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Inimigas naturais: Aranhas caranguejeiras servem de alimento a larvas de


vespas caçadoras

Article in Ciência Hoje · January 2005

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Felipe Rego Cristina A. Rheims


University of Brasília Instituto Butantan
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Eduardo Venticinque
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PRIMEIRA LINHA
ETOLOGIA Aranhas caranguejeiras servem de alimento a larvas de vespas caçadoras

Inimigas naturais
Imagine ser imobilizado por um veneno paralisante e ter o corpo devorado por uma larva? É isso o que

acontece às caranguejeiras atacadas por vespas caçadoras do gênero Pepsis. Embora a natureza

às vezes nos pareça cruel, essas vespas estão apenas completando seu ciclo reprodutivo de modo

muito peculiar. Por Felipe do N. A. de Almeida Rego, do Departamento de Ecologia (Universidade

de Brasília), Cristina A. Rheims, do Laboratório de Artrópodes (Instituto Butantan) e do Departamento

de Zoologia (Universidade de São Paulo), e Eduardo M. Venticinque, da Wildlife Conservation Society

e do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

e Smithsonian Institute).

O
s primeiros relatos científicos de vespas ata- marimbondos, atacadas ao cair desafortunadamen-
cando aranhas foram feitos pelo engenheiro te nas teias daquelas ou capturadas ao visitar flores
militar e naturalista espanhol Félix de Azara (1742- em busca de alimento. Quando a aranha leva vanta-
1821), em fins do século 18, e pelo notório biólogo gem sobre a vespa, a morte desta é rápida. Algumas
inglês Charles Darwin (1809-1882), durante a pas- vespas, porém, também atacam aranhas, e nesses
sagem do navio Beagle pelo Rio de Janeiro, em 1832. casos as vítimas podem ser devoradas, ainda vivas,
A alta diversidade desses animais na natureza pos- durante semanas, por larvas de suas inimigas.
sibilita inúmeras relações entre eles: hoje, são conhe- Assim como borboletas, moscas e outros insetos,
cidas pelo homem cerca de 38 mil espécies de ara- os himenópteros (vespas, abelhas e formigas) sofrem
nhas, que podem eventualmente ser mortas por mais metamorfose e precisam passar pelos estágios de lar-
de 12 mil espécies de vespas caçadoras (figura 1). va e pupa antes de atingir a fase adulta. Entretanto,
Aranhas consomem uma ampla gama de insetos, algumas vespas, durante o estágio larval, desenvol-
incluindo vespas, também chamadas de cabas ou vem-se dentro de outros organismos ou sobre eles, e
por isso são chamadas de parasitóides. Há espécies
que atacam plantas, provocando o surgimento de ca-
roços ou tumores nas folhas, chamados de galhas, en-
quanto outras se aproveitam de artrópodes, como fa-
zem as vespas Pepsis, exímias caçadoras de aranhas.
São conhecidas na América Latina cerca de 100
espécies do gênero Pepsis. Apenas as fêmeas cap-
turam aranhas, enquanto os machos se encarregam
da procura de parceiras para a cópula. Essas vespas
FOTO DE FELIPE N. A. A. REGO

Figura 1. Vespas caçadoras atacam aranhas


caranguejeiras e as utilizam como fonte de alimento
para suas larvas – na imagem, caranguejeira do gênero
Avicularia após ser paralisada por uma vespa
da espécie Pepsis frivaldszkyi

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PRIMEIRA LINHA
Figura 2. As caranguejeiras são as maiores aranhas
FOTO DE FERNANDO C. FRICKMANN

do mundo, e algumas são tão grandes quanto a mão


de um homem, como a Theraphosa blondii da imagem,
uma fêmea, coletada próximo a Manaus (AM)

As caranguejeiras são aranhas consideradas pri-


mitivas pelos cientistas e podem ser facilmente di-
ferenciadas das demais pelo posicionamento e pela
movimentação dos espinhos de suas quelíceras. Es-
sas estruturas integram o aparelho bucal das ara-
nhas e nunca se cruzam em seus movimentos de
cima para baixo, ao contrário do que ocorre nas es-
pécies que costumamos ver em teias construídas so-
bre plantas e até mesmo em quinas de parede.

A luta pela sobrevivência


O comportamento reprodutivo de vespas Pepsis ilus-
tra de modo geral o encontro entre esse himenóptero
e sua presa. As fêmeas buscam alimento próximo ao
solo, realizando vôos curtos e rápidos que produzem
têm as pernas compridas e o corpo robusto, geral- intenso zumbido devido à vibração de suas asas. As
mente apresentam uma coloração escuro-azulada e vespas Pepsis podem encontrar as aranhas hospe-
se alimentam do néctar de flores. Ao contrário de deiras de suas larvas casualmente ou procurá-las
muitos himenópteros que vivem em grupos, como em seus ninhos. Localizada a presa, começa o com-
as formigas, muitas espécies de abelhas e certas ves- bate, que a vespa geralmente vence. Armadas com
pas (ver ‘Vespas sociais brasileiras’, em CH nº 202), suas quelíceras, que terminam em espinhos condu-
as vespas caçadoras são solitárias. Podem apresen- tores de veneno, as aranhas são capazes de ferir ou
tar um aspecto metálico, atingem até 9 cm (compri- até matar seus oponentes, não sendo presas fáceis.
mento do corpo) e têm, no final do abdômen, um As lutas costumam ser rápidas. As vespas, ajuda-
ferrão inoculador de veneno. São notórias por sua das pelas longas pernas cheias de espinhos, conse-
dolorosa picada, pela agressividade e pela habilida- guem manter as caranguejeiras afastadas, evitando
de em capturar indivíduos de grande porte, como seus contra-ataques. Com a habilidade de uma es-
caranguejeiras. grimista, a vespa utiliza seu ferrão como uma espa-
Essas aranhas são as maiores do mundo: espécies da para injetar um veneno paralisante nas partes
como a Theraphosa blondii podem medir mais de moles da parte anterior do corpo da vítima (o cefa-
25 cm, ou seja, atingem o tamanho da mão de um lotórax). É nesse segmento que está localizado o cen-
homem adulto (figura 2). Caranguejeiras são caça- tro nervoso dos aracnídeos. Após várias estocadas,
doras ativas e, portanto, tecem teias para unir e pro- a caranguejeira é imobilizada. O golpe derradeiro,
teger seus ovos e não para obter alimento. Esses se- aplicado na região bucal, faz com que a aranha ador-
FOTOS DE F. PÉREZ-MILES, F. G. COSTA, M. LALINDE E A. MIGNONE, TARÁNTULAS DEL URUGUAY, 2001

res peludos e, para muitos, de aparência assustado- meça por longo período. Indefesa, a aranha não con-
ra, podem consumir até pequenos ratos e pássaros, segue evitar que a vespa deposite, sobre seu abdô-
mas não causam acidentes sérios ao homem, já que men, apenas um ovo, do qual eclodirá a larva que a
sua maior ameaça a este são pêlos urticantes. Usa- consumirá até a morte (figura 3). 
dos para afugentar predadores, esses pêlos causam
coceira e irritação em contato com a pele e são ex-
tremamente desagradáveis quando inalados. Entre-
tanto, já é comum encontrar pessoas que adotam
caranguejeiras como animais de estimação.

Figura 3. Larvas de vespas caçadoras desenvolvem-se


sobre aranhas caranguejeiras, alimentando-se
de seus tecidos – nas imagens, obtidas em laboratório,
a aranha Acanthoscurria suina permaneceu viva
por vários dias, até que seus órgãos vitais fossem
consumidos pela larva da vespa Pepsis cupripennis

janeiro/fevereiro de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 69


PRIMEIRA LINHA
Figura 4. Vespas são capazes de carregar presas
seis vezes mais pesadas que seu próprio corpo
– na imagem, vespa da região amazônica
(Pepsis frivaldszkyi) ‘rebocando’ uma caranguejeira
(Avicularia) viva e paralisada até um abrigo

mais artrópodes e propiciam um feroz espetáculo


de luta pela sobrevivência.
A vespa, medindo 5,4 cm (sem contar as pernas)
e pesando 674 mg, foi capaz de imobilizar e subju-
gar uma caranguejeira de 9,3 cm de comprimento e
seis vezes mais pesada. A aranha foi morta antes de
atingir sua maturidade sexual e, devido à ausência
Algumas vespas caçadoras encerram seu papel de uma genitália desenvolvida, não foi possível de-
no ciclo reprodutivo logo após a oviposição, mas ou- terminar sua espécie. Findo o combate, a vencedora
tras transportam a presa até local seguro para o de- parecia morder com suas mandíbulas o cefalotórax
senvolvimento da prole. Elas cavam buracos em ocos da Avicularia, que permanecia totalmente imóvel,
de árvores ou no solo, em áreas protegidas por raízes, com o ventre para cima e as pernas recolhidas junto
e enterram a aranha paralisada e ainda viva. As lar- ao corpo. A hemolinfa que fluía da caranguejeira
vas de Pepsis alimentam-se dos tecidos da aranha era prontamente ingerida pela vespa, o que propicia
até iniciarem a fase de pupa. Quando atingem a a reposição da energia perdida durante a luta.
maturidade, após a transformação final, já têm man- Pouco depois, prendendo com as mandíbulas uma
díbulas desenvolvidas o suficiente para cavar uma das pernas da caranguejeira, a vespa começou a ca-
saída e abandonar o abrigo. minhada rumo a um abrigo, deslocando-se rapida-
mente, de costas e sem interrupções. P. frivaldszkyi
Duelo de gigantes demonstrou força e habilidade ao arrastar, terreno
Um exemplo do comportamento reprodutivo das ves- acima, sobre folhas, pequenos troncos e raízes, a
pas caçadoras de aranhas é o ataque de uma Pepsis caranguejeira ainda paralisada (figura 4). Percorreu
frivaldszkyi a uma caranguejeira do gênero Avicu- 30 m em menos de cinco minutos, até chegar a uma
laria, que nunca havia sido observado na natureza. cavidade formada junto às raízes de uma envira-pre-
Esse encontro foi acompanhado perto da cidade de ta (Guateria olivacea), árvore da família Annonaceae
Itacoatiara (AM), na margem esquerda do rio Ama- comum nas florestas inundadas da Amazônia (figura
zonas, a 280 km de Manaus. Ambas as espécies, que 5). Ali, a aranha provavelmente seria enterrada e de-
podem ser encontradas nas florestas alagadas da vorada ainda viva durante dias, já que a larva conso-
Amazônia, são bem maiores que a maioria dos de- me por último os órgãos vitais da aranha, para con-
servar seu alimento fresco por mais tempo. Se os ani-
mais não tivessem sido coletados para estudos, a lar-
va poderia se tornar uma vespa fêmea. Essa suspeita
baseia-se em pesquisas, lideradas pelo biólogo uru-
guaio Fernando Costa, do Instituto de Investigaciones
Biológicas Clemente Estable, de Montevidéu, segun-
do as quais os indivíduos que se alimentam de ara-
nhas grandes (pesando seis vezes mais que seu pre-
dador) têm maiores chances de se tornar fêmeas.
Outro detalhe curioso foi o fato de a vespa não
hesitar em seguir o caminho mais curto (pratica-
mente em linha reta) em direção ao abrigo. Isso su-
FOTOS DE FELIPE N. A. A. REGO

Figura 5. Cavidades formadas por raízes de árvores


são usadas como abrigos pelas vespas para esconder
suas presas e proteger as larvas de predadores
– na imagem, envira-preta (Guateria olivaceae) em cujas
raízes a vespa P. frivaldszkyi encontrou o abrigo
(no detalhe) onde enterraria a aranha que capturou

70 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 2
PRIMEIRA LINHA
gere que ela já ‘conhecia’ o local onde a presa seria substituem um ovo já depositado antes pelo seu pró-
confinada. Há espécies que realmente utilizam os prio ovo. Assim, confinar a caranguejeira em um
mesmos locais onde nasceram como esconderijo. abrigo cria uma barreira física ao ataque de inimi-
Darwin relata que uma Pepsis se afastou da aranha gos que pode compensar o custo energético envolvi-
após tê-la picado, provavelmente para procurar um do na reprodução e aumentar as chances de sobrevi-
abrigo enquanto o veneno paralisante agia. Na Ama- vência da prole de P. frivaldszkyi. Algumas vespas,
zônia, é possível que o mesmo tenha ocorrido, pois a porém, atacam aracnídeos dentro de suas tocas, e
observação de formigas sobre o corpo da caran- fazem destas ótimos esconderijos para suas larvas.
guejeira indica que estas tiveram tempo suficiente Nesses casos, gastam menos energia, pois não trans-
para se aglomerar sobre a essa ‘refeição’ após o tér- portam suas presas até um abrigo.
mino do combate. Assim, a Avicularia pôde ser trans- Estudos sobre o ciclo reprodutivo de outra vespa
portada pelo caminho mais curto, em menor tempo parasitóide de aranhas (Pepsis cupripennis), feitos
e exigindo menor consumo de energia por parte da também pela equipe de Fernando Costa, concluí-
vespa. Durante a localização de um abrigo existe o ram que elas podem demorar mais de sete meses
risco da presa ser ‘roubada’ e, talvez por isso, a para atingir a fase adulta. As larvas devoraram seus
oviposição na aranha só ocorra momentos antes des- hospedeiros em menos de três semanas e se torna-
ta ser enterrada. ram pupas, permanecendo às vezes mais de seis
Aranhas capturadas em campo aberto podem ser meses nessa etapa de seu desenvolvimento. Após
‘rebocadas’ por mais de 150 m até um local seguro, abandonar o abrigo, as vespas Pepsis têm outras
comportamento que pode ser entendido como uma batalhas pela frente. Além das aranhas, terão que
forma de cuidado materno. Larvas de outras vespas enfrentar ou evitar seus predadores, em especial
caçadoras (como as da família Sphecidae, que acu- aves e lagartos, e visitar muitas flores cheias de
mulam muitas aranhas pequenas em seus ninhos) competidores também famintos por néctar. Talvez
podem ser atacadas por moscas parasitóides ainda por isso sejam tão boas de briga. Que o digam as
dentro do hospedeiro e há espécies de vespa que caranguejeiras! ■

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