobre papel. (12 anos)
73
momento em que se institui um ensino de arte no Brasil. Esse momento é crucial pois
evidencia os conflitos culturais do Brasil como país colonizado.
A colonização é um processo muito mais que territorial, é cultural. É um processo
incisivo de dominação de terras, povos e pensamentos. Sendo assim, é natural concluir que a
colonização mudou nossa maneira de ver e se relacionar com o mundo.
Quando o ensino de arte foi institucionalizado no Brasil, de certo, já existia arte no
país. A questão é que toda noção de Arte, com “A” maiúsculo, veio em grandes embarcações,
atravessou o oceano e chegou até aqui se impondo. Os homens vieram com seus cadernos de
desenho registrar os achados do país e exportaram uma imagem distorcida do Brasil. Além
disso, vieram também com seus modos de fazer e um novo parâmetro do que é a Arte. A
Arte é um sistema.
As primeiras escolas de arte no Brasil chegaram com a Missão Francesa, e nessa
época era comum o desenho de floreios e paisagens européias. Embora tivéssemos lindos
coqueiros e um mar esverdeado, era comum ver pinturas de pinheiros, paisagens cinzentas,
corpos brancos e natureza-morta. Criou-se um ideal artístico e humano baseado em
concepções eurocêntricas e renascentistas. Não que essas sejam “erradas”, mas não são
únicas. São frutos de uma experiência com a vida e a natureza diferente da vida até então
experimentada no Brasil.
O ideal de beleza por muito tempo foi associado à perfeição. Penso que esse é um dos
lugares de onde deriva a crença que a habilidade do desenho caminha em um sentido linear,
do disforme ao realismo. Lugar que almeja a perfeição. O rosto perfeito, o corpo perfeito, o
desenho perfeito. Embora o desenho realista tenha perdido sua força com o advento da arte
moderna e da fotografia, ainda assim reina no imaginário comum como a forma certa de
desenhar.
Em consequência disso, e da supervalorização do “dom” artístico e desvalorização
dos processos de ensino artístico, deriva a ideia de que o desenho da criança é despido de
valor. Essas crenças são evidenciadas em falas que ouvimos e reproduzimos rotineiramente
como “eu não sei desenhar” e“até uma criança faria isso”. E sim, quando digo isso levo em
consideração que a habilidade do desenho se aprimora, o sistema motor se afina ao decorrer
74
do tempo. Entretanto, o que quero dizer é que desenhar bem não é somente sobre o que se
aproxima do perfeito, mas aquilo que é suficiente, o que supre as necessidades vitais.
Enquanto escrevo sobre esse assunto, começo a achar um tema batido, que deveria ser
óbvio, mas não é. Lembro-me da sala de aula e de como os alunos sofrem ao ter que
desenhar. É como se fosse uma condenação. Lembro-me de mim e das inúmeras vezes que
me digo que não sou capaz. É comum que no percurso criativo o artista se depare com o erro,
75
com o bloqueio criativo ou até mesmo que pare de desenhar, abandone a prática de vez e
afirme:
- isto não é pra mim!
Isto porque o acaso, o erro e o salto para territórios desconhecidos da linguagem são
elementos do processo de criação que aparecem com bastante frequência, desencadeando
frustrações naquele que está criando. Entretanto, esses elementos possuem um papel
fundamental no processo criativo que frequentemente são ignorados e desvalorizados no
processo de ensino-aprendizagem de arte. Ainda mais profundamente, a ideia do que é o erro
na criação artística é baseada em parâmetros culturais de perfeição.
Nos últimos anos artistas como Helena Obersteiner e Helen Fernandes (conhecida
como Malfeitona) têm chamado atenção pelo seu jeito feio de desenhar. As duas artistas
abrem mão das proporções e do traço perfeito para criar, mas possuem um forte domínio de
composição, conteúdo e também da própria habilidade do desenho, o que provoca resultados
muito interessantes.
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Sobre a relação com o erro, Helena Obersteiner pontua que constrói a obra a partir de
suas falhas, do percurso de descobertas. A artista não faz rascunhos. É como se montasse um
filme em uma mesa de edição, sem storyboard. Sobre o tema, escreve:
Também chama atenção o trabalho de Céu, uma artista de 9 anos de idade que
consegue dar forma a desenhos sensíveis, engraçados e profundos com sua percepção e traço
infantil. O desenho de Céu é de alguém que está tendo os primeiros contatos com o desenho e
com a experiência da vida, e seu traço resulta, além das escolhas da artista, desse primeiro
processo de aprendizado. A irregularidade do traço de Céu carrega características da sua
maturidade motora e emocional, e com isso, constrói uma poética ao mesmo tempo sensível
quanto potente.
77
A irregularidade do traço pode ser compreendida como potência da obra. Desenhar
torto não significa desenhar ruim, é um reflexo da habilidade perceptiva, motora, ou
simplesmente uma escolha artística. O processo de criação é um caminho de escolhas,
dribles, superações, de resolução de problemas. De modo que, as decisões constroem as
camadas da obra. O processo dá textura.
Caos e Cosmos
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Embora seja possível ter um objetivo estético e traçar uma estratégia para alcançá-lo,
são as surpresas e obstáculos que aparecem no percurso da criação que vão direcionar a obra.
São as tendências da artista que vão guiá-la pelas escolhas de materiais e técnicas para driblar
os erros e acasos. A incerteza é o lugar da onde surge a hipótese, experimentação e
descobertas. (SALLES, 2016)
Erro/Acaso <--> Crise <--> Incerteza <--> Hipótese <--> Experimentação <--> Descobertas
Imagem 51. Universo. Lápis grafite sobre papel. 2020. (25 anos)
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era regra, claro! Haviam sempre aquelas que chegavam com seus cadernos para mostrar tudo
que tinham desenhado nos últimos dias.
Mas as que não queriam desenhar… aquilo mexia comigo. Toda reunião dos projetos
discutíamos maneiras de fazer com que, principalmente, adolescentes se sentissem à vontade
para criar. As crianças eram mais libertas nesse sentido, embora houvesse sim uma autocrítica
antecipando o julgamento externo. Insegurança, incerteza. Normal. Todas temos.
Simples assim, fui mordida por um bicho, uma pergunta-norteadora: Como mediar a
relação entre uma aluna, o acaso e erro na produção criativa?
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O erro e o acaso, e muito mais profundamente, a incerteza, são elementos
fundamentais do processo criativo e devem ser entendidos como tal. Uma obra não se
constrói magicamente de um dia para o outro, surge no processo de criação, nos nós das
interações entre passado e futuro. (SALLES, 2016)
Quando as alunas da Residência Pedagógica nos mostravam seus desenhos, nós as
acolhíamos. Ficamos inúmeras vezes deslumbradas com suas produções. Demonstramos
nossa curiosidade genuína pelas formas, cores e narrativas. Além disso, convidamos todas a
participarem daqueles momentos. E elas comentavam e comparavam os trabalhos umas das
outras. Floresciam ideias e devaneios.
Nem sempre é fácil fazer alguém se manifestar em sala de aula. Acredito que seja
uma questão cultural de esperar que a professora seja a detentora da informação, do
“gabarito”, e de ficar muito confortável na posição de receptora. Também ao redor disso
permeiam muitas questões de âmbito social, financeiro, estrutural. Às vezes uma aluna é uma
pessoa distante simplesmente porque sente fome, leva uma vida corrida e estuda em uma
escola caindo aos pedaços. Além disso, não tem acesso à internet e está passando por um ano
de isolamento social e ensino a distância. De acordo com Vygotsky:
Existem muitos motivos para não participar de uma aula ou não se interessar por arte
e percebo que não tenho domínio sobre todos eles, apenas tento driblar. Por isso,
simplesmente fiquei feliz que, diante de tantos obstáculos, elas estavam compartilhando suas
criações com mais frequência. As senhoras vão ter que acreditar no que digo pois não trago
dados contabilizados. É uma percepção minha e de minhas colegas de algo que aconteceu.
Da mesma maneira, devem existir inúmeras maneiras de lidar com o erro e o acaso,
mas diante da vivência em sala de aula, durante esta pesquisa e também da experiência
pessoal, ressalto duas que considero fundamentais:
Primeiro o estímulo. Incentivar a criação, experimentação e a percepção do conteúdo
da obra. É preciso fazer brotar a criatividade, a descoberta. Dar acesso a materiais, técnicas e
referências. Simplesmente criar um espaço gentil para dúvidas, respostas, comentários,
diálogos. Para trocas. Para criar é preciso estar em constante movimento, aberta ao mundo. É
preciso ouvir com atenção. Acolher.
81
“Todo ato de conhecer faz surgir um mundo.”
(MATURANA E VARELA, 2021. p. 31)
Criar livremente não significa pode fazer qualquer coisa, a qualquer momento, em
quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira. As delimitações são como as
margens de um rio pelo qual o indivíduo se aventura no desconhecido. Vemos o ser
livre como uma condição seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade
presente, embora talvez inconsciente, e a de valores individuais e sociais de um
tempo.” (OSTROWER, 1978 apud SALLES, 2011. p.69)
82
Imagem 53. Toi aussi tu détestes la vie? 2020. Caneta hidrocor sobre papel. (25 anos)
Foi então, por volta de 2019 que passei a incorporar os erros e acasos aos desenhos de
forma intencional e assumida. By-the-time I realized that… Quando eu percebi que era
possível fazer isso, me senti de fato, mais à vontade para criar, o limite parecia uma ideia
inovadora para meu próprio processo. O que só fui perceber mais tarde, depois de rever meus
83
desenhos da infância, é que já utilizava desse truque há muito tempo. Como visto em Cochilo
(2002).
Ao observar os desenhos da infância, passei a admirá-los. De acordo com Vygotsky,
um traço em comum a toda criação infantil é principalmente a imperfeição da sua atividade
criadora. Foi justamente essa imperfeição que me encantou. A sensação de estar aprendendo
algo novo. Incorporei o desenho curioso e experimental da criança, somado às percepções da
vida adulta e também uma certa maturidade em termos de técnicas e materiais. Essa
investigação se mostra no desenho Toi aussi tu détestes la vie? do ano de 2020.
(VYGOTSKY. 2016)
Esse processo de redescobrir o erro como uma ferramenta criativa perdura por meses
a frente (como em Lacrimosa e Paranoinhas), até que fica escancarado no desenho “A pose”
(2021). Nele, um corpo é representado em uma pose de yoga olhando para trás e mirando um
asterisco, uma estrela. Ao redor do corpo é possível ver uma mancha de grafite e a lembrança
das incessantes tentativas feitas para alcançar a forma desejada.
A consciência processual que precede “Toi aussi tu détestes la vie?” e “A pose” tem
início por volta do ano de 2019 e é marcado pela série intitulada “Natureza criadora”.
Natureza criadora é uma série de palavras desenhadas em nanquim sobre papel craft que
84
surge a partir de uma necessidade de desapegar do controle sobre a criação bem como, do
controle sobre todas as outras forças da natureza.
Por volta dessa época, estava cansada da maneira que vinha produzindo nos últimos
meses e resolvi fazer algo diferente, a começar pelo formato e material. Peguei enormes
folhas de papel craft, tinta nanquim e um pincel velho e duro. Estava desejando escrever uma
combinação de palavras que não saía da minha cabeça.
Coloquei a folha no chão, aceitei que minhas gatinhas corriam e se jogavam em cima,
escorregando pelo piso de azulejo. Então, lá do alto de meus 1,54m de altura, aceitei também
que as letras seriam irregulares, trêmulas e escrevi: A melhor maneira de lidar com o controle
é abrir mão. Escaneei, editei de forma a caber no instagram e repeti aquele processo outros
dias, com outras folhas e outras frases.
As obras A melhor maneira de lidar com o controle é abrir mão, Criar por criar e
Natureza Criadora, cada uma à sua maneira, carregam sobre si palavras em nanquim
espalhadas sobre papel craft. Os papel estão todos amassados porque foram dobrados, visto
que, no scanner só cabe folha A4. As palavras desafiam o sentido lógico da frase, os limites
do espaço, o erro e a rasura. Por vezes as letras engrossam, outras se afinam, falham e
pingam.
Esses trabalhos foram fundamentais para visualizar a obra de arte como um fenômeno
processual, composto por camadas de sentido. Camadas essas que podem ser de lápis, tinta,
de conceito ou de sujeira. A arte se constrói com o passar do tempo, com o amadurecimento
das ideias, durante a própria criação e é esse trajeto que me interessa. É no caminho de um
lugar pro outro onde habita a potência da criação.
Dito isto, para lidar com o erro e o acaso no ensino da arte, devemos entender a
incerteza como um fenômeno da experimentação criativa, em que uma nova informação
adentra a obra, fugindo do nosso controle. Esse processo é fundamental para vislumbrar
novas possibilidades de obra. Isto porque, a partir do momento que nos deparamos com um
obstáculo, somos levadas a fazer uma escolha consciente sobre o que nos serve, ou não - uma
estratégia.
Estratégia é ação. Para agir precisamos conhecer as possibilidades, estarmos dispostas
para o caminho. É vestir calças, usar botas, levar água e lanche. Estarmos preparadas para as
intempéries. Ter uma estratégia permite operar dentro da incerteza, ser inventiva diante do
obstáculo. Permite explorar as possibilidades da criação sem temer a feiura.
Estratégia é também não-ação. É silenciar, meditar, recolher, compreender.
85
Assim como a natureza cresce entortando seus caules, colorindo suas flores,
experimentando novas possibilidades, o que faz uma obra de arte interessante é seu contexto,
conteúdo, suas formas, cores, composição e não menos, o modo de fazê-la. Dito isto, não
acredito em desenhos feios, mas em obras vazias, bregas e desequilibradas. Acredito em
desenhos profundamente desconectados da potência criativa do sujeito.
86
Imagem 56. A melhor maneira de lidar com o controle é abrir mão. 2019. Nanquim sobre papel craft. (24 anos)
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Imagem 57. Criar por criar. 2019. Nanquim sobre papel craft. (24 anos)
88
Imagem 58. Natureza Criadora. ano. Nanquim sobre papel craft. (24 anos)
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CAPÍTULO 5. NATUREZA
Tulipa Ruiz
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Os animais, por outro lado, se organizam por meio de órgãos específicos, centros de
comando e hierarquias. Para Mancuso (2019), criamos o espelho do que somos - sujeito
indissociável do objeto - e por este motivo, projetamos o sentido de alteridade e
hierarquização em nosso mundo e em nossas criações, seja na arte, ciência, política ou
economia . Little do we know…
Embora com funções diferentes, em nosso organismo tudo opera na mesma
importância. É por esse e outros motivos que no livro “A vida secreta das árvores” Peter
Wohlleben diz que, se soubéssemos como as plantas e os animais são semelhantes,
aprenderíamos a respeitá-las. Stefano Mancuso vai além: mostra que deveríamos nos espelhar
nelas.
Em contraposição a esse pensamento ecossistêmico, a ideia antropocêntrica propõe
reduzir para poder dominar. É o que o escritor Edgar Morin define como “pensamento
simplificado”, e que foi abordado no “Capítulo 2. O corpo”. Pensamento este que coloca o
ser humano branco-cis-heterossexual no centro de tudo, promovendo um sentido de domínio
sobre as próprias pessoas e a natureza (plantas e animais).
Para o escritor, ambientalista, filósofo, poeta e indígena Ailton Krenak, a
hierarquização é um sintoma: estamos doentes de nosso próprio tempo. Tempo este
especialista em criar ausências do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da
experiência da vida. Essas lacunas amargam a vida, e é isso que aumenta a intolerância por
aqueles que são diferentes, vivem a vida e não se rendem. (KRENAK, 2020)
Em seu livro “A vontade Radical” Susan Sontag escreve sobre a diferente relação que
humanos e animais estabelecem com o mundo a partir da perspectiva esotérica de Böehme,
filósofo e místico luterano alemão. Segundo ele:
Lembro de uma fala de Jorge Menna Barreto na VIII Semana de Artes Visuais, em
que o artista usou o termo “monocultura de pensamento” em oposição ao que viria a ser a
proposta de seu trabalho Restauro - um restaurante à base de plantas que enaltece a
agrofloresta, a diversidade alimentar e o movimento sem terra. No contexto da obra, a
91
monocultura de pensamento seria como se referir a uma cultura que poda a diversidade e que
visa quantidade e lucro.
Tudo que se opõe à diversidade é um pensamento simplificante, que não dá conta da
pluralidade da existência. Ao enaltecer a variedade das cores, formas e sabores de plantas,
frutas e legumes, Menna Barreto mostra que toda natureza cresce em diversidade.
Diversidade que se refere não somente às florestas que são destruídas pelo agronegócio, mas
também à diversidade de ideias, pensamentos e personalidades. A diversidade de modos de
existir.
A diversidade é um elemento fundamental da existência e a ela está vinculada a
noção de autonomia do sujeito. A <<autonomia>> deriva do material contido em nossos
genes e também do acesso que temos à educação, linguagem, cultura e sociedade. De modo
que, quanto mais nos aproximamos de referências, mais próximas estamos de encontrar quem
nós somos profundamente. Segundo Edgar Morin, a autonomia é um processo muito
complexo de auto-organização. Isto porque acontece no caminho entre a integração e
desintegração, entre o caos e o cosmos. (MORIN, 2015)
A fala de Menna Barreto ecoou na minha cabeça. É uma comparação muito genuína a
forma como as sementes são plantadas nos campos agrícolas e em nossos pensamentos.
Penso na devastação da floresta amazônica e lembro que é esse o mesmo projeto político que
propõe formar sujeitos que não questionam, que não florescem, que não seguem seus
estímulos e não se espalham como enormes jiboias à meia-sombra.
92
enfrentam a fome, desnutrição, malária, pneumonia, verminoses e violência por parte dos
garimpeiros.
Não é de hoje que o território dos Yanomami é alvo de disputas e conflitos. Na
verdade, grande parte de nossa cultura foi construída em cima de uma narrativa de invasão de
terras indígenas. Narrativa esta que reverbera em nossos costumes e crenças. Pois, quando
estamos imersas em uma realidade, não conseguimos ver muito além dela. E, de repente,
podemos estar perpetuando uma convicção que nunca refletimos sobre, que não nos
acrescenta, que é vã. Ou ainda, que é violenta e leva ao genocídio de uma população.
Imagem 59. O indil. 2002. Lápis grafite sobre papel. Diário de artista. (7 anos)
93
existia grande estímulo ao senso crítico, ao desenvolvimento do potencial individual, à
liberdade e à diversidade.
Quando desenhei “O indil” (2002) não sei ao certo o que se passava pela minha
cabeça, mas de certo os indígenas não pareciam muito satisfeitos com a garota serelepe que
entra em cena. Neste desenho, pessoas adultas e crianças estão representadas como uma
comunidade: possuem vestes, rituais e brincadeiras próprias. Existe ainda uma figura central
como um Totem ou um Pajé.
Além das pessoas, o desenho traz o elemento da palavra, narrativa, dos hábitos e a
questão da natureza. De maneira geral, possui em seu conteúdo as tendências evidenciadas
aqui neste texto. Também possui uma forte horizontalidade, característica marcante dos
desenhos dessa época. Apesar disso, é um desenho dinâmico, com traços de ação de modo a
parecer que estamos assistindo uma cena em movimento. As tochas se justificam com a noite.
Crianças brincam.
94
ação, associar teoria com a prática; 3) aprender a conviver - aqui inclui trabalhar em coletivo,
conviver e respeitar com as diferenças e, por fim; 3) aprender a ser - estimular que todos
possam descobrir quem são, com a possibilidade de pensar de forma autônoma e crítica.
Imagem 60. Neurofloresta. 2021. Lápis grafite sobre papel. 2021. (26 anos)
De maneira prática, seria pensar o ensino da arte a partir de metodologias ativas, que
colocam o estudante no centro do processo de ensino-aprendizagem. Nesse contexto, cabe à
professora o papel de mediação das relações do sujeito com o meio e do conhecimento de si,
estimulando o desenvolvimento das potencialidades e ajudando diante das dificuldades.
Reconfigurar a metodologia de ensino, implica na necessidade de refletir sobre o
espaço como se fosse um papel, onde as relações são determinadas por linhas de força. Nesse
95
sentido, o ambiente da sala de aula deve ser pensado para as alunas interagirem, se
relacionarem e realizarem trocas. A organização e desorganização(!) da sala de aula é um
elemento fundamental para organizar o fluxo das interações, assim como em um organismo
vivo, orgânico.
Agir de acordo com os pilares da educação envolve, muito mais que conhecer, fazer,
conviver e ser de uma perspectiva do ambiente escolar ou unicamente da vida humana.
Abrange todo âmbito da existência. Envolve as florestas, os animais, os rios… Quando
estamos falando de educação é importante ter em mente que a construção e manutenção dos
saberes sociais se constitui em uma rede de interações, em que um ser depende do outro.
Em uma pesquisa recente (e premiada!), a bióloga Giovanna Collyer (UFSCar) mostra
que, de fato, a monocultura impacta o ecossistema. Collyer relata que os riachos que não
possuem florestas ao seu redor em detrimento das plantações de cana-de-açúcar, têm a
diversidade de espécies de animais aquáticos reduzidas significativamente. Quando
perguntada sobre o impacto dessa mudança para o ecossistema, a pesquisadora responde:
É exatamente essa rede de relações descritas por Giovanna Collyer que estamos
falando desde o Capítulo I deste texto. A aceitação do outro junto a nós, o respeito por todas
formas de vida que coexistem, é isso o que Maturana e Varela descreve como <<amor>> .
Para os autores, sem amor não há socialização e em consequência não há humanidade. Sobre
isso escrevem:
Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do outro, desde a competição até a
posse da verdade, passando pela certeza ideológica, destrói ou limita o
acontecimento do fenômeno social. Portanto, destrói também o ser humano porque
elimina o processo biológico que o gera. [...] Sem amor, sem aceitação do outro, não
há fenômeno social. (MATURANA E VARELA, 2021.p. 269)
A educação tem uma história de práticas violentas que não pode ser ignorada. Cresci
ouvindo histórias sobre como as alunas se ajoelhavam no milho e levavam palmatórias. Eu
mesma já fui violentada no ambiente escolar, discriminada. Aqui falo de violência na escola
mas também se educa em casa e na rua. Existem muitos tipos de violência e o efeito de todas
elas se perpetuam em nossa comunidade.
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Como discutido no “Capítulo 3. A palavra" violência não abre espaço para discussão,
e gera assim, seres incapazes de dialogar, de realizar trocas, de amar. É nessa perspectiva, que
podemos dizer que operar com metodologias de ensino que se baseiam na diversidade da
natureza, gera seres mais conscientes, potentes e criativos que atuam diretamente sobre o
fluxo das novas maneiras de pensar e se relacionar com o mundo e com outros seres.
O desenho “neurofloresta” do ano de 2021 surge em busca de investigar essa relação
ecossistêmica entre os processos de pensamento e aprendizagem e os processos biológicos
que ocorrem na natureza, especificamente nas florestas. Feito com lápis grafite sobre papel, o
centro da folha exibe três estruturas filamentosas que lembram axônios, uma em cima da
outra, em linhas tortas, curvas e que se desencontram. Do lado direito lê-se “neurofloresta”
em letras como que de uma criança na alfabetização, sublinhadas com uma ondinha.
Uma relação curiosa no que remete à educação e natureza, é que em estudos sobre os
benefícios da presença de plantas, seja em sala de aula, ou em centros de saúde, têm
resultados muito positivos. No que se remete ao âmbito da educação, esses resultados estão
relacionados a uma melhora no desempenho escolar de crianças com TDAH (Transtorno de
Déficit de Atenção) quando inseridas em salas de aula com vista para jardins. (MANCUSO,
2019)
Isto me leva de volta ao pensamento que as escolas ainda são muito tradicionais,
hierarquizadas quando deveriam funcionar como uma rede neuronal, complexa, interativa,
diversa, um lugar onde prolifera a criatividade. Existem muitas maneiras de fazer algo. É por
isso que a todo momento as flores crescem diferentes, um dia nunca é igual ao outro, nem
todo mundo aprende da mesma maneira, devemos respeitar a diversidade e manter as
florestas vivas.
É por esses motivos que me entristece quando o papel da arte dentro de uma
instituição de ensino é puramente decorativo, quando esta é uma área de conhecimento que
perpassa todas as outras; e também quando parece que falar em natureza é como se fosse um
tema para poucos, quando nos atravessa a vida.
Sob meu ponto de vista, a educação está vivendo um momento de transição gritante.
Os métodos de ensino tradicionais não são (e nunca foram) suficientes, e a adoção de práticas
inovadoras não é via de regra, acontece esporadicamente e encontra muitos obstáculos no
caminho. Às vezes as dificuldades estão na metodologia da escola, estrutura, falta de
recursos, equipe, pais, ou simplesmente na arte-educadora. Pode ser também o conjunto de
tudo.
97
No ano de 2020, a necessidade do Ensino a Distância foi um dos motivos que
escancarou a crise da educação. Essa modalidade de ensino levou ao alargamento das
discussões sobre o papel da professora e dos alunos em sala de aula, estremecendo as
estruturas tradicionais do ensino. Desde então, a relação educação-tecnologia e as
possibilidades de inovação no ensino têm sido amplamente experimentadas e difundidas.
A relação entre educação e tecnologia diz a respeito não somente do uso de
computadores, celulares e internet sala de aula, ou do ensino remoto. Em certo momento
desse texto, no capítulo da palavra, comento sobre a tecnologia ser uma ferramenta que se
propõe a facilitar a comunicação. Portanto, penso que o uso de tecnologias na educação fala
mais profundamente sobre os modos de fazê-la a fim de estabelecer diálogo. Radicalmente
ligados, a tecnologia deriva da arte. A arte. Processo criativo e, portanto, cognitivo, de
aprendizado. Nesse momento, de alguma forma, tudo começa a se relacionar.
É por isso que trago aqui a possibilidade de pensar o ensino, mais especificamente a
arte-educação a partir de suas relações rizomáticas, das organizações em redes. Pensar o
ensino-aprendizagem não como uma forma concreta, irrefutável, autoritária e violenta. Sim,
como uma floresta, que se ramifica diversa, que interage, aprende, cria, transforma.
Sobretudo, ama.
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Imagem 61. “O meio ambiente está de repente no interior dela”. 2022. Lápis grafite sobre papel. (27 anos)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando o dia virou noite, me deitei de frente para o mar, sobre a grama, coberta em
uma manta e fui envolvida gentilmente no céu de estrelas. Cintilavam com suavidade. Fiquei
observando por muito tempo até que percebi: Suas pontas se unem umas às outras. Formam
uma rede de conexões.
Naquele instante, se construiu diante de mim o passado, presente e futuro…tudo ao
mesmo tempo. Ali eu simplesmente sabia: a vida é isto. A vida é um complexo tecido de
relações, um emaranhado de fios, veias, raízes e interações invisíveis a olho nu. É uma
reação química, uma propriedade física, um fenômeno biológico. A vida é criação.
Entre um ponto brilhante e outro, o caminho da criação se estende… uma sucessão de
organização e desorganização, de acasos, erros e finalmente, descobertas. A criação acontece
mesmo é no processo. Uma ideia não nasce do nada, ela é gerada depois de muitas outras
ideias… O fim de uma obra marca o começo de outra. Nada é à toa.
Estamos inseridas em uma rede e é dessa organização que deriva o surgimento. A
criatividade não tem ponto fixo, flutua entre começos e fins, entre os nós das redes, entre as
mais diversas áreas do conhecimento. É um processo em constante movimento, que como
manda a lei da inércia, se parar, cai. Cessa.
Tudo está constantemente se transformando. Diante disso, investiguei as mudanças
que aconteceram no meu processo criativo desde criancinha até os anos de graduação.
Durante a pesquisa, foi possível perceber que essa constante transformação está relacionada
a um processo de criação de si, descrito como <autopoiese>.
Como organismos vivos, estamos constantemente criando e recriando a nós mesmas a
partir das relações que estabelecemos entre o meio em que vivemos, das nossas relações de
tempo/espaço. Criamos diante de algo, a partir da relação com algo. Criamos quando há
troca, diálogo, aprendizado e amor. Criamos porque somos impelidas a criar. A potência
criadora é uma capacidade inerente à mais profunda célula de todos os seres vivos. É uma
necessidade vital. Criamos para viver. Vivemos criando. E quando morremos, são criadas
outras coisas mais.
Com essa pesquisa, percebo que é no potencial inato e transformador da criação que
se reafirma a importância da pesquisa, apreciação e prática artística. Diante disso, a
100
necessidade que sinto de enfatizar o valor da criatividade e da arte nesse texto se revela como
reflexo direto de sua desvalorização em nossa comunidade. Embora tanto arte como a
criatividade permeiem todos os campos de conhecimento, são culturalmente consideradas
como segundo plano, um adereço, um luxo ou, para governos autoritários, uma ameaça. Foi o
que vi acontecer muito forte no Brasil de 2018-1022 com o desmonte do ministério da cultura
e dos órgãos de proteção aos povos originários e à natureza.
A arte é como a vida. Como tal, o processo de criação artística resulta da interação
entre fatores históricos, sociais, culturais e científicos de uma época, também dos princípios
éticos e estéticos do indivíduo. A obra de arte imprime em si as marcas de um tempo e
espaço. Registra as paixões, motivações, interesses, as tendências que guiam a artista durante
sua vida. A arte é o registro da cosmologia de um povo.
Criei muito durante toda minha vida sobre folhas avulsas e diários gráficos. Também
usei jornal, papelão, folha craft, computador, tudo que me pareceu interessante. Foi com o
traço do desenho que registrei, digeri e absorvi a vida. Desenhar é um processo que
acompanha as transformações do ser e contribui na construção do indivíduo. A esse processo
sensível agora me refiro como <grafias de si>, termo que foi sugerido pela professora Laís
Guaraldo durante esta pesquisa e se encaixou como uma luva.
Existem muitas maneiras de criar e todas elas são válidas. Desde que não machuque,
não violente, não domine. Afinal, censura é o contrário de criatividade, de liberdade para ser
diversa. Ser criativa presume se abrir a novas percepções, ainda que no objeto mais ordinário.
Compreende também respeitar todas as formas de vida, de não-vida, ser capaz de dialogar e
entrar em harmonia com a rede.
O processo criativo é feito de altos e baixos. O caos que antecede o cosmos. Numa
dessas, de repente, a folha em branco pode parece um buraco negro que suga toda capacidade
criativa, que puxa tão forte, a uma velocidade tão absurda, para um lugar tão distante, que o
corpo vai virando espaguete. “Espaguetização”. Assim se chama o fenômeno físico.
Olhando assim, criar assusta. Temos medo dos obstáculos, das escolhas que
precisamos fazer no caminho. Temos medo do que pode acontecer fora do nosso controle.
Temos medo sobretudo, do erro.
O erro é um elemento fundamental da vida. É a brecha de onde surge uma molécula
mutante ultra-resistente, uma tecnologia revolucionária. No processo criativo em artes, o erro
é o contato com aquilo que evitamos, com o diferente, estranho, novo, feio, torto. O erro é
como uma pergunta que movimenta e pede uma ação. Portanto, representa também a
101
possibilidade, a inauguração de múltiplas linhas do tempo. O erro é uma camada da obra, é
também seu conteúdo.
Compreender o papel do erro no processo criativo é fundamental para lidar com o
medo de criar na arte-educação. Durante a transição da infância para a adolescência, por
exemplo, é comum observar um <período de opressão> em que a criança está mais
propensa a abandonar a prática do desenho. Neste período, o senso crítico sofre forte
influência do meio, fazendo com que a criança pare de criar simplesmente porque considera
seu desenho feio ou porque ouviu que é.
O papel da arte-educação está na mediação das relações entre sujeito-meio-arte e
também na mediação da relação consigo, como indivíduo. A partir do momento que o erro é
compreendido como tal, e não somente como uma fatalidade, podemos enxergar as formas de
contorná-lo. Durante essa pesquisa e das experiências em sala de aula, foi possível identificar
duas maneiras de lidar com o erro na arte-educação: o estímulo e a estratégia.
O <estímulo> à criação artística está relacionado aos elogios, comentários e
reconhecimento de um trabalho artístico, é claro. Entretanto, compreende de forma mais
ampla, a criação de um espaço (no sentido imaterial) que acolhe a diversidade, que incentiva
a percepção e experimentação; é dar acesso a materiais, métodos e referenciais artísticos. Nas
palavras de Vygotsky:
O melhor estímulo para a criação artística infantil consiste em organizar a vida e o
contexto social das crianças de tal modo que criem a necessidade e a possibilidade
de criação infantil. (VYGOTSKY. 2014. p.80)
102
diversidade, o estímulo à autonomia e o desenvolvimento do potencial criativo de cada um.
Para isso, é necessário balançar as dinâmicas, reorganizar espaços. Desierarquizar.
Percebo que durante toda minha vida vaguei por entre as inúmeras possibilidades do
fazer artístico, algumas vezes mais livre, outras mais contidas. Sinto que sempre que estive
perto de alcançar um estilo, o abandonei. Me interessa o que é novo, não sobrevivo se
estática. Apesar disso, sempre perscruto os mesmos elementos.
É como se, cada nova obra derivasse da anterior. O desenho surge da curiosidade.
Cada criação desperta novas ideias e um novo motivo para continuar investigando a forma,
composição e cor. Não há começo, nem fim. Encerro portanto esse texto, para dar início a
tantos outros textos, desenhos e desenhos-textos.
Ainda preciso digerir as ideias que construí aqui e a partir delas, gerar novas e novas
formas, dar continuidade ao ciclo vida da vida e também morte. A partir dessa reflexão pude
enxergar o que me interessa de maneira nítida e percebi também que ainda existem muitos
mistérios que meus desenhos guardam de mim mesma.
Lembro de por vezes encontrar algum desenho e me surpreender: eu que fiz isso?
Como se outro estado de consciência me tornasse irreconhecível. Sim, fui eu que fiz, minhas
mãos e todo meu corpo… Minhas múltiplas possibilidades de existir.
A construção desse texto faz parte do meu processo criativo. Como tal, foi um
processo guiado por meus desenhos anteriores, minhas referências e o contexto histórico e
social em que vivo. Foi um processo de muita endorfina, descoberta, empolgação, mas
também de muita frustração, de erros. Foi um aprendizado. Sobretudo é a materialização de
um ímpeto criativo, um sonho. Um dia tudo aqui foi imaginação.
Estou, mais do que nunca, apaixonada pela pesquisa em arte-educação. Me sinto
simplesmente capaz, completa. Me sinto inspirada, motivada e cheia de ideias para ir adiante.
Me vejo escrevendo mais, levando isso a sério. Quero seguir na pesquisa, seguir criando.
Tenho ainda muitas ideias.
Me proponho continuar desenhando com tudo que sou. Sinto vontade de investigar
cada vez mais a palavra, a composição e a natureza. Também, o gesto. Quero desenhar
grande, pintar grande… e pequenininho também se me der vontade. Quero me permitir cada
dia mais no fazer artístico e quero crescer, como galhos de uma árvore de copa larga, indo em
toda direção, gerando frutos suculentos. Quero me lambuzar.
103
Imagem 62. Resposta ao exercício proposto pela profª Laís no primeiro semestre de Artes Visuais. Nanquim e
hidrocor sobre papel. 2017. (22 anos)
104
Aqui encerro um ciclo.
Para então começar outro…
105
PLANO DE ENSINO
1 Apresentação
106
perguntas norteadoras. As perguntas norteadoras vão contribuir em um sentido de
estruturar o pensamento escrito e também de compreender o próprio processo de criação.
Refletir e escrever sobre o próprio processo criativo pode ser entendido a partir da
ideia de escrita de si, amplamente discutida por Michel Foucault. A importância desta prática
se funda na ideia de que ao escrever sobre si mesmo, o indivíduo tem a possibilidade de
perceber, processar, transformar e ser transformado pelo mundo ao seu redor, construindo a si
mesmo como indivíduo.
As relações que o indivíduo estabelece com o meio afetam suas percepções e
comportamentos e, por isso, se demonstraram como um elemento fundamental do processo
de criação durante toda esta pesquisa, seja sob o olhar da filosofia, ou sob o olhar da ecologia,
educação e arte. Interagir e dialogar com o meio em que vivemos nos permite aprender, criar
e transformar.
Para além disto, a importância da artista escrever sobre si é um elemento fundamental
na sua trajetória profissional. Visto que compreender o próprio processo de criação e escrever
sobre este é necessário para submeter projetos a processos seletivos, editais de fomento à
cultura, etc. Na contemporaneidade, é exigido da artista ser pluri: Não somente aquela que
cria, mas também quem critica, divulga, precifica e custeia.
A oficina aconteceu online, por meio de troca de e-mails inspirado no formato de
newsletter - um boletim informativo enviado a uma base de inscritos. A diferença é que, aqui
propõe-se a retórica, o diálogo, a troca, o estabelecimento de uma rede. As participantes
podem e devem (!) responder os e-mails que receberam, para que a oficina siga seu curso.
Escolhi atuar aqui conscientemente com uma metodologia de ensino ativa, que coloca
o estudante no centro do processo de aprendizagem pois, é por meio das metodologias de
ensino ativas que podemos formar pessoas mais críticas, proativas e capazes de trabalhar de
modo colaborativo. Isso só é possível porque metodologias de ensino ativas exigem do
estudante certa maturidade e comprometimento para seguir adiante com os estudos, visto que
depende dele a materialização do conteúdo. Nessa visão do processo ensino-aprendizagem, a
professora atua como mediadora nas relações sujeito-mundo.
A cada semana foi enviado um e-mail/aula com uma proposta artística a uma rede de
contatos. O conteúdo do e-mail é constituído de texto, desenho e uma proposta artística, de
modo a introduzir os conteúdos abordados nesse trabalho de conclusão de curso, estimular a
escrita, leitura e a imaginação. Os conteúdos previstos para cada e-mail estão descritos no
plano de aulas. (Ver tabela 01, p. 110)
107
No período de uma semana que se estende entre e-mail e outro, inaugura-se o espaço
para devolutivas. A rede é ativada. Seus participantes devem enviar os textos criados, podem
conversar com colegas de maneira pública ou particular, discutir as produções, trocar elogios,
críticas, curiosidades e referências. De modo geral, devem alimentar a rede.
Me proponho a mediar as relações entre os indivíduos e o meio, comentando e
alimentando suas produções, e também propondo novas experimentações escritas. É
importante observar que o que será trabalhado nessa oficina é principalmente competência
artística de articulação de uma espécie de auto-curadoria e reflexão sobre si, que realizar-se-á
por meio do olhar para a produção de desenhos ao longo da vida; ou seja, não diz a respeito
da correção ortográfica e semântica de redação, mas de um exercício de criação.
As aulas foram elaboradas tomando como referência as ideias de Ana Mae Barbosa,
Cecilia Salles, Edgar Morin, Edith Derdyk, Fayga Ostrower, Maturana e Varela, Rosa
Iavelberg, Vygostky e demais autores e artistas que aparecem ao decorrer deste trabalho de
conclusão de curso, somado à autora da área de design gráfico, Ellen Lupton a quem recorri
durante a elaboração das aulas e à compreensão do diagrama como possibilidade de contar
narrativas em arte.
A escolha do e-mail como suporte se deu a partir de suas possibilidades e praticidade.
A plataforma funciona de forma bastante simples e assíncrona, permitindo que as alunas
foquem no tema de estudo e tenham tempo hábil de ler, observar, digerir e produzir sobre o
conteúdo em sua própria dinâmica de criação, abrir espaço para a introversão. Além disso,
torna o curso acessível da perspectiva dos vais-e-vens da vida, não interfere no deslocamento
e também não adiciona custos de transporte. É necessário, entretanto, acesso à internet pelo
menos 1x na semana.
Embora o acesso à internet, computadores e dispositivos móveis ainda não seja uma
realidade unânime no Brasil - um país que morre de fome - existem na cidade de Natal alguns
lugares onde é possível ter acesso à tecnologia e à informação. Lugares como a própria
UFRN e também o Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) contam com uma rede
de Wifi que pode ser acessada com o CPF. Além destes, existe a Biblioteca Câmara Cascudo
e também as principais pracinhas da cidade, como a Praça do Cruzeiro na Vila de Ponta
Negra ou a Área de Lazer do Conjunto Panatis. Aqui faço questão de destacar isso, pois
assim como os serviços públicos e de qualidade foram essenciais na minha vida e formação, é
também na vida de muitas pessoas por aí.
Além disso, o formato de rede de e-mails dialoga com as discussões sobre processo
criativo discutidas neste texto que colocam o processo criativo como um movimento
108
dinâmico, que se desenvolve nas relações, nas interconexões; que se visto à distância se
assemelha a uma galáxia, uma rede de estrelas. No espaço do e-mail, as artistas vão poder
compartilhar suas produções com todos ou para um grupo selecionado de pessoas; podem
promover trocas coletivas ou individuais com os integrantes da rede.
Ao final do curso, pretende-se que as alunas sejam capazes de estruturar o
pensamento escrito sob a forma de um texto sobre seu próprio processo criativo. O texto deve
refletir sobre as primeiras criações, as transformações, os elementos que se destacam, as
referências e as relações com o contexto histórico e com o mundo exterior. Pretende-se
sobretudo, a aproximação e desenvolvimento da prática escrita sobre processo de criação
daquela que cria.
Para avaliar os resultados obtidos com a oficina, foram feitas perguntas facultativas
no ato da inscrição que tateiam as motivações e expectativas dos participantes. A avaliação
também aconteceu de forma constante, tanto a respeito do desenvolvimento e dedicação das
alunas, quanto aos rumos da própria oficina, que está aberta a ouvir, se transformar e se
adaptar de acordo com as necessidades da turma.
Para encerrar o ciclo, propus que as alunas construíssem um texto com recortes das
produções de todas as aulas. A partir desse exercício, acredito que as participantes vão
materializar o processo criativo que têm sido construído desde a aula nº1. Além disso,
também lancei um formulário final, optativo, mas com perguntas que avaliam aspectos
individuais, coletivos, subjetivos e técnicos da aula, para que eu possa ser capaz de reavaliar
minha didática, e entrar em concordância com as reais necessidades da educação.
2 Plano de Aulas
109
Com intuito de visualizar o curso como um todo, diagramei os objetivos e as
perguntas norteadoras de cada aula na Tabela 01. Essa estrutura foi fundamental para me
guiar durante a elaboração das aulas, me resgatando sempre que me perdia no meio do
processo, como lâmpadas na pista de pouso.
Durante a graduação aprendi a fazer esse planejamento de maneiras diversificadas,
aqui adaptei esse formato à minha pesquisa e ao meu raciocínio. De toda maneira, gostaria de
evidenciar que na elaboração do conjunto de aulas levei em consideração os três pilares da
arte-educação: fazer, contextualizar e apreciar, propostos por Ana Mae Barbosa. Procurei
pulverizar essas três práticas nas aulas, de modo que uma complementasse a outra. Isto é
importante porque o movimento de aprendizado e criação acontece por associação entre
múltiplas áreas do conhecimento. Essa estrutura vai ser destrinchada no tópico 4 Sequência
Didática (p.120)
É importante notar que esse Plano de Aulas é uma base para algo que pode se
desdobrar de inúmeras maneiras. E que tem, portanto, em sua estrutura maleável a
possibilidade de se encurtar ou se expandir. Ficar leve ou denso. Pode ser adequado às
necessidades pedagógicas e assim proponho fazê-lo. Nas bases que alicerçam essa pesquisa,
pretendendo produzir um material didático atemporal que colabore com o processo de escrita
sobre processos criativos em artes visuais. .
PLANO DE AULAS
DATA AULA
1º INTRODUÇÃO
Apresentar o curso
Introduzir Conceitos
08/05
Trazer à luz da percepção a dinâmica do processo criativo
2º NASCIMENTO
110
artística
3º NUTRIÇÃO
4º DESENVOLVIMENTO
5º MORTE E RENASCIMENTO
6º CONSIDERAÇÕES FINAIS
111
Perguntas “Se meu desenho fosse uma linha, de onde veio? Para
norteadoras/Proposta onde ela estaria indo? ”
12/06 artística:
Unir as produções criadas nas aulas de forma a estruturar
um texto sobre o próprio processo criativo. Refletir e tirar
conclusões.
Tabela 01. Plano de Aulas da Oficina “Grafias de si”. 2023.
3 Relatório de aula
.
Fonte: Free Cloud Generator.
112
Os interesses da turma foram esquematizados em uma nuvem de palavras por meio do
site Free Cloud Generator. O resultado desse processo revelou que os interesses giravam, em
sua maioria, em torno da área de artes, reflexo direto do público-alvo do projeto. Outros
temas também se revelaram importantes, como a fotografia, literatura, música e memória.
Temas que os aproximaram da oficina e que os guiaram pelo percurso nesta.
A oficina foi divulgada nos grupos de artes visuais e da universidade do estado do Rio
Grande do Norte, bem como no instagram - meio que atraiu mais visibilidade e inscrições.
Para isso foram criadas duas imagens com as informações do curso, adaptadas ao formato
mais versátil de visualização na web (1:1).
A divulgação atingiu poucas pessoas, mas para minha surpresa, furou a bolha da
minha vivência, alcançando pessoas de diversos públicos e idades. Desde a juventude à
maturidade. Da artista àquela que não desenha. Apesar do alcance restrito, o interesse das
pessoas se demonstrou grande e verdadeiro. Percebi que, de fato, existe uma lacuna entre a
artista e a prática escrita, e também, uma vontade profunda de se aproximar desta. Essa
necessidade se revelou quando perguntei as motivações e expectativas e recebi respostas
como:
Me identifiquei muito com a questão da dificuldade na escrita e ultimamente venho
me permitindo escrever mais sobre tudo, desencadeando processos e projetos mesmo
que de forma um pouco desordenada. Espero agregar conhecimentos ao meu
processo de experimentos da escrita. (L.D.)
113
A escrita em artes visuais é um processo de compreensão do próprio trabalho artístico,
que possibilita àquela que escreve compreender mais profundamente sobre si, sobre sua
criação e pensar em caminhos e estratégias para superar os obstáculos do caminho. Durante a
criação desse texto, por exemplo, tive a oportunidade de rever meu percurso criador desde a
infância e me sinto mais capaz de produzir sonhos, de imaginar um futuro para minha criação
artística. Para além de escrever, a oficina sugere a percepção das letras, desenhos, fotografias,
literatura, da complexa teia de conexões em que criação acontece.
Durante a oficina as participantes tiveram a oportunidade de evidenciar de que modo
um acontecimento se relaciona com o outro, e de entender como se situa no meio
sócio-histórico-cultural em que está inserida. Nas produções da participante A.A. (p.117)
vemos a percepção da obra se alargar. O texto ganha tamanho e densidade. De modo que, em
uma de suas últimas atividades, a artista narra:
Há tanto tempo faço coisas que me convenci a mim mesma que iriam agradar aos
outros. Eu nem sei direito o que me agrada mais. O desenho às vezes parece uma
coisa automática para mim. Eu faço o que é preciso, da maneira que “deve” ser feita.
(A.A. 2023)
Na fala de A.A. é possível perceber que existe uma maior aproximação entre artista e
texto. Através do tempo e da prática escrita, foi construída uma intimidade. Além disso, se
torna evidente de que forma a vida material e a subjetividade se entrelaçam e refletem na
produção da artista, levando ao movimento e também à estagnação. A estagnação é um
desconforto. Um ponto de ebulição na transformação artística. É quando a artista percebe que
algo que está estagnado precisa mudar. Transformar. Criar.
A turma
A turma, que inicialmente foi pensada para o público de 20 pessoas, teve uma
aderência total de 36 participantes. Foi aberta uma exceção na quantidade de participantes
devido à demanda e ao interesse de colegas e artistas. A quantidade de participantes não
acarretou em problemas para a dinâmica da oficina e só contribuiu para as trocas das pessoas
envolvidas. Embora com receio que a quantidade de pessoas pudesse me sobrecarregar, levei
em consideração a dificuldade de aderência dos alunos ao processo de participação em
oficinas, aulas, atividades e à possibilidade de evasão.
114
De fato, o processo de evasão aconteceu. Encontrei muitas participantes pelos
corredores do departamento ou pelas mensagens do Instagram, que se sentiam mal por não
responder às atividades. No livro Gesto Inacabado, Cecília Salles discorre sobre como o
prazer e o desprazer do ato criador podem dificultar o início ou a continuidade da prática
artística. Refletindo sobre as ideias de Valéry e Garcia Marquez, a autora escreve:
O artista encontra, ao longo de todo percurso, problemas infinitos, conflitos sem fim,
provas, enigmas, preocupações e mesmo desesperos que fazem do ofício do poeta um
dos mais incertos e cansativos que possam existir. [...] O momento mais difícil do
romance é começar” (SALLES, p.86. 2011)
Como discutido ao decorrer dessa pesquisa, os motivos que levam a não criar são
muitos. Acredito que é difícil não somente começar, mas se envolver e ter disciplina.
Disciplina é uma constância que busco estimular no curso ao propor aulas semanais, e que
aprendi a desenvolver durante a elaboração deste trabalho. Foi preciso sentar todo dia para
escrever e hoje, inacreditavelmente um texto se materializa na minha frente. Me emociono e
percebo: Para dar início ao processo criativo é fundamental se propor a criar.
Diante dessa pesquisa, começo a refletir mais concretamente sobre de que maneira,
como arte-educadora, eu poderia estimular uma maior participação nas aulas. Por exemplo:
Percebo que conseguir presença no ambiente virtual é difícil. É um ambiente volátil, passível
de ghosting - prática de sumir sem dar explicações. Como contornar? Como aliar o tempo do
processo de ensino ao de criação/aprendizagem? Como obter respostas?
Penso também, que para além da presença nas aulas, o material didático excretado
dessa oficina é uma força por si só. Até que ponto ele é suficiente? Auto explicativo?
Atemporal? Começo a pensar sobre qual a melhor formato de transmitir um conteúdo, de
dispor as atividades e de dialogar. Sigo buscando as respostas e enquanto isso, espero
contribuir da melhor maneira que puder, estimulando a escrita em artes visuais nos momentos
de dificuldade.
Deixar amadurecer inteiramente [...] e aguardar com profunda humildade e paciência
a hora do parto de uma nova claridade: só isto é viver artisticamente na compreensão
e na criação. O tempo não serve de medida - ser artista não significa calcular e
contas, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva. Aprendo
diariamente: A paciência é tudo” (Rilke, 1980. p 82)
115
partir das inscrições no Google Forms. Embora em minoria, também haviam alunos do
Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Imagem 66. Escolaridade das participantes da oficina Grafias de si. 2023. Google Forms.
116
riscável”. Com essa instrução, propus trazer à luz da percepção a escolha do material como
um fator importante na produção artística.
Imagem 67. Produções da participante A.A. 2023. Lápis branco sobre tela preta.
Fonte: Foto de A.A.. na Oficina grafias de si: a prática escrita em artes visuais.
As aulas
As aulas tiveram início no dia 08/05/23, e assim seguiram com os e-mails sendo
enviados todas as segundas-feiras, conforme o cronograma pré-estabelecido, encerrando na
semana do dia 12//06/23.
Para elaborar as aulas, percebi que seria necessário definir uma espécie de projeto
gráfico das aulas. Um formato esteticamente confortável para as leitoras. Busquei compor um
texto rico e leve, que caminha com imagens no limite da abstração. Me propus a escrever um
texto que desse quase que pra flutuar sobre ele. Simples.
Depois de pesquisar sobre formato de newsletter, descobri inúmeras possibilidades e
plataformas de difusão, como o substack. Por fim, escolhi o e-mail. Porque me pareceu mais
comum, conveniente, acessível. Uma barreira tecnológica a menos. Diante da minha escolha,
117
percebi que teria um obstáculo para dispor das imagens e colocar vídeos no corpo do e-mail.
Queria alcançar a maior qualidade possível na imagem sem comprometer o carregamento da
página.
Diante dessas evidências do processo, defini uma estrutura lógica para a disposição do
conteúdo na página, composto de um cabeçalho, corpo e atividade final. Me inspirei nas
newsletter que consumo no dia a dia, como a cargo collective e o nexo jornal. A sequência
didática de todas as aulas está disponibilizada no tópico sequência didática.
118
À medida que fui elaborando as aulas, fui percebendo que todos os temas estão
intrinsecamente ligados, de modo que se tornou muito difícil dividi-los em caixinhas
específicas. Diante disso, percebi que a melhor saída era bem óbvia: Optei por tecer a
complexa trama de aprendizado, entrelaçando uma aula na outra. Portanto, a 1ª Aula -
Introdução, por exemplo, se encerra com um exercício, cujo conteúdo vai ser aprofundado na
aula seguinte. E ainda, de maneira mais complexa, retomo na atividade da 5ª aula - Morte e
Renascimento, a reflexão que proponho na 3ª aula - Nutrição, sob outra perspectiva.
Fonte: Foto de L.A. na Oficina grafias de si: a prática escrita em artes visuais.
O desenho não é muito diferente da escrita. De acordo com Ana Mae Barbosa, a
imagem e a escrita estão profundamente relacionados, visto que a prática artística contribui
no discernimento visual, processo essencial na alfabetização. A comunicação verbal alimenta
a comunicação não-verbal e vice-versa. Pensando nisso, busquei mesclar ao máximo a prática
escrita ao desenho por meio da reflexão sobre o próprio processo de criação, o resgate das
memórias, a relação com o presente e a prospecção para o futuro. É possível ver o resultado
dessa proposta na resposta da participante L.A.:
Eu comecei a criar quando era criança. Nossa, como é difícil escrever - me sinto
revivendo o sentimento infantil de me deparar pela primeira vesz (sic) com essa
dificuldade. Diria que minhas primeiras criações foram meus primeiros sonhos. Os
sonhos são criações do inconsciente. Isso faz de todo mundo criadores e isso é lindo.
119
Depois eu criei desenhos e os entregava à minha mãe. Desenhava a natureza não
humana. (L.A. 2023. Transcrição Livre)
4 Sequência Didática
1ª Aula - Introdução
120
2ª Aula - Nascimento
1º Introdução 1’
3ª Aula - Nutrição
4ª Aula - Desenvolvimento
121
2º Reflexão sobre o ensino-aprendizagem em arte e o “período 10’
de opressão” (Davis & Gardner)
122
CARGA HORÁRIA TOTAL 8h
5 Material Didático
O material didático elaborado para essa oficina foram os e-mails, que podem ser
encaminhados e também impressos. O e-mail possibilita anexar a seu conteúdo texto,
imagens, vídeos, gifs e criar links para o mundo externo e além disso, gerar um arquivo pdf.
Esse formato se demonstrou suficiente e adequado à proposta da oficina: ser um conteúdo
simples, acessível e leve.
Para compor a aula, criei cerca de 55 ícones. Os desenhos foram feitos a mão depois
escaneados, editados e salvos em .png, para obter uma melhor definição da imagem.. Alguns
dos ícones também foram criados a partir de desenhos antigos, em sua completude ou apenas
um recorte.
Imagem 71. Processo de criação da oficina grafias de si. Fotografia. 2023.
Imagem 72. Processo de criação da oficina grafias de si. Documento escaneado. 2023.
O material didático também agregou obras de outra de outras artistas, como Hilma Af
Klint e Louise Bourgeois, e vídeos que permeiam as ideias desenvolvidas neste curso, como o
filme Pelas Águas do Rio de Leite (2018) da Diretora Aline Scolfaro. Essas imagens
contribuíram para alcançar o projeto poético que eu tinha em mente e adicionar substância
aos conteúdos das aulas.
A princípio, esse curso só está disponível em formato e-mail e pdf. Pensei nesse curso
e todo esse trabalho de conclusão de curso, de modo geral, como uma verdadeira pesquisa.
123
Um texto inicial com potência para ser expandido, diagramado e distribuído. Vejo a
possibilidade de desdobramentos.
Imagem 73. Printscreen da pasta de ícones em .png elaborados para o material didático. 2023.
Usei dessa experiência de preparar aula e também um material didático para exercitar
possibilidades no meu desenho e investigar a relação das imagens com o texto. Preparando
as peças gráficas para esse curso, aprendi novas habilidades com programas de edição de
imagem e de design, que tenho interesse em me aprofundar. De modo que, pretendo elaborar
meus próximos trabalhos acadêmicos levando em consideração o projeto gráfico, muito
inspirada pela obra Caderno de Campo (2017-2018) da artista, designer e professora Vânia
Medeiros.
Depois desse trabalho me sinto capaz de elaborar um material didático em arte e me
proponho o desafio de diagramar não somente este curso, mas também de continuar
pesquisando e produzindo instrumentos em arte-educação. Diante disso, já começo a mapear
cursos, editoras, residências artísticas e possibilidades de expandir meu projeto poético e de
contribuir para o ensino-aprendizagem em arte.
124
Aqui, desenhei as linhas da minha história e, a partir disso, busquei estratégias para
que outras artistas possam escrever suas próprias histórias. Meu percurso foi guiado pelo
próprio caminho, pelos altos e baixos. Diria que cheguei aos lugares possíveis, mas não ao
idealizado. Fico, portanto, feliz. Feliz porque isso me aterra, me coloca em contato com o que
eu realmente preciso aprender.
Imagem 74. Ícone criado em .png para oficina grafias de si. 2023.
Durante essa pesquisa, entendi que a cultura é uma memória coletiva e por isso é tão
importante excretar nossos valores, criar alinhavada nisso. Existe em toda obra uma carga
genética, histórica e social. Dito isto, acredito profundamente que a artista é um ser que
transforma. Acredito no potencial da arte de mudar as coisas.
Esse texto é parte do meu processo criativo. Portanto, me enche de vida saber que o
construí, que simplesmente fui em frente e escrevi, processei as ideias que pairavam na minha
cabeça e agora posso ir em direção a novas ideias. Me transformei. E com essa pesquisa
espero poder contribuir no fluxo de transformação do mundo, rumo ao respeito à natureza, à
diversidade, arte e educação.
Crio, e quanto mais crio me sinto impelida a criar. A arte não tem regras, mas deve
ter limites. Éticos e estéticos. O limite nos leva a criar. E criar, por si só, é desafiador. Me
pergunto: Somos movidas pela criação? Pela possibilidade de se transformar? Me sinto o
tempo todo no limite, entre o que começa e o que termina, como um botão prestes a florescer
ou uma folha seca, no limite de cair de seu pedúnculo. Por um triz, simplesmente crio.
125
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